Instituições de ensino e famílias reproduzem lógicas de mercado e trabalho, causando adoecimento, intolerância e vergonha
Belinda Mandelbaum, Psicanalista e professora titular do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho da USP. Autora de “Psicanálise da família” (Artesã, 2020) e “Trabalhos com famílias em Psicologia Social” (Blucher, 2023)
Folha de São Paulo, 23/07/2023
Ficamos horrorizados ao tomar conhecimento de episódios de violência em escolas, que resultaram no brutal assassinato de crianças, adolescentes e adultos, e em traumas psíquicos que perduram naqueles que testemunharam esses acontecimentos de perto ou de longe.
Diante desse horror, nós, pais e educadores, nos perguntamos atordoados o que fazer para auxiliar nossas crianças a lidar com essa brutalidade, de forma a elaborarem pessoal e coletivamente o possível, e não perderem o gosto e a confiança na escola, sentimentos que ficaram abalados em tantos de nós.
Parte do modo de darmos sentido a esses acontecimentos é buscar explicações que, no geral, tendem a se deter nas patologias mentais dos perpetradores. E isto, de fato, é parte da explicação: os assassinos via de regra têm histórias pessoais traumáticas, resultantes de violências sofridas na infância e juventude, como maus tratos e humilhações em casa, na escola, na rua.
Mas, alguma reflexão que conseguirmos fazer sobre essas histórias pessoais já nos obriga também a ampliar o nosso foco de compreensão das causas e sentidos da violência, que partem da psicologia dos perpetradores e vão em direção à constatação de como atos de violência física, psicológica e moral fazem parte do cotidiano das instituições de ensino. Se manifestam em diversificadas práticas de agressão, desrespeito e humilhação, e ocorrem com maior frequência quando as vítimas são ou mostram-se mais vulneráveis por quaisquer diferenças que se apresentem.
Raça, gênero, orientação sexual, classe social, incapacidades físicas ou psicológicas são algumas delas.
Crianças e adultos no espaço escolar podem ser estigmatizados e discriminados por mínimas diferenças em relação aos padrões socialmente valorizados. Todos temos ou já tivemos essas experiências: há violência dentro e fora da sala de aula, nas atividades esportivas e recreativas –por exemplo, quando os jogos perdem as suas potencialidades de prazer, cooperação e socialização para se tornarem competições frenéticas e desesperadas pela superação e alcance dos melhores desempenhos.
A escola hoje, tal como uma empresa, foi tomada por uma lógica competitiva e avaliativa, reproduzindo em seu interior os modos hegemônicos das relações de mercado e trabalho. A escola “prepara” os alunos para o mundo da competição, da (auto)avaliação contínua, da exigência de incessante superação das metas, até o limite da exaustão. E não dar conta ou adoecer pode ser alvo de intolerância e vergonha.
Tudo ocorre tal como nos games, em que aos vencedores há a promessa de riqueza e sucesso, e aos perdedores resta a humilhação, a exclusão, até o extermínio. Isto está em toda parte hoje, como uma ideologia que tende a ser totalitária em nossas vidas. Está também dentro das nossas casas, nas expectativas e ansiedades que vivemos em relação a nós mesmos e aos filhos desde o nascimento.
Enfraquecer ou adoecer se tornou sinônimo de intolerância e vergonha. É preciso repensar esse modo de vida, pelo mal que nos tem causado no corpo, na mente e nas nossas relações em todos os espaços sociais, ainda que a tendência seja estarmos convencidos de que não há alternativa, não há outra forma de viver.
Mas, a conversa em casa e na escola a partir das violências ocorridas e seu impacto em todos nós, crianças e adultos, pode já ser parte de outra forma de viver. Assim, abrimos uma brecha, um espaço e um tempo para que o outro se sinta à vontade para falar do seu jeito, do que sente e pensa, de suas fantasias, temores e ansiedades. Sem julgarmos, apenas ouvindo, acolhendo e pensando juntos, podemos ser transformadores de modos profundos, surpreendentes e inusitados.
Quem sabe assim também possamos nos dar conta de nossas próprias violências.