Desencadeado pela pandemia de covid-19, o desabastecimento substitui o excesso de oferta como maior obstáculo para o crescimento global
The Economist – 10/10/2021 – Publicado O Estado de São Paulo
Durante uma década, após a crise financeira, o problema da economia mundial foi a redução de gastos. Famílias preocupadas pagaram suas dívidas, governos impuseram austeridade e empresas restringiram os investimentos, enquanto contratavam funcionários de um aparente infinito conjunto de trabalhadores. Agora, os gastos voltaram com força, conforme os governos estimulavam a economia.
O aumento repentino na demanda é tão intenso que os estoques têm dificuldade em dar conta. Os motoristas de caminhão ganham bônus ao assinar contratos, uma frota de navios porta-contêineres ancorada ao longo da Califórnia espera os portos serem liberados, e os preços da energia sobem vertiginosamente. À medida que a inflação assombra os investidores, a abundância da década de 2010 dá lugar à economia da escassez.
A causa imediata é a Covid-19. Cerca de US$ 10,4 trilhões em estímulo global à economia desencadearam uma forte recuperação, porém desigual, na qual os consumidores estão gastando mais do que o normal com bens, aquecendo cadeias de suprimentos globais famintas. A demanda por produtos eletrônicos disparou durante a pandemia, mas a escassez dos microchips necessários para a fabricação deles atingiu a produção industrial em algumas economias exportadoras, como Taiwan. A propagação da variante Delta fechou fábricas de roupas em partes da Ásia.
No mundo rico, a mudança de emprego está baixa, as ajudas financeiras rechearam as contas bancárias, e poucos trabalhadores têm vontade de deixar empregos menos populares, como vender sanduíches nas cidades, para outros com demanda, em armazéns, por exemplo. Do Brooklyn a Brisbane, os empregadores estão em uma disputa louca por mãos extras.
A economia da escassez também é resultado de duas forças mais profundas. Primeiro, a descarbonização. A mudança do carvão para a energia renovável deixou a Europa vulnerável ao pânico do fornecimento de gás natural que, em um momento desta semana, fez os preços à vista subirem em mais de 60%.
Um aumento no preço do carbono no esquema de comércio de emissões da União Europeia dificultou a mudança para outras formas mais poluentes de energia. Regiões da China enfrentaram cortes no fornecimento de energia enquanto algumas das províncias do país lutavam para cumprir rígidas metas ambientais. Os preços altos do transporte de mercadorias e de componentes de tecnologia estão elevando as despesas de capital para expandir a capacidade.
Enquanto o mundo tenta se desabituar da energia “suja”, o incentivo para investimentos de longa duração na indústria de combustíveis fósseis é fraco.
A segunda força é o protecionismo. A política comercial não é mais elaborada com a eficiência econômica em mente.
Esta semana, o governo de Joe Biden confirmou que manteria as tarifas de Donald Trump sobre a China, em média em 19%, prometendo apenas que as empresas poderiam solicitar isenções (boa sorte na batalha com a burocracia federal). Em todo o mundo, o nacionalismo econômico está contribuindo para a economia da escassez. A falta de motoristas de caminhão na Grã-Bretanha foi exacerbada pelo Brexit. Após anos de tensões comerciais, o fluxo de investimentos entre países por empresas caiu para mais da metade em relação ao PIB mundial desde 2015.
Tudo isso pode parecer uma reminiscência dos anos 1970, quando muitos lugares enfrentavam filas nos postos de gasolina, aumentos de preços de dois dígitos e crescimento lento. Há cinquenta anos, os políticos cometeram um grave erro com a política econômica, lutando contra a inflação com medidas fúteis, como controle de preços e a campanha Whip Inflation Now (algo como “Derrote a Inflação Já”) de Gerald Ford, que incentivava as pessoas a plantar seus próprios vegetais. Hoje, o Federal Reserve (Fed) está debatendo como prever a inflação, mas é consenso que os bancos centrais têm o poder e o dever de mantê-la sob controle.
Por enquanto, uma inflação fora de controle parece improvável. Os preços da energia devem diminuir depois do inverno no hemisfério norte. No próximo ano, o avanço com vacinas e novos tratamento para a covid-19 devem reduzir os transtornos. Os estímulos fiscais serão encerrados em 2020: Biden está tendo dificuldades em passar sua proposta de orçamento gigante pelo Congresso, e a Grã-Bretanha planeja aumentar impostos. O risco de quebra no setor de habitação da China significa que a demanda poderia até cair, trazendo de volta as condições fracas da década de 2010. E um aumento nos investimentos em algumas indústrias acabará se traduzindo em mais capacidade e maior produtividade.
As forças mais profundas por trás da economia da escassez não vão desaparecer, e os políticos podem facilmente acabar adotando medidas arbitrárias. Um dia, tecnologias como o hidrogênio devem ajudar a tornar a energia verde mais confiável. À medida que os custos com combustível e eletricidade aumentam, poderia haver uma reação negativa.
Se os governos não garantem alternativas verdes adequadas aos combustíveis fósseis, eles podem ter de suprir a escassez flexibilizando voltando a usar fontes mais poluentes. Os governos, portanto, terão de planejar como lidar com os custos mais altos de energia e o crescimento mais lento que resultarão da eliminação de emissões. Fingir que a descarbonização resultará em um milagroso boom econômico certamente levará à decepção.
A economia da escassez também pode reforçar o apelo do protecionismo e da intervenção estatal. Os transtornos muitas vezes levam as pessoas a questionar dogmas da economia. O trauma da década de 1970 causou uma rejeição bem-vinda do “grande governo” intervencionista e keynesianismo rudimentar. O risco agora é que certas tensões na economia provoquem a rejeição da descarbonização e da globalização, com consequências devastadoras a longo prazo.
Essa é a real ameaça apresentada pela economia da escassez.