Tecnologia não é sinônimo de progresso, por Suzana Herculano-Houzel

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Parar de pensar acentua as desigualdades

Suzana Herculano-Houzel, Bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

Folha de São Paulo – 15/11/2024

Estou achando difícil ser um animal da espécie humana ultimamente, quando meu vício profissional é pensar o tempo todo em como chegamos aqui: somos fruto de uma sequência de oportunidades amplificadas exponencialmente por um truque tecnológico, o pré-processamento do que comemos, que colocou mais calorias em nossas bocas, mais neurônios em nosso cérebro, e mais tempo em nossas mãos.

A história sobre como alcançamos a biologia que temos, radicalmente transformada pela primeira tecnologia que nossos antepassados criaram, que foi o uso de pedras lapidadas na forma de ferramentas para modificar o que comiam, é a história da evolução biológica da nossa espécie.

A história sobre como nos tornamos os humanos que somos hoje é outra coisa: uma história de progresso. Evolução é apenas mudança ao longo do tempo, nem para pior, nem para melhor. Progresso, agora sim, é mudança que melhora a situação: que traz mais possibilidades, que abre portas, que gera complexidade que torna a vida mais interessante.

Na visão panorâmica da história da humanidade, progresso tem sido o produto do uso de mais e mais novas tecnologias, que geram oportunidades até então inexistentes e mudam a maneira de fazer e pensar. Cordas e machados, depois barro, cimento, concreto e aço transformaram onde vivemos; barro, depois papel e tinta, e então computadores e agora a internet mudaram como estendemos nossos pensamentos e memórias a repositórios externos que podemos consultar à vontade.

Mas esse tempo todo, cabia a nós, humanos, pensar. Juntar coisa com coisa e virar ideias na cabeça, com um problema em mente, até elas fazerem sentido. Usar a tecnologia não como um fim, mas como um meio. As tecnologias armazenavam e traziam informação —mas tornar informação em conhecimento sempre dependeu de humanos usarem a tal informação para melhorar sua vida. O progresso da humanidade não está simplesmente em dispor de mais informação, mas em transformá-la em conhecimento, acumulado e mantido vivo conforme geração após geração aprende a pensar, sintetizar, usar e transmitir.

Donde minha dificuldade, que vem de olhar ao redor e ver minha espécie fazendo muita, mas muita força para automatizar e terceirizar a geração de conhecimento, efetivamente excluindo-se da história. É sério que nós construímos toda uma riqueza de conhecimentos e civilizações diferentes para então gerarmos uma maneira de tornar o cérebro e a experiência humana… obsoletos?

Estou falando, é claro, da tecnologia dita “inteligência artificial” e do seu uso para direcionar a experiência humana. Já escrevi aqui que tecnologias que são apenas algoritmos repetitivos, mesmo que produzam à força de muito treino algo que é indistinguível de linguagem, não têm nada de inteligente, pois inteligência é flexibilidade. Tecnologias não são inteligentes; o uso que fazemos delas é que pode ou não ser.

Mas pior do que confundir algoritmo e automação com inteligência é pensar que todo e qualquer uso dessas tecnologias é inteligente e inevitavelmente traz progresso. Não é, e não traz. A história mostra que automação, sozinha, só enche os bolsos da elite que detém o poder, enquanto acentua a desigualdade.

Meu medo é que a humanidade, encantada com o brinquedo novo, não nota que ele rouba suas oportunidades para parar, pensar, e aprender, e se faz cada vez mais à mercê de uma elite pensante cada vez menor e mais rica.

 

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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