José Luís Oreiro – Valor Econômico, 22 de fevereiro de 2019.
A sociedade brasileira passa por uma profunda crise econômica, política e social desde 2013. As manifestações de 2013 foram o evento catalizador de um processo de crescente descrédito na classe política e, posteriormente, de outras instituições da República.
A insatisfação de parte expressiva da população com a performance dos políticos, em particular, e do Estado, em geral, foi incrementada pelos efeitos deletérios da recessão iniciada no segundo trimestre de 2014 – que foi detonada por um colapso do investimento do setor privado, que se contraiu por três trimestres consecutivos, a taxa de 10% por trimestre. Isso resultou de um processo de “profit squeeze”, ou seja, queda das margens de lucro e da taxa de retorno sobre o capital próprio das empresas não financeiras, a qual se tornou na mais duradoura e profunda crise econômica do Brasil nos últimos 30 anos. No auge da crise, mais de 14 milhões de brasileiros estavam desempregados e o PIB apresentou retração superior a 8% em termos reais, com destruição de riqueza de R$ 600 bilhões.
A recessão acelerou o desequilíbrio fiscal da União e dos entes subnacionais, muitos dos quais passaram a enfrentar dificuldades crescentes para manter o pagamento dos servidores em dia. A deterioração crescente do resultado primário da União a partir de 2014 gerou um crescimento acelerado da dívida pública como proporção do PIB, colocando o endividamento da União em trajetória claramente insustentável. A perda de espaço fiscal decorrente desses desdobramentos impediu a realização de uma política fiscal anticíclica justamente no momento em que a mesma era mais necessária. Pelo contrário, a política fiscal executada em 2015 foi francamente contracionista, amplificando assim os efeitos da recessão iniciada em 2014.
Outro fator que amplificou os efeitos recessivos do colapso do investimento privado foi a elevação da taxa básica de juros promovida pelo Banco Central em 2015, na tentativa de debelar os efeitos de segunda ordem que o aumento das tarifas dos públicas e dos combustíveis poderiam ter sobre a dinâmica da taxa de inflação.
O desemprego crescente aguçou a percepção de que a crise brasileira era o resultado da corrupção generalizada dentro do Estado, tal como estava sendo revelado ao público pela Lava-Jato. Essa percepção acabou por gerar um sentimento difuso de “ódio” à classe política, principalmente aos políticos diretamente ligados ao PT.
O imenso apoio popular ao impeachment da presidente Dilma Rousseff foi a demonstração clara de que, na cabeça do cidadão mediano, a crise era resultado direto da corrupção dirigida e organizada pelo PT e seus aliados. Nesse contexto, uma ampla parcela da população acreditava que o afastamento do PT do poder, pelo impeachment, cujas bases jurídicas eram duvidosas, seria uma condição necessária, quando não suficiente, para o fim da corrupção e para a retomada do crescimento econômico.
Os primeiros meses do governo Michel Temer pareciam apontar para uma retomada robusta do crescimento no início de 2017, ainda que poucas pessoas acreditassem na vontade do governo de combater a corrupção.
O governo Temer apresentou à sociedade brasileira uma narrativa essencialmente ortodoxa das causas da crise de 2014 a 2016. O problema fundamental era o desequilíbrio fiscal estrutural, resultado do “contrato social” estabelecido pela Constituição de 1988. Segundo economistas ligados ao governo, a Constituição havia produzido um conjunto de benefícios sociais para os mais pobres e de privilégios para os funcionários públicos que impunham um ritmo para o crescimento dos gastos públicos (entre 5 a 6% ao ano em termos reais) que era muito superior à capacidade de crescimento da economia.
Durante um certo período foi possível acomodar esse aumento dos gastos com o aumento da carga tributária. Contudo, a partir de 2011, a receita passou a crescer mais ou menos em linha com o PIB de tal forma que a deterioração do resultado primário da União tornou-se inevitável. Essa deterioração teria sido “mascarada” pelas “pedaladas fiscais” e outros artifícios de “contabilidade criativa”; mas, a partir de 2014, ficou impossível encobrir a verdade nua e crua de que o governo não era mais capaz de gerar superávits primários e que, portanto, a dívida pública entraria em trajetória explosiva. O desequilíbrio fiscal crescente acabou por gerar perda de confiança dos empresários no governo, o que se refletiu em elevação do prêmio de risco país, desvalorização da taxa de câmbio, queda dos preços das ações e elevação dos juros futuros. Esse quadro levou a uma queda dos gastos de investimento e de consumo, fazendo com que o país entrasse na pior recessão dos últimos 30 anos.
Face a essa narrativa, a solução para a crise era muito clara: o governo precisava fazer um ajuste fiscal estrutural, cujo foco deveria ser a redução do ritmo de crescimento das despesas. Para tanto, foi desenhada uma estratégia em duas etapas. Na primeira, o governo enviou para o Congresso uma PEC criando um teto de gastos para o governo federal. Esse teto não seria a solução do problema fiscal, mas apenas uma espécie de mecanismo que explicitaria o conflito distributivo existente dentro do orçamento. A ideia era congelar os gastos primários da União em termos reais por dez anos, ao final dos quais poderia ser modificado o indexador dos gastos públicos, que havia sido definido como a variação do IPCA no período inicial de vigência do teto.
O problema é que todos os itens das despesas obrigatórias (aposentadorias, pensões, salários do funcionalismo público, gastos com saúde e educação) apresentaram nos últimos 20 anos uma taxa de crescimento muito acima da variação do IPCA. Dessa forma, se nada fosse feito para reduzir o ritmo de crescimento desses gastos, o cumprimento da regra do teto obrigaria a administração federal a reduzir progressivamente os gastos discricionários, que incluem gastos com o investimento em infraestrutura, com o reaparelhamento das Forças Armadas e com a manutenção de instalações do governo federal.
Como é impossível manter o funcionamento da máquina pública federal sem a realização de um valor mínimo de gastos discricionários, segue-se que a ameaça de “shutdown” obrigaria o Congresso a realizar aquilo que foi denominado de “a mãe de todas as reformas”, a reforma da Previdência. Uma vez aprovada uma “boa” reforma, o desequilíbrio fiscal estrutural seria eliminado, e o teto dos gastos poderia, eventualmente, ser abolido. Nessas condições, o Brasil poderia retomar o crescimento em bases sustentáveis, pois se produziria uma “contração fiscal expansionista”, ou seja, o ajuste das contas públicas levaria automaticamente a um aumento do investimento e do consumo do setor privado.
A PEC do teto dos gastos foi aprovada no final de 2016 e tudo apontava para a aprovação de uma reforma da Previdência em 2017. As condições financeiras da economia brasileira (risco país, taxa de câmbio, juros futuros e índice Bovespa) apresentavam nítidos sinais de melhora no primeiro trimestre de 2017. A melhoria das condições financeiras ocorrida a partir do segundo semestre de 2016 permitiu ao BC iniciar um processo “lento, gradual e seguro” de redução da taxa de juros, o qual deveria, em algum momento, estimular o crescimento.
Mas no meio do caminho havia uma pedra, e essa pedra foi o escândalo da gravação das conversas, por assim dizer, pouco republicanas, entre o presidente da República e Joesley Batista, da JBS. A divulgação desses áudios produziu uma crise política de proporções gigantescas, obrigando o presidente a gastar todo o seu capital político e otras cositas más na tentativa de angariar apoio político para o seu governo e impedir um novo processo de impeachment. No fim do ano de 2017 já estava claro que a reforma da Previdência não teria condições políticas de ser aprovada durante o governo Temer.
Surpreendentemente os mercados financeiros não desabaram com o adiamento da reforma da Previdência. Índices de condições financeiras continuaram relativamente bem-comportados ao longo do segundo semestre de 2017 e no primeiro trimestre de 2018. Apesar disso, o crescimento foi decepcionante em 2017. O PIB apresentou expansão de 1,1% em termos reais, após dois anos de queda acentuada. No fim de 2017, a economia ainda se encontrava 6% abaixo do nível observado em 2013. E o pior, o desemprego superava 13 milhões de pessoas. A produção industrial encontrava-se ao nível de 2004, recuo de mais de 10 anos.
O ano de 2018 se inicia com grandes expectativas de aceleração do crescimento. O ministro da Fazenda esperava um crescimento entre 2,5% a 3%. Se essas expectativas se confirmassem, a taxa de desemprego poderia fechar o ano em torno de 10% da força de trabalho, gerando um saldo de 2 a 3 milhões de novos empregos. Nesse cenário róseo, o candidato à Presidência da República que encarnasse a continuidade da política econômica do governo Temer seria praticamente imbatível nas eleições de outubro.
Mas o otimismo de Henrique Meirelles mostrou-se sem fundamento. No primeiro semestre de 2018 a atividade mostrava sinais de recuperação muito lenta, embora a grande recessão tivesse oficialmente terminado no fim de 2016. A implantação do teto dos gastos pode ter até ancorado as expectativas dos agentes do mercado financeiro, contribuindo assim para a relativa estabilidade dos índices de condições financeiras; contudo, o seu cumprimento estava impondo redução sem precedentes, nos últimos 15 anos, dos gastos com investimento público.
A contração do investimento público – justamente o componente da despesa primária que possui o maior efeito multiplicador – atuou como mecanismo de desestímulo à demanda agregada, numa economia que estava operando com nível absurdamente elevado, para seus padrões históricos, de ociosidade da capacidade produtiva. A greve dos caminhoneiros, a crise econômica na Turquia e Argentina e a indefinição do quadro eleitoral contribuíram para aumentar a incerteza reinante entre agentes econômicos, que se expressou numa deterioração significativa do índice de condições financeiras ao longo do segundo semestre de 2018. Como resultado desses desdobramentos, o ritmo de recuperação da atividade econômica desacelerou e a economia deve ter fechado o ano passado com um crescimento em torno de 1%.
O quadro econômico desolador combinado com a constatação de que a corrupção na máquina pública não estava restrita ao PT levou uma ampla parcela da população a acreditar que os problemas só seriam resolvidos por um outsider da política tradicional. A maioria dos eleitores identificou em Jair Bolsonaro a pessoa que encarnava o anti-establishment.
Mas será que o governo Bolsonaro poderá atender ao desejo de mudança, ou melhor, será que o novo governo poderá recolocar o Brasil na trajetória de desenvolvimento?
Bolsonaro, influenciado pelo czar da economia, Paulo Guedes, parece acreditar que a reforma da Previdência, combinada com um programa ambicioso de privatizações, irá fazer o país sair daquilo que o próprio Guedes chamou de “armadilha de baixo crescimento”. Não é a primeira vez que se propõe uma ampla agenda de privatizações como solução para os problemas nacionais. Essa agenda foi extensamente adotada nos governos Collor e FHC.
A taxa média de crescimento no período 1990-2002 foi inferior a 2,5%, mesmo se expurgarmos os dois primeiros anos do governo Collor, quando a economia entrou em recessão devido ao “confisco das poupanças”. Também não é a primeira vez que se diz que um ajuste fiscal é fundamental para a retomada do desenvolvimento. Ajustes fiscais foram feitos em 1994-1995; 1999-2000, 2003-2004, 2011, 2015, 2016-2018. Nesses casos, apenas um deles, o período 2003-2004, foi seguido por um período de aceleração significativa e razoavelmente duradoura do crescimento. Nesse caso, a contração fiscal se mostrou expansionista devido ao espetacular aumento das exportações de manufaturados ocorrida no período 2002-2004, decorrente da enorme desvalorização da taxa de câmbio ocorrida em 2002. Em todos os demais casos, ou não houve aceleração do crescimento, ou a aceleração foi pequena e curta ou ocorreu queda do nível de atividade econômica. Em suma, o ajuste fiscal pode ser necessário para evitar um desastre, mas não é nem de perto condição suficiente para a retomada do crescimento.
Esta requer o atendimento de duas condições. No curto prazo é necessária expansão da demanda agregada para que se possa eliminar a ociosidade na capacidade produtiva e para dar emprego digno a mais de 12 milhões de brasileiros. Essa expansão da demanda agregada não poderá vir do investimento, devido à enorme ociosidade da capacidade produtiva e nem do consumo das famílias, devido ao nível elevado de desemprego. O desequilíbrio fiscal também impede uma expansão significativa do investimento público.
A expansão da demanda agregada só pode advir de um forte crescimento das exportações, principalmente das exportações de produtos manufaturados, o que requer taxa real de câmbio estável e competitiva. No médio e longo prazos, contudo, o crescimento só será sustentável se for acompanhado por aumento da produtividade. Ao contrário do que pregam economistas liberais que acham que a produtividade é uma característica embutida nos trabalhadores por intermédio da educação, a boa teoria econômica e a experiência internacional mostram que a produtividade é uma variável cujo comportamento é regido por uma série de fatores, sendo a educação apenas um entre vários.
A produtividade é afetada pela quantidade e a diversificação do conhecimento técnico e científico que está embutido nas pessoas (capital humano), nas máquinas e equipamentos (capital físico), na capacidade das pessoas em se conectarem e assim trocar informações (capital social). Dessa forma, aquilo que uma economia produz e exporta revela a sofisticação ou complexidade das suas capacitações produtivas. A estrutura produtiva importa para o crescimento econômico.
Tendo em vista esse entendimento sobre as causas da produtividade, a retomada do desenvolvimento exige que o Brasil reinicie o processo de “catching-up” industrial e tecnológico interrompido na década de 1980. Um elemento essencial dessa retomada será a reindustrialização, ou seja, o crescimento da participação do valor adicionado da indústria no PIB e do emprego industrial no emprego total. Esse processo irá demandar uma mudança no regime macroeconômico, de forma a manter a taxa de câmbio em níveis competitivos internacionalmente, a exemplo do que foi adotado, de forma bem-sucedida, nos países do Leste Asiático; como também a adoção de uma política industrial que permita aumentar a complexidade tecnológica da pauta de exportações do Brasil. A exemplo do que é feito nos Estados Unidos, Japão, China, e países da Europa Ocidental, o desenvolvimento de um complexo industrial militar no Brasil, puxado por gastos necessários para o reaparelhamento das Forças Armadas, atualmente em grau acentuado de sucateamento, pode ser um dos eixos dessa política.
Se o governo Bolsonaro não trilhar esse caminho e insistir apenas na agenda privatização-reforma da Previdência, então a economia continuará trilhando trajetória de baixo crescimento, provavelmente em torno de 2% ao ano. Esse ritmo será insuficiente para gerar empregos na quantidade suficiente para absorver a enorme massa de desempregados, bem como os brasileiros que ingressam todos os anos no mercado de trabalho. A força de trabalho cresce atualmente 1% ao ano, o que significa que, para manter a taxa de desemprego estável ao longo do tempo, é necessário criar, pelo menos, 1 milhão de postos de trabalho por ano. Considerando crescimento da produtividade de 1% ao ano (o que destrói postos de trabalho na velocidade de 1 milhão de empregos por ano) no cenário no qual não ocorre a mudança estrutural descrita, uma taxa de crescimento de 2% ao ano irá criar postos de trabalho apenas na magnitude necessária para manter o desemprego indefinidamente acima de 10 % da força de trabalho.
Dada a pequena duração do seguro-desemprego e a baixa densidade da rede de proteção social, é pouco provável que a permanência da taxa de desemprego em patamares tão elevados por um período tão longo de tempo seja social e politicamente sustentável. Nesse cenário a desordem social poderá aumentar rapidamente. Além disso, o crescimento econômico anêmico irá agudizar a crise fiscal dos Estados, podendo, inclusive, fortalecer movimentos separatistas no Sul, haja vista que, para parte significativa da população desses Estados, a sua crise fiscal resulta do fato de que (sic) “o Sul tem que sustentar os vagabundos do Nordeste com o Bolsa Família”.
O exemplo recente da tentativa de secessão na Catalunha – resultado dos efeitos da crise econômica de 2008-2012 – mostra que o risco de movimento separatista no Brasil não pode ser subestimado. Daqui se segue, portanto, que ou o governo Bolsonaro coloca o Brasil na rota do desenvolvimento econômico – o que implica em mudança estrutural e catching-up com respeito aos países ricos – ou o clima de insatisfação social reinante culmine numa crescente desordem, podendo levar, no limite, à guerra civil.
José Luis Oreiro é professor associado do Departamento de Economia da Universidade de Brasília, Pesquisador Nível IB do CNPq