Saúde enfrenta doenças seculares, falta crônica de recursos e efeitos da pandemia, por Cláudia Collucci.

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Em 200 anos de Independência, Brasil avançou com criação do SUS, mas precisa melhorar condições sanitárias da população

Cláudia Collucci, Mestre em história da ciência pela PUC-SP e pós-graduada em gestão de saúde pela FGV. Está na Folha desde 1990 e, hoje, escreve sobre saúde.

Folha de São Paulo, 11/09/2022

[RESUMO] O Brasil chega a seus 200 anos como nação independente ainda lidando com doenças que remontam ao período colonial, muitas delas decorrentes de problemas sanitários e de qualidade de vida históricos, como falta de acesso à rede de esgoto e à água potável. Nas últimas três décadas, o SUS expandiu o atendimento básico e propiciou o aumento da expectativa de vida no país, mas seus avanços são limitados pelo subfinanciamento e pela ineficiência na gestão dos recursos.

O Brasil chega ao bicentenário de sua independência lidando com doenças infecciosas que remontam ao seu passado colonial, como a tuberculose, a sífilis e a varíola, agora em uma versão menos grave, aliadas a problemas ligados ao envelhecimento populacional, como o câncer e as doenças cardiovasculares, tudo isso somado à alta de transtornos mentais e a outras demandas geradas pela pandemia de Covid-19.

O país também enfrenta uma tensão crescente acerca das necessidades de financiamento e sustentabilidade do SUS (Sistema Único de Saúde), que atende a 75% da população e que, nos últimos 30 anos, contribuiu para a queda das taxas de mortalidade infantil e de óbitos por doenças transmissíveis e de causas evitáveis, que levaram a um aumento da expectativa de vida da população.

Desde a sua criação, na Constituição Federal de 1988, o sistema nunca teve recursos suficientes para fazer valer os preceitos que o regem: universalidade (direito de todos, sem discriminação), integralidade (prevenção, tratamento e reabilitação) e equidade (atendimento de acordo com as necessidades de cada paciente).

As consequências do subfinanciamento crônico e da ineficiência na gestão dos recursos são bem conhecidas e traduzidas em dificuldade de acesso, longas filas de espera para consultas e exames especializados, procedimentos e cirurgias, falta de medicamentos, entre outros.

A pandemia encontrou um SUS ainda mais depauperado com os efeitos do teto de gastos de 2016, que limita os gastos federais e tem impedido, na prática, o aumento de recursos para saúde e outras áreas sociais. A medida já retirou quase R$ 37 bilhões do sistema público entre 2018 e 2020.

Com a injeção de recursos extraordinários usados na ampliação de leitos de UTI, compra de equipamentos, contratação de pessoal, vacinação, entre outros, o sistema de saúde conseguiu enfrentar a maior crise sanitária da sua história, que causou mais de 683 mil mortes até o fim de agosto.

Ao mesmo tempo, as fragilidades ficaram expostas. “A pandemia mostrou que não temos política pública para enfrentar futuras epidemias que virão. Governos do Reino Unido e dos Estados Unidos já anunciaram propostas concretas para aumentar os gastos na saúde, mas, por aqui, não há nada ainda. Qual é o projeto de sistema adequado para que as pessoas tenham o mínimo de bem-estar social e não se sintam humilhadas quando precisam de atendimento?”, questiona a médica sanitarista Ligia Bahia, professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Na última década, os gastos públicos em saúde se mantiveram estáveis, enquanto as famílias brasileiras passaram a gastar mais com planos de saúde, consultas e remédios.

Segundo o IBGE, entre 2010 e 2019, os gastos totais (públicos e privados) em saúde subiram de 8% para 9,6% do PIB. Porém, dos R$ 711,4 bilhões investidos em 2019, R$ 427,8 bilhões foram despesas privadas (5,8% do PIB). Os gastos do governo somaram R$ 283,6 bilhões (3,8%). Em 2010, a fatia das famílias correspondia a 4,4%, e a do governo, a 3,6%.

Na média, em países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), os governos gastaram em 2019 o equivalente a 6,5% do PIB, e as famílias desembolsam só 2,3% do PIB. Os governos de Alemanha, França e Reino Unido investiram 9,9%, 9,3% e 8,0% do PIB, respectivamente.

Até a Constituição de 1988, quando a saúde pública passou a ser um direito de todos e dever do Estado, a área era de responsabilidade do Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) e destinada apenas aos trabalhadores com carteira assinada.

O restante das pessoas participava de programas específicos do Ministério da Saúde ou das secretarias estaduais, como o de vacinação, ou buscava ajuda em instituições filantrópicas, como as Santas Casas. “Vinha carimbado no prontuário ‘indigente’. Isso significava que todos os que trabalhavam na cidade sem carteira assinada e toda a população brasileira do campo não tinham direito a nada”, lembra o oncologista Drauzio Varella, colunista da Folha.

No final dos anos 1980, o Inamps entrou em declínio. Além dos inúmeros escândalos de corrupção, a arrecadação não cobria os gastos, e a conta não fechava. Ao mesmo tempo, existia uma pressão dos movimentos populares por uma reforma sanitária no país.

O artigo 198 da Constituição Federal estabeleceu que os recursos para financiar o SUS viriam do orçamento da seguridade social, entre outras fontes. “Quando a Constituinte permitiu a criação do SUS, colocou nas disposições transitórias que 30% do Fapas [Fundo de Previdência e Assistência Social] iriam para o SUS, mas, na primeira crise da Previdência, em 1992, os recursos deixaram de ir”, conta o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, professor de saúde pública da USP.

Em 1993, a receita de contribuições de empregados e empregadores, que representava um terço do orçamento do Ministério da Saúde, passou a financiar exclusivamente benefícios previdenciários, deixando a pasta da Saúde endividada para bancar despesas de custeio.

Em 1996, o cardiologista Adib Jatene, então ministro da Saúde de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), usou do seu prestígio para obter a aprovação da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira). Mas, de novo, os novos recursos não chegaram à saúde, o que levou o médico a pedir demissão do cargo.

Durante a década de 1990, as verbas federais eram instáveis, e o setor dependia de medidas emergenciais e provisórias. A emenda constitucional 29, de 2000, foi criada estabelecer parâmetros do financiamento, mas só em 2012 uma lei complementar definiu que a União passaria a aplicar, anualmente, o montante correspondente ao valor empenhado no exercício financeiro anterior, acrescido de, no mínimo, o percentual correspondente à variação nominal do PIB. Os estados e o Distrito Federal gastariam, no mínimo, 12% e os municípios, 15%.

Porém, os gastos federais em saúde estão em queda. Em 1991, a União contribuía com 73% do financiamento do SUS. Em 2019, entrou com 43%, segundo a Abres (Associação Brasileira de Economia da Saúde). Neste ano, o orçamento do Ministério da Saúde encolheu 20%, passando dos R$ 200,6 bilhões em 2021 para R$ 160,4 bilhões.

Para Ligia Bahia, da UFRJ, o setor econômico se divorciou definitivamente das políticas sociais e, neste ano de eleições presidenciais, são necessárias propostas concretas dos candidatos para o aumento dos gastos públicos em saúde. “Mas os recursos públicos precisam ser alocados na saúde pública.”

Na opinião do médico sanitarista Vecina Neto, da USP, o problema de financiamento não se resolverá nos próximos quatro anos, independentemente do resultado das eleições de outubro, mas é possível otimizar os atuais recursos redesenhando o modelo de gestão.

“Grande parte dos atendimentos fica a cargo de prefeituras que não têm capacidade administrativa para entregar todos os serviços de saúde, e às vezes, nem a atenção primária”, diz o cientista político Miguel Lago diretor do Ieps (Instituto de Estudos de Políticas de Saúde).

Na contramão de outros países, como a Espanha, que no passado descentralizaram os serviços de saúde em direção às comunidades autônomas (com autonomia legislativa e competência jurídicas próprias), o Brasil optou por um processo de descentralização político-administrativa voltado aos municípios.

Se, por um lado, isso possibilitou um SUS com capilaridade no país todo, por outro, dificultou o trabalho em rede. “A gente vê uma quantidade de prefeitos que são rivais entre si e que não têm motivação política para cooperarem”, observa o historiador da saúde Carlos Henrique Paiva, pesquisador do Observatório História e Saúde da Casa Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Além do prejuízo à assistência e de drenar os parcos recursos da saúde, a troca de gestores a cada eleição municipal leva à descontinuidade nas ações de prevenção e de controle de epidemias como de dengue, zika e chikungunya, afirma o historiador Luiz Antonio Teixeira, também pesquisador da Fiocruz.

No campo da assistência, alguns estados têm investido em consórcios regionais de saúde para melhorar a oferta de consultas médicas especializadas em áreas como cardiologia, endocrinologia, urologia, ortopedia e neurologia, um dos grandes gargalos do SUS.

A Bahia, por exemplo, criou 22 policlínicas, que atendem hoje 402 municípios —96% das cidades baianas. Os pacientes são deslocados de uma cidade a outra em microônibus e vans. O estado participa com 40% do custeio, e outros 60% são financiados pelos municípios consorciados.

Vecina Neto é um dos defensores da criação de regiões de saúde com base populacional como forma de melhorar a gestão dos recursos do SUS e da assistência. “Os recursos vão para um conjunto de municípios e estados para fazer a gestão conjunta e decidir onde investir”, diz. Para ele, parcerias público-privadas podem ajudar nesse processo.

“Precisamos de mais eficiência na capacidade de comprar, contratar e de criar escala. Não interessa quem faz, interessa o que faz e para quem faz. O estado tem fazer a fiscalização. Sem fiscalização, é natural que existam desvios.”

A expansão e a melhoria da qualidade da atenção primária à saúde —tendo como pilar a Estratégia Saúde da Família, conectada aos demais níveis de atenção, como ambulatórios de especialidades e hospitais— também são citadas como caminhos que o SUS deveria perseguir.

No entanto, há problemas ainda mais básicos a serem atacados, como as doenças ligadas às condições de vida da população. “As intervenções na tuberculose, sífilis e câncer de colo de útero continuam tão frágeis quanto no passado”, afirma o pesquisador Luiz Teixeira, da Fiocruz.

“Se não melhorar a nutrição e a moradia, não vai se reverter a tuberculose. Se não diminuir o machismo na sociedade, não tem como reduzir a sífilis congênita que está relacionada, principalmente, ao fato de os maridos [portadores da doença] não quererem transar com camisinha. Mulheres com menos estudo são as mais afetadas pelo câncer de colo de útero porque não fazem o Papanicolaou.”

Sem resolver a falta de saneamento básico, o país continuará reforçando as desigualdades na saúde, de acordo com o historiador André Mota, diretor do Museu Histórico da Faculdade de Medicina da USP. Hoje, quase metade dos brasileiros vive sem acesso à rede de esgoto, e 16% não são atendidos pela rede de água. Um novo marco legal do setor estabeleceu que, até 2033, 99% da população tenha água potável e 90% desfrute de coleta e tratamento de esgoto.

Mota lembra que, há mais de um século, já se sabe que as condições de vida estão intrinsecamente ligadas à saúde da população, mas o país ainda patina nessa questão. “Quantas pessoas morreram de Covid por não terem água para lavar as mãos? A assepsia era uma questão nossa no século 19 e continua até hoje.”

Uma das razões, segundo ele, é o fato de o Brasil produzir tecnologias de ponta em saúde, mas elas não chegarem às populações de baixa renda. “Por que, na Cidade Tiradentes [zona leste de São Paulo], as pessoas morrem, em média, aos 58 anos e no Alto de Pinheiros [zona oeste], aos 80? Porque esse raio tecnológico não desce, não perpassa a vida do indivíduo como um direito.”

SUS É HERDEIRO DE EXPERIÊNCIAS DA ERA VARGAS
O SUS é herdeiro de várias experiências anteriores, principalmente as que ocorreram na Era Vargas, entre 1930 e 1945. Com a criação do Ministério da Educação e da Saúde Pública, em 1930, iniciou-se um período de transformações, especialmente na gestão de Gustavo Capanema (1934-1945). A estrutura de saúde passou a estar em todo o país, e uma rede de serviços começou a ser montada.

“A ideia central da reforma Capanema era a de que a saúde deveria ser organizada com base no território. Ou seja, a maneira como respondemos aos problemas de saúde tem que estar relacionada a questões demográficas e epidemiológicas locais. Parece óbvio hoje, mas foi fruto de aprendizado e um investimento imenso em ações nos anos 1930”, afirma o pesquisador Carlos Paiva, da Fiocruz.

Segundo ele, pela primeira vez a política de saúde passou a ser pensada em âmbito nacional, o que estava alinhado com o ideal de nação de Getúlio Vargas. Na prática, o território brasileiro foi dividido em grandes regiões e, em cada uma delas, havia uma autoridade de saúde (delegacias federais de saúde).

Dentro dessas regiões, existiam microrregiões, os distritos sanitários, com centros de saúde. “Digamos que ali estava um certo esboço da atenção primária que a gente tem hoje”, diz ele, coautor da obra “Atenção Primária: uma História Brasileira Recente”.

Também já exista a compreensão de que as instituições de saúde precisavam se articular e estar integradas, de que os problemas de saúde das pessoas são complexos e de que o percurso do usuário no sistema necessitava uma certa racionalidade. “A ideia era não deixar que as pessoas ficassem zanzando, procurando um local de atendimento. Era um problema dos anos 1930 e ainda hoje não foi todo resolvido”, afirma o pesquisador.

Também remonta ao governo Vargas a ideia de que as ações preventivas e curativas de saúde devessem estar integradas institucionalmente. Durante a ditadura militar (1964-1985), contudo, houve uma separação dessas ações. A partir de 1975, a medicina curativa ficou a cargo do Ministério da Previdência, e as ações de saúde pública permaneceram no Ministério da Saúde.

“Isso fortalece uma dualidade institucional na saúde brasileira. O Ministério da Previdência fica com muito mais recursos, e míngua o orçamento para as ações de prevenção”, afirma Luiz Teixeira, da Fiocruz.

As políticas de saúde dos tempos imperiais até o final da Primeira República (1930) priorizaram basicamente debelar as epidemias, como o cólera, a febre amarela e a peste bubônica. As questões sanitárias, agravadas com a urbanização das capitais e as condições de vida precárias, geravam surtos de infecções gastrointestinais e doenças transmissíveis como a sífilis e a tuberculose.

“A saúde era importante à medida que não atrapalhasse a economia. Só tinha orçamento se tivesse epidemia. As ações de saúde pública não tinham continuidade para evitar novos problemas”, diz Teixeira.
Nesse período, São Paulo construía um projeto de saúde à parte do resto do Brasil. Antes mesmo da Proclamação da República, oligarquias cafeeiras começaram a investir em ações para evitar que as epidemias afetassem a economia. Em 1891, por determinação constitucional, estados e municípios passaram a ser responsáveis pelos cuidados da saúde de suas populações.

“São Paulo acaba fazendo um código sanitário independente do Brasil. A fundação Instituto Butantan [em 1901] e a produção de soro antiofídico vêm a socorrer uma demanda gerada pela chegada dos imigrantes nas fazendas de café no interior, pelas picadas de cobras, aranhas, escorpiões”, afirma o historiador André Mota, da USP.

O Brasil entrou nos anos 1900 com as epidemias causando muitas mortes, especialmente de imigrantes. A cidade do Rio de Janeiro era conhecida na época como o túmulo dos estrangeiros.

Iniciou-se, no período, um processo de reorganização com uma meta ambiciosa de reverter a imagem da capital do país e transformá-la na “Paris dos trópicos”. Sob comando do engenheiro Francisco Pereira Passos, então prefeito do Rio, ruas foram alargadas e cortiços, demolidos. Os mais pobres acabaram expulsos para os extremos, formando as favelas.

O saneamento da cidade ficou a cargo do médico Oswaldo Cruz, que dirigia o Instituto Soroterápico Federal (hoje Fundação Oswaldo Cruz). Em 1903, ele assumiu também a diretoria-geral de Saúde Pública com a meta de enfrentar as doenças epidêmicas, especialmente a febre amarela, a peste bubônica e a varíola.

As campanhas sanitárias ganharam um caráter militar, e, em 1904, foi aprovada a Lei da Vacinação Obrigatória, desencadeando uma grande manifestação popular que ficou conhecida como a Revolta da Vacina.

Para muitos, a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola infringia o direito à privacidade e à autodeterminação, discursos muito parecidos aos atuais negacionistas da vacina contra a Covid-19. No fim, depois de muita briga, Oswaldo Cruz recebeu várias homenagens no exterior e se tornou herói nacional.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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