Dicionário Marielle Franco mostra: hoje, o “andar de baixo” divide-se entre o temor do desemprego e o fardo da precarização. É hora de retomar uma pauta do século XIX: a redução da jornada de trabalho, como forma de gerar empregos e mitigar a exploração…
Ricardo Antunes – OUTRAS PALAVRAS – 03/05/2024
Nos últimos anos, diante de uma crise internacional do trabalho e do capital, a classe trabalhadora brasileira sofreu graves retaliações, como parte do processo de desindustrialização e da diminuição das garantias de direitos sociais sob a racionalidade neoliberal. Este impacto vem trazendo graves consequências, como o aumento da precarização das relações de trabalho, razão pela qual a população brasileira vem sofrendo com a informalidade, a uberização e a retirada de direitos trabalhistas. Para piorar este quadro, passamos pelos duros anos da pandemia da covid-19, o que fez com que as relações de trabalho ficassem ainda mais precarizadas. Além do aumento da fome, tivemos ainda o aumento do desemprego, o que levou muitos trabalhadores à informalidade chegando a marca de quase 39 milhões de brasileiros no mercado informal apenas em 2023, com dados revelados pelo IBGE.
Sabemos que tal crise, relacionada aos direitos trabalhistas aqui no Brasil, não se inicia hoje. A classe trabalhadora brasileira, em toda a sua diversidade e interseccionalidade, tem lutado há décadas por reconhecimento e redistribuição, tanto em seu trabalho produtivo quanto reprodutivo. A conquista dos direitos das trabalhadoras domésticas no Brasil, por exemplo, aconteceu de forma parcelada. Por um longo período direitos conquistados por outras categorias foram negados às trabalhadoras domésticas e até hoje a maior parte da categoria trabalha na informalidade e de forma precarizada. Inclusive, atualmente, as relações entre produção e reprodução têm sido cada vez mais conflituosas. Em 2017, por exemplo, protagonizamos grandes mobilizações nacionais contra a Reforma Trabalhista, apesar da criação da lei nº 13.467, responsável pelas mudanças bruscas nas leis que protegiam os(as) trabalhadores(as) formais brasileiros(as). Desde então, além do aumento da quantidade de trabalhadores(as) sem carteira assinada, as condições de trabalho passaram a ser mais instáveis, fortalecendo, assim, um novo modelo de contrato de trabalho intermitente, sem o pagamento de horas in itinere e de horas extras (em detrimento do banco de horas) e sem a consideração em relação ao tempo de mobilidade para o trabalho e ao tempo de almoço durante a jornada, por exemplo.
Além disso, passados alguns anos desde as reformas, em 2024 o debate sobre a uberização do trabalho volta à tona, e ganha cada vez mais o noticiário (e as ruas). Trabalhadores(as) de aplicativo vêm protestando quase que semanalmente nas avenidas das capitais em crítica às propostas governamentais e empresariais postas à mesa, que não garantem qualquer direito ao trabalhador(a) e fortalecem o papel da Indústria 4.0 – uma nova fase de impulsão capitalista marcada por uma enorme reestruturação produtiva permanente do capital. De acordo com matéria publicada no Brasil de Fato, em julho de 2023, “atrás do aplicativo (app) de transporte da norte-americana Uber, vieram os de comida, de entregas e de compras. Hoje existem cerca de 1,27 milhão de pessoas trabalhando como motoristas e outras 385 mil como entregadores para aplicativos no Brasil”.
Os dados compartilhados por esta mesma matéria revelam ainda o perfil destes(as) trabalhadores(as), levando em conta questões como raça, renda e tempo de jornada, com base em informações cedidas pelos próprios apps – 99, Uber, iFood, Zé Delivery e Amazon: “Entre os motoristas, 95% são homens, dos quais 62% declaram-se negros ou pardos, e têm em média 39 anos. Já entre os entregadores, 97% são homens, dos quais 68% se declaram negros ou pardos, com idade média de 33 anos”. O dado é de uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia.
A informalidade se soma, neste caso, ao racismo estruturado nas relações sociais e de trabalho no Brasil. Muitos(as) destes(as) trabalhadores(as) acabam sendo também criminalizados, marginalizados e perseguidos, seja dentro dos elevadores dos prédios em bairros nobres ou nas ruas, quando em busca da garantia do seu ganho de vida. A realidade das condições de trabalho informal e, em especial, dos(as) trabalhadores(as) da rua, como os ambulantes e camelôs, é também, há muito, degradante – ainda mais considerando, por exemplo, a cidade turística e super populosa do Rio de Janeiro. Diante das violações de direitos agravadas nos últimos anos, o Movimento Unidos do Camelôs (Muca), do Rio de Janeiro, trava há décadas uma luta contra a Guarda Municipal do Rio de Janeiro. Ou seja, não basta sofrer com retrocessos nas leis, ainda sofrem com a criminalização do próprio meio de trabalho pelas ruas da cidade.
O mundo do trabalho tem passado por constantes transformações tecnológicas, mas há cada vez mais retrocessos nas relações e nas garantias de direitos, sendo um deles os direitos trabalhistas. A população brasileira, mais uma vez, tem suas camadas sociais empobrecidas no meio desse jogo entre governos e empresas que visam cada vez mais o lucro – e que negociam direitos sem mesmo ter um sindicato ou organização com representação trabalhistas nas mesas de negociações, o que é o caso dos motoristas de Uber. Dentro disso, infelizmente, sabemos quem são as pessoas mais atingidas no nosso país, são elas: negras, pardas, não brancas, pobres, faveladas e periféricas.
Para refletirmos sobre esses desafios, considerando o papel político da classe trabalhadora, destacamos a entrevista com o sociólogo Ricardo Antunes, realizada pela EPSJV/Fiocruz, em abril de 2024, e publicada como verbete no Dicionário de Favelas Marielle Franco. (Introdução: Gizele Martins e Clara Polycarpo)
A classe trabalhadora não nasce sabendo o que fazer
Ricardo Antunes em entrevista a equipe da EPSJV/Fiocruz
Ricardo Antunes, sociólogo marxista e um dos mais influentes pensadores do país no tema mundo do trabalho, atualmente é professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e leciona disciplinas como Sociologia do Trabalho e Sociologia de Karl Marx. Antunes é também um dos mais importantes teóricos da obra marxiana da América Latina. Nesta entrevista, realizada e originalmente publicada na Revista Escola Politécnica em Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), em abril de 2024, Antunes avalia a realidade atual do mundo do trabalho no Brasil e no mundo nesta entrevista alusiva ao Dia Internacional dos Trabalhadores.
Já se passaram cerca de 140 anos desde a greve em Chicago que originou a celebração do 1º de maio demandava a redução da jornada de trabalho para 8 horas diárias. Isto continua a ser uma demanda?
A jornada de trabalho atualmente é um tema de gravidade relevante para aqueles setores que mais se expandem no mundo do trabalho: o do trabalho intermitente, o trabalho em plataforma, o trabalho uberizado ou o trabalho no setor de serviços. Nestes setores, que reforço, são os que mais se expandem, a jornada é ilimitada.
Veja que o Projeto de Lei Complementar do governo Lula – o PLP 12/2024 –, pasmem, sugere uma jornada limite por aplicativo de 12 horas. Imagine um trabalhador ou trabalhadora que opte por trabalhar em dois aplicativos. Em tese, num cálculo abstrato, eles podem chegar a 24 horas de jornada por dia! Se trabalhassem seis, sete horas, por aplicativo, chegariam facilmente a uma jornada de 13, 14 horas, como as nossas pesquisas têm mostrado. Então, a questão da jornada de trabalho hoje tem uma importância, de certo modo, semelhante a do século 18 e 19. Por quê?
Porque se a moda pega, ou se a porteira for aberta, nós não mais teremos jornadas de trabalho.
O que singulariza o trabalho intermitente em plataformas ou assemelhados é que se trabalha quando há trabalho disponível, e não se trabalha quando não há trabalho, e o tempo de espera não é contabilizado em termo de jornada. Trabalhamos este tema em nossos livros Icebergs à Deriva e Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. Jornadas de 12, 13, 14 horas, no Brasil e em vários países do mundo, não são mais a exceção, vêm se tornando a regra, especialmente se se contabilizar o tempo de espera. Para que todo mundo entenda bem: num shopping center, por exemplo, se um trabalhador que está numa loja comercial não atende clientes, ele está recebendo.
Um motorista ou entregador, em sua jornada diária, se não tem clientes mas está disponível para o trabalho, esse tempo não é contabilizado. Isto é uma questão crucial.
Também não se considera o tempo médio que se gasta em deslocamento, correto? Muitos trabalhadores saem de casa cinco, seis horas da manhã para voltar às oito da noite…
Pesquisas de Brasília mostram, por exemplo, que um trabalhador de moto que trabalha naquele cinturão ao lado de Brasília já leva 40 minutos – de moto! – para chegar ao trabalho no centro de Brasília. Imagine quando esse deslocamento não é de moto, mas de carro ou de transporte público.
A redução da jornada de trabalho para abertura de novas vagas deveria se manter como pauta, então?
Este é um desdobramento crucial desse tema, da jornada de trabalho. Atualmente há no mundo centenas de milhões de pessoas que trabalham 12, 14, 16, 18 horas por dia. E, ao mesmo tempo, temos centenas de milhões de pessoas que não trabalham nenhuma hora por semana, porque não têm nenhum trabalho. Seria muito elementar dizer: ‘vamos fazer uma média, trabalhemos seis horas por dia, todos e todas, de modo que ninguém fique sem trabalho’.
Ou seja, a redução da jornada de trabalho é um tema crucial hoje. E por que ele não entra na pauta? Porque as grandes corporações não aceitam essa conversa.
Elas querem extrair ao máximo tudo que a força de trabalho pode oferecer, num processo de exploração, expropriação e espoliação.
Como a demanda pela redução da jornada de trabalho, prévia ao próprio estabelecimento do Dia Internacional dos Trabalhadores, perdeu seu alcance mesmo a realidade atual sendo esta que você descreve?
São muitos os elementos que explicam isto. Primeiro, há hoje no mundo inteiro, com raras exceções, um desemprego estrutural, que não é exclusivo do Sul global, mas é grande e forte nos países capitalistas do centro, como se constata em tantos setores que desapareceram, indústrias que foram fechadas e no trabalho imigrante, que é recorrentemente buscado porque é aquele trabalho em que vale tudo e passa ao largo da legislação protetora do trabalho.
O segundo elemento: o maior temor da humanidade, hoje, é o desemprego. Não é que houve uma perda de consciência, por descuido dos movimentos organizados de trabalhadores. Se eu não tenho trabalho nenhum e o que me oferecem é uma jornada ilimitada, eu aceito, porque não tenho trabalho nenhum.
Neste novo tipo de emprego que não é emprego, de trabalho que não é considerado trabalho, nessa nova modalidade de prestação de serviço – que também é equivocada porque não é serviço –, as empresas querem esconder a condição de assalariamento, para, a partir da ideia de que são empreendedores ou colaboradores, obliterar as condições de assalariamento. Desse modo, você pode burlar a legislação social protetora do trabalho.
Então, em síntese, nós estamos vivendo uma crise estrutural, não estamos vivendo uma crise conjuntural. A crise é da humanidade, da civilização.
A lógica destrutiva capitalista levou a natureza a esse nível de destruição e o trabalho a esse nível de devastação, trouxe xenofobia, racismo, o neofascismo. Tudo isso se expande.
Este cenário faz com que eu só possa defender e lutar por um trabalho, ainda que ele não seja portador de direito nenhum. Porque se eu não tiver este, eu não tenho nada.
Um cenário de Estado de Bem-Estar Social parece cada dia mais distante. Os sindicatos têm responsabilidade nisto?
Os sindicatos se acomodaram. Isto vale também para o cenário europeu. Quando a gente fala em bem-estar social hoje é preciso tomar muito cuidado. Porque estes direitos de bem-estar não chegam aos imigrantes.
Trabalhadores imigrantes não têm direito algum. São tratados quase como párias sociais. Esta dificuldade faz com que a jornada não ganhe o estatuto da questão crucial para a classe trabalhadora, em sentido amplo. Porque a questão crucial é ter emprego para sobreviver. Eu só vou lutar por uma jornada melhor depois que eu tiver emprego.
Os operários ingleses dos séculos 18 e 19 passaram a lutar fortemente pela redução da jornada de trabalho, uma luta de muitas décadas, quando o emprego lhes estava garantido porque o mundo industrial estava em expansão. Hoje nós vivemos um mundo industrial, de agroindústria e de serviços em crise. Financeirizado. Nele, a prioridade é lutar pelo emprego, pela sobrevivência.
Feito isso, vêm a segunda luta, a terceira luta, e as lutas retornam.
A migração de plantas produtivas e a entrada de novos contingentes de mão de obra colaboram de que forma para este cenário? Qual o impacto de você ter um bilhão de trabalhadores chineses, por exemplo, sendo incorporados ao mercado de trabalho de uma economia globalizada?
O capitalismo do nosso tempo é muito diferente daquele que tínhamos nos anos 1980 e mesmo 1990.
Por quê? Além de toda a explosão tecnológica e do aguçamento da crise estrutural do capital, que só cresce destruindo a natureza, o trabalho e o gênero humano, a grande maquinofatura do mundo hoje está na China. Isso trouxe desindustrialização dos países europeus e de vários países do Sul global. As grandes empresas capitalistas estão na China. A Volkswagen está na China, a Fiat está na China, a Mercedes-Benz está na China. Todas elas migraram.
A China se transformou, de uma revolução socialista autárquica e fechada em si mesma, que possui tudo aquilo que ela precisa para sobreviver, como era o projeto de Mao Tsé-Tung, em uma China pós-maoista em que há criação do socialismo de mercado, que para mim é um eufemismo para defender o capitalismo. O nível de exploração do trabalho na China dez anos atrás era brutal, e foi preciso ocorrerem muitas greves do operariado chinês para que fosse reduzida esta brutalidade. Há o sistema chinês que chamam de 996, no qual você trabalha das 9h da manhã às 9h da noite, seis dias por semana. É brutal, é uma superexploração do trabalho. Mas isso mudou a máquina.
Além disso, o capitalismo hoje se sustenta numa economia financeirizada, que impulsiona as taxas de lucro no setor de serviços.
Houve, portanto, a transformação capitalista dos serviços. De públicos, eles se tornaram privados. Ou seja, nós temos hoje um ramo em expansão da indústria no mundo inteiro: a indústria de serviços. Porque a indústria de transformação, está na China abocanhou. Isto é uma mudança profunda no cenário mundial.
O setor de serviços engloba diferentes categorias, dos trabalhadores de aplicativos até médicos, por exemplo. Todos se enxergam como trabalhadores?
Não. Se você falar, em uma greve de professores universitários, que eles são classe trabalhadora, vai ter professor que vai ficar nervoso, vai se incomodar. Isso vale para médico, advogado, o segmento assalariado das classes médias. Mesmo que as classes médias estejam descendo um elevador em direção à proletarização na vida real, elas sonham com o elevador que as
vai levar ao céu. Elas sonham com o paraíso, ainda que estejam derrapando para o inferno.
O setor que mais se expande é o proletariado de serviços: call center, indústria hoteleira, fast food, trabalhadores em plataformas… Estes são proletários, o que não quer dizer que tenham esta consciência. A classe trabalhadora da Inglaterra de 1730 também não tinha consciência de sua condição operária. Muitos estavam saindo do mundo servil, feudal, rural.
A consciência de classe é um fenômeno muito complexo e difícil. Sabe por quê? É nele que o ideário capitalista e que o neoliberalismo vêm operando há mais ou menos 50 anos, desde a década de 1970.
Isto explica por que trabalhadores que hoje trabalham como entregadores, de motos e até mesmo bicicletas alugadas, se jogam na ideologia do empreendedorismo.
As plataformas são tão impressionantes que quem entra com o carro? O trabalhador. Quem entra com a moto? O trabalhador. Quem entra com a bicicleta? O trabalhador. Quem entra com o celular? O trabalhador. Ou seja, a responsabilidade de prover o instrumental de trabalho foi transferida para o trabalhador.
O impacto da ideologia neoliberal continua muito forte, apesar da crescente dificuldade para subsistir?
Quando eu trabalhei na universidade inglesa, em Sunderland, entre 1997 e 1998, convidado pelo meu amigo István Mészáros, preparava meu livro para o concurso de professor titular, que foi Os
Sentidos do Trabalho. Nele eu lembrava que a Margaret Thatcher, em seus primeiros discursos após ganhar as eleições, dizia querer que cada indivíduo do Reino Unido sonhasse em ser um indivíduo possessivo, um indivíduo que fosse proprietário de si mesmo. Esse discurso se perpetuou no governo John Major e, no período em que lá estive, continuava presente durante a gestão de Tony Blair.
O representante da chamada “Terceira Via”…
Sim, a Margaret Tatcher dizia o seguinte sobre ele: “Esse menino é um menino de futuro”. Os ingleses críticos chamavam o Tony Blair de ‘Tory’ Blair, porque ‘tory’ é o nome do partido conservador inglês. Eu estava lendo os discursos que ela tinha feito uma década antes (anos 1980), e naquela época (1997-998) eu dizia: ‘Não é possível!’. E a verdade é que isto foi possível e entrou no mundo todo. Nós estamos vivendo uma era de desencanto do mundo. Estamos vivendo uma era de derrotas muito duras. O projeto socialista russo e soviético terminou tragicamente.
Em 2008, 2009, nós estávamos animados aqui com a revolta da Tunísia, Occupy Wall Street, vitória das esquerdas na Grécia, depois revolta em Portugal… Nada disso avançou.
A possibilidade de uma ‘Internacional’ hoje é mais factível para a extrema direita do que para a esquerda?
A direita está se organizando globalmente. O [Jair] Bolsonaro é uma peça de um cenário que tem o [Donald] Trump, o [Viktor] Orbán na Hungria, o [Matteo] Salvini e a [Giorgia] Meloni na Itália, que tem crescimento em Portugal, na Inglaterra, o ressurgimento da extrema direita na Alemanha, na Suíça… Nós temos um movimento, digamos, favorável ao ressurgimento do neofascismo, do neonazismo. Muito forte, aliás. Tudo isso dificulta a ação da classe trabalhadora. Quando tudo vai mal na Terra, a única esperança é que exista um reino fora da Terra, em que as coisas funcionam. Daí a crença na teologia da prosperidade.
Esta teologia parece crescer junto ao ideal neoliberal. É como se ela fosse a tradução litúrgica de um novo ideário individualista?
Exatamente. Está certo dizer ‘eu vou resolver o meu problema’. Eu tenho que abraçar uma religião na qual a solidariedade é o que menos conta. Eu tenho é que fazer a coisa certa e fazer a coisa certa significa começar a enriquecer na Terra. Nem todos os evangélicos são de extrema direita, mas há uma forte extrema direita majoritária entre eles, que está nos Estados Unidos, em países da Europa e aqui no Brasil também. E está entrando na Argentina.
Já se fala em uma quinta revolução industrial, na qual os seres humanos e a inteligência artificial precisariam aumentar sua colaboração em prol dos objetivos da empresa. Como você avalia este tipo de discurso?
Eu entrei há uns meses atrás no SAC [Serviço de Atendimento ao Cliente] do site da OpenAI, que é a criadora do ChatGPT 4. Eu ainda não sei se continua lá em seu site, mas ela dizia que era inimaginável o número de trabalhos que iriam desaparecer com a Inteligência Artificial. Eu quase caí de costas. Inteligência artificial, robotização, automatização, internet das coisas, tudo isso significa o trabalho vivo desaparecer e o trabalho morto não ser mais uma máquina, algo dotado de materialidade, mas algo informacional, digital e algorítmico. Esta nova ‘máquina’ comanda você.
Não resta mais a opção ‘ludista’, de se voltar contra o avanço da tecnologia, correto? Não há nenhuma máquina para se quebrar…
É, se você quiser quebrar o algoritmo, você não o vê. Eu estudo esse tema há dez anos e nunca vi o algoritmo. Entendeu o tamanho da complexidade? Essas mudanças exploram o trabalho no mundo inteiro.
É o trabalho que subsidia as informações para a Inteligência Artificial. Eu chamei isso de privilégio da servidão de escravidão digital.
Nós estamos adentrando um mundo onde somos escravos digitais, em várias dimensões e em várias amplitudes. O resultado disso é que o cronômetro do Taylor [Frederick Taylor andava por sua fábrica com um cronômetro com o qual media a relação entre o trabalho realizado e o volume de recursos utilizados através do tempo] não faz mais sentido, porque ele foi substituído pelas metas que são interiorizadas em nossa subjetividade. Todos os entregadores e motoristas que eu entrevistei dizem: ‘eu só paro de trabalhar quando cumpro minha meta’.
O que leva a lista de doenças relacionadas ao trabalho passar a considerar o esgotamento pela síndrome de burnout, ansiedade, depressão…
Qual é o ideário empresarial? Termos resiliência e sinergia. Bom, isto é uma empulhação, é a adulteração completa do léxico. Eu já tratei disso em vários estudos: você querer ser resiliente e trabalhar 48 horas num dia, mesmo ele só tendo 24 horas… Você ter que dar mais do que pode, a resiliência, gera o burnout, o estresse, a depressão e até mesmo o suicídio.
Este é o cenário, e a síntese é: a resiliência é a porta de entrada do burnout. Chega uma hora em que eu apago, e daí eu tenho que ir para um psiquiatra, um médico.
Por quê? Porque eu não dou conta mais deste inferno.
Como enfrentar isto e não ficar paralisado diante dessa realidade?
A classe trabalhadora não nasce sabendo o que fazer. Ela adquire o sentido coletivo na experiência. O chamado Breque dos Apps, em plena pandemia, entrou para a história da luta dos trabalhadores uberizados do Brasil, como várias outras que ocorreram na Inglaterra, na França, na Itália, nos Estados Unidos, na Índia, na China, na África do Sul.
Nós estamos lançando agora, daqui a alguns dias, um livro que vai se chamar Trabalho em plataformas digitais – Regulamentação ou desregulamentação?. Enquanto termino a obra, eu olho para o exemplo do que ocorre na Europa. O Parlamento Europeu aprovou na semana passada a diretiva da União Europeia de que nós precisamos ter a presunção de que todos os trabalhadores das plataformas são empregados e não autônomos. Esta é a presunção. Tem que valer para todo trabalho. ‘Ah, professor, mas isso a gente não consegue’. Aí entra o ponto dois: conseguir isto através de organização e luta. Eu estou citando a diretiva da União Europeia, não uma reivindicação socialista.
É preciso tirar a aparência de neutralidade das plataformas, dos algoritmos. Precisamos desnudar o algoritmo. As empresas não abrem isso, mas têm que abrir. Então, as lutas são as mesmas do operariado do século 18, com a diferença que nós não estamos no século 18 mas no 21. Olhe que tragédia! Nós estamos numa era de monumental avanço tecnológico controlado pelos Elon Musk e Jeff Bezos [segundo e terceiro homens mais ricos do mundo] et caterva.
E qual é o momento da instabilidade, da ruptura? Ninguém sabe, isto é o que é genial da História, é imprevisível. Então, nós temos que lutar. Sem luta, não chegamos a ele, sem organização, consciência e força social também não chegamos a ele, mas há um momento em que, lembrando [Karl] Marx, “tudo que é sólido desmancha no ar”.
Ricardo Antunes,
É um sociólogo marxista brasileiro. Atualmente é professor titular da Universidade Estadual de Campinas.