Autor iraniano-americano Reza Aslan demonstra o quanto Deus é a mais sofisticada criação humana
Ronaldo Bressane*, Especial para o Estado
08 Setembro 2018
Quando Reza Aslan respondeu a esta entrevista sobre seu novo livro, Deus – Uma História Humana (Zahar, trad. Marlene Suano), estava em plena Terra Santa. E não muito satisfeito: o parlamento de Israel havia acabado de declarar o país “a terra dos judeus” – excluindo o território, ao que parece, da presença de muçulmanos, cristãos, ateus ou representantes de outras crenças. “Israel vem se tornando cada vez mais radicalizado e menos democrático”, afirmou Aslan, um iraniano-americano de 46 anos. “Esta lei é nada menos do que uma declaração oficial de apartheid. É o prego que faltava para colocar no caixão da democracia israelense”, detonou o teólogo e sociólogo, presença constante na mídia dos EUA por conta de seu carisma e suas formulações claras e nada partidárias a respeito de qualquer religião. Autor de Zelota – A Vida e a Época de Jesus de Nazaré, em seu novo livro Aslan tece, em linguagem elegante e bem-humorada, uma complexa rede de conhecimentos para mostrar como a ideia de “alma” já era acalentada antes do Homo sapiens, e como as religiões, na realidade, foram concebidas à imagem e à semelhança do ser humano.
O teólogo e sociólogo iraniano-americano Reza Aslan Foto: Zahar
Nascido em Teerã, em uma família muçulmana, Aslan converteu-se ao cristianismo, depois ao sufismo – e hoje se assume como um panteísta: professa a fé de que Deus é todo o universo. Nesta conversa com o Aliás, o teólogo – que hoje realiza o fantástico projeto Volta ao Mundo em 80 Dias com a mulher e os três filhos, justamente para mostrar aos pequenos a diversidade religiosa da Terra –, falou sobre como religião e política se misturam desde sempre; comentou as disputas religiosas no Rio de Janeiro do bispo Crivella e do evangelizado Comando Vermelho; e afirmou que até mesmo as inteligências artificiais podem vir, um dia, a acreditar em Deus. Em tempos de fundamentalismo religioso e político, ouvir o livre-pensador Aslan é como ser ungido com um bálsamo – nem é necessário ser crente para admirar seu profundo conhecimento em religião, conforme atesta este jornalista ateu.
Por que, em pleno 2018, uma religião pretende ser monoteísta? É uma disputa mercadológica pela alma?
Esta é uma questão interessante. Talvez uma das maiores surpresas sobre a qual escrevo neste livro é sobre quão impopular o monoteísmo foi ao longo de toda a história das religiões. De fato, quando você olha os milhares de anos na história da espiritualidade humana, o conceito de deus único só esteve aí por uns 3 mil anos. A mente antiga simplesmente não conseguia abraçar a ideia de que um deus único poderia ser responsável pelo bem e pelo mal, pela escuridão e pela luz, pelo céu e pela terra. Fazia mais sentido um deus separado para cada um dos nossos diversos atributos – um deus para representar cada uma de nossas emoções. Isso não quer dizer que o conceito de deus único não tenha aparecido de tempos em tempos – no livro escrevo sobre as duas tentativas de estabelecer o monoteísmo no Egito e no Irã. Foi só como resultado da crise existencial da fé entre os antigos hebreus que a ideia de monoteísmo começou a lançar raízes na religião judaica – foi o resultado do que hoje se conhece do exílio babilônico em 586 a.C. Mesmo os cristãos primitivos – cuja vasta maioria era de romanos – também engoliam com dificuldade a ideia de deus único, e por isso eles desenvolveram a ideia de Trindade. O que mais importava não era a teologia do monoteísmo, mas suas práticas políticas. A identidade da Igreja, com seu único bispado em Roma, com a autoridade do Império Romano com seu imperador único, requeriam uma religião com um deus único. Hoje, o monoteísmo é a forma dominante da espiritualidade humana. Talvez seja por causa da história que acabei de traçar. De todo modo, é importante notar que a ideia de deus único é um conceito totalmente diverso do que aparenta ser.
Tudo bem misturar política e religião?
Se você acha que religião é uma experiência privada em que simplesmente um ser humano tem uma conexão com o divino, então não faz sentido misturar religião com política. O problema é que religião não é só isso. Religião é principalmente uma questão de identidade, muito mais do que de fé ou prática. Quando alguém diz “sou muçulmano” ou judeu ou cristão, está formulando tanto uma definição de sua fé quanto uma definição de sua identidade. Está falando sobre quem é, como vê o mundo, como compreende seu lugar nele. Em questão de indentidade, religião é profundamente entrelaçada com todos os outros aspectos da identidade de uma pessoa: cultura, etnia, raça, gênero, orientação sexual, e, claro, orientação política. Então simplesmente não faz sentido divorciar religião da política. Fazer isso não é democrático. É obvio que podem haver problemas, especialmente uma vez que religião diz muito respeito a “mandamentos”, enquanto a política (pelo menos em teoria) supõe-se ser a respeito de compromissos. Mas, se o Estado oferecer liberdade de culto, então não se pode esperar que a religião se separe da política. De todo modo, é preciso assegurar proteções para aqueles que não compartilham da religião majoritária ou que não têm nenhuma religião.
O crime organizado brasileiro é muito próximo dos cultos evangélicos, e existe uma guerra entre estes grupos e pessoas que seguem religiões afrobrasileiras tradicionais, como a umbanda e o candomblé. Estamos vendo uma guerra entre o monoteísmo e o politeísmo semelhante ao que você descrebe em seu livro na história da perseguição do faraó Akhenaton em relação a outros cultos politeístas, no Antigo Egito. Como você vê este fenômeno hoje?
O que você está vendo, não só no Brasil mas também em outros países de maioria cristã, é uma revolta contra a profunda corrupção, manipulação e politização do cristanismo ao prejudicar quem não segue a fé cristã. Nos EUA, o cristianismo se tornou uma ferramenta do partido Republicano. Tornou-se um instrumento para separar as minorias do acesso aos direitos humanos, para proibir mulheres que sofrem e crianças refugiadas de receber asilo e ajuda, para afastar os mais pobres das políticas de bem-estar e acesso à saúde universal e outros serviços para os mais necessitados, e, em lugar disso, empoderam a supremacia branca. Para muitas pessoas, incluindo cristãos, isto é uma traição de tudo o que Jesus pregou, e por isso muitos têm abandonado o cristianismo e procurado formas alternativas de espiritualidade. É exatamente o que vem acontecendo no Brasil. Não é só uma guerra entre monoteísmo e politeísmo. É uma batalha entre o establishment cristão e os que se sentiram abandonados pela igreja. É também uma tentativa de acobertar o que muitos acreditam ser uma espiritualidade mais autêntica, radicada no solo do Brasil, mais do que outras espiritualidades trazidas por estrangeiros e colonizadores.
O que você acha do ensino religioso nas escolas? Funciona? Meu caso: fui criado em uma escola adventista, depois em um colégio jesuíta, então em um colégio católico apostólico romano… e agora você está conversando com este sujeito ateu. Por que não ensinar filosofia às crianças? Ensinar creacionismo em pleno 2018 não seria algum tipo de crime?
Esse é um assunto muito espinhoso, porque ensinar religião para crianças pode facilmente se tornar um tipo de doutrinação. Mas o fato é que a cultura religiosa é incrivelmente importante em nosso mundo. Crianças precisam aprender sobre as religiões do mundo do mesmo modo como precisam aprender sobre as culturas do mundo. Não vejo como seria difícil ensinar religião sem ensinar alguma teologia em particular (mas aqui não defendo ensinar o creacionismo nas escolas, assim como não tem cabimento dar lugar a teorias do tipo “terra plana”). O problema não está nos pais ateus que não querem que seus filhos aprendam sobre religião. O problema são os pais religiosos que sentem que, se seus filhos aprenderem sobre outras religiões, podem questionar a sua própria (aliás é exatamente isso o que a maioria faz). Assim que eles aprendem mais sobre outras concepções religiosas, questionam o absolutismo sobre suas próprias ideias. Diria que é um aspecto positivo, mas entendo por que pais religiosos não o apreciem. De qualquer modo, se você quer criar um cidadão global, você precisa ensinar a suas crianças as múltiplas maneiras que as pessoas têm para pensar sobre Deus e a fé. Minha mulher e eu atualmente levamos nossos três filhos em uma viagem de 80 dias pelo mundo (80-ish.com) precisamente para fazê-los imergirem em diferentes tradições religiosas pelo planeta. Porque não queremos criar só cidadãos dos EUA: queremos criar cidadãos globais.
Acha possível um cruzamento entre o livre-pensar e a aproximação religiosa da descrição da realidade objetiva? Em outras palavras, cientistas têm alma?
Claro que sim! Rejeito completamente a noção de que ciência e religião sejam coisas incompatíveis. Ciência e religião respondem a duas questões fundamentalmente diversas. Ciência trata do “como”. Religião trata do “porquê”. Ciência e religião são duas maneiras diferentes de conhecimento. E talvez enquanto começamos a mergulhar cada vez mais fundo naquilo que verdadeiramente acreditamos ser humano, veremos ciência e religião convergirem em uma só disciplina – uma que reconheça que há mais na realidade objetiva do que aquilo que vivenciamos.
Você se define como um panteísta. É possível um cruzamento entre panteísmo e ateísmo? E qual a sua opinião sobre movimentos ateístas como Ateísmo 3.0 e Novos Ateístas?
Não sou o único que tem descrito os novos movimentos ateístas não como um tipo de ateísmo, mas como um anti-teísmo, nem sou o único que percebeu quão fluidamente o novo movimento ateísta tem se entregue ao racismo e à misoginia. É só você ir a um desses sites e blogs dos novos ateístas e ler os comentários e compreender que eles têm muito menos a ver com uma ausência de crença em Deus do que um novo conceito de fundamentalismo secular – do tipo, eu diria, que tem mais em comum com o fundamentalismo religioso do que eles admitiriam. De todo modo, se estamos falando sobre o ateísmo filosófico, claramente consigo enxergar uma profunda conexão entre panteísmo e ateísmo, na medida em que ambos rejeitam o autoritarismo das religiões estabelecidas e da supremacia dos dogmas.
Já considerou a possibilidade de que a existência da alma seja uma ficção, uma ilusão?
Talvez. Mas é um fato fundamental de que a crença na existência na alma é uma crença universal. É um fato da vida que pode ser encontrado em qualquer cultura, em qualquer parte do mundo, e através de toda a história humana. É nossa primeira crença. A pesquisa histórica tem mostrado que as crianças nascem acreditando na substância dualista – a ideia de que corpo e mente (ou alma) podem ser distintas. Na verdade, conforme conto no livro, a crença em uma alma precede a existência do homo sapiens em milhares de anos. Podemos encontrar evidências dessa crença nos neandertais e mesmo no homo erectus. Assim, talvez toda a humanidade, durante toda a história, tenha sofrido da mesma ilusão. Ou talvez exista realmente algo nessa ideia de alma que a gente devesse prestar atenção seriamente.
No livro A Era das Máquinas Espirituais, o futurista Ray Kurzweil vê os seres humanos divididos entre corpo e alma em analogia aos computadores (hardware e software), e propõe que o advento da Singularidade aconteça quando um ser humano possa fazer um upload de consciência, transferindo seu “software” para um “hardware” mais desenvolvido. Do ponto de vista da alma, como você vê esta possibilidade? Uma inteligência artificial pode evoluir para criar uma alma?
Se podemos ensinar uma inteligência artificial a mimetizar emoções humanas ao manipular um hardware neurológico, e se a fé é o produto de conexões neurológicas, então uma máquina crente não me parece uma ideia tão maluca assim. A verdade mais fundamental e simples a respeito da experiência religiosa é que resulta de reações químicas no cérebro. Em outras palavras, a religião é um fenômeno neurológico. Isso não deslegitimiza a experiência religiosa. Toda experiência é o resultado de reações quimicas cerebrais. Não existe razão para dizer que a experiência religiosa seja diferente. Agora, se você está me perguntando se algum dia poderemos recriar essas mesmas reações químicas em uma inteligência artificial para produzir a experiência religiosa, eu responderia: por que não?
*Ronaldo Bressane é escritor e jornalista, autor do romance Escalpo (Reformatório), entre outros