Queimar livros, espalhar ódios e construir ressentimentos

Compartilhe

Durante séculos os seres humanos esconderam informações, excluindo dados e estimularam a falta de transparência como forma de dificultar a busca de conhecimentos, construindo exércitos de ignorantes, pessoas subservientes e pessoas escravizadas e estimulando as mais variadas desigualdades, gerando medos crescentes, rancores elevados e o incremento de ressentimentos, conflitos sociais, econômicos e culturais.

A história da humanidade é marcada por grandes constrangimentos, coletividades estimulando os confrontos, mortes em guerras fratricidas, países explorando povos inteiros como forma de transformar estas sociedades em espaços de crescimento de lucros monetários e interesses materiais, criando dores inenarráveis nos corações humanos e mostrando valores frágeis e centrados nos donos da hegemonia, da ambição e da cobiça dos seres humanos.

Os livros sempre foram vistos como espaços de reflexão e um instrumento de construção das realidades da vida, elementos centrais para o desenvolvimento das análises que deveriam embalar a sociedade, estimulando o conhecimento, fortalecendo a imaginação, estimulando os seres humanos vivenciarem as experiências da humanidade, conhecendo personalidades, episódios cotidianos e construindo narrativas que nos alentam e fatos históricos, além de gerar constrangimentos, medos e desesperanças.

Os livros nos mostram histórias de conquistas, sobrevivências emocionais, superação psicológicas e, ao mesmo tempo, nos mostram desequilíbrios sentimentais, emocionais e psicológicos, auxiliando na compreensão dos seres humanos, suas passagens e as perspectivas mais íntimas, mostrando-nos como indivíduos, dotados de sonhos, medos e esperanças.

As trajetórias dos livros nos auxiliam a viajar sem sair de casa, a vivenciar novas experiências do cotidiano, nos levam a compreender os conflitos contemporâneos, ao mesmo tempo que, nos levam a sobreviver sobre civilizações da história, seus confrontos mais íntimos, os amores inatingíveis, as relações mais degradantes e os sentimentos mais confusos e esdrúxulos, mostrando os seres humanos como demasiadamente humanos.

Os livros nos mostram oportunidades de compreensão das dores do mundo, os clarões dos horizontes mais escuros, nos auxiliam na compreensão das dificuldades emocionais que permeiam a humanidade, diante disso, os livros tem grande potencial para o crescimento da sociedade, seu papel é libertador, nos auxiliam na compreensão dos instrumentos de controle, os espaços de alienação, os grupos sociais mais abastados, seus lixos, suas ostentações e, ao mesmo, nos mostram a vida dos desfavorecidos, as pobrezas materiais, as limitações das esperanças, os medos da fome, da exclusão e dos preconceitos que crescem e se tornam, cada vez mais, um espaço de degradação e construção de incivilidade. Os livros nos mostram realidades inimagináveis, verdades que muitos não queremos enxergar e podem cultivar espaços de solidariedade, de amor e de gratidão.

Nesta trajetória de séculos, os livros sempre foram vistos como instrumentos de construção de realidades perigosas, diante disso, os livros eram queimados, os livros eram degradados, os livros eram vistos como subversivos, os livros eram vistos como libertadores, por isso, os livros são assustadores. Como instrumento libertador os livros eram perseguidos por governos autoritários, os detentores dos livros eram maltratados pelos donos do poder, os donos de livros eram torturados, eram humilhados, eram massacrados e, muitas vezes, eram mortos. Os livros eram queimados, isso acontecia porque os poderosos das sociedades eram covardes e tinham medo das conversas e das reflexões, eram pessoas que exerciam o poder utilizando-se da força física e acreditavam nos poderes materiais. Infelizmente não percebiam que estes poderes eram materiais e imediatos, acreditavam nos poderes da destruição e dos ganhos do dinheiro e nas forças dos poderes da matéria. Para esses, o segundo plano, a existência da vida pós-morte era algo inimaginável, não refletiam sobre questões imateriais e na existência do espírito, se compraziam com os gozos materiais e valorizavam os prazeres do dinheiro e do poder. Quando chegavam ao mundo espiritual se encontravam em trevas, sentindo dores e assustados, choravam e se sentiam amargurados, abandonados e envergonhados.

São inúmeros momentos de atuação dos donos do poder da sociedade, alguns exemplos de autoritarismo, onde pessoas eram espancadas e reprimidas, outros casos foram mais sutis, onde bibliotecas foram destruídas, livros queimados e memórias foram esquecidas e personagens foram detratados.

Um dos casos mais conhecidos de queima de livros aconteceu em 1861, a exatamente cento e sessentas anos atrás, quando aconteceu o episódio denominado de Auto da Fé em Barcelona. Naquele momento, o editor sr. Maurice Lachâtre encomendou diretamente de Allan Kardec uma remessa de livros espíritas, que comercializaria em sua livraria. Foram despachados dois caixotes de livros, contendo um total de trezentos livros, onde todas as custas de remessa de importação, todos os requisitos legais da alfândega espanhola foram seguidas corretamente e toda a burocracia foi respeitada, mas sua liberação foi sustada, sob a alegação do bispo de Barcelona, Antônio Palau y Termens (1806-1862), um inquisidor espanhol, demonstrando o poder das autoridades religiosas católicas.

Os argumentos da censura foram expostos pelo bispo espanhol: “A Igreja Católica é universal; e sendo estes livros contra a fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outros países”. Neste momento, faz-se necessário, destacar que todas as ideias novas que chegam na sociedade devem impactar para toda a comunidade, os detentores do poder se sentem ameaçados pelos novos pensamentos e usam seus poderes para fragilizar os pensamentos nascentes, utilizando todos os meios para criar constrangimentos e reprimir as novas teorias, detratar os teóricos das novas ideias e ridicularizar seus integrantes.

Novo episódio descrito acima, o Auto da Fé em Barcelona serviu como uma grande propaganda para Allan Kardec e, principalmente, para a Doutrina Espírita, servindo como um espaço para a divulgação do pensamento espírita, aumentando a curiosidade da coletividade e incrementou as vendas e na difusão do ideário da doutrina espírita.

Queimar livros, queimar sonhos, queimar sentimentos e queimar seres humanos é um passo crescente para a incapacidade de construirmos uma sociedade centrada em valores humanos, desenvolvendo uma ética do respeito e da empatia. Sem estes valores estamos construindo uma civilização centrado no imediatismo, na concorrência e nos poderes materiais, valores materializados e distantes dos valores do espírito.

Esses expedientes são utilizados constantemente, além de instrumentos de detração religiosas, como o citado acima, destacamos os comportamentos de grupos políticos que usam seu poder para reprimir novos grupos políticos, estimulando guerras culturais, ameaçando espancamentos e agressões físicas e violências emocionais e psicológicas, que culminam em período de autoritarismo e regimes ditatoriais, que fragilizam estruturas democráticas e criam espaços de agressões e ressentimentos.

Na sociedade contemporânea, uma grande quantidade de livros, artigos científicos e discussões acadêmicas e políticas estimulam os estudos da democracia, que se espalham para todas regiões do mundo, dentre os livros destacamos Como as democracias morrem, dos cientistas americanos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, que mostra que a democracia passa por um momento de receios, incertezas e instabilidades, que podem marcar o início de um momento de maior fragilidades democráticas e preocupações com autoritarismo crescentes em variadas regiões da comunidade internacional.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

Leia mais

Mais Posts

×

Olá!

Entre no grupo de WhatsApp!

× WhatsApp!