“As sociedades capitalistas vivem hoje sob o pêndulo perverso do capital, oscilando entre uma social-democracia medíocre, incapaz de avançar nas reformas sociais necessárias, e uma direita liberal conservadora que, aproveitando-se da mediocridade da social-democracia, ocupa espaços no jogo político, implementando, quando chega ao governo, suas políticas de desastre social”, constata o sociólogo.
O precariado, formado por jovens-adultos escolarizados, mas com inserção precária nas relações de trabalho e vida social, constitui a “camada média do Subproletariado urbano” e é a “espinha dorsal dos protestos nas ruas das 353 cidades brasileiras, ocorridos em junho de 2013”, avalia Giovanni Alves em entrevista concedida à IHU On-Line.
Na interpretação dele, os jovens não vivenciam apenas uma “precarização salarial” por conta do desemprego, dos baixos salários e dos contratos salariais precários, mas estão diante de uma “precarização existencial que ocorre com a precariedade dos serviços públicos nas cidades brasileiras – transporte público, saúde, educação, espaços públicos – e o modo de vida just-in-time”.
As manifestações que tomaram as ruas nos últimos dias representam também uma “insatisfação social” com as demandas sociais reprimidas da camada média do subproletariado urbano, durante os governos Lula e Dilma. “A frente política do neodesenvolvimentismo de Lula e Dilma focou o gasto público no subproletariado pobre (por exemplo, aumento do salário mínimo, Bolsa Família, acesso ao crédito), deixando de lado as demandas sociais reprimidas da camada média do subproletariado urbano”, salienta em entrevista concedida por e-mail.
Para Alves, as manifestações são “incapazes, em si e para si, de ir além da explicitação cotidiana da inquietação social e carecimentos sociais. O problema dos movimentos sociais é a sua pluralidade setorial que tende a promover a dispersão de sua força social e política. A revolta do precariado manifestou, por exemplo, como Movimento do Passe Livre, explicitando problemas nos transportes públicos no Brasil. Depois foram incluídas outras pautas de insatisfação social – algumas pautas políticas criadas pela imprensa conservadora. Mas, no geral, as demandas sociais inscritas eram difusas”.
Giovanni Alves é professor da Faculdade de Filosofia e Ciências do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp, no campus de Marília. Livre-docente em teoria sociológica, é mestre em Sociologia e doutor em Ciências Sociais pela Unicamp. Atualmente, desenvolve o projeto de pesquisa “A derrelição de Ícaro – Sonhos, expectativas e aspirações de jovens empregados do novo (e precário) mundo do trabalho no Brasil (2003-2013)”.
É autor de, entre outros, Dimensões da precarização do trabalho – Ensaios de sociologia do trabalho (Bauru: Projeto editorial praxis, 2013).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Ao comentar as manifestações que acontecem em todo o país, o senhor diz que se trata da “revolta do precariado”. Pode nos explicar essa ideia? Quem é o precariado e como a precarização do trabalho reflete nas manifestações?
Um misto de frustração de expectativas e insatisfação socialGiovanni Alves – Tenho utilizado o conceito de precariado num sentido bastante preciso: o precariado é a camada média do subproletariado urbano, constituída por jovens-adultos altamente escolarizados, mas com inserção precária nas relações de trabalho e vida social. O precariado é constituído por um conjunto de categoriais sociais como, por exemplo, estudantes de nível médio ou nível superior, recém-graduados desempregados ou inseridos em relações salariais precárias; ou ainda por jovens empregados precarizados. Portanto, o conceito de precariado como camada social da classe dos trabalhadores assalariados está delimitado pelas variáveis salariais, etárias e educacionais. Esse contingente de jovens-adultos, por serem altamente escolarizados, tende a cultivar um ethos de “classe média” baseado nos anseios de ascensão social por meio da carreira profissional e desejo de consumo. Por isso pertencem às camadas médias do proletariado urbano. Entretanto, tendo em vista a nova dinâmica do mercado de trabalho no Brasil, um contingente de jovens altamente escolarizados estão desempregados ou estão inseridos em relações salariais precárias tendo em vista a degradação do estatuto salarial (por exemplo, contrato precário de trabalho e baixa remuneração salarial).
Por exemplo, segundo o jornal O Estado de São Paulo, de 30-06-2013, o salário médio mensal dos trabalhadores com mais anos de escolaridade recuou entre 2002 e 2011 no Brasil. A média de salário dos profissionais com 12 anos ou mais de estudo caiu 8% nesse período, de R$ 3.057 para R$ 2.821 (a variação já desconta a inflação do período). Isso significa que o poder aquisitivo desse grupo caiu em 10 anos. Na verdade, as camadas mais escolarizadas do mundo do trabalho no Brasil viram aumentar a concorrência na última década. Nos últimos anos, as pessoas ficaram mais tempo na escola, e a oferta de profissionais com ensino médio e superior aumentou. Cresceu a fatia dos trabalhadores brasileiros com ensino médio e superior em andamento ou concluído. O crescimento da escolaridade também foi impulsionado pelo aumento do número de universidades privadas. Enfim, houve mais ofertas de trabalhadores assalariados altamente escolarizados, a maior parte deles jovens recém-graduados. E muitos profissionais podem ter ingressado no nível mais elevado de escolaridade, mas com o mesmo salário, o que reduziu a média de ganho da categoria. Desse modo, o precariado possui, em si e para si, um misto de frustração de expectativas e insatisfação social e, por outro lado, carecimentos radicais que o torna susceptível de atitudes de rebeldia.
A meu ver, o precariado constituiu a espinha dorsal dos protestos nas ruas das 353 cidades brasileiras, ocorridos em junho de 2013. Na medida em que cresceram por conta da exposição midiática, o corpo das manifestações massivas que atingiram as cidades brasileiras incluiu outras camadas sociais, frações e categorias de classe que ocuparam as ruas. Mas o que eu saliento é que a espinha dorsal da multidão massiva que ocupou as ruas era constituída pelo precariado. De repente, o Movimento do Passe Livre – MPL deu visibilidade nas ruas brasileiras à camada social do precariado, o subproletariado médio das cidades brasileiras.
Por exemplo, no artigo “Que juventude é essa”, publicado no jornal Folha de S.Paulo, de 23-06-2013, o sociólogo Marcelo Ridenti descreveu a juventude que ocupou as ruas nas manifestações do Outono Quente do seguinte modo: “Ao que tudo indica até o momento, são principalmente setores da juventude, até há pouco tida como despolitizada, e que não deixa de expressar as contradições da sociedade. Parece tratar-se de uma juventude sobretudo das camadas médias, beneficiadas por mudanças nos níveis de escolaridade, mas inseguras diante de suas consequências e com pouca formação política” (o grifo é meu). O que Marcelo Ridenti descreve, sem o saber, é o precariado. O corte geracional torna a camada social do precariado susceptível à utilização das redes sociais (Facebook e Twitter).
Ao mesmo tempo, como o precariado nasceu e cresceu na era do neoliberalismo, que aprofundou nas últimas duas décadas, a imbecilização cultural, a despolitização e o irracionalismo social na sociedade brasileira, ele tornou-se bastante susceptível às atitudes anarcoliberais, anarcopunks, neofascistas e esquerdistas tout cort, isto é, atitudes “extremistas”, manipuladas tanto à esquerda como à direita, principalmente numa conjuntura social instável e polarizada politicamente. Na verdade, partidos e sindicatos têm dificuldades em absorver as insatisfações sociais, demandas radicais e formas de organização do precariado.
Precarização existencial
Enquanto camada média da classe social do proletariado, o precariado tem uma cultura e psicologia social própria. Por um lado, seus membros são movidos pela profunda insatisfação social. O que significa que a rebeldia do precariado é expressão das novas dimensões da precarização do trabalho que ocorre no Brasil. Não se trata apenas da precarização salarial, tendo em vista o desemprego, baixos salários, rotatividade do trabalho, contratos salariais precários e frustração de expectativas de carreira profissional; mas trata-se também da precarização existencial que ocorre com a precariedade dos serviços públicos nas cidades brasileiras – transporte público, saúde, educação, espaços públicos – e o modo de vida just-in-time (discuto isso no meu último livro “Dimensões da Precarização do Trabalho no Brasil”). Por outro lado, o precariado é movido pelos carecimentos radicais: a juventude escolarizada torna-se vulnerável ao desalento e angústia intrínsecos ao prosaísmo da vida burguesa e a incapacidade da sociedade das mercadorias em sua etapa de capitalismo manipulatório em dar uma vida plena de sentido. Enfim, o precariado representa, em si e para si, a carência de futuridade intrínseca à ordem do capital. É por expressarem as contradições radicais da ordem burguesa hipertardia que o precariado é suscetível a absorver em suas atitudes sociais, formas de irracionalidade que caracterizam a ordem decadente do capital. É importante salientar que o cerne da radicalidade do precariado é a contradição visceral entre “ideais de classe média”, impulsionados pela educação do capital, além da condição de proletariedade que caracteriza a situação existencial da juventude rebelde. Mas os protestos de rua no Brasil não dizem respeito à revolta da “classe média”. Na verdade, a pobreza heurística do conceito de “classe média” tende a ocultar a condição existencial de classe da multidão insatisfeita das ruas, multidão de jovens-adultos proletários altamente escolarizados insatisfeitos socialmente e carentes de uma vida plena de sentido.
IHU On-Line – O que a “revolta do precariado” demonstra sobre a condução política, econômica e social do país nos últimos anos, especialmente em relação à ascensão da classe C via consumo, à expansão econômica via crédito, ao aumento do salário mínimo e às políticas públicas sociais de distribuição de renda?
Giovanni Alves – A curta década de 2000 foi marcada pela ascensão e impasses do neodesenvolvimentismo no Brasil. O projeto lulista ou projeto de desenvolvimento burguês redistributivista, com foco no subproletariado pobre (a dita “Classe C”), adotou a linha de menor esforço do redistributivismo de renda, privilegiando, desse modo, a formação de “sujeitos passivos” da agenda governamental (Bolsa Família). Na verdade, por trás do realinhamento eleitoral do PT em 2008, constatado por André Singer no livro “O sentido do lulismo” (o PT tornou-se o partido dos pobres), está à opção política pela linha de menor esforço do redistributivismo de renda – o “reformismo fraco”. Enquanto o neoliberalismo da década de 1990 sucateou os serviços públicos, o neodesenvolvimentismo da década de 2000 não os recuperou efetivamente. Na verdade, a frente política do neodesenvolvimentismo de Lula e Dilma focou o gasto público no subproletariado pobre (por exemplo, aumento do salário mínimo, Bolsa Família, acesso ao crédito), deixando de lado as demandas sociais reprimidas da camada média do subproletariado urbano – o precariado, imerso na dupla dimensão da precarização do trabalho: precarização salarial e precarização existencial.
Demandas sociais
Entretanto, tratar das demandas sociais do precariado significaria enfrentar efetivamente o capital financeiro, tendo em vista que a linha de menor esforço do redistributivismo do capital significa, em si e para si, renunciar a enfrentar os constrangimentos do orçamento estatal pela dívida pública nas mãos do capital financeiro que impede, por exemplo, investimentos de maior porte nos serviços públicos. A direita neoliberal, sedenta em manipular a revolta do precariado, oculta a radicalidade das demandas sociais das manifestações das ruas e suas implicações políticas. Por exemplo, quem financiaria a melhoria efetiva dos serviços públicos? Em que medida a melhoria dos serviços públicos significaria alterar o modelo de controle social, propriedade e gestão da coisa pública no Brasil? Etc. Portanto, surgiram impasses sociais e políticos e explicitaram-se os limites radicais do neodesenvolvimentismo com a ascensão das camadas médias do subproletariado urbano, que cresceu na última década devido à renovação geracional do mercado de trabalho e ao aumento do perfil de escolaridade da massa proletária urbana (por exemplo, o acesso ao ensino superior praticamente dobrou em uma década.
O precariado como subproletariado urbano
Em 2000, eram admitidos anualmente 900 mil calouros. Em 2011, quase 1,7 milhão. (Dois terços no ensino privado.) Enfim, cresceu o precariado como subproletariado urbano, inserido na condição pós-moderna no sentido de rompimento dos parâmetros da modernidade fordista baseada nos ideais de educação como capital humano, emprego como carreira profissional e consumo/família como realização pessoal; uma condição pós-moderna que possui também um caráter cultural caracterizado pela corrosão do caráter, valores do individualismo e sentimento de “presentificação crônica”. Enquanto o neodesenvolvimentismo interpelou o subproletariado pobre como “sujeitos passivos” da agenda governamental, o precariado que se manifesta hoje nas ruas aparece como “sujeitos ativos” da insatisfação social com os limites do neodesenvolvimentismo e portadores de carecimentos radicais intrínsecos da ordem burguesa hipertardia. Na verdade, o precariado expõe os limites radicais do neodesenvolvimentismo como modo de desenvolvimento capitalista incapaz de dar resposta às necessidades sociais das cidades como espaço público.
Insatisfação acumulada
As causalidades imediatas dizem respeito à insatisfação social acumulada nas últimas décadas de democracia brasileira com a precarização do trabalho em sua forma de precarização salarial e precarização existencial, onde a critica da qualidade dos serviços públicos é um traço crucial: saúde, educação, transporte público e espaços públicos urbanos. Por isso, a rebeldia do precariado nasceu com o MPL, que depois se transfigurou como movimento social permeado de um complexo de demandas sociais acumuladas insatisfeitas pelo neodesenvolvimentismo burguês. Mas o movimento do precariado no Brasil e no mundo expõe no século XXI os carecimentos radicais das camadas médias do proletariado – o subproletariado médio – sedento de uma vida plena de sentido no interior da ordem estranhada do capital.
IHU On-Line – Em artigo recente, ao mencionar a participação dos jovens nas manifestações, o senhor afirma que a “condição social de estudante é hoje uma condição precária”. O que isso revela sobre as políticas públicas educacionais adotas no país?
Giovanni Alves – É importante salientar que o estudante de ensino médio e ensino superior é uma das categorias sociais que compõe, em sua ampla maioria, a camada média do subproletariado urbano. Na verdade, os estudantes são trabalhadores assalariados em formação, sendo virtualmente trabalhadores precários in fieri tendo em vista as próprias condições estruturais do mercado de trabalho hoje. Eles sofrem no ambiente escolar a condição de proletariedade no sentido do modo de vida just-in-time e frustração das expectativas. Por outro lado, enquanto a juventude está exposta aos carecimentos radicais da ordem burguesa. Escolas e universidades como organizações burocráticas reproduzem a experiência da empresa capitalista que, hoje, está imersa no espírito do toyotismo. Nas salas de aula, verdadeiros locais de trabalho do estudante, temos a pressão contínua pelo comprimento de metas, assédio moral e, até, o crescimento de adoecimentos psicológicos tal como ocorre com o mundo do trabalho (o aumento de suicídio entre jovens é uma realidade no Brasil neodesenvolvimentista).
As requisições estranhadas do trabalho abstrato virtual estão presentes no metabolismo social escolar. Por isso, cresce na juventude, o uso de bebidas e drogas como formas espúrias de resistir ao estranhamento (no sentido utilizado por Georg Lukács). Portanto, é isto: a condição existencial do estudante é uma condição precária, tal como a do empregado e operário. Mas é importante salientar que não se trata apenas de investir em educação. Mas, nas condições históricas em que vivemos, é importante e fundamental, mas não o suficiente – por exemplo, Portugal nos últimos vinte anos investiu pesadamente em educação, mas só criou uma superpopulação relativa altamente escolarizada, porém desempregada e precária. É importante criar condições econômicas e sociais capazes de realizar as possibilidades reprimidas de realização profissional e humana. É claro que o Brasil precisa crescer, mas também mudar o sentido da macroeconomia do crescimento. Depois, numa perspectiva estratégica, é importante alterar o modelo de desenvolvimento e modo de produção da vida social (o que vai exigir a formação de sujeitos históricos capazes de “negação da negação”, um desafio imenso hoje, tendo em vista o capitalismo manipulatório exacerbado no Brasil, com seus mass media imbecilizantes e alienados e a crise dos intelectuais orgânicos de esquerda).
IHU On-Line – O senhor também comenta que a voz das ruas exige avanços sociais. O que isso demonstra sobre a gestão do PT no país? É possível vislumbrar a retomada desses avanços?
Giovanni Alves – É claro que a voz das ruas exige mais avanços sociais. Não que não tenham ocorrido avanços sociais nos governos do PT. Pelo contrário, o livro “Lula e Dilma – 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil” é a prova irrefutável de que, nos últimos 10 anos de neodesenvolvimentismo, os indicadores sociais melhoraram bastante no país. Neodesenvolvimentismo não é a mesma coisa que neoliberalismo, embora seja também um projeto de desenvolvimento capitalista constrangido pelo bloco histórico neoliberal no plano do mercado mundial. O problema dos avanços sociais necessários para satisfazer as demandas do precariado não se trata meramente de problemas de gestão, mas sim de opções políticas. É preciso alterar a direção política e cultural do neodesenvolvimentismo, promovendo não apenas políticas de crescimento da economia, redução das desigualdades sociais e investimentos nos serviços públicos de qualidade, por exemplo, mas implantando o controle social dos meios de comunicação de massa e promovendo uma reforma política que permita a constituição de uma nova frente política neodesenvolvimentista comprometida com reformas sociais; e num segundo momento, last but not the least, colocar no horizonte estratégico o socialismo como projeto de civilização.
É ilusão acreditar que o capitalismo tenha futuro como modo de civilização. Talvez como modo de produção de riqueza abstrata, principalmente em sua forma fictícia, o sistema capitalista demonstre hoje um notável sucesso. Mas, cada vez mais, o desenvolvimento capitalista implica insatisfação social e carecimento radicais explícitos. Enfim, precarização do trabalho como precarização salarial e precarização existencial. A esquerda social-democrata, incluindo a direção hegemônica do PT, perdeu o horizonte estratégico de crítica do capitalismo. Pelo contrário, o horizonte intelectual-moral de políticos e intelectuais da maioria do PT é tão somente “humanizar” o capitalismo. A crise europeia é a demonstração histórica candente de que o capitalismo é irreformável no sentido de humanizá-lo de forma sustentável, tendo em vista a própria crise estrutural do capital. A revolta do precariado é um sinal das ruas que precisa ser decifrado, não apenas em sua forma contingente, mas também em sua dimensão necessária. Enfim, é importante decifrar o enigma do precariado (este é o título da Parte 3 do meu último livro).
IHU On-Line – Em 2011, comentado os movimentos como Occupy Wall Street (dos EUA) e o 15M (da Espanha), o senhor afirmou que, apesar das manifestações massivas que propõem, eles “são incapazes, em si e por si, de ir além”. Por quê? O senhor mantém a mesma avaliação acerca das manifestações que estão acontecendo no Brasil?
Giovanni Alves – A revolta do precariado como movimento social é incapaz, em si e para si, de ir além da explicitação cotidiana da inquietação social e carecimentos sociais. O problema dos movimentos sociais é a sua pluralidade setorial que tende a promover a dispersão de sua força social e política. A revolta do precariado se manifestou, por exemplo, como Movimento do Passe Livre, explicitando problemas nos transportes públicos no Brasil. Depois foram incluídas outras pautas de insatisfação social – algumas pautas políticas criadas pela imprensa conservadora. Mas, no geral, as demandas sociais inscritas eram difusas. Enfim, os movimentos sociais, como o sindicalismo, tendem a operar com a dialética entre valor e limites. Eles têm um valor – expõem as necessidades sociais e os carecimentos radicais da multidão, do povo e da classe social do proletariado no plano da vida cotidiana, mas possuem limites irremediáveis no sentido da operação política das demandas sociais e seus encaminhamentos no quadro da institucionalidade democrática. Para isso, torna-se fundamental o partido (ou frentes de partidos), operador ontológico da práxis política capaz de dar direção intelectual-moral e política ao movimento social diante do Estado político do capital. Os partidos devem ter uma relação orgânica com os movimentos sociais – evitando instrumentalizá-los – e devem ouvi-los e traduzir em pautas políticas mais gerais no interior da institucionalidade democrática, visando alterá-la, aperfeiçoá-la ou mesmo refundá-la na perspectiva da sociedade autorregulada.
IHU On-Line – Entre os discursos dos manifestantes, há uma crítica a todos os partidos políticos, que é interpretada de diferentes maneiras por eles. Alguns militantes e políticos do PT criticam as manifestações e dizem que elas são um golpe da direita. Outros, por sua vez, utilizam-se de tais manifestações para fazer propaganda política. Que avaliação o senhor faz dessas interpretações, especialmente acerca da posição do PT?
Giovanni Alves – Quem tenta despartidarizar os movimentos sociais e quem identifica neles apenas golpes da direita são aqueles que têm medo da democratização radical da sociedade brasileira. Por um lado, a direita liberal reacionária critica os partidos políticos visando esterilizar o movimento social para torná-lo manipulável tendo em vista os interesses políticos do verdadeiro partido da direita neoliberal no Brasil: os mass media, meios de comunicação de massa, a grande imprensa sob controle da oligarquia liberal; por outro lado, a esquerda social-democrata de cariz burocrático aquartelada hoje, nos governos Lula e Dilma, nas entranhas do poder do Estado político do capital, sente-se inquieta com a insatisfação social e os carecimentos radicais da multidão do precariado vendo nela um “golpe da direita”. Uma parte significativa do PT perdeu a capacidade política de ouvir os movimentos sociais e traduzir em pautas políticas para além da linha de menor esforço da redistribuição de renda no interior da ordem do capital. É claro que a direita oligárquica no Brasil possui uma sanha golpista e procura manipular os movimentos sociais. O espectro do “golpe de direita” sempre ronda governos de esquerda no Brasil – desde Getúlio Vargas em 1951. Mas não atentar-se para o significado radical dos protestos de rua é inadvertidamente colaborar com a estratégia golpista da direita liberal.
Não é à toa que as sociedades capitalistas vivem hoje sob o pêndulo perverso do capital, oscilando entre uma social-democracia medíocre, incapaz de avançar nas reformas sociais necessárias, e uma direita liberal conservadora que, aproveitando-se da mediocridade da social-democracia, ocupa espaços no jogo político, implementando, quando chega ao governo, suas políticas de desastre social. Esta é a verdadeira crise da democracia representativa e seus sistemas políticos esvaziados de sensibilidade social.
IHU On-Line – Diante das manifestações, o governo propõe um plebiscito com perguntas diretas sobre reforma política. Como avalia essa proposta e a condução do governo federal diante das manifestações?
Giovanni Alves – O governo Dilma surpreendeu-se com os movimentos sociais, sendo despertado do “sono dogmático” das políticas redistributivistas focalizadas no subproletariado pobre. Diante da pressão do precariado e suas demandas radicais, a presidente Dilma adotou uma postura progressista: convocar um plebiscito popular visando à reforma política. Como governo social-democrata, apostou-se na linha contingente da contradição social, colocando na pauta política o tema necessário da criação de institucionalidade político-democrática capaz de implementar a mudança do padrão do neodesenvolvimentismo. É a saída progressista possível no interior da ordem democrático-burguesa.
Na verdade, o obstáculo para a satisfação das necessidades sociais e, até, dos carecimentos sociais do precariado é, no plano imediato, um obstáculo político-institucional. A revolta do precariado desvelou uma crise político-institucional no Brasil. As instituições democráticas e suas representações políticas estão aquém das demandas radicais da sociedade brasileira – mas isso obviamente não surgiu com as manifestações do Outono Quente. É importante salientar que o mesmo ocorre também na velha Europa com a crise da democracia representativa burguesa insensível às reivindicações sociais.
Mas com respeito à proposta do plebiscito popular visando à reforma política, existem nuances político-jurídicas decisivas que podem tornar a proposta do governo tão inócua quanto dispersiva. Por ouro lado, a direita liberal está intrigada com o movimento do xadrez político e arma-se para evitar que o povo entre na cena política – e nesse caso, não se trata apenas do precariado. Obviamente vai tentar esvaziar a proposta do plebiscito sobre reforma política, tornado-a inócua, como tentou fazer com os protestos de ruas, manipulando-as apenas para desgastar o governo Dilma. Caso não consiga manipular, procure esvaziar, tornando inócuo; ou então, reprima violentamente – eis a estratégia do partido da direita no Brasil.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Giovanni Alves – Conheçam meu último livro intitulado “Dimensões da precarização do trabalho”. Nele discuto a precarização existencial e o enigma do precariado. Convido também a conhecerem meus projetos de extensão universitária – www.telacritica.org e www.projetocinetrabalho.org. Eles representam tentativas de formação da consciência crítica utilizando filmes do cinema mundial e iniciativas de produção audiovisual que buscam dar visibilidade ao mundo do trabalho. Enfim, na era da crise estrutural do capital, a formação de sujeitos conscientes torna-se uma tarefa política radical indispensável e urgente.
Instituto Humanitas Unisinos (IHU)
(Por Patricia Fachin – 02 Julho de 2013)