‘Populismo se nutre da falsa ideia de que mundo vai mal, mas ele vai bem’, diz Steven Pinker

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Psicólogo defende que humanidade está em seu melhor momento, mas pessimismo nos confunde

Patrícia Campos Mello

SÃO PAULO

Enquanto o noticiário nos apavora com milhões de refugiados, guerras sangrentas e crianças famélicas, o psicólogo e linguista canadense-americano Steven Pinker persiste na cruzada para nos convencer de que o mundo nunca esteve tão bem.

Divulgar o progresso da humanidade, segundo ele, não é só um meio de corrigir uma visão distorcida que as pessoas têm do mundo. É uma urgência neste momento de ascensão do populismo autoritário.

Em seu livro mais recente, “O Novo Iluminismo – Em defesa da razão, da ciência e do humanismo”, que será lançado quinta (6) no Brasil pela Companhia das Letras, Pinker, 63, retoma o projeto de mostrar com dados e fatos que as coisas estão melhorando.

Para o psicólogo cognitivo, é preciso redobrar o foco na razão, na ciência, no humanismo e no progresso para que as coisas continuem a melhorar e para evitar que as pessoas sejam seduzidas pelo discurso catastrofista nostálgico do populismo em expansão.

Quando vemos o noticiário, parece que o mundo está cada vez pior. Mas o sr. argumenta, com dados, que nunca estivemos tão bem. Por que há esse descolamento entre a nossa percepção e a realidade?

Isso decorre da natureza do noticiário e da mente humana. A mente humana avalia risco e perigo por meio de exemplos vívidos, imagens, narrativas.

Não somos intuitivamente estatísticos. Se lemos uma reportagem marcante sobre alguém sendo mordido por um tubarão, um terrorista jogando seu carro no meio das pessoas na calçada, ou um ataque numa guerra, isso nos faz pensar que esse tipo de incidente é extremamente comum.

Nós conseguimos nos lembrar facilmente do que está mais disponível na nossa memória, algo que os psicólogos chamam isso de heurística da disponibilidade. Quanto mais alguma coisa está à mão na nossa memória, mais pensamos que é algo com grande probabilidade de acontecer.

Já o noticiário tem como objetivo apresentar ao público eventos e incidentes. Se qualquer coisa ruim acontece em qualquer lugar do mundo, é garantido que estará no noticiário.

Já os acontecimentos positivos muitas vezes não rendem imagens vívidas, e na maioria das vezes não são coisas que acontecem de repente, portanto eles sistematicamente não estão no noticiário.

Não se noticia o fato de que, nos últimos 40 anos, não houve nenhuma guerra no sudeste da Ásia, uma região onde frequentemente havia conflitos, como o da Coreia, Camboja, Vietnã. Uma região onde não há guerra não é uma manchete, esses são acontecimentos que só podem ser vistos por meio de dados.

Só quando você compila dados, como eu fiz, é que consegue compreender as enormes mudanças benéficas que ocorreram no mundo.

Por exemplo, mortes em guerras: o número de mortes aumentou um pouco nos últimos cinco anos, por causa da guerra da Síria, mas, mesmo assim, está muito abaixo dos níveis dos anos 50, 60 e 70, e mais ainda dos níveis da Segunda Guerra Mundial (1939-45).

Da mesma maneira, os jornais raramente falam que a porcentagem da população vivendo em pobreza extrema caiu de 30% há 30 anos para 10%; e alfabetização aumentou para 90% das pessoas com menos de 25 anos.

Na maioria dos países, a criminalidade caiu. Até no Brasil, um dos mais violentos, houve queda no número de mortes decorrentes de crimes em algumas cidades, como o Rio.

Melhoras que podem ser detectadas nos números, nos dados, quase nunca aparecem no noticiário, por isso as pessoas não sabem que houve progresso.

As pessoas reagem com ceticismo quando o senhor tenta convencê-las de que o mundo está melhorando? 

Sempre. Quando elas veem dados, elas ficam surpresas e mais receptivas —por isso eu conto a história do meu livro por meio de 75 gráficos, e, no livro anterior (“Os Anjos Bons da Nossa Natureza”, Companhia das Letras, 2017), eu usei 100 gráficos, porque sabia que, se as pessoas não vissem os números, não acreditariam.

O sr. mostra no livro que, além da mídia, as pessoas têm a tendência de focar o lado negativo das coisas...

Há estudos bem conhecidos mostrando que o ruim é mais forte que o bom; do ponto de vista psicológico, estamos mais preocupados com o que pode dar errado do que com o que pode dar certo.

Temos a tendência de nos lembrar melhor de acontecimentos negativos do que positivos, quando são recentes. Mas é diferente quando se trata de coisas que aconteceram há muito tempo. Nós lembramos das coisas boas e ruins, mas tendemos a esquecer quão ruins foram os acontecimentos negativos.

De certa maneira, as pessoas nascem nostálgicas, daí porque temos livros com títulos como “os bons tempos eram péssimos” e “a melhor explicação para os bons tempos é a falta de memória”.

Mas, em geral, acontecimentos negativos deixam um impacto psicológico maior. E isso tem mais uma consequência: normalmente, levamos muito mais a sério as pessoas que nos alertam para o que pode dar errado do que as pessoas que identificam o que está dando certo.

É aquele ditado: sempre parece que os pessimistas querem nos ajudar, enquanto os otimistas querem nos vender alguma coisa.

No livro, o sr. fala da maneira pessimista com que encaramos o futuro e a nossa atual situação. Por exemplo, quando se pergunta a alguém quantas coisas boas poderiam acontecer hoje, a pessoa pensa em algumas; mas se perguntam quantas coisas ruins poderiam acontecer, ela pensa em um milhão…

Bom, isso não é apenas um efeito psicológico, é a realidade. Há realmente um número muito maior de coisas que podem dar errado do que podem dar certo, essa é a natureza do universo.

Aliás, acho que é por isso que somos tão despreparados para dar valor ao nosso progresso, porque durante a maior parte da história não houve progresso nenhum ou foi muito lento. Foi só a partir da revolução científica que o progresso se tornou uma realidade.

De que maneira os valores do iluminismo contribuem para a melhora de nossas vidas? 

Quando falo em valores do iluminismo me refiro a razão, ciência, humanismo e progresso. Razão no sentido de não confiarmos em dogmas ou autoridade, devemos sempre ser céticos e tentar descobrir as coisas usando a lógica e as provas.

Ciência é a aplicação da razão ao mundo natural. Humanismo é o princípio de que é o bem estar dos seres vivos que é o maior valor moral, e não a glória de uma tribo, nação, ou lei religiosa. E progresso é usarmos razão e ciência para alcançarmos o bem estar dos seres vivo.

Isso não significa que teremos um mundo perfeito, isso é impossível, mas pode, sim, haver uma melhora gradual.

O sr. afirma que o populismo autoritário é um dos movimentos de reação contra o iluminismo. A ascensão desse populismo é preocupante? 

Muito preocupante, porque o progresso não é automático, nem inevitável, ele depende dos ideais do iluminismo. Portanto, se um movimento contra o iluminismo se torna dominante, isso pode desacelerar o progresso ou levar a retrocesso.

Já houve várias fases de retrocesso na história, por exemplo, durante a ascensão do fascismo nos anos 30 e 40, que levou o mundo a se voltar contra a democracia liberal.

No livro, eu discuto como os movimentos atuais contra o iluminismo são uma continuação de movimentos do século 19 que glorificavam nação, raça ou religião, em vez de focar os indivíduos, e que olhavam para o passado como uma era de ouro em vez de tentar resolver problemas e fazer um futuro melhor que o presente.

Ao dizer sempre que as coisas nunca estiveram tão boas não estamos adotando uma visão de elite? Sim, tudo está ficando melhor para você, mas não para o pessoal passando fome em favelas, na guerra da Síria, etc...

Na realidade, os dados que eu uso se referem ao mundo inteiro. Claro que as pessoas que mais sofrem ainda estão em uma situação péssima, mas o fato de a guerra ter sido debelada ou evitada em outros lugares aumenta nossa confiança de que podemos trazer paz para partes do mundo que estão sofrendo.

O oposto, pensar que sempre houve guerras, é da natureza humana, e não há nada que possamos fazer, nos torna insensíveis.

Se você pensa que todo mundo no Oriente Médio sempre está se matando, você será fatalista e cínico. Se você pensa que o Sudeste Asiático teve guerras sangrentas por 70 anos e agora tem a paz, podemos pensar que isso pode acontecer no Oriente Médio também.

O sr. afirma que as políticas identitárias também são inimigas dos valores iluministas. Por quê? 

Política identitária é uma teoria de que a humanidade é dividida em grupos baseados em raça, gênero, e orientação sexual, que sempre estão brigando por poder.

É a teoria de que precisamos lutar para que um grupo tenha menos poder, para que o outro possa ter mais. Isso é contrário à ideia de que todos os humanos têm a possibilidade de prosperar e sofrer, e que podemos ser engenhosos descobrindo soluções que vão melhorar a vida de todo mundo, não só de determinados grupos.

Da mesma maneira que é errado discriminar alguém por causa de raça ou gênero, é errado tentar virar a mesa e fazer outra raça ou gênero superior. Igualdade significa que todos têm direitos iguais, independentemente de raça, gênero ou orientação sexual.

Mas e quanto a corrigir injustiças ou desequilíbrios históricos? 

É possível que existam legados históricos de discriminação, e é legítimo ajudar pessoas que foram discriminadas, é o princípio da justiça. Mas isso não se aplica a todas as pessoas de uma determinada raça.

Então usar políticas raciais acabaria discriminando contra alguns indivíduos, e isso geraria ressentimento e reação —que é o que estamos vivendo nos EUA hoje.

O aumento na desigualdade de renda é visto como um sinal de que o progresso é limitado, e a vida não melhorou para todos da mesma forma. Mas o sr. diz que igualdade econômica não é um componente fundamental do bem estar. 

A pobreza é um componente fundamental do bem estar, igualdade econômica não é.

Em qualquer economia onde haja livre mercado é inevitável que surja desigualdade econômica. Como aconteceu com a revolução industrial do século 19, e agora com a revolução eletrônica, é inevitável que algumas pessoas aproveitem melhor que outras as novas oportunidades econômicas.

Sou a favor de políticas que tentam ajudar os mais pobres, como tributação progressiva, mas apenas quando o objetivo é melhorar a vida dessas pessoas, e não igualar a vida de todo mundo.

No seu dia a dia, o sr. reclama bastante da vida? 

(Risos) Acho que sim. Mas tento me lembrar sempre de quão sortudo eu sou por viver em uma democracia liberal —por enquanto, pelo menos, ainda é uma democracia liberal.

Tento por minhas queixas cotidianas em perspectiva, eu sou muito sortudo por ser um professor e escritor.

É muito útil pensar em como as coisas eram piores para os meus pais e meus avós, apreciar o progresso que tivemos, não para sermos complacentes, pelo contrário, para nos estimular a buscar mais progresso.

Por que seu livro precisava ser escrito neste momento? 

O mundo precisa de uma narrativa que se contraponha ao populismo autoritário.

As pessoas não valorizam as conquistas da democracia liberal, não há muita gente disposta a defendê-las.

Há pessoas carismáticas e apaixonadas defendendo o populismo autoritário e a religião, mas o projeto iluminista carece de defensores. Não sou um líder carismático, mas espero dar munição e argumentos para pessoas que possam ser.

Vivemos em uma era em que é possível acessar dados que costumavam ser obscuros e difíceis de encontrar, então podemos documentar o progresso e isso muda nossa compreensão das coisas.

As pessoas parecem estar imunes a dados e fatos ultimamente. 

As pessoas sempre foram imunes a dados e fatos, é assim que a mente humana funciona.

Algumas pessoas estão dispostas a aprender, duvidar de suas intuições e essas pessoas podem usar esses dados para repensar suas crenças. Isso pode motivar pessoas que são comunicadores eficientes a usar fatos positivos para se contrapor à narrativa populista.

Não deveríamos combater a propaganda com propaganda, mas propaganda amparada em fatos vale a pena espalhar.

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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