Poderá a globalização nos livrar do capitalismo? Paulo Fleury

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Em crise profunda, os neoliberais contorcem-se, mordem o próprio rabo e adotam um protecionismo tacanho. Nos EUA, os magnatas já exercem o poder diretamente. Mas, em seu impulso de integração, talvez a humanidade já tenha encontrado uma alternativa

Paulo Fleury Teixeira, Médico e Filósofo – OUTRAS PALAVRAS – 28/03/2025

Os bilionários no poder nos EUA e o sentido desta mudança

No curso da grande crise econômica em que estamos mergulhados, era previsto que a ideologia liberal se radicalizasse em sua origem e condição de classe, e que redobrasse suas apostas na concentração de riqueza nas mãos dos capitalistas, em detrimento da população trabalhadora em geral. A ideologia, neste momento, apela ainda mais para “o espírito animal” do empresário, aumentando a ideia de valor e poder dos líderes empresariais vitoriosos na competição do mercado. Nada pode ter mais valor ideológico para o capitalismo do que a visão do vitorioso, os líderes empresariais, vistos como condutores natos da produção e, portanto, da vida social. Isso parece natural, no sentido de que, seja como for, tiveram o suposto mérito de vencer no cenário da mais intensa competição.

Existem muitas razões para que seja assim. Estamos em processo de socialização da produção e da vida social como um todo. Todas as grandes certezas do liberalismo ou, mais objetivamente, do capitalismo liberal, foram derrotadas na história. Porém os processos históricos não são lineares – mas desenvolvem-se em ondas. Podemos, portanto, reconhecer um processo histórico de socialização no sistema que, no entanto, tome, em alguns momentos, o sentido oposto: o da acentuação do liberalismo na economia, na vida real, no mundo todo. Estamos justamente no fim de um destes momentos de acentuação do capitalismo em sua essência.

Neste momento, os capitalistas e seus representantes, no que toca à distribuição da riqueza e do poder, redobram a aposta na liberdade e poder ilimitados do mercado, dos capitalistas e de seus líderes. É realmente peculiar que agora sejam os próprios capitalistas a exercer diretamente o poder nos EUA. Nada mais evidente. Estamos no ápice da crise e os atores principais não podem e não querem mais deixar o poder nas mãos de seus representantes profissionais. Acumularam tanto poder e estão tão ligados ao Estado americano que não precisam e não querem mais ocultá-lo.

A crise já se arrasta pelo menos desde 2007 – e o que fazem? Apostam em maior concentração de riqueza e poder para dar solução à crise que foi causada por maior acúmulo e concentração de riqueza e poder. Correlativamente, produzem empobrecimento, relativo e até mesmo absoluto, das massas trabalhadoras nos grandes países da economia ocidental, da Europa e dos EUA.

A necessidade econômica, por seu lado, indica que teremos que superar esta onda, que promoveu a intensa concentração das riquezas, no mundo todo, dos EUA à China. E, de fato, já estamos andando neste sentido. A desigualdade parou de crescer desde 2014 na China. E, recentemente, tínhamos alguma tendência positiva nos próprios EUA. No entanto, agora, Washington optou por guinada liberal extrema. Estão dispostos a fazer a massa trabalhadora aceitar, temporariamente, ainda mais perda de serviços e de renda, de recursos e de dignidade. Vão tomar recursos das classes médias e das já empobrecidas, enxugando ainda mais os serviços públicos e adotando medidas de proteção à indústria local, em detrimento da competição e da integração produtiva mundial. Isto, com certeza, aumenta as pressões inflacionárias e de desaceleramento da economia, nos EUA e mundo afora.

A guerra comercial que os EUA lançaram contra a China e que agora se intensifica, com grandes aumentos de tarifas de importação, é característica deste período de grande crise econômica e de grande mudança na hegemonia, no centro de poder capitalista mundial.

Em qualquer outra situação teríamos justamente o inverso, o centro do poder no sistema capitalista mundial deve ser expansivo e liberalizante; deve fazer o que for necessário, incluindo levar adiante guerras, em favor da liberdade de comércio e empreendimento, mas não impor-lhes barreiras e restrições. As guerras do ópio do século XIX foram realizadas para liberalizar o mercado da China para o comércio inglês. Já a guerra do ópio atual, a guerra do fentanil, que por enquanto ainda é apenas comercial, está sendo realizada para fechar o mercado americano para os produtos chineses. É um longo ciclo que se fecha. Em ambos os casos o ópio era e é apenas uma marca, um pretexto emblemático, para se abrir ou fechar mercados.

O liberalismo, chegado neste extremo da crise, vai negar de bom grado todos os seus dogmas, como já fez antes, vai defender o protecionismo, vai defender as restrições ao livre comércio e a expansão da integração econômica mundial, vai se tornar nacionalista e vai, ao fim, buscar a guerra como solução. Só um dogma não pode ser contestado pelo liberal, o ideal do livre exercício do poder econômico capitalista. Até o limite de tentar tomar, diretamente em suas mãos, o poder político do estado, como está acontecendo agora nos EUA.

A demonstração de que o planejamento precisa se impor à cegueira dos mercados

Mais empobrecimento, mais imperialismo e mais guerra ou desenvolvimento humano global?

Tudo isto já aconteceu antes na história do sistema capitalista contemporâneo.

A onda liberal atual, iniciada na transição dos anos 1970 para os 80, chegou ao seu limite e está em crise desde a segunda metade da primeira década deste século. A resposta é, como foi antes, redobrar a concentração de riqueza e poder nas mãos dos capitalistas e numa correspondente visão e atuação imperialista mais explícita no cenário mundial.

O sentido de paz com que os EUA acenam hoje para o caso da Ucrânia é circunstancial. O direcionamento dos EUA para a guerra será inevitável, na medida que a crise se aprofunde e ela só pode se aprofundar com o aprofundamento da receita liberal.

É até curioso e realmente absurdo que hoje sejam a Inglaterra, a França e outros países da Europa (os que mais perderam economicamente com o conflito, depois da própria Ucrânia) que defendam aguerridamente a continuidade da guerra. Mas basta olhar para os índices de crescimento econômico destas economias para termos uma pista de por que estão tomando decisões tão enlouquecidas. A crise econômica está atrás destas sandices, assim como na resposta muito disfuncional à pandemia, no mundo ocidental. Quando nada mais anda, fazer andar a economia da guerra, da destruição e da morte pode parecer um ótimo negócio para políticos e setores empresariais. É assim que pensam hoje os poderes nos grandes países da Europa, acreditando que vão pelo menos manter, pelo terror, parte do seu poder imperial no mundo, que, obviamente, decai a cada dia.

Não podemos tomar qualquer estágio da evolução histórica como um parâmetro preciso para os períodos seguintes, mas podemos reconhecer, na estrutura de um sistema, em sua dinâmica histórica, as ondulações que se repetem com certa regularidade. Do contrário, não poderíamos analisar os processos históricos, apenas narrá-los.

Pode-se reconhecer pelo menos duas tendências expansionistas evidentes, dentro do desenvolvimento histórico do sistema capitalista mundial. A tendência à expansão dos empreendimentos e do mercado; à mundialização do comércio, da finança e da produção e, reciprocamente, do consumo, da cultura, a integração mundial e, por conseguinte, a mundialização das pessoas e do próprio mundo. E a tendência ao desenvolvimento da produção em massa e da ciência produtiva em todas as áreas, sempre revolucionando a si mesma.

Obviamente, estas e outras grandes tendências estão interligadas e são interdependentes. É razoável dizer que a partir da revolução industrial estas características e tendências se mostraram tão vitoriosas, tão dominantes no mundo em geral, que vivemos todos, desde então, em um sistema capitalista mundial.

Estas forças são maiores que todas as contratendências do próprio capitalismo. A história mostrou, até agora, que não existe limite econômico absoluto para a reprodução da economia capitalista; e também parece ter mostrado que o proletariado industrial não é o condutor histórico da superação do sistema capitalista. Ao ponto, nas últimas décadas, ele ter perdido boa parte do seu grande papel político anterior, com o desenvolvimento inevitável e progressivo dos sistemas automatizados de produção.

O mundo anda por caminhos surpreendentes, o desenvolvimento tecnológico e a integração mundial continuarão. Isto está no cerne da lógica “cega” do sistema capitalista e também no cerne da evolução consciente, planejada, do socialismo. Estamos em uma encruzilhada extrema, onde o principal país socialista do mundo tem a economia de mercado mais florescente do mundo, enquanto aqueles que defendiam a liberalização da economia mundial voltam-se para a visão regressiva, imperialista e fascista, de defesa da economia e do Estado nacional autárquico

Seria inteligente que os anarquistas, os comunistas, os socialistas até mesmo os social-democratas assumíssemos fortemente estas duas tendências expansionistas como nossas bandeiras, nossos ideais imediatos e diretos, corrigindo assim alguns erros históricos. Quem quer o contínuo desenvolvimento e a expansão da ciência e da tecnologia, a integração da produção e da vida social em todo o mundo somos nós. Capitalismo e capitalistas podem apenas serem instrumentos, relativamente cegos, relativamente estúpidos e perversos, destes desígnios e escolhas.

Essa é a condição e a situação atual do socialismo na China. Dos anos 1980 para cá o país viveu um desenvolvimento econômico e social acelerado. Este desenvolvimento foi acompanhado por algo pouco conhecido: lá surgiram mais bilionários que em qualquer outro país nas últimas décadas. Mas, ao mesmo tempo, a China foi o país que mais prendeu, ou colocou em reformatórios, os seus bilionários. O sistema financeiro continua sob controle direto do governo e o desenvolvimento da economia atende a um “planejamento estratégico” público e não apenas às forças do mercado e ao poder dos ricos. Houve desenvolvimento social intenso, porque o desenvolvimento econômico foi acelerado e porque o poder público dirigiu a economia no sentido da melhora consistente da qualidade de vida das massas.

Na Europa em geral, e nos EUA, o aumento da desigualdade progrediu apesar da crise e continuou crescendo desde 2007, até pelo menos o período da pandemia. De lá para cá não existe uma tendência consistente ainda, mas podemos antever uma nova rodada de perda para os trabalhadores locais, com as ações protecionistas atuais dos EUA e com aumento dos gastos militares na Europa.

A grande crise econômica do sistema capitalista no século passado começou em 1913 e só foi se resolver a partir de 1945. Neste período ocorreu uma grande depressão econômica mundial e, também, duas grandes guerras “mundiais” e uma pandemia que resultaram em mais de 150 milhões de mortes, em uma população de 2 bilhões. A melhora, absoluta e relativa, da renda, dos recursos e serviços, em geral, nas mãos das classes trabalhadoras e médias marcou o fim dos anos 1940 e das três décadas seguintes. A social-democracia emergiu como a principal força política e ideológica do pós-guerra, até encontrar seus limites e ser superada pela nova onda liberal no começo dos anos 1980 do século passado.

A crise atual começou em 2007 e, até agora, só não se manifestou com o mesmo terror do século passado porque foi sabiamente contida com os recursos contracíclicos largamente utilizados, com trilhões e trilhões de dólares jogados nos mercados e nas mãos da população, para manter a economia em funcionamento. Mas, sem a redistribuição da riqueza esta crise está condenada a persistir, protraída, controlada, mas sempre aí, mordendo os calcanhares e os bolsos das classes médias e pobres.

Estamos no ápice da crise. Ainda teremos algumas décadas nesta etapa derradeira da onda neoliberal. Neste período a tendência à solução pela guerra, absurda e alucinante, jamais estará ausente ou distante. Continuará na ordem do dia por longos anos.

Uma grande depressão econômica e guerras mundiais são inevitáveis?

A grande crise econômica do sistema capitalista mundial está sendo controlada por mecanismos anticíclicos limitados e sob constante pressão. Esta crise coincide com o fim de uma grande hegemonia no sistema capitalista mundial. Em função da ascensão chinesa, estamos no fim do império e da grande aliança mundial de poder estabelecida pelos EUA.

A simples afirmação de que estes são processos capitalistas, do sistema capitalista mundial, já significa que são, inerentemente, muito violentos e irracionais. Isto é parte da própria lógica do sistema econômico operado pelo mercado.

O processo de socialização chinês mantém os capitais privados sob planejamento e controle públicos fortes. Define a distribuição dos recursos sociais, financeiros e materiais entre os diversos setores e classes da economia, permitindo que a empresa privada funcione “livremente” apenas dentro de marcos e limites estruturais socializados.

Se os indicadores atuais se mantiverem, tudo indica que a China já colocou foco no aumento do consumo das massas, com ganho relativo de renda para estas. E não parece haver qualquer questionamento ao sistema de planejamento estratégico público da economia socialista no país. Contudo, a ideologia liberal tem penetração na sociedade chinesa atual e o conflito em torno do controle do sistema financeiro e produtivo estará sempre em jogo nos próximos anos e décadas – tanto lá como aqui.

No entanto, continuaremos, por tempo relativamente longo, sob alto risco de grandes guerras mundiais, por estarmos na confluência de dois grandes movimentos histórico-sociais no sistema capitalista mundial – a crise de fim da onda neoliberal e a crise do fim da hegemonia norte-americana. Ambosmovimentos são costumeiramente acompanhados de grandes guerras e crises sociais no interior das nações.

O simples, no entanto, de se tratar de um sistema mundializado e muito mais integrado do que há 100 anos, nos protege da fatalidade de termos que repetir os mesmos processos da crise anterior, ainda que estejamos sob as mesmas pressões.

A integração da economia mundial torna mais difíceis e irracionais as grandes guerras. Sua absurda destrutividade mostra-se tanto mais inaceitável quanto mais o mundo estiver integrado produtiva socialmente. Parece mais irrazoável, agora, destruir o sistema mundial para não ceder parcelas do poder econômico e político, nacional e empresarial. Vamos ser levados, contudo, ao limite.

O fato da grande potência emergente ser a China socialista é ao mesmo tempo um resultado e uma providência dos processos históricos. A China tem sido seguramente, entre os países poderosos, o mais disciplinado e aderente às decisões e ao sentido geral do sistema ONU; e o que mais tem investido na transição energética. Não é de se estranhar, dada a convergência de princípios do socialismo com o internacionalismo e o desenvolvimento da consciência, da inteligência, da segurança e da governança mundiais. Isto é tranquilizador, quando sabemos que ela será a nação mais provocada e atacada pela aliança norte-americana nos próximos anos e décadas.

É improvável que o aprendizado histórico seja completamente inútil agora, permitindo que as grandes catástrofes econômicas e sociais das crises passadas se repitam. Ainda que muitos sinais e tendências neste sentido estejam presentes, eles parecem ser, ao fim, mais fracos do que os mecanismos regulatórios e de proteção social que já foram postos em movimento.

A solução será socializante, como no século passado. No cenário mundial, novas estruturas de decisão, organização e governança terão que ser desenvolvidas mais intensamente do que no século passado, correspondendo ao nível mais desenvolvido da economia mundial e da sociedade mundiais. Certamente precisaremos avançar muito além dos limites e das contradições do sistema das Nações Unidas e de Bretton Woods, rumo a uma verdadeira governança global.

Os EUA mostram reconhecer sua perda relativa de poder e reagem a isto violentamente, tentando resgatar seu império. Tudo isto ocorre tardiamente, quando um movimento econômico e social real já solapou as bases da hegemonia decadente. Tudo o que então se faça, em nome de preservar e restabelecer esta hegemonia, termina por ajudar a conduzir ao seu fim. Toda tentativa de demonstração de força por parte do império termina por revelar a sua verdadeira fraqueza. Exemplos categóricos são a derrota da OTAN na guerra da Ucrânia e o resultado, nulo, ou inverso, das sanções impostas à Rússia e à China. Certamente estão acelerando a superação do poder da aliança constituída em torno dos EUA, em vez de fortalecê-la. As forças econômicas e sociais já se desenvolveram e transformaram neste sentido, a ponto de não ter mais retorno. A hegemonia e o imperialismo dos EUA no sistema capitalista mundial terminará e levará junto consigo os resquícios coloniais do imperialismo europeu que persistem ainda hoje.

Algo central neste processo de aprendizado e desenvolvimento histórico é que as medidas, as ações, as intervenções sociais que anteriormente foram adotadas apenas depois do pior, agora devem ser tomadas antes. Antes das grandes crises catastróficas, como foi a depressão mundial dos anos 1930, as medidas anticíclicas e de proteção social já estão, em parte ao menos, em jogo. Precisamos avançar, ainda mais decidida e intensivamente, no sentido da socialização do sistema econômico mundial. E, antes das grandes guerras mundiais, precisamos da reconstituição e desenvolvimento dos sistemas de decisão e governança mundiais.

É um processo que demorará tempo e se realizará com grande dificuldade. Imagine, por um minuto, como será custoso eliminar todas as bases militares internacionais dos EUA. São mais de 800 e continuam aumentando. O mundo é ocupado militarmente pelos EUA. Isso terá que ser eliminado ou submetido a uma verdadeira governança mundial. Será um processo longo e difícil. Enquanto isto, podemos reivindicar a ideia de cidadania mundial. Ainda que ela esteja, do mesmo modo, distante no horizonte atual, é certamente o que nos interessa, correspondendo à integração do sistema produtivo social mundial. Somos mundiais e queremos ser mundiais.

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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