Para tenente-coronel, armar a população é medida populista e Estado deve acabar com certeza de impunidade
Folha de São Paulo – 23/01/2022
Adilson Paes de Souza Tenente-coronel aposentado da Polícia Militar do Estado de São Paulo, mestre em direitos humanos e doutor em psicologia escolar e do desenvolvimento humano pela USP. Membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo
[RESUMO] Oficial aposentado da PM de São Paulo narra a experiência de ter a casa invadida por cinco assaltantes e ser sequestrado. O crime serve como ponto de partida para discutir entraves à segurança pública e apontar o papel nocivo do consumismo, da desigualdade e das políticas armamentistas na promoção da violência.
Faço uso da minha trajetória e da minha experiência pessoal como fio condutor deste artigo.
Procuro empregar várias perspectivas nesta abordagem: do policial que, no início da carreira, seguia acriticamente os ditames e os valores professados pelo grupo; do policial que, após um ponto de ruptura, passou a ser um crítico da instituição; do pesquisador no campo da violência e do sofrimento policial, incluindo suicídio, e da vítima da violência (roubo e sequestro).
Chegou o momento de compartilhar o que aconteceu comigo e com a minha esposa há algum tempo. Em 9 de outubro de 2021, nós fomos vítimas de um roubo.
Cinco jovens invadiram a nossa casa enquanto estávamos dormindo. Fomos acordados, repentinamente, com mãos nos sufocando contra o travesseiro, armas apontadas para as nossas cabeças e a imagem, inesquecível e aterrorizante, de pessoas à nossa volta, falando todos ao mesmo tempo, encapuzados e vestindo luvas pretas.
Eles entraram na nossa casa sorrateiramente, sem fazer qualquer barulho. Passamos várias horas sob o seu jugo, sofrendo ameaças de morte. Eles fizeram várias vezes roleta-russa, apontando um revólver para as nossas cabeças. Bradavam a todo momento que queriam joias e dinheiro e perguntavam pelo cofre.
Nós passamos a ser um troféu, uma diversão para eles —em um dado momento, eles fizeram selfies conosco. Eles nos aterrorizaram falando de sexo e tortura e ameaçaram efetuar disparos em partes dos nossos corpos.
Para eles poderem sair de casa, fui levado como refém. Enquanto dois deles saiam comigo no meu veículo, três outros permaneceram com a minha esposa. Fui trancado no porta-malas e levado a um cativeiro, onde eles me amarraram.
O sequestro visava à realização de transferência bancária por meio de Pix, e, para isso, eles precisavam esperar até o horário em que valores maiores pudessem ser transferidos.
Há um trauma ainda em elaboração e temores que brotam em situações inusitadas. Por isso, estamos sob acompanhamento médico e psicológico.
O culto à virilidade exacerbada — consubstanciada no tom de voz ameaçador, no domínio físico e emocional sobre nós e no manuseio ostensivo de armas— expressava o desejo de domínio e poder.
Muito já foi dito sobre o fascínio dos homens pelo falo e sua imagem de poder. A maneira como os cinco jovens exibiam e manuseavam as armas representava o constante manuseio do falo, objeto de desejo e de supremacia. Eles mandavam e faziam questão de demonstrar isso.
O fascínio pelos bens de consumo também era evidente. Estavam todos contaminados pela ode aos objetos que pudessem simbolizar prestígio e, talvez, uma melhor posição social.
Roubaram todos os meus casacos. Pude reparar que eles provavam as roupas e ficavam excitados quando as peças de vestuário serviam.
Também notei que eles queriam ser quem nós somos, ocupar a nossa posição social. Foi interessante notar quão arraigada a sociedade de consumo está na nossa dinâmica social. A pessoa é aquilo que veste e ostenta.
Quero deixar bem claro que não nutro nenhuma simpatia ou apreço por qualquer um deles. Não estou sob os efeitos da síndrome de Estocolmo e tampouco quero relativizar o crime.
Dois deles, com quem conseguimos dialogar, explicitaram a revolta contra suas condições de vida. Falaram das suas famílias grandes, dos pais que abandonaram a mãe e os filhos, dos bairros irregulares e sem infraestrutura em que moravam. Em um momento, vaticinaram: “É dessa maneira que vamos conseguir a igualdade social”, apontando as armas novamente para nós.
Ponderamos, dentro dos limites que a situação nos impunha, que reconhecíamos que a marcante desigualdade social do país era geradora de infortúnios de toda sorte e afirmamos que lutávamos contra ela. Contudo, deixamos claro que divergíamos da maneira como eles veiculavam a insatisfação social, usando armas, porque isso geraria mais violência e agravaria a situação.
Notei que esses dois jovens expressavam, talvez sem se dar conta disso, um sentimento de abandono à própria sorte e a necessidade de buscar um tipo de “justiça” e meios de subsistência por conta própria. O Estado estava ausente:
todos contra todos e que vença o mais forte.
Sou oficial aposentado da Polícia Militar, e é conhecida a minha posição crítica em relação à atuação estatal, por meio dos órgãos de repressão, com violência, abuso e arbitrariedade. Muito critiquei a letalidade policial e desenvolvo pesquisas sobre violência, desde a formação até a atuação policial.
Tenho uma profunda preocupação com o tema e desejo poder colaborar para que mudanças ocorram. Também gostaria de tentar oferecer alguma contribuição para que jovens, como os que invadiram a minha casa, não sejam vítimas do abuso estatal.
Sei que não teria tido a mínima oportunidade de viver se eles tivessem descoberto que sou policial. Não teria tido tempo suficiente para explicar a minha posição. Vivenciei uma situação difícil, porque lutava pela minha sobrevivência também em razão da profissão que exerci.
Para mim, algumas questões são evidentes. Trato delas a seguir.
1. Não há espaço vazio. Sei que essa é uma expressão muito usada, mas senti na pele esse fenômeno. A falta de oportunidades de vida, que deveriam ser proporcionadas pelo Estado, faz com que contingentes cada vez maiores de pessoas sejam atraídas para o mundo do crime.
Atenção aos arautos do caos, da repressão policial e da brutalidade: não se trata de romantizar as pessoas que praticam crimes e torná-las não responsáveis por seus atos. O que eu quero dizer é que, se o Estado não oferece oportunidades, alguém —o crime organizado— oferecerá.
As cinco pessoas que nos roubaram e me sequestraram eram jovens e brancos e tinham rostos bem-afeiçoados —fugindo do perfil padrão de bandido, ditado pelo preconceito e pelo racismo, vale dizer, à pessoa negra.
Fico pensando sobre quais oportunidades de vida eles tiveram. O Estado está presente apenas pelo viés punitivo e prende muito e mal, seletivamente.
2. O consumo dita as relações sociais. A ânsia pelo consumo de bens, como roupas de grife, está relacionada à busca por um passaporte apto a conduzir pessoas do mundo da exclusão e privação para outro, da aceitação e imposição, por meio do que se veste, se usa, se possui.
Consumo, vale lembrar, estimulado por propagandas e ações de entes públicos e privados. Entes públicos? Sim, basta mencionar a cultura do “você sabe com quem está falando?” ou do uso da esperança das pessoas para fins eleitorais.
Nas campanhas eleitorais, muitos candidatos utilizam os eleitores como mercadorias. Uma vez atingido o objetivo (a eleição), eles são descartados. Infelizmente, “caso comum de trânsito”, para citar Belchior.
3. A ausência do Estado na prevenção e apuração dos crimes. Para ficar somente no campo da prevenção secundária —ações que se traduzem na presença do policial e de viaturas na rua ostensivamente para prevenção de delitos—, não há medidas efetivas decorrentes da simples presença do agente público de segurança. É raro vê-los nas ruas, em áreas possíveis de eclosão de delitos.
Isso acontece porque o Estado, seguindo a cartilha liberal, procura não contratar pessoas para “não onerar a máquina pública”. Afinal, o que importa é o Estado mínimo.
Não há investimento na contratação para promover o aumento real do efetivo das polícias. Quando muito, há tentativas de suprir as vagas já existentes. O efetivo da Polícia Militar paulista, por exemplo, não tem aumento real desde meados da década de 1990.
Por sua vez, não há investigação dos delitos perpetrados, proporcionando, àqueles que os praticam, a certeza da impunidade e oferecendo estímulos para que continuem com esses atos.
Cesare Beccaria expôs, com precisão, que a impunidade é o fator preponderante para alguém cometer um crime. Há pesquisas que atestam a baixa taxa de elucidação de delitos e a consequente não condenação de seus autores.
No meu caso, nada foi feito até agora. Estamos nos sentindo abandonados e temos certeza que não somos os únicos.
Depois da nossa casa, o mesmo grupo invadiu o condomínio e praticou mais três roubos.
Eles atuam na certeza de que não serão presos e que não há policiais por perto. O terreno, para eles, está livre. Chance de prisão? Atrevo a dizer que é zero.
4. O discurso armamentista e de guerra não funciona para proporcionar paz e segurança, muito pelo contrário, alimenta o confronto e a oportunidade de eliminação daquele que é tido como oponente.
Se o policial é preparado para a guerra, cujo objetivo principal é a eliminação daquele rotulado como inimigo, o lado oposto também faz o mesmo. Ao saber que são caçados, essas pessoas adotam uma postura mais violenta.
Volto a frisar que eu não estaria vivo se eles tivessem descoberto que eu sou policial, independentemente das ideias que defendo. Da mesma maneira, armar a população para que cada pessoa se defenda é perigoso para a vítima.
Primeiro, porque a arma proporciona uma sensação de poder maior que o real, daí a consequente disposição para reagir pensando que estará em vantagem. Uma vez rendido em um assalto, não há mais o que fazer senão permanecer inerte. Uma das circunstâncias que me salvou foi o fato de eu não possuir arma, porque, se eu possuísse, teria tentado reagir.
Segundo, se a população for armada para combater o inimigo, o criminoso também adotará uma postura mais agressiva em relação às vítimas. Uma espiral de violência crescente é estabelecida e ganha força. Perdemos todos.
Esses discursos são expressões de um populismo barato, omisso em termos de responsabilidade estatal e socialmente danoso. Engana-se quem acredita que tais medidas são efetivas para proporcionar segurança. Do cano de uma arma não surge o poder, mas a sua negação, escreveu Celso Lafer no prefácio à edição brasileira de “Sobre a Violência”, de Hannah Arendt.
5. O culto à personalidade e ao espírito de clã. Aqui, me dirijo especificamente aos policiais e demais agentes do sistema de segurança pública.
Outra circunstância que salvou a minha vida foi o fato de eu não ter nada em casa que remetesse à Polícia Militar. Não havia fotografias, quadros, medalhas etc.
Uma vez aposentado, virei a chave e não vivi de simbolismos e rituais da minha vida profissional. Nem sequer apreciava ser chamado pela patente que ostentava à época da aposentadoria, bem diferente do que acontece com a maioria dos policiais, que fazem questão de manter um vínculo com a instituição, como algo essencial para a sua existência.
A subcultura policial permanece mesmo depois de os policiais deixarem o serviço ativo —a necessidade de continuar pertencendo ao grupo subsiste. São fenômenos que precisam ser estudados, e seus efeitos nocivos devem ser expostos para os agentes de segurança.
6. A falta de resposta abala todos: confesso que nutri, com muita força, a vontade de eliminar cada um deles. Sonhava com essa oportunidade, disfarçada de justiça, de me vingar. O meu lado sombrio aflorou com força, e eu queria resolver a questão por meios próprios.
Afinal, o que foi feito das investigações? Por quê a demora?
Eu entrevistei policiais assassinos nas pesquisas que desenvolvi no mestrado e no doutorado. A mesma argumentação estava presente: a impunidade, o abandono por parte do Estado, a necessidade de dar uma resposta a qualquer custo à violência existente, o sistema prisional dominado pelo crime organizado, a inexistência de um sistema de Justiça criminal minimamente eficiente.
O que eles faziam então? Matavam. Eles próprios as sumiram o papel do sistema.
Eu senti a mesma coisa. Hoje em dia, há momentos em que essas ideias vêm à mente. Dói muito se sentir impotente e desprezado. Senti-me e ainda me sinto abandonado pelo Estado, que tem a obrigação de agir para que pessoas expostas a situações extremas, como eu, se sintam amparadas.
Uma investigação séria, rápida e eficiente, que dê resposta rápida ao crime cometido, é capaz de proporcionar isso.
Não é o que aconteceu comigo, embora a polícia tenha dados bancários e pessoais de um dos componentes do bando, e não é o que acontece com muitas outras pessoas.
7. Oportunidade de bons negócios. Há muita gente lucrando com a insegurança pública. Há empresas na área de segurança privada atuando em diversos segmentos, todos muito lucrativos.
Tão logo o roubo na minha casa aconteceu, um número expressivo de empresas de segurança passou a oferecer serviços e equipamentos para os moradores do condomínio. Aproveitaram o pânico instalado para ganhar dinheiro —e muito.
Isso não é nada diferente do que acontece em outros lugares. Quanto mais o poder público se ausenta, mais empresas privadas se instalam e lucram.
Nós não somos considerados pessoas titulares de direitos (à vida, à saúde física e psíquica, à paz). Nós somos meros dados inseridos em uma planilha de lucros, oportunidades de realização financeira. A morte, a insegurança, o medo e o pânico são commodities valiosas. A lógica do mercado dita o rumo das nossas vidas.
Falar em política pública de segurança, nesse contexto, não faz o menor sentido. Há muita gente faturando com esse caos. Penso no quanto essas empresas podem financiar campanhas políticas e promover lobbies poderosíssimos. Estaria aí um motivo para a ausência de um efetivo projeto de segurança pública?
Pelo que expus aqui, fica nítido que não há soluções fáceis: ocupação regular do solo, acesso à educação, à saúde, à moradia e a uma vida digna e oportunidade de trabalho igualmente digno são elementos essenciais que devem constar em qualquer discussão que se proponha séria sobre segurança pública.
A lista é longa, e é imperioso pensar grande, com ousadia e de forma abrangente. A segurança da população é assunto de Estado.
Não dá mais para aceitar políticas populistas, tampouco aceitar quem adota uma prática diferente do discurso. Não dá mais para aceitar a inação daqueles que são responsáveis por gerir o Estado ou a nossa passividade enquanto sociedade.
Cada voto é um valiosíssimo e poderoso instrumento de transformação social. Escrevo isso sem medo de cair em platitudes. Em uma democracia, que desejamos presente e forte, esse é o caminho.
Que tal seguir o recente exemplo dado pela sociedade civil chilena e seu amplo processo de mobilização cobrando mudanças?
É de suma importância saber escolher nossos representantes entre os que postulam assentos no Executivo federal, estadual e municipal e nas casas legislativas.
Vamos dar um basta. Fora populistas e os que apregoam o caos e a adoção de medidas radicais e absurdas. Fora quem rompe compromissos históricos em troca da realização de alianças de ocasião. Fora quem apregoa a adoção de soluções simples para um problema tão complexo.
Matar, eliminar e combater são verbos presentes à exaustão nos discursos de autoridades e setores expressivos da imprensa. No entanto, eles traduzem ações que não resolvem os problemas da segurança pública e nos afetam negativamente todos os dias.
Agradeço à Maria Evangelina, esposa querida, e à Cristina Serra e Heloisa Helena, prezadas amigas, pelas observações que contribuíram para a lapidação do texto