Patologias Sociais e doenças da alma

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Vivemos em uma sociedade marcada por grandes dores e desesperanças, os indivíduos se perdem nas atividades cotidianas e se esquecem de investimentos mais simples e mais nobres, investimentos nas famílias e nos círculos de amizades mais sinceras, as famílias se encontram em transformações intensas, obrigando os indivíduos a uma busca incessante de algo desconhecido, para isso somos torpedeados por informações, dados e cobranças, na maioria das vezes desnecessárias e pouco construtivas, somos uma sociedade a beira de um grande ataque de nervos.

As atividades profissionais absorvem a maior parte das energias dos trabalhadores, o trabalho do século XXI nos impõem uma constante atualização, somos obrigados a nos qualificarmos cada vez mais, inglês, informática, mandarim, atividades físicas, ioga, cursos e mais cursos nos são oferecidos para que tenhamos o equilíbrio necessário para suportar as dificuldades e as dores do mundo, uma sociedade marcada por um novo iluminismo, onde todos competem com todos, onde os antigos amigos brigam por uma mesma vaga no mercado de trabalho, onde irmãos se digladiam em busca de uma melhor colocação na sociedade e no coração de seus pais, uma sociedade que compete constantemente em busca de um prazer material que logo quando é atingido se mostra ineficiente e limitado, gerando medos, dores e desesperanças.

Somos bombardeados pelas informações trazidas pela televisão, pela internet e pelas mídias sociais, dados, imagens, fotos, comportamentos, curiosidades circulam na sociedade e entram em nossas casas e, mais do que isso, tomam um espaço gigantesco em nossas vidas, muitas vezes nos norteando no cotidiano, somos robotizados para vivermos em um ambiente concorrencial cheio de atividades e cobranças e, automaticamente, compelidos a comportamentos, atitudes e gostos variados criados pelo marketing agressivo que nos leva a comprar mercadorias que pouca efetividade terá em nossas vidas, compramos por impulso e não por necessidade.

Os relacionamentos são marcados pelo interesse imediato e por uma filosofia hedonista, os sentimentos mais sinceros e profundos são deixados de lado, amores mais intensos duram poucos dias e são substituídos por outros rapidamente, as paixões duram instantes e as buscas por novas aventuras e prazeres são cada vez maiores, obrigando as pessoas a investir mais e mais em beleza, em forma física e em elegância, o culto ao corpo se transforma em um grande mantra, não apenas pela saúde física, mas pela presença e pelo impacto da aparência, surge daí uma nova forma de ditadura, a ditadura da beleza, obrigando todos os indivíduos a viver fazendo dietas e cultuando o mundo fitness, muita aparência e pouca essência. Se o indivíduo não atingir este padrão de beleza sofre constrangimentos variados, as operações plásticas crescem de forma aceleradas e a busca pela beleza leva pessoas a recorrer a drogas e comprimidos de emagrecimento, uma busca doentia por um corpo perfeito leva inúmeras pessoas a insanidade, aumentando a ansiedade, a depressão e os complexos.

Observando as mudanças geradas no comportamento humano, percebemos que as pessoas estão, em todas as partes do mundo, assistindo aos mesmos programas, as mesmas séries, os comportamentos e os hábitos são parecidos, em todas as regiões, desde o sudeste asiático até as favelas fluminenses, encontramos pessoas vestindo as mesmas roupas e cultivando hábitos parecidos, uma mostra do poder do marketing global que vende, em todas as regiões do mundo, os mesmos produtos e criando uma cultura global dominante, centrado no poder e na força econômica de grupos altamente poderosos financeira e politicamente, as grandes transnacionais.

As redes sociais tem um papel central neste novo momento de sociedade internacional, ela aproxima as pessoas no mundo virtual e as afasta fisicamente, estamos conectados com “amigos” instantaneamente, conversamos via Skype e nos falamos via Messenger ou whatsApp, estamos próximos mas ao mesmo tempo muito distantes, mais um paradoxo do capitalismo contemporâneo. Como nos diz Zygmunt Baumann, um adolescente disse possuir mais de 2 mil amigos enquanto ele, Baumann, depois de mais de 90 anos de vida, acredita que tem, no máximo uma dezena, neste depoimento percebemos que, para o adolescente, o conceito de amigos é diferente do conceito defendido pelo sociólogo polonês.

O mundo corporativo nos mostra como a competição entre os agentes econômicos é cada vez mais intensa, as organizações se reinventam todos os dias, a concorrência atual obriga as empresas e os funcionários a investirem mais e mais em novas tecnologias, novos cursos e treinamentos, novos produtos e mercadorias surgem e nos obrigam a compreender seu funcionamento sob pena de sermos devorados por este novo produto, a rapidez das novas tecnologias contrasta com a capacidade de reação do organismo humano, gerando mais insatisfação, mais medos e mais instabilidades.

O mundo do trabalho é um grande desafio, os antigos trabalhadores funcionam ainda no modo analógico e precisam pensar no modo digital, os trabalhadores vivem uma das mais severas crises de identidade, o estudo e o diploma profissional que anteriormente era sinônimo de bons empregos e salários empolgantes, na atualidade não mais garante empregos interessantes, muitas vezes servem apenas como um pré-requisito para entrar no mercado de trabalho, além da formação fazem-se necessários mais e mais diplomas e cursos para sobreviver no mercado contemporâneo, mesmo assim, se a economia não crescer e os investimentos não aumentarem, os empregos não mais serão produzidos.

A quantidade de depressivos e ansiosos aumenta em escala exponencial, somente de depressivos encontramos mais de 350 milhões de pessoas no mundo, os ansiosos são em números maiores e atingem a grande maioria dos lares mundiais, os investimentos em pesquisas farmacêuticas e terapias para reduzir este números de patologias crescem de forma acelerada e os resultados imediatos são contestados pelos especialista e pelas autoridades, vivemos num mundo onde as crises são geradas dentro do sistema, o problema é muito maior do que algumas pessoas imaginam, o problema é estrutural e sua superação só será possível quando empreendermos um esforço coletivo envolvendo todos os países, líderes e instituições.

A competição exacerbada entre empresas e governo aumentou a competição entre os seres humanos, os trabalhadores enquanto produtores estão sendo ameaçados por esta competição insana, a adaptação aos desígnios do capital e do lucro exige que as ferramentas da ética e da moral sejam abandonadas e colocadas de lado, é como se tivéssemos duas éticas convivendo lado a lado, são conceitos frágeis que, num futuro próximo, devem aumentar a degradação da sociedade, aumentando os medos e as desesperanças, culminado em xenofobia e extremismos variados que estão se espalhando por todas as partes do mundo, desde os países pobres e subdesenvolvidos até as nações mais ricas e consideradas desenvolvidas.

As pessoas estão assustadas com tantas cobranças, metas e produtividade, as empresas exigem uma performance melhor de seus funcionários e, na maioria das vezes, poucos retornos dão a estes “colaboradores”, as cobranças crescem e os salários diminuem, de um lado percebemos o crescimento dos consultórios de terapias, as pessoas, perdidas como estão, buscam em psicólogos e terapeutas a resposta para suas indagações, se não conseguirem as respostas almejadas partem para terapias alternativas, contratam coachings e, se mesmo assim não conseguirem as respostas partem para as Igrejas evangélicas que crescem de forma acelerada e ganham cada vez mais poderes na política e na economia, isto porque além de inundarem os cargos públicos na últimas eleições, detém grandes somas de recursos financeiros e poderes midiáticos, a religião se transformando, mais uma vez, em um grande negócio.

Neste ambiente os amores estão cada vez mais fragilizados, as mulheres empoderadas buscam uma competição aberta e, muitas vezes, se comportam com uma alta carga de ranço e agressividade, buscam o controle da situação e agem da mesma forma que anteriormente criticava a atuação do homem, criando conflitos e violências constantes, agressões e até crimes, como o chamado feminicídio cresce de forma exponencial, expondo mais uma faceta da crise atual, a intolerância.

O amor romântico perde espaço nesta nova configuração do amor contemporâneo, atitudes vistas anteriormente como carinhosas e românticas, atualmente são criticadas e motivo de escárnio dos grupos sociais, as redes sociais servem para difundir sentimentos duvidosos e mentiras constantes, aparecer para uma sociedade artificial é mais importante do que um autoencontro íntimo e pessoal, mostrar-se por fora é muito mais fácil do que encarar a realidade de se conhecer por dentro.

Os novos modelos de relacionamento contemporâneo estão redefinindo o significado de família, antigamente a família era composta pelos pais e pelos filhos, as famílias eram imensas, muitas vezes com mais de dez filhos por casal, na atualidade encontramos vários tipos diferentes de família, agora bem mais reduzidas, umas compostas por dois homens, por duas mulheres, por mulheres solteiras e independentes, por homens solteiros e independentes, dentre outros modelos, o termo família é algo bastante flexível na contemporaneidade, gerando na cabeça dos filhos e das filhas grandes indagações, medos e preocupações, o modelo tradicional de família encontra-se em clara e nítida extinção ou metamorfose.

A homossexualidade cresce de forma generalizada, homens e mulheres estão se abrindo para novas realidades e experiências, a tecnologia tem um papel central nestas novas mudanças, seu desenvolvimento levou a criação de grupos e comunidades homossexuais, meninos e meninas que desconheciam seus desejos e eram fortemente punidos por uma sociedade castradora e por uma educação  autoritária viu na internet e nas redes sociais novas oportunidades de encontros, conversas e discussões, além de depoimentos e vivências compartilhadas, gerando, com isso, novas formas de maturidade pessoal e institucional.

Vivemos um momento único na sociedade internacional, evoluímos muito nos últimos 30 anos, os avanços muitas vezes são questionados por muitas pessoas, embora estejamos num período difícil e assustador, marcados pelo medo e pela desesperança, sabemos que neste momento precisamos ter maturidade para as discussões, o ser humano deve ser visto muito mais como um agente ativo em seu desenvolvimento do que como um robô, cujos gestos e atitudes são todas previamente acertadas, o ser humano é um agente criador, sua experiência deve ser exaltada e suas habilidades devem ser recompensadas, a era das máquinas está cada dia mais próxima e nós, seres humanos, cada vez menos conhecemos os nossos ideais e objetivos, somos conduzidos pela vida e pelas atividades cotidianas, vivemos enclausurados em um redoma de vidro e nos esquecemos que os maiores prazeres da vida são constituídos em comunidade, servindo, amando e contribuindo para um incremento do amor e da esperança entre os indivíduos, somente assim se constrói uma sociedade sólida e estruturada.

As constantes mudanças estão gerando medos na classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, está assustando os grupos empresariais, que temem não sobreviver neste jogo da competição, se ambos estão assustados e amedrontados, faz-se necessário construirmos pontes entre estes dois grupos sociais, unindo-os em prol de interesses comuns, somente a união e o compartilhamento entre grupos e classes sociais pode interromper as instabilidades e incertezas que dominam a comunidade e impactam sobre todos os indivíduos.

As transformações são intensas e vieram para ficar, um novo iluminismo vai construir novas bases para esta sociedade, o momento é de incertezas e instabilidades, tudo isto é bastante normal, o novo sempre assusta e gera medos generalizados, o importante é que para sermos conhecidos como indivíduos pensantes e criadores precisamos, novamente, ter em mente que uma sociedade melhor só será constituído quando cada pessoa, branco ou preto, rico ou pobre, novo ou velho, oriental ou ocidental, tiverem a consciência de que o mundo novo só vai começar efetivamente quando este novo homem nascer dentro de cada um de nós, não tenhamos medos de nos mostrar como efetivamente somos, pois todos que aqui estão, são seres em evolução e teremos a vida toda para melhorar, basta que comecemos para que nossa caminhada seja mais suave e promissora.

 

 

 

 

 

 

 

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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