Márcio dos Santos – A Terra é Redonda – 31/12/2024
Através da EFAPE, escola de formação de professores, formadores bem-intencionados, mas despreparados, oferecem curso de aperfeiçoamento a professores ainda mais despreparados
Imagine a seguinte situação; você passa com um médico clinico geral, faz alguns exames, percebe que tem um problema sério no coração e que precisa passar no cardiologista urgente. Imagine que os médicos de São Paulo, assim como nossos professores da rede estadual de ensino, até são especialistas, mas metem o bedelho em coisas que as vezes não dominam.
A profissão de médico, assim como a de professor, exige formação continuada, no caso de nós professores, oferecida remotamente pela EFAPE. O médico se especializou em psiquiatria, mas fez um curso de aperfeiçoamento a distância, por uma escola de formação para médicos, e agora ele está “habilitado” para cuidar do seu coração e até mesmo para realizar cirurgias cardíacas caso seja necessário. Especialidade essa conquista a “duras penas” pelo ensino a distância.
Agora vem a minha pergunta? Você confiaria a saúde do seu coração a um psiquiatra que se formou em cardiologia a distância? Se sua resposta for sim, sua cabeça está precisando de mais atenção do que o seu coração, acredite.
Esse cenário patético e farsista é um cenário real que encontramos na rede pública de ensino paulista. Através da EFAPE, escola de formação de professores, formadores bem-intencionados, mas despreparados, oferecem curso de aperfeiçoamento a professores ainda mais despreparados. A situação do ensino público paulista é desastrosa. Ainda é um grande desafio, não só para as escolas de São Paulo, mas de todo o pais resolver seus problemas e melhorarem seus números, principalmente em disciplinas como português e matemática, mas a demais disciplinas, se também avaliadas, mostraram os mesmos problemas senão maiores.
No site do Inep encontramos a informação de que escolas de Alagoas, Ceará e de Pernambuco, alcançaram nota 10 no Ideb em 2023. Na mesma página temos acesso ao relato do ministro Camilo Santana que é bem esclarecedor quanto a situação atual das nossas escolas: “Fico muito feliz de receber aqui as 21 escolas que tiraram 10 no Ideb, que são todas do Nordeste brasileiro, de Alagoas, Pernambuco e do Ceará, mas nós queremos que todos os estados do Brasil tenham também escolas nota 10. Esse é um esforço de todos nós e para o qual estamos trabalhando”, ressaltou o ministro.
Diante desse cenário fica a pergunta: O que essas escolas têm feito? Porque obtiveram êxito onde outras falharam? O ministro continuou dizendo que “quando assumiu o Ministério da Educação, priorizou programas e ações voltados para a educação básica, pois o investimento do Brasil por aluno na educação superior está na média do que é investido pelos países desenvolvidos, enquanto, na educação básica, o investimento é um terço do que os países desenvolvidos investem”.
Aqui em São Paulo o nosso governador Tarcísio de Freitas se envolveu em um debate espalhafatoso sobre redirecionar uma parte dos recursos da educação para a saúde, como noticia o site da revista Carta capital, “PEC de Tarcísio que pode retirar quase R$10 bi da Educação vai a votação na Alesp” A notícia veiculada em 05/11/2024 continua com a seguinte informação; “A proposta busca reduzir investimentos na área de 30% para 25%, redirecionando verbas para a Saúde”.
A Constituição Federal “em seu artigo 212, estabelece que a União aplicará, anualmente, nunca menos de 18, e os estados, o Distrito Federal (DF) e os municípios 25%, no mínimo, da receita líquida de impostos (RLI) na manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE) (BRASIL, 1988)” de acordo com um dossiê publicado por José Marcelino de Rezende Pinto, professor da FFCL Universidade de São Paulo, campus de Ribeirão Preto. O dossiê, entre outras questões, analisa a estrutura do financiamento da educação prevista na constituição federal.
Em suas considerações finais o dossiê aponta para os problemas envolvendo a EC/ no. 95 de 2016 que na prática limitou os gastos públicos com a educação mantendo-o no patamar de 5% do nosso PIB. No site Gazeta do Povo, em uma matéria de 10 de setembro de 2024, observamos que o Brasil reduziu o gasto com educação, com a exceção do ensino infantil. É preocupante observarmos o que investimos em educação por aluno no ensino médio, 3.181 dólares contra os 5.139 dólares da Costa Rica, ainda muito distante das primeiras posições desses países como Luxemburgo: 26.357 dólares e Suíça 19.448 dólares por aluno como vemos no portal O globo de 10/09/2024. Sem contar que o Estado de São Paulo coloca na conta dos “investimentos” em educação as aposentadorias dos inativos, o que, pela constituição, é contraproducente.
Na rede já há mais de dez anos venho percebendo melhorias significativas no que diz respeito aos equipamentos que utilizamos na escola, o que não quer dizer, que esse dinheiro, e esse equipamento, faça realmente alguma diferença na qualidade da aprendizagem dos alunos. Em anos recentes, temos visto a plataformização do ensino que começou com o Estado do Paraná, quando Renato Feder era o seu secretário de educação e migrou para São Paulo trazendo a mesma mentalidade.
Só a plataforma Alura custou aos cofres públicos 30 milhões de reais e o processo ocorreu sem licitação e também sem transparência em reportagem do jornal Folha de S. Paulo. Ainda faltam estudos que comprovem que essa “parafernália técnológica toda” faça de fato tanta diferença assim no ensino. Enquanto isso, o Jornal da USP em 2019 nos dava a notícia de que o Brasil era o último país no ranking dos países que valorizam seus profissionais na educação no total de 35 países avaliados e que 91% da população acredita que o professor não é respeitado em sala de aula.
Voltando a questão inicial do texto; você respeitaria um profissional formado a distância que desenvolve uma função para a qual ele não é preparado? Ouço muitos colegas defendendo essa posição, dizendo que nós professores é que temos que nos preparar, o que já fizemos com a nossa formação, é o que opino. Mas, se me formei em história não pretendo lecionar geografia ou sociologia, da mesma maneira que um clínico geral jamais será capaz de sair por aí dando laudos em casos psiquiátricos.
Lembremos que a febre dos cursos a distância começou com nós mesmos professores, que não viam problema em fazer uma segunda graduação em seis meses, a distância e por um preço acessível. Hoje a educação na cidade de São Paulo com sua “ausência” de plano de carreira acaba atraindo os piores profissionais para os seus quadros. Somos nós professores os primeiros a depreciarmos o nosso trabalho.
Quando se pensou em reforma do ensino médio, a falácia era a de que, o currículo era exaustivo e que não fazia sentido para o aluno. Estamos privilegiando cada vez mais um ensino técnico que bem na prática também não está preparando esse aluno para o mundo do trabalho. Aulas de história, geografia, filosofia e sociologia tem perdido espaço no currículo o que me faz deixar aqui a minha outra pergunta: qual é o problema com essas disciplinas? Porque todo governo quando quer impor à massa a sua ideologia – independente de qual seja – começa mexendo no currículo escolar, e acaba sempre sobrando para as ciências humanas, que são voltadas para as questões humanas e se debruçam sobre as questões humanas, como foi o caso da substituição das aulas de História por Educação Moral e Cívica durante a ditadura civil-militar?
Ouço de alguns colegas gestores que ainda temos uma escola do século XIX em pleno século XXI. As crianças não aprendiam engenharia na primeira infância na Inglaterra por conta dos avanços da Revolução Industrial. Ademais, qual o problema com a educação do século XIX que formou gente do calibre de Einstein, Freud e Darwin? Uma rápida olhada no modo como é trabalhada a formação do aluno do terceiro ano do ensino médio do colégio de elite Bandeirantes nos dá uma ligeira impressão e ao mesmo tempo, nos tira todas as dúvidas quanto as desigualdades do ensino entre alunos filhos da elite, e aos alunos, filhos da classe trabalhadora.
Nas nossas salas de aulas, nas escolas públicas, percebemos uma geração pé-de-meia que mais se preocupa em responder a chamada do que em realizar de modo consistente estudos que possam prepará-los para vestibulares ou outros concursos. Não faço aqui uma crítica direta ao programa, só acho que o programa deveria estar atrelado a desempenho e não a assiduidade do aluno em sala de aula.
Acredito que um pacote com profissionais bem preparados e bem pagos, propostas pedagógicas relevantes e que preparem o aluno para o exercício da cidadania e do trabalho, como previsto na LDB (Lei de diretrizes e bases da educação), infraestrutura que permita ao aluno confiar seu futuro à escola, e uma visão mais profunda sobre a nossa realidade social, principalmente nas escolas da periferia, seria um pacote bem mais contundente para melhorarmos nos índices nos quais apenas patinamos nos últimos anos.
Quanto aos bons profissionais, só os teremos oferecendo boas oportunidades. O professor hoje é obrigado a mesclar o ensino na rede municipal, que pelo menos do caso da cidade de São Paulo é mais atraente do que o estadual, e nas escolas privadas ou estaduais para conseguir fechar as suas contas no final do mês.
Quando esse profissional que chega a trabalhar mais de doze horas por dia se prepara? Como os alunos irão se inspirar nos estudos como possibilidade de mudança de vida, quando seus próprios professores são desvalorizados por eles mesmos, suas famílias e por governos que ainda acreditam que formar um técnico, filho da classe trabalhadora é mais interessante do que formar um cientista?
Quanto a isto, uma última observação; temos falado e muito sobre negacionismos históricos e científicos no Brasil e no mundo nos últimos anos. Essa visão de ensino técnico em detrimento do científico no Brasil me leva a crer que, no nosso país, o negacionismo científico começa nos bancos da escola.
*Márcio dos Santos é professor de História da Secretaria da Educação de São Paulo.
Referências
PINTO, José Marcelino de Rezende. Dossiê. O financiamento da educação na constituição federal de 1988: 30 anos de mobilização social. Educação & sociedade. Campinas, v 39, 145, p. 846-869, out-dez, 2018.