Para ‘despiorar’ o socorro aos estados, por Marcos Mendes

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Fundo garantidor bancado pelos estados reduziria comportamento predatório

Marcos Mendes, Pesquisador associado do Insper, é organizador do livro ‘Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil’

Folha de São Paulo, 27/07/2024

Nos anos 1980 e 1990, a desordem fiscal nos estados era grande. Governadores contavam com a inflação para corroer a folha de salários e aumentar as receitas dos bancos estaduais, que financiavam diretamente os seus controladores.

O Banco Central, então responsável por autorizar operações de endividamento subnacionais (a partir de regras fixadas pelo Senado), era chamado à mesa de negociação toda vez que havia necessidade de socorro. A execução era feita via bancos federais, flexibilizando exigências prudenciais a bancos estaduais ou “emprestando” títulos de sua emissão para os estados captarem dinheiro em mercado.

O Plano Real desmontou o financiamento inflacionário dos bancos e dos tesouros estaduais, revelando o desequilíbrio que a inflação escondia. Foi necessário um programa de saneamento e privatização dos bancos, bem como a federalização das dívidas estaduais.

Esses socorros embutiram subsídio aos estados e custaram muito aos contribuintes. Em
contrapartida, exigiu-se um programa de ajuste fiscal e aprovou-se a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal).

O Banco Central foi retirado do processo de autorização de endividamento, afastando o risco de ser dragado para nova operação de socorro. A tarefa foi transferida ao Tesouro, que cumpriu bem a função, empoderado pela LRF e pelos instrumentos que garantiam o cumprimento do ajuste pelos estados, como a possibilidade de confiscar depósitos daqueles que não honrassem a dívida.

Os estados deixaram de ser um problema fiscal e melhoraram a qualidade e eficiência na prestação de serviços públicos.

A partir de 2008, esse arranjo institucional começou a ruir. Primeiro, porque o governo federal afrouxou os limites de endividamento. Segundo, porque os estados aprenderam a explorar brechas nos limites da LRF.

Em 2014, o desequilíbrio fiscal estadual já havia voltado a ser problema de primeira ordem. E o jogo político mudou. Os estados amealharam forte apoio no Congresso, onde cada parlamentar tem interesse em beneficiar o seu estado e jogar a conta para os contribuintes do resto do país.

Governadores conseguiram obter vitórias sobre a União no STF, mesmo em causas sem fundamento jurídico ou econômico, geralmente sob o argumento de que o atendimento da população não poderia ser prejudicado.

Rompeu-se a principal cláusula da LRF: a proibição de novos socorros fiscais. Todos os governos, desde Dilma, foram forçados a renegociar a dívida. O Tesouro, que antes tinha poder para exigir ajuste aos estados, ficou acuado, sob pressão de governadores, Congresso e STF.

Há incentivo a comportamento fiscal irresponsável, dada a alta probabilidade de repassar a conta para a União.

Tornou-se comum um estado tomar empréstimo no mercado com garantia da União, não pagar, e forçar a União a saldar o débito. Quando esta tenta executar a contragarantia, o estado consegue uma liminar do STF bloqueando a execução.

A coação ao Tesouro evoluiu ao ponto de os estados que estão no Regime de Recuperação Fiscal passarem a ter, por lei, o direito de não honrar as garantias e refinanciar o valor em 30 anos.

Desde 2016, a União já honrou R$ 70 bilhões e executou apenas R$ 6 bilhões em contragarantias.

Esse comportamento predatório só mudará se a vulnerabilidade do Tesouro for reduzida. Exatamente como se fez no passado com o Banco Central, ao isolá-lo da negociação política com os estados.

No caso do Tesouro, não será possível tirá-lo completamente das negociações, mas pode-se reduzir a sua exposição. Uma forma de fazê-lo, sugerida em estudo do FMI de 2019, seria a criação de um fundo garantidor de empréstimos dos estados custeado pelos próprios estados, sem participação financeira ou gerencial da União.

O Tesouro ficaria proibido de dar novas garantias. Somente este fundo poderia fazê-lo. Se um estado desse calote, o custo recairia sobre os demais estados, e não sobre a União.

A negociação de socorro fiscal que ora se desenrola no Senado prevê que parte dos juros pagos pelos estados, em vez de ir para a União, irá para um fundo, que financiará despesas de todos os estados. Em vez de financiar despesas, este fundo poderia garantir empréstimos. Capitalizações adicionais do fundo, somente com dinheiro dos estados.

Em troca das benesses que o projeto está dando aos estados, teríamos pelo menos uma mudança institucional para induzir um pouco de responsabilidade fiscal.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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