Os invisíveis do sistema

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14.09.2017

Desde 2013, quando foi publicado O Capital no Século XXI, o do economista francês Thomas Piketty, o problema da desigualdade entrou no foco das preocupações com o mundo contemporâneo. 

Para Saskia Sassen, uma referência em sociologia urbana, porém, a desigualdade é apenas um aspecto parcial do problema atual mais profundo: os “perdedores” do sistema econômico são verdadeiramente expulsos, tornam-se invisíveis, deixam de ser contados nas estatísticas e praticamente desaparecem.

Esse é o tema de seu livro Expulsões: Brutalidade e Complexidade na Economia Global, em que a professora da Universidade Columbia descreve as expulsões não apenas das populações desempregadas, refugiadas e carcerárias, mas também da crise ambiental, com a extinção de espécies e a “morte” de terras e águas.

“A terra morta pode ser um terror para quem vive nela. Pense nos milhões de pessoas que querem deixar seus países não só por causa de guerras, mas também porque a terra morreu”, diz em entrevista.

O subtítulo do livro (“Brutalidade e Complexidade na Economia Global”) sugere que os sistemas mais complexos frequentemente levam a efeitos bastante simples e, mais do que isso, brutais. Como se dá esse processo?
Saskia:
 Os maiores exemplos são os seguintes: primeiro, a matemática algorítmica, crucial no setor financeiro.

É o caso da hipoteca subprime, que nunca se destinou a oferecer moradias para famílias de baixa renda, mas a gerar títulos lastreados em ativos, no contexto de um circuito de alto investimento que não aguentava mais derivativos garantidos por outros derivativos.

Segundo o Fed, mais de 14 milhões de famílias perderam suas casas nesse período histórico curto e brutal, que durou oito anos. Outro caso é a exploração de petróleo por fracionamento, uma modalidade de mineração muito complexa, que resulta na destruição selvagem de rochas e no envenenamento de cursos d’água.

Um exemplo simples é a exportação de empregos. Exige uma logística complicadíssima, engenheiros brilhantes, e para quê? Pagar salários baixos e valorizar as empresas no mercado acionário.

Qual é o papel do conhecimento nessa brutalidade? O que se pode mudar na maneira como ele é produzido e disseminado?
Saskia: 
Nos circuitos do capital, o conhecimento raramente é inspirador; é apenas uma ferramenta. O uso dessas formas extremamente complexas de conhecimento para produzir brutalidades elementares é um elemento central do funcionamento do atual sistema econômico.

Desde os anos 1980, com a desregulamentação e a privatização, entramos num período marcado pelo domínio de setores extrativistas; pense no Google e no Facebook: uma vez que criaram suas plataformas digitais, que são brilhantes, tornaram-se extrativistas.

O Google coleta os dados disponíveis sobre todos nós, cria pacotes a partir deles e os vende a outras empresas. Isso é extração. Também penso que muitos componentes da alta finança, hoje, são extrativistas. Esses setores são dominantes, como depois da Segunda Guerra Mundial [1939-1945] o consumo de massa foi dominante.

Em 1990, o filósofo Gilles Deleuze [1925-1995] previu a emergência de “sociedades de controle”, caracterizadas por sistemas informáticos que determinariam automaticamente acessos e bloqueios. Os algoritmos realizaram a “sociedade de controle”?
Saskia: 
Sim e não. Temos que ir além de uma ideia tão ampla. Produzimos os instrumentos que geraram essa situação, e o que me interessa é a variedade de processos e formas de conhecimento necessárias para tanto. Só que o perigo não está só nos sistemas poderosos de controle, mas também na psicologia que resulta deles.

E podemos lutar contra isso. Por fim, em toda sociedade há pessoas e espaços que não podem ser alcançadas mesmo pelo sistema mais poderoso.

O inimigo mais forte não é o próprio sistema, mas nosso conhecimento falho do perigo, até que seja tarde demais e acabemos sendo moldados. É o caso do Facebook e das histórias falsas sobre a eleição americana em que os leitores acreditaram. A incapacidade de entender o que está sendo feito é um enorme perigo.

A senhora introduz o conceito de expulsão para mostrar que a questão no mundo atual é mais do que de desigualdade: os prejudicados estão de fato fora do sistema. Mas eles não deixam de existir. O que acontece com eles?
Saskia: 
Eles se tornam invisíveis para nossas categorias de análise, para nossas medições da economia e das condições gerais da população. Quando o governo americano diz que o desemprego caiu para 4%, deixa de fora um bom número de desempregados que simplesmente não são mais contados, mas existem, são corpos plenamente materiais.

Essa tensão entre o material e o fato de que ele pode tornar-se invisível também pode ser percebida a respeito de condições muito distintas, como a terra morta. Uma vez que a terra está morta, esquecemos dela, ela desaparece de nossas medições padronizadas da economia.

Os expulsos exercem alguma pressão de fora sobre o sistema?
Saskia: 
É uma questão complicada: se os expulsos podem afetar o sistema. São pessoas que continuam vivendo, mesmo que na miséria. E podem estar vivendo bem no meio de um grande centro urbano.

Por exemplo, um homem negro de 33 anos que nunca teve um emprego, que se vira como pode para ter o que comer, que dorme em lugares diferentes a cada noite, para que a polícia não o reconheça. Nas economias avançadas, há milhões de pessoas e famílias inteiras nessa condição.

O mesmo vale para a terra morta?
Saskia: 
No caso da terra morta, ela está ali, mas um governo como o americano não se importa. Nem sequer fazem mapas oficiais mostrando terra morta. Como se o problema não existisse. Mas a terra morta pode ser um terror para quem vive nela.

Pense nos milhões de pessoas que querem deixar seus países não só por causa de guerras, mas também porque a terra morreu. E não há lei que reconheça o refugiado que foge de um país porque não sobrou terra nenhuma.

São refugiados de um tipo particular de “desenvolvimento” econômico. Uma porção cada vez maior da terra pertence a corporações enormes e poderosas.

O crescimento acelerado das favelas e periferias não é acidente. Todo ano, milhões de pequenos agricultores são expulsos de suas terras, substituídos por uma mina, uma nova expansão urbana etc. O único lugar aonde podem ir são as favelas das grandes cidades.

Um sistema baseado em extrativismo e expulsões foi o colonialismo. Muitas de suas descrições fazem pensar na lógica colonial. Como o modelo das expulsões se compara ao colonialismo?
Saskia: 
Entramos em um modo diferente do colonialismo. É provavelmente melhor não usar esse termo para descrever o período atual.

Eis algumas das principais diferenças. Este é um colonialismo puramente extrativista, ao contrário dos antigos impérios, que tinham projetos mais amplos, como a “missão civilizadora” da França, ou os britânicos, que formavam e educavam indianos para compor os estratos médios da burocracia imperial.

Hoje, não há mais nada disso. Uma vez que se extraiu o que era desejado, as corporações simplesmente vão embora. Esta época é governada por uma lógica extrativista, incluindo setores que nunca pensamos como extrativistas.

A senhora crê que o Acordo de Paris e outras resoluções das conferências climáticas da ONU serão eficazes para evitar que mais terra e mais água morram?
Saskia: 
Esse acordo e os outros anteriores nos deixam longe de resolver a destruição ambiental. Mas é uma grande vitória, porque produziu um consenso. Há muito mais pessoas falando em mudança climática e mais empresas tentando se tornar sustentáveis, até onde isso seja possível.

Revoluções precisam de décadas para amadurecer, e esse é um primeiro passo. Ao mesmo tempo, biólogos, ecologistas e outros cientistas estão produzindo inovações que vão bem além do acordo. Gosto de me concentrar nessas inovações, em vez dos acordos gerais, mais tímidos, que têm impacto limitado.

No livro, lemos que a fronteira entre quem permanece no sistema e quem é expulso está se fechando cada vez mais sobre os de dentro, a ponto de atingir as classes médias dos países ricos. Qual é o limite desse fechamento?
Saskia: 
São fronteiras tão brutais que, nas sociedades ocidentais, só afetam os mais pobres ou discriminados, mesmo se hoje até os filhos da classe média estão sendo privados de direitos.

Os números, especialmente nos EUA, deixam claro que setores crescentes das classes trabalhadoras acabaram em situação de pobreza e desespero, principalmente famílias negras. E o mesmo ocorreu a setores das classes médias. Os sistemas complexos da economia e da sociedade tornam muitos trabalhadores irrelevantes.

Minha preocupação, ao identificar essa noção de limites sistêmicos dentro de economias nacionais, também é, em parte, criar uma contrapartida para a noção de que a globalização elimina fronteiras. Ora, ao mesmo tempo, estamos construindo barreiras dentro dos países.

A senhora argumenta que os expulsos se tornam invisíveis, e que só enxergamos o lado positivo do desenvolvimento econômico. O mesmo vale para as partes do mundo em que o crescimento inclui populações no consumo de massas?
Saskia: 
Sim. As fronteiras da expulsão dos sistemas (econômico, social, biosférico) são fundamentalmente diferentes das fronteiras geográficas dos Estados.

O foco na fronteira vem de uma das principais hipóteses do livro: que a passagem da era keynesiana à era das privatizações e da desregulamentação conduziu à passagem de uma dinâmica que incluía para uma dinâmica que exclui.

Ainda falta ver se essa passagem da incorporação à expulsão também está emergindo na China e na Índia, mas já há elementos. Na China, a incorporação de uma massa de pessoas na economia monetária injetou-as numa dinâmica em que são “pobres monetizados”. A desigualdade também está explodindo na China, com novas formas de concentração econômica no topo. Sem falar no bullying corporativo.

No lado mais brilhante da economia global, parece existir uma tendência à monumentalidade, tanto em eventos esportivos quanto em construções de cidades como Dubai e Hong Kong. Como essa monumentalidade se relaciona com o tema das expulsões?
Saskia: 
Existe algo como 30% ou 40% da população que formam classes médias altas e elites com muito dinheiro.

Devemos concentrar menos atenção no 1%, os mais ricos dos ricos, e olhar para essas pessoas que se tornaram bem mais ricas do que jamais puderam imaginar. São eles que tornam a concentração de riqueza visível. Reinventam grandes partes das cidades a partir de seus desejos. Expulsam as classes modestas que viveram naqueles bairros por gerações, porque “precisam” de mais espaço para mais mansões e shoppings de luxo.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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