Democratas de todos os vieses não têm um projeto alternativo claro ao neototalitarismo tecnofeudal em voga; momento é de ação, não de nostalgia
Lucas Pereira Rezende, Doutor em ciência política (UFRGS), é professor do Departamento de Ciência Política da UFMG; autor de “Sobe e Desce: Explicando a Cooperação em Defesa na América do Sul” (ed.UnB)
Folha de São Paulo, 10/02/2025
Todos estão insatisfeitos com o Estado. Progressistas porque ele não levou direitos a todos; conservadores porque políticas de direitos civis esbarram em preceitos religiosos e/ou tradicionais; a classe média pela percepção de corrupção e alta carga tributária; as classes baixas por não serem atendidas plenamente, mantendo sua marginalização; o mercado pelos altos gastos; e todos insatisfeitos com a segurança pública. O que fazer, então, com o Estado?
Essa insatisfação generalizada levou parte das sociedades ocidentais, que viviam sob democracias liberais, em direção a um totalitarismo tecnofeudalista. O vácuo de um movimento de expansão do Estado democrático liberal, que seja capaz de propor uma reforma que preserve os avanços em direitos civis, que mobilize a sociedade em sua defesa, mas que também promova uma reorientação para maiores efetividade e eficiência do Estado, está sendo ocupado por alternativas que têm potencial destrutivo significativo à sociedade como a conhecemos.
Apesar dos seus problemas, foi através das instituições estatais que a democracia liberal pôde avançar. No Brasil, devemos ao Estado, por exemplo, os direitos trabalhistas, a Previdência Social, a infraestrutura desenvolvimentista, a urbanização e industrialização do país, a criação do SUS, a estabilização econômica, a pesquisa científica e o ensino superior gratuito, e a consolidação legal dos direitos civis. A constituição de 1988 representa o ápice do Estado como meio de expansão de direitos em nossa história e institucionalizou, por aqui, o modelo social-democrata.
No entanto, esse modelo extensivo de Estado demanda alta capacidade de financiamento, algo cada vez menos factível desde o início da crise de 2008. Retomo a pergunta inicial: o que fazer com o Estado? O desmanche do Estado promovido por governos como o de Javier Milei na Argentina, Donald Trump nos EUA e Jair Bolsonaro no Brasil não é aleatório e visa as instituições garantidoras dos direitos civis, rotuladas por eles como “ideologizadas”. Não melhora em nada a capacidade de produzir políticas públicas democráticas, mas é uma resposta populista à insatisfação com o Estado.
E qual a alternativa que os governos democráticos apresentaram a isso? A retomada do Estado como ele era pré-2008. O resultado, como vimos na baixa aprovação de Joe Biden e na derrota de Kamala Harris, não é nada diferente da baixa consistente de popularidade do governo Lula. Voltar ao passado com Biden e Lula foi importante para mostrar que os democratas ainda têm capacidade de mobilização e de agenda. Mas falharam em não apresentar uma resposta à insatisfação generalizada contra o Estado.
Os democratas precisam agora se organizar em torno de sua própria proposta de reforma do Estado, que busque preservar os expressivos avanços conquistados nos últimos séculos e que avance sobre os rumos que as democracias têm tomado. Para Adam Przeworski, o caminho seria de diminuição brutal das desigualdades. Para Steven Levisky e Daniel Ziblatt, o caminho é em direção a uma democracia multirracial. Há muitas possibilidades, mas todas têm o pré-requisito de se manterem ativas as regras do jogo democrático.
Não será fácil recuperar a confiança no Estado, ainda mais sem um projeto claro alternativo ao neototalitarismo tecnofeudal. Democratas de todos os vieses do mundo entendem que é através do Estado que políticas públicas podem ser executadas, e que só com instituições democráticas sólidas e muitos mecanismos de freios e contrapesos pode-se garantir direitos e se combater de fato as mazelas da sociedade. É por esta ciência que os democratas se encontram perdidos, defendendo o status quo, enquanto radicais destroem nossas instituições, canalizando a lógica do “que se vayan todos”, que por aqui explodiu em 2013 e ainda segue no sentimento coletivo.
E há pressa: não apenas pela proximidade das eleições em 2026, tanto aqui quanto as midterms (eleições legislativas de meio de mandato) nos EUA, mas porque a democracia é lenta, enquanto o autoritarismo é rápido. Há infindáveis agendas a serem protegidas e ampliadas. Mas, sem um modelo próprio de reforma do Estado que seja comum a todos os democratas, sucumbiremos à agenda destrutiva da direita radical. O momento é de ação, não de nostalgia.