Economista, académico, propõe, juntamente com outros reputados economistas internacionais, um novo modelo de sociedade que combata o neoliberalismo. Indica deficiências no cálculo do PIB e aponta o dedo ao sistema financeiro pelas dificuldades sentidas pelas famílias e empresas. Considera normais as parcerias com o FMI, em Angola, mas critica os termos em que exigem austeridade e privatizações e alerta para os riscos.
O Professor faz parte do grupo de economistas que defendem a alteração do modelo como é calculado o PIB. Porquê?
O PIB mede apenas a intensidade de uso dos recursos. Não mede para que são utilizados e para quem. Não mede os impactos ambientais, nem toda a área da economia imaterial, que é muito importante. Como o PIB mede apenas a intensidade, os desastres ambientais, por exemplo, são apresentados como o aumento do PIB. Realmente, gastam-se mais produtos químicos, aumenta o PIB provocando desastres. As epidemias e as guerras também aumentam o PIB, mas sem melhorar o bem-estar da humanidade. Pelo contrário, são contra produtivos. Então, temos de medir o que são resultados no sentido de bem-estar das populações. Nós queremos o PIB como uma conta positiva.
E como?
Para ter uma contabilidade que faça sentido, estes desastres, estas situações que geram mal-estar ou que destroem o meio ambiente têm de ser colocados como custo e não como produto. Um segundo ponto é o problema dos ‘stocks’. Isto interessa a economias como a angolana, em que a produção e a exportação de petróleo aparecem como aumentando o PIB, mas, na realidade, é uma redução de ‘stocks’. Desde 2003, o Banco Mundial apresenta uma metodologia em que a extração de recursos naturais é calculada como descapitalização. Daí que propus, quando estive em Angola, trabalhar-se desde já, o conceito pós-petróleo.
São essencialmente estes os pontos?
Tem um outro eixo muito importante no cálculo do PIB. O PIB trabalha com médias. Pega-se a totalidade de bens e serviços num determinado país. No caso do Brasil, diz-se, por exemplo, que temos um PIB de 11 mil dólares por pessoa, mas acontece que apenas 5% dos mais ricos tem 95% da riqueza acumulada. O PIB deforma a compreensão do que está realmente a acontecer no país porque não inclui a desigualdade no acesso de bens e serviços produzidos.
Qual é a proposta do professor e dos que defendem esta corrente?
Há cinco ou seis anos, foi convocada uma comissão com Joseph Stiglitz, Jean-Paul Fitoussi e Amartya Sen. Elaboraram propostas alternativas de cálculos para o PIB. Tornou-se no primeiro ponto de referência mundial para repensar as nossas formas de cálculo do PIB. Há coisas essenciais como, por exemplo, incluir o cálculo da desigualdade, deduzir a descapitalização, trabalhar com a renda efetiva das populações e não apenas o PIB. De lá para cá, tem havido formas de cálculos muito mais sofisticadas. Mais recentemente, este ano, há um trabalho muito importante de uma professora de Oxford, Kate Raworth, com o título ‘Economia Donut’.
E quando é que um novo modelo de cálculo poderá ser adoptado?
Temos experiências ainda marginais. A Nova Zelândia desenvolveu um sistema de cálculo concentrado no bem-estar da população. Pega coisa por coisa. As pessoas têm de ter acesso à saúde. Têm ou não têm? Têm de ter acesso a uma casa. Têm ou não têm? Pega os diversos sectores e faz uma bateria de indicadores sobre como está a população. É perfeitamente viável e funcionaria em Angola. Há outro sistema que é muito importante e é uma metodologia em que nos podemos apoiar. Utilizar os objetivos do desenvolvimento sustentável. Como foram aprovados por quase todos os países do mundo, oferece uma possibilidade muito grande, porque, ao mesmo tempo, mostra se o país está ou não conforme os 17 objetivos. Depois, há coisas mais folclóricas. Na Ásia, por exemplo, há um país que, ao invés de PIB, fala em Felicidade Interna Bruta. É engraçado, mas, na realidade, trata-se disso. Queremos que a Economia sirva para o bem-estar das pessoas e não que as pessoas sirvam para a economia.
Então pode-se afirmar-se que há necessidade de se alterar a forma como é ensinada a Economia?
Sem dúvida. Muita gente discute isso. A forma de ensinar a Economia está baseada no sistema do século passado em que, no essencial, havia muitas empresas, pequenas, médias e grandes, mas muitas. Havia concorrência entre elas e, nessa concorrência, as coisas equilibravam-se. Isso mudou. Hoje, são alguns gigantescos conglomerados em que o comércio é entre matriz e filial ou entre filiais. Não é mais o mercado. São preços administrados, o conceito de mercado mudou radicalmente. Depois, temos outra dimensão em que as formas de apropriação do excedente social, que se torna proprietário da riqueza produzida, isso mudou porque, no século passado, era dominantemente através de baixos salários. Hoje, também continuam os baixos salários, mas muito mais se trata de exploração financeira, de endividar pessoas, empresas e governos. Hoje, são 28 grandes sistemas conglomerados financeiros mundiais, que controlam o sistema financeiro e extraem a riqueza através do endividamento. Ou seja, os monopólios, que, durante anos, foram apontados como sendo maus para as economias, acabaram por vencer… Hoje é um sistema muito oligopolizado. Se ler o meu livro ‘Era do Capital Improdutivo’ vai encontrar um capítulo específico, ‘O oligopólio sistémico financeiro’, que ajuda a entender esta reorganização. Aprendemos também que o governo é quem imprime o dinheiro, mas, hoje, o dinheiro que o governo imprime no mundo representa apenas 3% da liquidez. 97% são sinais magnéticos emitidos pelos bancos sob forma de crédito. Os governos têm muito pouco poder em termos de política monetária. No Brasil, quando a presidente Dilma tentou reduzir as taxas de juros dos bancos, simplesmente derrubaram-na porque o poder é muito grande. Grandes grupos financeiros estavam a ganhar com juros sobre as famílias, sobre as empresas e sobre os governos.
Não teme que, com este discurso, seja visto como um ‘economista de esquerda’?
Essa nova forma de ver a realidade encontra, por exemplo, no Instituto Rooselvet que desenvolveu um estudo recente, ‘Novas Regras Para o Século XXI’ e não tem nada de esquerda. Joseph Stiglitz é Prêmio Nobel de Economia, foi economista-chefe do Banco Mundial e do governo Clinton. Estamos a falar de um economista de grande importância nos EUA, que não é um país de esquerda. Há a Kate Raworth, da Universidade de Oxford. Há uns dias, estive numa reunião em Varsóvia, onde discuti estas novas formas de abordagem da economia com 23 economistas, professores, pesquisadores de Oxford, Harvard, Stanford, Universidade de Paris, London School of Economics e das universidades de Sidney e Estocolmo. Fizemos um pequeno livro com 23 artigos, com novas visões necessárias. Que novas visões são estas? Não é esquerda ou direita. É uma tomada de consciência do básico. Estamos a caminhar para um desastre ambiental com grande rapidez. A nossa economia mundial está em direção a um muro e estamos a destruir esta base natural do planeta em proveito de uma minoria, que está a enriquecer de uma maneira que, quem não entende de finanças, não imagina.
Dê exemplos…
Uso o seguinte exemplo. Se tenho mil milhões de dólares e fizer uma aplicação financeira, não estou a produzir nada, que rende 5% ao ano, estou a ganhar por dia 137 mil dólares. No dia seguinte, ganho 5% sobre mil milhões mais 137 mil dólares e por aí vai. Estamos a gerar o drama da desigualdade, o drama ambiental e também a paralisia económica. Quando o dinheiro aplicado em papéis financeiros rende mais que o dinheiro investido fazendo uma fábrica, o que é que o capitalista faz? Compra papéis por ser mais seguro e render mais.
É o resultado de o sistema capitalista se ter sobreposto ao socialista?
Não acho. O facto de não haver mais uma alternativa socialista, como o poder político organizado, sem dúvida tornou as grandes empresas, os grandes bancos, os centros de especulação como o City, em Londres, o Wall Street, nos EUA, muito mais sem-vergonha. Drenam porque não há críticas, não há contrapeso ao seu poder. As empresas produtivas hoje são controladas por sistemas financeiros e a pessoa que tem papéis financeiros de uma empresa que está em qualquer canto do mundo, não quer saber o que a empresa está a fazer, quer saber quanto rendem as ações. Isso deformou radicalmente. Um gigante mundial, como a GSK, sexto grupo farmacêutico mundial, faz fraudes sobre medicamentos. Como é que pode? Hoje pagam uma multa, só nos EUA, de 2,8 mil milhões de dólares por fraude de medicamentos. Como uma grande empresa que entende tudo de medicamentos comete este erro? É pela exigência de rentabilidade financeira que torna o sistema irresponsável. A lógica mudou profundamente.
Está a concordar que, em parte, essa situação é consequência de o capitalismo ter eliminado qualquer sistema alternativo…
Basicamente estamos a evoluir para outra dimensão. A briga entre esquerda e direita, com a direita a querer privatizar e a esquerda estatizar, está a ser ultrapassada para uma visão que está mais próxima do que acontece nos países nórdicos como Suécia, Dinamarca ou na Coreia do Sul, China ou Canadá. Temos um novo sistema de equilíbrio entre o poder das empresas, o poder do governo e o poder da organização da sociedade civil. Na Suécia, o sueco médio é membro de quatro organizações da sociedade civil e o dinheiro, ao invés de estar lá em cima, no governo, está no espaço público municipal. 72% dos recursos vão directamente para os municípios e é controlado diretamente pelas populações. A China tem um sistema financeiro extremamente controlado. A dinâmica de desenvolvimento é impressionante, mas é muito simples. Lá não há ganhar dinheiro com dinheiro. Todo o dinheiro, público e privado, é investido produtivamente. Quando é público, é para produzir infra-estruturas, um conjunto de indústria pesada. Quando é privado, é mais para desenvolver pequenas e médias indústrias, é crédito para a população.
Esse é o melhor modelo?
Eu e o Ignacy Sachs fizemos um livro, intitulado ‘Pão nosso de cada dia’ sobre o processo produtivo. Trabalhamos com um conceito de economia mista. Por exemplo, produzir automóveis e camisolas é para o setor privado. Grandes infraestruturas como energia, telecomunicações, transporte, água e saneamento têm de ser públicas. A parte de intermediação financeira comercial, quando pequena, pode ser privada. Os grandes sistemas têm de ser regulados pelo Estado, porque, senão, os bancos se apropriam do desenvolvimento. As políticas sociais, saúde, educação, segurança e habitação, têm de ser públicas, descentralizadas e muito controladas pela sociedade civil. É uma visão da economia que se constrói a partir da base.
E como é que se podem introduzir modelos alternativos que esvaziem ou reduzam o poder da indústria financeira?
É complicado. Por exemplo, no Brasil, tivemos excelentes resultados. Criámos 20 milhões de empregos formais, tirámos 50 milhões de pessoas da pobreza. O Lula deixou o governo, depois de oito anos, com 87% de aprovação. Ou seja, as coisas funcionam. Agora, o sistema financeiro aumentou os juros e drenou a capacidade de compra das famílias, a capacidade de investimento das empresas e a capacidade de investimento do Estado, através de juros. Quando a presidente Dilma tentou reduzir os juros, não durou. O problema é central. Nós temos o poder empresarial (não estou a falar da pequena e média empresa que produz coisas concretas, mas as grandes corporações financeiras, em particular, que têm um poder político muito grande). Dizem que são empresas, mas são políticas. Derrubam ministros, governos, corrompem processos decisórios, corrompem o judiciário quando necessário. É uma realidade política a que hoje assistimos com a tragédia na América Latina, Argentina, Brasil, Venezuela. O absurdo do governo Trump, nos EUA, o absurdo do novo primeiro-ministro da Inglaterra, o absurdo dos governos na Polônia e na Hungria. O Erdogan, na Turquia, o Duterte, nas Filipinas. Em toda a parte, há populistas que desarticulam formas democráticas de organização.
Existem hoje muitos artigos a considerarem falsos os indicadores apresentados pelo governo de Lula da Silva..
Isto é ‘bobagem’ radical porque são de fontes diferentes. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística faz estatísticas há décadas, com o acompanhamento do Banco Mundial e do FMI. Temos as embaixadas que também acompanham os sistemas de evolução dos países. Esse novo governo é de extrema direita, é patológico em termos políticos, é quem inventa estas coisas. Os resultados foram muitos concretos. Hoje, as coisas são muito transparentes, os dados cruzam-se entre instituições. O Banco Mundial não é idiota e fez um relatório em que apresenta 2003 a 2013 como a década dourada do Brasil.
BANCOS COM PAPEL FUNDAMENTAL
Como olha para o caso de Angola que também tem um novo governo? Angola, como tem um novo governo, tem uma amplitude para trazer inovações. Se pegar parte do dinheiro que está a ser ganho por grupos financeiros que não produzem e reorientar para o bem-estar das famílias, isto gera atividade económica e apoio político e é esse equilíbrio que tem de ser encontrado. Agora, se tivermos um governo que, em termos políticos, depende de grupos internacionais ligados à exportação de petróleos ou das importações de bens de luxo da classe média alta, isto não permite que se incorpore o conjunto da população no desenvolvimento. Por exemplo, o ‘Bolsa Família’, no Brasil, custou apenas 0,5% do PIB. É muito pouco dinheiro, mas que se transforma em atividade económica.
Disse que Dilma Rousseff caiu quando tentou aumentar os juros e acredita que Angola tem margem para inovar. É possível estabelecer paralelos?
Só quem está dentro de um país, das suas políticas e das suas estruturas de poder, é que pode ter ideias sobre isso. O que eu sei é que Lula, quando começou a fazer o processo redistributivo, no começo, os bancos e a área financeira ficaram muito assustados: “Meu Deus, dinheiro para os pobres vai quebrar o país”. Só que o dinheiro para os pobres gerou mercado interno, que dinamizou empresas. Mas, com a dinamização das empresas e da famílias, as famílias começaram a comprar mais, a pedir crédito, as empresas começaram a comprar mais máquinas. Ou seja, dinamizou, inclusive, os bancos. Esta compreensão de como funciona o círculo virtuoso da economia ajuda muito.
Esta é a receita que apresentaria para a crise em Angola onde as famílias também estão a perder o poder de compra?
Em termos financeiros, tem de se reduzir as taxas de juros sobre a dívida pública, reorientar os bancos para financiarem atividades produtivas e usar recursos públicos para dinamizar as famílias. Em termos administrativos, organizar a profunda descentralização do sistema.
Estamos a falar de medidas que chocariam com os interesses do poder financeiro?
Sem dúvida, mas os bancos têm de voltar a financiar atividades produtivas, cobrando juros decentes, inferiores ao lucro para os empresários poderem pagar. Ou seja, uma actividade de fomento, ao invés de atividade de especulação.
É certamente uma opção difícil para os bancos…
É difícil, mas é possível. O Lula, quando era candidato em 2002, escreveu uma carta para os brasileiros, dizendo que ia respeitar as regras do jogo. Ou seja, ia fazer um pacto com o sistema financeiro para poder assegurar que todo o brasileiro tivesse o seu café da manhã, almoço, jantar e, eventualmente, frango no domingo. Uma negociação com os bancos é fundamental. Hoje, calculamos a produtividade das empresas, precisamos também de calcular a produtividade dos bancos. O banco, que está apenas a ganhar dinheiro ao apropriar-se de uma parte dos impostos que o angolano paga, não funciona. O banco tem de voltar a fazer fomento, o dinheiro tem de ser produtivo. A taxa de juro sobre a dívida pública tem de ser muito mais baixa. Se aplicar dinheiro em títulos do governo rende mais porquê é que vão financiar projetos empresariais que oferecem mais riscos? Vão comprar títulos.
O governo vende os títulos porque precisa de liquidez. Os bancos só aproveitam uma oportunidade de negócio, são regras de mercado. Como se pode ultrapassar esta situação?
Angola tem uma grande entrada de recursos, que é a exportação de petróleo, coisa que os outros países não têm. É uma facilidade. Usa esses recursos para financiar pequenos equipamentos ou programas de melhorias científicas tecnológicas no pequeno produtor e na área rural. Se tem uma entrada importante de divisas, isso permite emitir moeda. Se passar este dinheiro para projetos de desenvolvimento, não gera inflação. Gera capacidade de compra e emprego de bens simples, mas em que a resposta produtiva é muita rápida. Tanto a capacidade de emitir moeda como a capacidade de uso inteligente dos recursos externos ajuda muito.
Que opinião tem sobre o facto de o Governo angolano avançar com o acordo com o FMI?
Não conheço os termos do acordo por isso não posso comentar. O que está claro são as necessidades de Angola. Se tem dívidas externas e esta renegociação tem de ser com o FMI, então isso é importante. Agora, as fórmulas tradicionais do FMI, dizendo privatizem, vendam recursos públicos, simplesmente não funcionam. As outras propostas na linha da austeridade também não funcionam. Pelo contrário, o que funciona é o aumento do consumo das populações. Funcionou não só no Brasil, com Lula, mas também com Roosevelt, nos EUA. O ‘New Deal’, nos anos 1930, tirou os EUA da crise. Funcionou na Europa na reconstrução depois da II Guerra Mundial. Funciona na China. A China imprime moeda e gera dinâmicas. Como estamos fora, só vemos a parte das exportações, mas a China é essencialmente centrada no aumento do consumo das populações. Nos últimos 20 anos, no mundo, reduzimos a pobreza de mil milhões de pessoas, 700 mil são chinesas. A lógica política tem de ser diferente.
Que futuro imediato prevê para Angola, caso o acordo com o FMI tenha como base estas fórmulas que considera tradicionais?
Se privatiza, terá menos instrumentos públicos de dinamizar a economia. Sofremos isso no Brasil. O governo está a fazer exactamente isso. Está a privatizar o petróleo, as árvores da Amazónia, os bancos públicos. Com esta política, gera um pouco de dinheiro nos cofres do Estado, diz que equilibra o orçamento, mas vende os móveis da casa. É esta a comparação. Não é reduzindo as despesas que se resolve, mas sim aumentando as entradas. Como se aumentam as entradas? Dinamizando o consumo das famílias. Esta dinâmica é muito estudada. O Joseph Stiglitz, nos seus últimos trabalhos, mostra estes processos. Mas há outras visões muito interessantes, que é taxar as transações financeiras. Quando se criam impostos sobre transações financeiras, fica mais interessante para quem tem o dinheiro abrir uma empresa e produzir.
Justifica-se a necessidade da privatização das empresas públicas por serem deficitárias?
Não necessariamente. Por exemplo, na China, uma empresa vende o aço mais barato que o custo de produção. Isso permite que muitas empresas utilizem este aço e favoreça as empresas chinesas relativamente a grupos internacionais. Uma das principais qualidades do Estado é que pode entrar em deficits. Pode entrar também em deficits quando abre uma ferrovia para uma região onde esta, apesar de deficitária, dinamiza a produção em toda a região. Não há nenhum mistério, é planejamento. Simplesmente dizer que o que é deficitário se deve privatizar é bobagem. Eventualmente, se achar que a empresa não está a ser administrada de maneira eficiente pode-se fazer uma concessão de gestão para um grupo privado, isso é bom senso. Uma coisa é a propriedade, outra coisa é a gestão e outra ainda é o controlo.
O Governo angolano afirma que o país hoje está mais aberta ao investimento estrangeiro. Que riscos devem ser acautelados?
Normalmente, nos setores estratégicos. Por exemplo, o petróleo é estratégico para Angola, tem de ser muito controlado pelo sistema público. A China trabalha com o que chama de articulação de diversos sistemas de propriedade. Tem o sector público que é o governo, sistema descentralizado de gestão, tem grandes infra-estruturas. Tudo isso é Estado. Depois, há as indústrias privadas chinesas. Estas desenvolvem-se normalmente no quadro de mecanismo de mercado. Depois, há regimes especiais que são contratos de longo prazo com grupos internacionais, onde se definem as regras
do jogo.
Quem se instalar na China
terá de ter uma determinada percentagem de chineses no conselho de administração. É importante que numa sociedade complexa moderna se trabalhe com vários subsistemas de propriedade e de gestão. Tem de ser muito pragmático.
O que sabe sobre o combate à corrupção em Angola?
Não tenho acompanhado, mas tenho um livro inclusive sobre a corrupção. Ajudei a levar para o Brasil o sistema de controle de corrupção. Basicamente, é muito perigoso ou escorregadio transformar a luta contra a corrupção numa ‘caça às bruxas’. O problema não são os corruptos. Quando um sistema não tem transparência, haverá corrupção, prende-se um corrupto e aparece outro. Uma coisa é combater a corrupção, outra coisa é usar a corrupção como alavanca política, isso é muito perigoso. Sabemos o que fazer para reduzir a corrupção, é transparência. Por exemplo, uma lei que foi feita no Brasil, que é interessante e é discutida internacionalmente, é um pequeno imposto, por exemplo, 0,2% sobre toda a transação financeira. Como paga impostos, toda a transação é registrada, são facilmente acompanhados. A solução não passa por encontrar o ‘bode expiatório’ como fizeram com Lula (Lula nunca foi corrupto), mas gerar um sistema onde as contas são de consulta pública. É perfeitamente viável de se organizar na era da informática.
Com as novas autoridades brasileiras, vêem a possibilidade de se reabrirem, por exemplo, linhas de financiamento do BNDES para Angola?
Com este governo, é muito difícil porque estão a usar os bancos essencialmente para lucros financeiros e transferências internacionais para paraísos fiscais. O nosso ministro da Economia, Paulo Guedes, é co-fundador de um banco, o BTG Pactual. É um banco basicamente de gestão de fortuna. É um banco relativamente pequeno. Chamam de banco de investimento, mas não investe. O que faz é pegar nas grandes fortunas e encontrar lugares confortáveis para as grandes fortunas se esconderem. Tem 38 filiais em paraísos fiscais. Não é só que não está a pensar em financiar Angola, mas não está a pensar financiar a produção sequer no Brasil.