Autor: Eduardo Costa Pinto – Revista Carta Maior – Novembro 2013.
A estratégia de desenvolvimento da China gerou uma dinâmica interna puxada por investimentos, sobretudo públicos em infraestrutura.
Em 1793, Lorde Macartney e sua comitiva desembarcaram em terras chinesas com a missão de criar um canal comercial entre a Grã-Bretanha e a China que até aquela altura nunca tinha se aberto a outra nação. O imperador Qianlong refutou duramente a proposta e a reação da Grã-Bretanha foi arrombar as portas. Essa derrota chinesa garantiu o domínio inglês no Sudeste Asiático no século XIX.
Alain Peyrefitte, ao refazer o caminho de Macartney em 1960, constatou que muito do que havia sido descrito pela comitiva britânica, há quase dois séculos, se manteve quase intacto. O império chinês permaneceu imóvel entre 1793 e 1960 (nota 1).
Na década de 1990, o próprio Peyrefittealertara que a China estava saindo de sua imobilidade em virtude da era Deng Xiaoping, implementada a partir de 1978. Em outras palavras, o dragão estava despertando de sua longa hibernação e provocando profundas transformações econômicas no sistema internacional, como previra Napoleão Bonaparte há quase duzentos anos ao afirmar em 1816 que: “Quando a China despertar, o mundo tremerá”.
A China saiu da condição de Império Imóvel para se tornar o país mais dinâmico no início do século XXI, transformando-se na locomotiva mundial. Ascensão impressionante!
A economia chinesa cresce 10% ao ano há mais de trinta anos (entre 1978 e 2012), o que a alçou à condição de segunda maior do mundo (atrás apenas dos Estados Unidos), de “fábrica do mundo” (nota 2), de maior exportador e importador mundial.
Esse crescimento esteve e está associado ao impressionante desenvolvimento de sua indústria e de seu rápido processo de modernização (passagem do mundo rural ao urbano) que geraram profundas modificações em sua estrutura produtiva e social.
Em 1978, a China tinha uma população de cerca de 956 milhões de habitantes e era um país rural. Daquele ano até os dias atuais, a população chinesa saltou para 1,338 bilhão de pessoas em 2010 (20% da população mundial) e passou a morar cada vez mais nas cidades.
Essa dinâmica vem provocando um aumento no consumo de energia, de bens duráveis e não duráveis e de alimentos na China. Apesar disso, esse país ainda está distante do padrão de consumo por habitantes dos países desenvolvidos.
Existe um amplo debate a respeito dos determinantes do milagre econômico chinês. Apresentaremos aqui os seus condicionantes internos, sem negar a importância da dimensão externa (nota 3), que não será aqui tratada dado o escopo deste texto.
Em 1978, após a 3ª Plenária do 11º Comitê Central do Partido Comunista Chinês (PCC), configurou-se uma nova rota para o modelo de desenvolvimento da China – idealizada por Deng Xiaoping – pautada pelas reformas (nota 4) e pela abertura ao exterior.
Essa mudança buscou deslocar a luta de classe como princípio aglutinador do partido e do Estado colocando em seu lugar o princípio do desenvolvimento econômico como elemento que possibilitaria a ampliação das condições materiais da população chinesa e a manutenção do socialismo com características chinesas.
As diretrizes gerais dessa nova rota chinesa foram: 1) a descentralização das decisões econômicas (redefinição do planejamento e do mercado) por meio da ampliação do papel dos mercados e por meio da delegação de poder para as províncias locais; 2) a adoção de padrões tecnológicos e de modelos de gestão empresarial do mundo capitalista; e 3) o princípio estratégico da abertura ao mundo exterior e da evolução pacífica.
Para Deng Xiaoping, a China só seria respeitada quando se tornasse rica. Em suas palavras: “Só se pode falar alto quando se tem muito dinheiro”. Para ele, isso só seria alcançado por meio da absorção de conhecimento gerenciais e tecnológicos do ocidente capitalista. Era necessário absorver mais capital externo, segundo Deng à época.
A estratégia institucional para criar esse espaço de aprendizado das práticas estrangeiras foi a configuração das Zonas Econômicas Especiais – Zonas de Processamento de Exportações. Elas foram estruturadas para atrair investimentos estrangeiros (dados os benefícios concedidos) que, em contrapartida, introduziriam métodos modernos de administração e tecnologias no território chinês.
Essas reformas foram sendo construídas paulatinamente, entre 1978 e 1989, em virtude da forte resistência do segmento marxista-lenisnista do PCC. O período de maior tensão foi entre 1989 e 1991. Fatores políticos internos, articulado a queda do Partido Comunista da União Soviética, fortaleceram essa corrente que tomou o poder em 1991.
Para evitar essa nova direção do partido e do Estado, Deng voltou de sua aposentadoria para travar, entre 1991 e 1992, uma ampla batalha para restabelecer suas diretrizes, bem como acelerá-las.
Depois de enfrentamentos e jogadas políticas, Deng, apoiado pelos líderes provinciais do partido e pelo Exército de Libertação do Povo (ELP), conseguiu costurar em 1992 um amplo acordo – denominado o “Grande Compromisso” – entre os segmentos do PCC (anciões, marxistas-leninistas, pró-abertura, líderes locais, tecnocratas e o ELP) para garantir e acelerar o processo de reformas e abertura. O fio condutor do acordo foi a ideia de transformar a China numa nação rica e poderosa até a metade do século XXI.
A estratégia de desenvolvimento nacional gerou dois eixos articulados propulsores do crescimento da China.
De um lado, a dinâmica exportadora promovida pela configuração das ZEEs e pela política cambial (manutenção do iuan desvalorizada em relação ao dólar) e, do outro, a dinâmica interna puxada pela expansão dos investimentos, sobretudo os públicos em infraestrutura.
A expansão pela via do investimento foi possível em decorrência da reforma do sistema financeiro chinês, realizada em 1985, que tanto ampliou o funding (recursos financeiros) como criou instrumentos para direcioná-los para o investimento. Expandiu-se a participação do setor privado, mas o controle do sistema bancário foi mantido na administração pública, possibilitando o direcionamento da poupança das famílias e das empresas para as corporações públicas e privadas que desejam investir.
Além dessas reformas, o crescimento chinês também vem sendo impulsionado por uma condução gradualista da política macroeconômica (monetária e fiscal) que combina a busca pelo controle inflacionário e pela manutenção do ritmo de crescimento estável e relativamente rápido, que garante a legitimidade interna do PCC.
Articulada aos elementos macroeconômicos, a política industrial foi e é também um instrumento importante para a dinâmica chinesa. Dentre as medidas nessa área, podemos destacar: i) o crédito subsidiado para as empresas estatais por meio dos bancos públicos; ii) os incentivos voltados aos investimentos estrangeiros de alta tecnologia;iii) as barreiras não tarifárias e tarifárias, sendo que estas últimas caíram após a entrada da China na OMC em 2001;iv) as políticas que estimulam a transferência de tecnologia por meio de mecanismo que requer a produção de conteúdo por empresas locais; e v)os múltiplos instrumentos que tem como objetivo criar empresas nacionais – privadas ou públicas – de classe mundial que possam concorrer com as empresas multinacionais.
Em suma, essas medidas em conjunto (reformas e políticas) – que conformaram uma estratégia nacional de desenvolvimento – foram os determinantes internos do crescimento da China.
Crescimento que já dura mais de trinta anos e vem provocando transformações estruturais na própria China e na economia mundial. Quais foram os impactos desse crescimento para a população chinesa? Como a ascensão da China vem transformando a economia mundial, a América Latina e o Brasil? Quais são as lições da China que podemos aproveitar para o desenvolvimento brasileiro? Essas são questões que tentaremos responder nos próximos artigos.
Notas
(1) PEYREFITTE, A. O império imóvel. Casa Jorge Editorial: Rio de Janeiro, 1997.
(2) Em 2011, a China tornou-se o país com a maior participação do valor adicionado da indústria de transformação mundial (20,7%) ultrapassando os Estados Unidos.
(3) Dentre os principais determinantes externos, podemos destacar: i) a aproximação entre os Estados Unidos e a China no final dos anos 1970; ii) a ofensiva comercial americana contra o Japão por meio do Acordo de Plaza em 1985; iii) o acesso da China na OMC em 2001; e iv) configuração do eixo sino-americano na década de 2000.
(4) As principais características das reformas foram: i) transformação da utilização da terra por meio do sistema de responsabilização por contrato familiar que possibilitou a comercialização do excedente agrícola; ii) transição gradual de um sistema de preços controlado centralmente (determinado pelo planejamento centralizado) para um sistema misto de preços regulados, controlados e de mercado; iii) reformulação do setor público por meio de reformas, privatizações de boa parte das empresas públicas e o fortalecimento de algumas empresas estatais que atuavam em setores estratégicos; iv) abertura ao mundo exterior por meio da criação das zonas economias especiais; e v) promoção de empresas coletivas (empresas de vilas, etc.)
Eduardo Costa Pinto é professor de economia política do Instituto de Economia da UFRJ. E-mail: eduardo.pinto@ie.ufrj.br