O impacto da crise econômica na juventude, segundo Marcelo Neri.

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A crise tem atingido os brasileiros de formas distintas, mas os jovens com idade entre 15 e 29 anos registraram as maiores perdas, diz em entrevista exclusiva Marcelo Neri, da FGV Social

Por Davi Franzon – Revista Ensino Superior – Abril/2020.

O agravamento da crise tem atingido os brasileiros de formas distintas, mas os jovens com idade entre 15 e 29 anos registraram as maiores perdas durante o período mais profundo da recessão. Esse quadro é apresentado com nitidez pela pesquisa “Juventude e trabalho”, realizada pela FGV Social. Na tentativa de compreender a situação enfrentada por aqueles que buscam a primeira oportunidade no mercado de trabalho ou uma recolocação profissional, a Ensino Superior conversou com o economista Marcelo Neri, responsável pelo levantamento. Confira os principais trechos da conversa.

A pesquisa aponta que o agravamento da crise da renda ocorreu nos últimos cinco anos. Qual foi o impacto sobre os ganhos dos jovens brasileiros?

Tivemos um aumento expressivo da desigualdade no Brasil. Uma elevação por 18 trimestres consecutivos. Dentro desse quadro, o jovem brasileiro foi o que perdeu mais, a elevação da desigualdade foi maior. Comparativamente, a crise impactou mais a renda dele (jovem) do que a de grupos tradicionalmente excluídos da população brasileira, como negros, analfabetos e moradores das regiões Norte e Nordeste. Para esta camada da sociedade, a redução foi duas vezes maior que a registrada nas demais. No caso do jovem, ela foi de cinco a sete vezes.

Quando ocorreu esse impacto sobre a renda dos jovens e como isso aconteceu?

A piora da renda dos mais jovens tem seu início no 4o trimestre de 2014, logo na sequência do 2o turno da eleição presidencial, e chega ao 2o trimestre de 2019. Na média, essa perda foi de 14,6%. O ganho médio passou de R$ 664 para R$ 567. Quando falamos nas causas, temos um somatório de situações. O desemprego aumentou muito na base da distribuição, em especial entre os jovens mais pobres, e há também um achatamento dos salários por causa da
precarização. Esse quadro é agravado quando analisamos a situação do jovem de baixa renda.

Falando em emprego, a sondagem mostra uma queda maior dos ganhos entre os jovens com idade entre 15 e 19 anos. A crise impacta diretamente aqueles que estão entrando no mercado de trabalho?

Eu acredito que sim. Nessa faixa, a redução foi de 26,54%, mas é preciso olhar para os componentes desse quadro. O desemprego já era elevado e aumentou muito. O que podemos identificar, como disse acima, é um avanço da precarização, da informalidade. O jovem entra no mercado de trabalho sem a garantia do conjunto de proteção social.

Esse quadro atinge diretamente a renda. Essa faixa da população também enfrenta uma mudança drástica no cenário do emprego. Saímos de um quadro de quase pleno emprego para um universo expressivo de desempregados. O volume de vagas caiu em seis meses o que ofereceu em seis anos.

Esse quadro deixa o mercado mais exigente? A pesquisa mostra uma perda de renda na faixa de 20 a 24 anos. Essa parcela da população, que na maioria dos casos já possui uma experiência, também tem enfrentado dificuldades?

Aqui, temos situações distintas. No caso do jovem que busca o primeiro emprego, ele acaba naquele processo: não tem experiência e não consegue ser contratado e vice-versa. Quando você entra nessa outra faixa etária, as histórias de vida são muito diferentes. Podemos encontrar o jovem que não conseguiu entrar antes dos 20 anos no mercado de trabalho ou aquele que só teve acesso em um mercado precarizado. São trajetórias distintas.

Nesse sentido, a partir dos números da sondagem, temos um quadro de desigualdade entre os jovens brasileiros?

Sim. Essa crise evidencia claramente essa situação. Veja, a população jovem é grande no Brasil e continuará nos próximos anos. Com esse cenário de crise, ocorre uma clara desigualdade dentro desse conjunto da população. Como eu mostrei acima, a perda média de renda do jovem foi de 14%. Quando entramos nas camadas da pesquisa, essa queda é de 24% na parcela mais pobre. No caso dos analfabetos, esse percentual sobe para 51%. Mesmo em um grupo que, na média, não perdeu, como é o caso das mulheres, as mais jovens apresentaram uma retração na renda.

Foi possível identificar os fatores que mais contribuem com a desigualdade entre os jovens brasileiros?

De maneira geral, as causas dessa desigualdade não diferenciam muito daquelas que atingem o conjunto da sociedade brasileira. Temos o aumento do desemprego, a redução da jornada de trabalho e a queda do salário por hora/ano de estudo. Essa é uma característica importante dessa crise, ela devolveu uma importância para a manutenção ou aumento de renda para os mais escolarizados.

Essa característica (a importância do estudo) é diferente do quadro diagnosticado antes do agravamento da crise econômica?

Completamente. A situação até o quarto trimestre de 2014, início de 2015, era totalmente distinta. Tivemos, nesse período, um boom social. A renda da camada menos escolarizada da população apresentou um aumento superior ao da mais escolarizada. Houve um ganho para quem possuía apenas o ensino médio e uma queda entre os que possuíam nível superior. A partir da crise, houve uma inversão.

Seguindo essa análise, essa crise da renda deu mais peso para o ingresso e, principalmente, conclusão de um curso de ensino superior?

Sim. O jovem com maior tempo de estudo ganha mais e tem outras vantagens. Claro, você sempre vai ouvir a história do engenheiro que está dirigindo para empresas de aplicativos e outros profissionais que não exercem a profissão escolhida. Mas, na média, o número de engenheiros fora do mercado de trabalho é menor quando comparado com aqueles que têm apenas o ensino médio.

É possível quantificar essas diferenças entre os mais e menos escolarizados na sociedade brasileira?

É sim. Um profissional com ensino médio completo ganha, em média, R$ 2,2 mil por mês. Quando você pega aquele que tem superior completo, esse valor salta pra R$ 4,7 mil. Vamos falar de empregabilidade. O percentual para o ensino médio é de 84%, para o superior, 90%. A formalidade também é maior: 79,6% (superior) e 70% (médio). O ensino superior só é menor quando o tema é jornada de trabalho, 42,2 horas (médio) ante 41,4 horas (superior). Ou seja, ele possui mais tempo para realizar outras atividades.

A pesquisa aponta uma evolução do chamado “nem-nem” (não estuda e não trabalha). Foi possível identificar os fatores dessa evolução?

Nesse tema, os fatores passam pela recessão, precarização e também uma questão de gênero. Juntos, eles permitem um entendimento desse quadro dos “nem-nem”. No recorte da pesquisa, ele passou de 21,19%, no 4o trimestre de 2014, para 24,53%, no 2o trimestre de 2019. Em contrapartida, houve uma redução, ainda que pequena, entre os jovens que
estudam e trabalham de 12,33% para 11,60%.

As mulheres ainda são as que mais se enquadram nessa situação?

Quando você olha para o quadro fixo, elas são, sim, maioria entre os nem-nem. No segundo trimestre de 2019, o percentual chegou a 30,59%. No caso dos homens, ele é de 18,56%. No entanto, as mulheres, quando comparamos com 2014, apresentaram um avanço mais lento do que o dos homens. Ou seja, como elas estão mais escolarizadas, houve um avanço nos anos de estudo e de acesso ao mercado de trabalho.

Há uma expectativa de melhora nessa crise da renda dos jovens?

Temos alguns sinais a partir de 2017. Não uma retomada do crescimento da renda, mas uma desaceleração das perdas. A decisão do governo de oferecer redução de encargos trabalhistas para a oferta do primeiro emprego para jovens com idade entre 18 e 29 anos pode ajudar nesse quadro. Também temos uma melhora, ainda que tímida, na frequência escolar. Mas ainda há muito a ser feito.

No caso do governo, a pesquisa revela uma insatisfação grande por parte dos jovens. Quais as causas desse quadro?

Os dados são muito claros. Enquanto em outros países a parcela de jovens que confia no governo é de 57,4%, no Brasil ela é de 12%. O jovem brasileiro ocupa a terceira posição entre aqueles que menos confiam nas instituições.

Esse quadro pode ser explicado pela falta de proteção social oferecida para eles. Essa parcela da população não tem uma política voltada para ela. Eles estão em um quadro de precarização do trabalho, de empregos sem carteira assinada, ou seja, sem proteção alguma. Veja o caso da reforma da previdência. Agora, teremos um grupo com direito à aposentadoria e um que terá muita dificuldade para consegui-la. Os mais velhos conseguiram defender sua cota de proteção social, os mais jovens terão que pensar em capitalização, previdência privada. Isso ajuda a entender esse descrédito para com o governo. Temos de lembrar, também, que os estados estão quebrados. E isso impacta diretamente a vida dessa população, seja em relação à oferta de transporte público, de empregos e no combate à violência. Fatores com impacto direto no dia a dia.

Olhando para o ensino superior ofertado no Brasil. Ele dá conta das necessidades dos jovens?

As universidades, hoje, acabam suprindo deficiências da origem dos estudantes. Elas têm de oferecer cursos de português, matemática e outros para permitir que o aluno siga no curso. Esse quadro, obviamente, impacta a formação do futuro profissional. No geral, temos uma boa oferta de cursos superiores. Agora, se dá muita ênfase em cursos profissionalizantes, cursos técnicos. Há um debate sobre um suposto bacharelismo no Brasil, se a busca por um diploma é ou não a solução para poucos. Mas é preciso lembrar que, ao se olhar para o conjunto da sociedade brasileira, o grupo com curso superior completo ainda é relativamente baixo.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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