Francisco Pereira de Farias – A Terra é Redonda – 28/02/2025
Os mandatários do capital financeiro-bancário buscaram deslocar o centro da hegemonia no aparelho de Estado, transferindo-o do Executivo para o Legislativo
O clientelismo político advém uma forma de se reforçar as solidariedades políticas no interior da classe dominante, já que os benefícios distribuídos (cargos, verbas, equipamentos) são signos de compensações econômicas, feitas pela fração hegemônica, aos interesses das frações subordinados, em troca da estabilidade política. Em outras palavras, a barganha de vantagens materiais imediatas por apoios políticos é o aspecto manifesto das relações intergovernamentais, partidárias e eleitorais; porém, mais profundamente, são os interesses da fração hegemônica que, em boa medida, constituem o conteúdo latente da relação dos aparelhos de Estado, da competição dos partidos e das disputas eleitorais.
O capital financeiro internacional e o capital bancário nacional conquistaram o executivo federal nas eleições presidenciais de 2018. A expressão dessa aliança hegemônica foi a política econômica liderada pelo ministro da fazenda Paulo Guedes, cujos eixos representavam uma radicalização do programa neoliberal: desregulação da economia, privatizações, monetarismo. A adoção de uma composição parlamentar e ministerial por meio dos partidos de clientela era uma maneira coerente com essa política hegemônica, centrada na estratégia de redução de custos, pois contornava os acordos mais amplos com as forças sociais subordinadas que significassem sacrifícios econômicos do anel de interesses hegemônicos, como eram os casos da política ambiental restritiva ou da política salarial expansiva.
A tendência dessas forças alinhadas ao neoliberalismo extremado foi de minimizar o papel dos partidos políticos e dos grupos sociais na canalização de demandas gerais junto ao aparelho de Estado, opondo-se a uma política de pacto social ou aliança de classes. Os mandatários do capital financeiro-bancário buscaram deslocar o centro da hegemonia no aparelho de Estado, transferindo-o do Executivo para o Legislativo.
Como o líder do executivo, no Brasil, é eleito pelo voto majoritário, ele tem o incentivo para a discussão dos temas estratégicos ou nacionais da política governamental; diferentemente, a eleição proporcional dos parlamentares os induz a uma perspectiva imediatista ou fragmentária das questões da política nacional, em vista do retorno eleitoral. O deslocamento para a dominância do Legislativo se traduzia na tática de controlar o processo orçamentário do governo, por meio principalmente das mudanças nos dispositivos de emendas parlamentares.
Em 2016, em um contexto de crise da hegemonia neodesenvolvimentista (Boito Jr, 2018), a oposição parlamentar conseguiu aprovar a mudança constitucional que tornava impositiva a emenda orçamentaria individual. Este foi o primeiro passo num percurso que visava retirar do Executivo o controle político do processo orçamentário.
Vale observar que desde o ano de 2000 havia o projeto do Senador Antônio Carlos Magalhães de tornar obrigatória a emenda parlamentar individual. No entanto, tal proposta não entrara em pauta, porque a coalizão neodesenvolvimentista, fiadora de uma política de acordos mais amplos, estava comprometida com os dispositivos das emendas coletivas (bancada, comissões). Durante o Governo Lula II (2007-2010) o peso das emendas coletivas nas despesas discricionárias foi em média de 60,3%; já no Governo Bolsonaro (2019-2022), a média dessas emendas ficou em 28, 4% (Faria, 2023).
Em 2019, as Emendas Constitucionais 100 e 102 aprovaram, respectivamente, as impositividade das emendas orçamentárias das bancadas estaduais e a obrigatoriedade de execução das despesas primárias discricionárias, que são principalmente os investimentos. Além disso, o Congresso Nacional tornou impositivas as emendas das comissões permanentes do Senado e da Câmara e estendeu o papel do relator-geral no processo orçamentário. Por fim, ainda em 2019, foi aprovada a EC 105 instituindo as transferências especiais ou transferências com finalidade definida, que independiam de convênio ou contrato com o ente beneficiado, permitindo ao parlamentar doar ao município que desejasse, sem destinação específica e sem fiscalização do Tribunal de Contas da União, até a metade do valor de suas emendas orçamentárias. Isso explica que as despesas de emendas individuais no orçamento federal tenham ultrapassado as emendas coletivas ao longo do Governo Bolsonaro, invertendo a tendência do ciclo de governos Lula e Dilma.
Porém, o dispositivo por meio do qual o poder legislativo mais avançou no controle político do processo orçamentário foram as atribuições do relator-geral à peça orçamentária de governo. Em 2020, foi estabelecido o identificador de Resultado Primário para discriminar as emendas do relator-geral (RP-9). Feita a triangulação deste dispositivo com as normas constitucionais e as regras regimentais, na prática a emenda de relator-geral se torna quase impositiva, com a regulação da possibilidade de indicação dos beneficiários e da ordem de prioridades de tais emendas. Disso resulta o crescimento exponencial do montante de recursos das emendas do relator-geral: se durante os Governos Lula I e II foram aplicados, respectivamente, um total de R$ 25 bilhões e R$ 30 bilhões; no Governo Bolsonaro, esse total chegou a R$ 93,2 bilhões.
Compreende-se que, num contexto de limitação democrática, no qual as forças hegemônicas tendem a ressaltar os partidos clientelísticos e os interesses locais ou paroquiais, tenha-se o aumento do montante orçamentário para as emendas individuais, em detrimento das emendas coletivas. E mais importante nesta tática individualista é a concentração dos recursos nas emendas do relator-geral, o qual normalmente está subordinado à presidência da Câmara Federal.
Porém, não estava excluído o conflito no interior da coalizão governante, que no Governo Bolsonaro controlava tanto o Executivo e quanto o Legislativo, promovendo os interesses do grande capital financeiro-bancário com relativo equilíbrio dos poderes ou baixo nível de conflitos, embora a tendência fosse de dominância do Legislativo. Diante do avanço do Congresso Nacional, ou seja, os representantes diretos (financiados pelas campanhas eleitorais) da aliança hegemônica no processo orçamentário, era previsível que houvesse a reação do Executivo, os seus representantes indiretos (relacionados ao funcionário de carreira). Uma manifestação disso foi o julgamento pelo STF de inconstitucionalidade da emenda de relator-geral em dezembro de 2022. Mas não houve um retorno ao status quo anterior em termos de prerrogativas orçamentárias do Executivo, permanecendo o cenário de limitação de suas atribuições orçamentárias; o que se fez foi impedir a continuidade da nova “ferramenta de composição” da coalizão governativa (RP-9), desenvolvida e instrumentalizada a partir do Legislativo (Faria, 2023).
Em contexto de relativa consolidação da democracia, na década de 1990, em que as forças hegemônicas, defensoras de um neoliberalismo moderado, não se mostravam opostas ao regime democrático, dando importância aos partidos políticos e os grupos sociais, tinha-se o baixo índice de emendas individualizadas e uma baixa correlação entre a execução das emendas individuais e os votos dos parlamentares aos projetos de governo (Figueiredo; Limongi, 2005). O desenvolvimento de um sistema partidário forte pode atenuar os ciclos eleitorais orçamentais, particularmente num sistema eleitoral majoritário, ao reorientar a competição legislativa para os temas mais estratégicos de desenvolvimento do país.
Pode-se, porém, levantar a hipótese de que, neste contexto de política neoliberal e estabilidade democrática, a força da barganha clientelista tenha se deslocado das emendas individuais para as emendas coletivas, expressando uma sofisticação das práticas clientelistas. Como observa um analista, a grande vantagem das emendas coletivas, que foram concebidas para atender os interesses maiores de Estados, regiões ou comissões setoriais, seria supostamente estarem livres de motivações escusas [sic.!], já que teriam que ser objeto de negociação formal entre grupos de parlamentares (com exigências de quórum mínimo). Infelizmente, com o passar do tempo, as emendas coletivas passaram a ser acometidas dos mesmos males das emendas individuais (Tollini, 2008, p. 218).
Torna-se previsível que a coalizão governante se utilizasse do avanço das emendas parlamentares no orçamento federal como um meio de fortalecer sua coesão política, a despeito de uma retórica oposta a isso. O Presidente Jair Bolsonaro negava que o aumento de liberação de emendas parlamentares fosse uma prática da “velha política”: “tudo o que é liberado está no orçamento. (…) Nada foi inventado, não tem mala, não tem conversa escondidinha em lugar nenhum, é tudo à luz da legislação” (Valor econômico,12\07\2019).
Tem-se ainda um discurso de criminalização do clientelismo político, tentando se afastar de uma prática que é inerente às democracias capitalistas. Mas efetivamente o que se está tentando ocultar é a conduta de regressão às formas individualistas dessa barganha política, expressas nas emendas parlamentares individuais e as transferências especiais que independem de destinação específica e nas emendas da relatoria-geral. Um efeito disso é uma mudança no papel do legislativo na definição de políticas públicas, voltando-se para as prioridades e as metas de curto prazo e medidas fragmentárias, cujos rendimentos eleitorais podem ser maiores.
Uma manifestação concreta dessa tendência política foi alardeada em reportagem do Jornal O Estado de S. Paulo, em maio de 2021, referindo ao caso das emendas de relator-geral, apelidadas de “orçamento secreto”:
Secretamente, esses recursos extras foram concentrados num grupo de parlamentares. É um dinheiro paralelo ao previsto nas tradicionais emendas individuais a que todos os congressistas têm direito, aliados ou oposicionistas. […] Na Região Norte, a cidade de Santana foi a mais beneficiada por recursos do orçamento secreto. Por indicação do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), o município firmou contrato de repasse de R$ 95,7 milhões para a pavimentação de ruas, que teriam como destino Macapá se o irmão dele, Josiel Alcolumbre (DEM), tivesse vencido a eleição para prefeito da capital amapaense. Segundo fontes, para não turbinar o mandato do adversário da família, Alcolumbre redirecionou o investimento.
A despeito de seu discurso sobre a “nova política”, o que na prática poderia significar uma oposição à política clientelista, o Governo Bolsonaro respondeu de modo específico o traço marcante da governabilidade, que são as coalizões parlamentares e ministeriais. Tendo feito a presidência da Câmara dos Deputados, a bancada governista recebeu dez vice-lideranças na Casa, contemplando dez Partidos diferentes e concedeu a um partido de clientela, o Partido Progressista, a liderança do governo na Câmara e, em seguida, a este mesmo partido, o Ministério da Casa Civil, principal ministério de articulação e negociação do Executivo com os outros ramos do aparelho de Estado. Por outro lado, foi reinstituído o Ministério das Comunicações a ser entregue a outro partido de clientela, o Partido Social Democrático; e vários outros pequenos partidos que compõem o chamado Centrão, agregando bancadas partidárias tidas por pragmáticas, ganharam cargos no segundo e terceiro escalões dos Ministérios ou das Autarquias do Executivo Federal (Amaral, 2021).
A coalizão bolsonarista praticava um clientelismo como tentativa de voltar ao sistema das “lealdades pessoais”, típico das antigas oligarquias agrárias (Leal, 1975). Só que em lugar dessas oligarquias tradicionais, desaparecidas com a penetração do capitalismo no campo, ascendem os quadros políticos de origem numa espécie de lumpen burguesia (comerciantes de terras, milícias, empresas religiosas etc.), que se multiplicaram nas legendas partidárias clientelistas.
*Francisco Pereira de Farias é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí. Autor, entre outros livros, de Reflexões sobre a teoria política do jovem Poulantzas (1968-1974) (Lutas anticapital).
Referências
AMARAL, O. E. Partidos políticos e o Governo Bolsonaro. In: AVRITZER, L.; KERCHE, F.; MARONA, M. (orgs.). Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
BOITO JR, A. Reforma e crise política no Brasil: os conflitos de classe nos governos do PT. Campinas: Unicamp; São Paulo: Unesp, 2018.
FARIA, R. O. Emendas parlamentares e processo orçamentário no presidencialismo de coalizão. 2023. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito Econômico, Financeiro e Tributário da Universidade de São Paulo.
TOLLINI, H. M. Aprimorando as relações do Poder Executivo com o Congresso Nacional nos processos de elaboração e execução orçamentária. Cadernos ASLEGIS, n. 34, 2008, p. 213-236.