Quando discutimos quem matou mais crianças e civis é que já estamos no inferno
Marcos Augusto Gonçalves, Editor da Ilustríssima e autor de ‘1922 – A Semana que Não Terminou’ (Companhia das Letras, 2012).
Folha de São Paulo, 27/10/2023
Um ato de barbárie não transforma uma revanche bárbara em resposta moralmente defensável. O terrorismo não se define pela precedência da iniciativa, como se um primeiro gesto de horror merecesse condenação e absolvesse os que porventura viessem a ocorrer em sentido contrário.
Sendo assim, não são sustentáveis os argumentos que procuram justificar o inominável ataque do Hamas sob a alegação de que Israel promove hostilidades que poderiam ser caracterizadas como terrorismo de Estado.
Do mesmo modo, são uma afronta à ética humanitária os bombardeios indiscriminados contra civis em Gaza e a supressão de alimentos, energia e água da população confinada. A ideia de que os palestinos devem ser tratados como animais é fundamentalmente terrorista.
Quando nos entregamos a uma contabilidade para apurar quem mata mais crianças e civis, quem começou e quem tem mais motivos para continuar a fazê-lo, é que já descemos ao inferno. Israel não é um Hamas às avessas, mas é preciso que o país e seus apoiadores demonstrem que ainda não desistiram dessa diferença.
Considerações éticas e princípios humanitários, no final das contas, são incompatíveis com a lógica das guerras, ainda que se estabeleçam normas e acordos internacionais para tentar torná-las menos inaceitáveis. A guerra já é uma derrota por si. A tendência em confrontos bélicos é que prevaleça a espiral de ódio, ressentimentos e vinganças —como mais uma vez se observa no atual conflito.
Mesmo numa guerra justa e convencional, como a que se moveu contra o nazismo, a barbárie marcou presença dos dois lados.
A explosão de duas bombas atômicas sobre duas cidades japonesas pelos Estados Unidos, em 1945, sem nenhuma distinção entre crianças, civis e alvos militares, talvez tenha sido o mais bárbaro dos crimes de guerra que se tem notícia. Foi praticado e continua a ser justificado por alguns, mal e porcamente, em nome da paz e da democracia ocidental. Haveria outras maneiras de demonstrar o poderio da rosa estúpida e inválida que não explodi-la sobre Hiroshima e Nagasaki.
É sintomático que o governo norte-americano tenha vetado o texto que o Brasil apresentou ao Conselho de Segurança da ONU com aprovação expressiva, inclusive de membros permanentes. O cinismo americano, com suas políticas de conveniência embrulhadas em retórica de defesa do “mundo livre”, é conhecido e encampado de bom grado por americanófilos em diversos fóruns.
Os EUA financiam a ditadura egípcia, curvam-se ao déspota saudita e mantêm uma prisão fora do alcance de todas as leis, num pedaço do território de Cuba, país que acusam de ser do “eixo do mal” e sufocam com um embargo em tudo nocivo.
O argumento de que a proposta de resolução apresentada pelo Brasil não contemplava o direito de defesa do Estado de Israel seria risível se não fosse trágico. Pedir um cessar-fogo para estabelecer corredores humanitários não é negar direito de defesa. E direito de defesa não é direito ao vale-tudo, não é direito ao olho por olho, dente por dente. Espanta que até mesmo alguns brasileiros alfabetizados tenham apoiado o veto.
Os terroristas do Hamas não reconhecem o direito de Israel existir. Israel dá sinais há anos de que já desistiu do direito dos palestinos a constituir um Estado. Nessas bases nada se resolverá. Por culpa de muitos, a proposta internacional de criar um país para os judeus como solução pacífica para uma tragédia secular e reparação ao Holocausto parece se aproximar perigosamente de uma decepção histórica. É triste, mas é o que os fatos estão aí a nos dizer.