Será preciso reinventar a forma de fazer política para enfrentar ameaças à democracia
Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023)
Folha de São Paulo, 07/09/2024
Estamos completando 200 anos de uma trajetória constitucional intensa e acidentada. Intensa pois o corpo das sucessivas Constituições e Cartas Constitucionais têm sido o campo onde se travaram as principais disputas em torno do destino da nação. Da unidade nacional à Abolição, passando pelo federalismo, a construção da ordem conservadora, o desenvolvimentismo, assim como a promoção da democracia e dos direitos, tudo passou pela arena constitucional.
Essa constante disputa gerou, no entanto, uma história constitucional acidentada, que nos levou a adotar diversas linhagens de constituição. Quatro Cartas centralizadoras e conservadoras, impostas por governantes autoritários; e quatro Constituições liberais ou progressistas, resultantes de processos mais ou menos inclusivos.
Além das cicatrizes deixadas pelas rupturas, há, de um lado, sequelas crônicas das promessas constitucionais não cumpridas, como a violência, as profundas desigualdades e as dificuldades econômicas. De outro lado, um forte ressentimento com tudo aquilo que ameace privilégios e a hierarquia social.
Nosso constitucionalismo sempre esteve submetido a uma forte tensão entre aqueles que apostam no aprofundamento da democracia, do federalismo, do Estado de Direito e da ampliação de direitos e os que acreditam que apenas o fortalecimento do poder central e da ordem conservadora serão capazes de promover o desenvolvimento. Em comum, ambos os polos parecem tolerantes com um ineficiente capitalismo de compadrio.
A Constituição de 1988 foi, em grande medida, uma resposta a essa tensão. Ponto culminante do processo de transição, resultou de um compromisso entre as principais correntes que povoaram nosso terreiro político. Adotou um sistema político consensual, como resposta à tradição populista e autoritária do presidencialismo. Fortaleceu o Parlamento, o Judiciário e a federação. Ampliou direitos, especialmente dos grupos vulneráveis e tradicionalmente discriminados. Olhou para a frente, determinando investimentos obrigatórios em educação e saúde e protegendo o meio ambiente. Fez tudo isso sem, no entanto, remover privilégios, mecanismos regressivos e um capitalismo impotente.
Nos últimos anos, esse projeto de Constituição, de linhagem pluralista e social-democrática, vem sendo desafiado não apenas pelas tradicionais forças da ordem conservadora e hierárquica como por uma concepção libertária e pré-política. Um individualismo radical, focado no sucesso individual, que não aceita regras e despreza valores democráticos.
Figuras como as do multibilionário Musk e do multimilionário Marçal, que capturaram o noticiário político brasileiro nesta semana, ameaçando e debochando das instituições, simbolizam os novos desafios que as democracias constitucionais, não apenas a brasileira, terão que enfrentar na próxima quadra.
A defesa da democracia constitucional não pode ser deixada apenas sob a responsabilidade de suas instituições. A Justiça não substitui a política. Sem que o campo democrático seja capaz de reinventar a forma de fazer política e cumprir suas promessas, dificilmente legará às futuras gerações o seu patrimônio constitucional, ainda que imperfeito, que recebeu.