Ryusuke Hamaguchi maneja com maestria, em ‘O Mal Não Existe’, a arte de contradizer valor nominal dos discursos
Bernardo Carvalho, Romancista, autor de ‘Nove Noites’ e ‘Os Substitutos’
Folha de São Paulo, 11/08/2024
Por ocasião da eleição presidencial de 2018, o escritor peruano Mario Vargas Lhosa, político de direita e prêmio Nobel de Literatura, sentenciou, em defesa de Jair Bolsonaro, que não poderia ser fascista um governo eleito por uma maioria de 57 milhões de votos.
A lógica peculiar e pueril foi reciclada recentemente por comentaristas que insistem em comprar a nova face da extrema direita mundo afora pelo valor nominal de seu programa de normalização, como se assumir e enfrentar as contradições da democracia (que, sim, o fascismo pode ser gestado dentro dela, contra ela, servindo-se de suas instituições) não fosse a única forma de defendê-la e preservá-la.
“O Mal Não Existe”, de Ryusuke Hamaguchi, não é uma resposta irônica à leviandade dessa lógica. Não diretamente. O filme também não é uma ilustração da “banalidade do mal” formulada por Hannah Arendt, embora possa ser visto como um desdobramento dela.
A história é simples, mas difícil de contar sem spoilers. Uma pequena comunidade nas montanhas, que vive em equilíbrio delicado com a natureza e da qual fazem parte o protagonista Takumi e sua filha, recebe a visita de uma dupla de produtores do showbiz, associados a um projeto que, com financiamento estatal, pretende instalar um “glamping” (camping com glamour) na região. Uma reunião é convocada com os habitantes, na qual ficam claros os efeitos deletérios e a insustentabilidade ambiental do empreendimento.
De volta a Tóquio, a dupla de produtores confronta o chefe com os problemas e os obstáculos levantados pelos membros da comunidade durante a reunião e é reenviada às montanhas para tentar uma conciliação. Não dá para adiar o projeto sem perder o prazo do financiamento para a revitalização da economia pós-pandêmica na região. Vão procurar convencer Takumi, o faz-tudo local, a participar do empreendimento. É o jeito de quebrar a resistência da comunidade.
No caminho, porém, o produtor dá a entender à colega que já não está tão convicto de seu trabalho e de sua missão. Gostaria de mudar de vida. Ao chegar à comunidade, passa a fazer esforços canhestros para se integrar às tarefas locais. Decide ficar.
Desde o início, diversos elementos vão dando conta da tensão e da precariedade do equilíbrio entre homens e natureza. Ouvem-se tiros de caçadores ao longe. Há carcaças de animais pelas trilhas nevadas. Os cervos alvejados, mas que conseguem escapar feridos, tornam-se violentos, invertendo a balança da ameaça. Tudo parece estar por um triz, de modo que a misantropia do protagonista e a antipatia da comunidade pelo empreendimento se explicam por um sentido urgente de sobrevivência. Qualquer novo elemento pode ser fatal.
A conclusão, entretanto, terá menos a ver com um elogio do conservadorismo e da imobilidade do que com a necessidade de resistência ao mecanismo de autoengano e normalização (essa combinação de narcisismo e ignorância com má-fé e oportunismo) que nunca nos permite reconhecer o mal em nossas próprias ações.
Há uma cadeia complexa de fenômenos, atos e decisões que não podem ser isolados. Querer fazer o bem sem considerar essa cadeia coletiva, sem se ver dentro dela, fazendo parte dela, produz o efeito inverso. É o que mostra a perspectiva trágica, capaz de desconstruir as ideias feitas por trás das premissas que levam ao oposto do que prometiam.
A divisa “ordem e progresso”, por exemplo, mesmo sendo falsa e equivocada, é palatável porque traduz uma ideia que não contradiz nossa autoimagem. Já “ordem e destruição”, mais verdadeira em vista das informações de que hoje dispomos sobre a ação do progresso humano, é insuportável, inconcebível. Ninguém quer se identificar com “ordem e destruição”. Melhor acreditar na normalização da extrema direita, já que teremos de conviver com ela.
É aí que entra o potencial de resistência da arte, ainda mais num momento de crise da consciência e da espécie: na contradição do valor nominal dos discursos, na capacidade de romper a membrana de normalização da autoimagem e fazer ver a complexidade contraditória dos fenômenos e das ações humanas.
Ryusuke Hamaguchi maneja com maestria essa arte crítica, da contracorrente e do dissenso, levando o espectador pela mão até onde ele não gostaria de ir, até a imagem enigmática com a qual ele não gostaria de se identificar. É o contrário da lógica de identificações e soluções fáceis que a cartilha “feel-good” do mercado cultural tem a nos oferecer como espelho, suposto remédio empoderador contra a crise.