“Moralmente, não estávamos preparados para esta pandemia”, afirma Michael Sandel.

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IHU, 16/12/2020

Michael Sandel tem muito a dizer e sabe como dizer. Professor de filosofia política na Universidade Harvard, sua condição de intelectual não o impede de ser um rockestar do pensamento contemporâneo: suas aulas são televisionadas, enche estádios, as pessoas fazem filas para o escutar.

A reportagem é de Elba Astorga, publicada por Telos, 14-12-2020. A tradução é do Cepat.

Sua mensagem não é complacente, há tempo está preocupado com as armadilhas da meritocracia: a globalização, o pensamento neoliberal, a tecnocracia. Seu ideário filosófico se baseia na consecução do bem comum: esse ponto onde confluem pessoas de todas as classes, todas as raças, todos os níveis de formação e o resultado (ideal) é a melhora de todos. Não se trata de uma busca romântica de igualdade, mas do interesse genuíno em que o conjunto da sociedade seja capaz de apreciar a diferença entre valor social e valor econômico.

Sandel participou da II edição do Fórum Telos, organizado pela Fundação Telefónica. Desta vez não encheu auditórios, mas pudemos vê-lo e escutá-lo através da tela, como se falasse só para nós. A mensagem é alta, clara, direta: é preciso valorizar as pessoas pela contribuição que fazem ao bem comum.

Solidariedade e pandemia

“Moralmente, não estávamos preparados para esta pandemia”, afirma Sandel. É que esses meses de emergência sanitária manifestaram a tremenda desigualdade econômica que ocorreu nas últimas décadas.

Esta lacuna, unida à produzida pela meritocracia, parece ter fechado os “vencedores” da corrida pelo mérito em uma bolha que invisibiliza aqueles que estão passando mal e torna a solidariedade um deus menor no panteão do capitalismo neoliberal. Daí a acusação de Sandel da perda dos princípios morais necessários para enfrentar esta pandemia.

Lamenta também que durante estes meses os famosos do mundo, de políticos a celebridades, lançaram uma mensagem perfeita como #hashtag em qualquer rede social: “Estamos juntos nisto”, uma frase que soa reconfortante para os ouvidos de qualquer um, mas que, quando se analisa um pouco, revela-se vazia de conteúdo, pois não descreve a sociedade atual, tão desigual e indiferente.

Ainda em março, nos primeiros meses deste choque global, a outra versão que circulava era: “estamos todos no mesmo barco”, que também soava legal até que alguém apontou, “no mesmo barco não, estamos todos no mesmo mar, mas uns vão de iate, outros em lancha, outros em barco”. E também existem aqueles que vão segurando em uma tábua, podemos acrescentar. É dessa desigualdade que Sandel fala.

Pode ser que o exemplo mais patente da desigualdade, nestes meses distópicos de 2020, tenha sido a divisão do trabalho. A grande distância entre aqueles que podem conservar seu emprego e trabalhar de casa, sem exposição, nem risco, e os que pela natureza de suas funções não tiveram outra opção a não ser ir para a rua e se expor ao vírus (e os que ficaram sem trabalho). Sendo assim, esse yin-yang perverso de vencedores-perdedores econômicos se tornou agora mais real e evidente.

A questão é que, segundo Sandel, neste tempo, vimos que sem profissionais da saúde, trabalhadores industriais, entregadores, repositores, assistentes, caminhoneiros e muitos outros saindo de suas casas para trabalhar, a vida em uma cidade, de um país, pode parar. O paradoxo é que, além de geralmente não ser bem remunerados, esses trabalhos são pouco reconhecidos. E agora ocorre que são essenciais.

Talento, ajuda e sorte

É aqui que nos deparamos com a última pedrinha que Sandel colocou em nossos sapatos: suas dúvidas acerca da idoneidade da meritocracia como método para estabelecer uma escala de valor social, sua certeza de que a meritocracia “é corrosiva para o bem comum”. De fato, é o tema central de seu último livro: A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum? (Civilização Brasileira, 2020).

A meritocracia parte da ideia de que, em igualdade de condições, os que triunfam são os melhores. Soa tão atrativa que, durante anos, partidos de diferentes tipos, em diferentes países, a tornaram parte de seu projeto.

Para Sandel, o problema está em que ninguém coloca em dúvida a promessa de que “se você se esforça, terá êxito”. E, assim, os que triunfam acreditam que é porque conseguiram sozinhos e merecem todas as recompensas recebidas, ao passo que os que ficam para trás se dizem: “Não fui capaz, sou um fracasso”. Estas crenças geram arrogância em alguns, desmoralização em outros, e contribuem para a indignação e a rejeição às elites meritocráticas.

Sandel aprofunda os fatores para o êxito que a meritocracia não vê: além do talento, também contam (e como!), a ajuda, a sorte. É realmente coisa de quem triunfa que possua os talentos que a sociedade valoriza e premia, ou é questão de boa sorte? E o que há de dívida com aqueles que o ajudam, com sua família, seus amigos, a comunidade e inclusive a época em que vive?

Sua impressão é que seria necessário refletir sobre o papel da sorte e a ajuda recebida no êxito pessoal para poder olhar para os menos afortunados e pensar: “Se não fosse por meu direito de nascimento, pela graça de Deus ou pela simples sorte, eu poderia estar aí”. Seria uma boa maneira para neutralizar a atitude tóxica em direção ao êxito da sociedade atual.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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