O pânico moral em torno da educação sexual e do aborto serve de cortina de fumaça para aprofundamento da desigualdade e da pobreza feminin
Marta Machado, Professora da Escola de Direito da FGV-SP e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento)
Folha de São Paulo – 16/12/2021
Excelente reportagem de Fernanda Mena e Mathilde Missioneiro desta semana expôs a situação dramática de meninas que se casam e engravidam precocemente. O Brasil é o quinto país do mundo no ranking de casamentos precoces e tem o segundo maior índice de gravidez na adolescência —acima da média da América Latina e do Caribe e atrás apenas da África Subsaariana.
Altas taxas de fecundidade entre meninas e adolescentes estão relacionadas a situações de vulnerabilidade, violência sexual, falta de informação, acesso restrito a educação sexual, métodos anticoncepcionais e serviços de saúde reprodutiva. Ocorrem principalmente entre meninas negras, indígenas, de baixa renda e residentes em áreas rurais.
Além de riscos para a saúde e graves efeitos psicológicos, a maternidade precoce agrava o ciclo de vulnerabilidades e determina diversos desfechos na trajetória de vida das adolescentes: abandono ou menor rendimento escolar, dificuldade de inserção no mercado de trabalho, maior risco de violência e aumento da pobreza.
Tal negação de direitos e perspectivas de vida para meninas e adolescentes está diretamente relacionada à falta de políticas públicas de educação e saúde, cenário agravado no governo Bolsonaro.
Sob o manto da defesa da família tradicional, o governo promove o fim de campanhas educativas, a exclusão da educação sexual dos currículos escolares, a interrupção da distribuição de anticoncepcionais e a imposição de entraves a programas de saúde reprodutiva. Em meio ao aumento dos casos de violência sexual na pandemia, portarias do Ministério da Saúde burocratizaram ainda mais o acesso ao serviço de aborto legal, de oferta já minguante nos hospitais públicos.
Ao destrinchar a aliança entre conservadorismo e neoliberalismo, Wendy Brown (2019) chama a atenção para o papel estratégico do mercado e da moral diante da retirada do Estado. A defesa da família tradicional anda de mãos dadas com a privatização e o desinvestimento em políticas de saúde, seguridade social e educação.
Na comemoração do “Dia Nacional da Família”, a secretária nacional de Família expôs publicamente a adesão a tal estratégia: a “cultura da família vai se expandindo”, ao passo que “o Estado protetor desincha e diminui o gasto público”. Afinal, “as políticas públicas familiares custam pouco e podem fazer muito”.
O pânico moral em torno da educação sexual e do aborto serve de cortina de fumaça para a falta de investimento em políticas públicas e para a negligência em relação à infância e adolescência de meninas. Serve ao aprofundamento da desigualdade e da pobreza feminina.