Liderança interrompida: a renúncia papal

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Estamos vivendo momentos importantes para a sociedade mundial, conflitos generalizados se disseminam com grande rapidez, crises monetárias e financeiras, degradação moral, ausência de ética pública, Estados falidos, pedofilia no seio da Igreja, conflitos em organizações milenares e renúncias pré-anunciadas que mexem com todos os pilares da comunidade política e religiosa internacionais, estamos num momento de inquietação e medo generalizados.

O papa Bento XVI, alçado à liderança católica com a morte do carismático papa polonês João Paulo II, surpreendeu a comunidade internacional com seu pedido de renúncia, deixando o mundo em estado de estupefação e inquietude, a última renúncia papal na Igreja perpassa o século XV, os movimentos futuros do Vaticano impactarão sobre corações e mentes em todas as regiões do mundo, onde um rebanho de mais de 1 bilhão de fiéis se identifica direta ou indiretamente aos preceitos defendidos pela Igreja romana, preceitos estes manchados por escândalos envolvendo dinheiro, poder, sabotagem, corrupção, espionagem, escândalos sexuais, pedofilia, etc.

O antes cardeal, Joseph Ratzinger, se destacou no seio da Igreja católica como um de seus mais brilhantes intelectuais, suas idéias se identificavam com o ideário conservador e direitista, alçado, nos anos 70, ao comando da temível Congregação para a Doutrina da Fé, perseguiu as idéias marxistas dentro da Igreja latino-americana, uma de suas vitimas, o teólogo brasileiro Leonardo Boff, foi proibido de escrever e punido severamente pela Congregação, seus textos foram interditados e censurados levando-o a se desligar da instituição pouco tempo depois.

Seu período a frente do papado foi caracterizado por graves escândalos desde os desequilíbrios financeiros que afetaram abertamente o Banco do Vaticano até os inúmeros casos de corrupção, pedofilia de padres e vazamento de informações que obrigaram o papa a cortar na própria carne, afastando e processando pessoas que compartilhavam de sua intimidade e que conhecem muitas coisas sobre o funcionamento da Igreja internamente, seus desajustes, seus desafios e suas perspectivas para os próximos anos, mas, em muitos casos o sumo pontífice tergiversou, manteve pessoas indiciadas nas fileiras da Igreja e impediu uma depuração necessária de todo o conjunto religioso da instituição milenar.

O gesto de renuncia do papa Bento XVI não pode ser explicado apenas por sua idade e por suas dificuldades físicas, embora saibamos que os desafios do papado são intensos e extenuantes fisicamente, que exigem destes homens, que não são santos, um esforço físico sobre-humano, a compreensão dos motivos reais de sua renúncia vai muito além de suas limitações físicas e fisiológicas, é importante destacar, que a instituição se encontra envolta em graves desequilíbrios financeiros, caracterizados, ainda, por disputas de poder entre setores direitistas conservadores, fortes e organizados, justamente os setores que foram alçados aos postos chaves da Igreja com a ascensão de Ratzinger a condição de papa Bento XVI, substituto do carismático e conservador papa polonês João Paulo II.

Um dos fatos que marcou o papado de Bento XVI foi a enxurrada de denúncias e escândalos sexuais envolvendo padres em todas as regiões do mundo, nos Estados Unidos e na Europa muitos casos vieram a tona e deixaram a Igreja na defensiva, filmes foram feitos para denunciar casos absurdos de pedofilias onde padres e altos religiosos da instituição foram denunciados, julgados, presos e condenados depois de inúmeras décadas de abusos e omissão da sociedade religiosa, levando a instituição, em muitos países a fazer acordos judiciais, empenhando bilhões de dólares, para encerrar processos que maculavam a imagem da Igreja e expulsavam fiéis em todas as regiões, não apenas nos países desenvolvidos, mas em todas as regiões do mundo, mergulhando a Igreja romana em sua maior crise histórica.

O pontífice Bento XVI, como autoridade máxima da Cúria, se calou sobre tais denúncias, evitando iniciar uma discussão maior sobre questões pendentes e mudando o foco para evitar que investigações mais apuradas iniciassem, escondendo, junto com os cardeais, os culpados dentro da própria Igreja Romana, instituição milenar, cada vez mais conservadora e repleta de desafios imediatos, agora, como fica, uma instituição construída e voltada para ideais nobres e espiritualizados defender criminosos, ignorantes repulsivos e covardes, que, em muitos casos causaram graves desequilíbrios e distorções nos corações e nas mentes de milhares de famílias na sociedade global.

A renúncia pegou toda a sociedade internacional de surpresa, depois da fala papal o assunto dominou todas as grandes mídias, os articulistas se organizaram para explicar de forma simples para toda população, o mundo ficou perplexo, como pode o santo papa, escolhido por seus pares e cuja escolha foi intermediada por forças superiores pode renunciar a tão digna missão? Responder a esta indagação é algo que motiva e estimula, e nos ajuda a compreender o ser humano de forma mais parecida com a realidade, desanuviando e deixando de ver o papa como um super herói ou como um homem santo, mas como um homem normal, com seus problemas, medos e amarguras.

Os antigos dogmas defendidos pela Igreja colaboram para o afastamento de muito de seus fiéis, o distanciamento da Ciência, a não aceitação de métodos contraceptivos, como o preservativo, a não ordenação de mulheres, a dificuldade de construir uma critica salutar e a inexistência de movimentos transformadores endógenos, inviabilizados pelo domínio conservador de cardeais que se perpetuam no poder, se encastelam em suas idéias retrógradas cada vez mais distantes do povo, contribuindo para o enfraquecimento do movimento católico no mundo, na América Latina e no Brasil, a diminuição do poder papal contrasta com o fortalecimento e a estruturação dos setores evangélicos, que crescem todos os dias e servem de morada para atrair descontentes e críticos constantes dos rumos da Igreja católica, que mesmo perdendo espaço na sociedade global, ainda possui grande força e poder no ideário das sociedades, um exemplo claro de seu poder é que, depois do anúncio do papa, a mídia mundial se voltou para o Vaticano, todos os meios de comunicação enviaram para o pequeno país encravado na Itália seus melhores jornalistas, que forem enviados para cobrir um dos eventos mais importantes da sociedade contemporânea: a renúncia do papa Bento XVI e os rumos da Igreja no mundo.

Muitos se perguntam o que esperar da Igreja Católica nos próximos anos, alguns mais ufanistas acreditam que ela passará por uma grande transformação, se abrirá para os mais pobres, iniciará um amplo processo de reestruturação, se aproximando mais dos ideais pregados por Jesus, aceitando a Ciência, contestando os dogmas e abrindo espaço para um diálogo ecumênico com todos os extratos religiosos do mundo, uma nova Igreja, mais assentada nos ideais de Pedro e mais distante, cada vez mais distantes, dos gozos terrenos, das vantagens materiais, dos interesses do capital e das paixões mundanas.

A liderança papal se mostrou frágil para implementar uma agenda de transformação, muito do que foi feito de bom no papado de Bento XVI deve se perder na escuridão e no abandono, o que deve ficar de seu papado, e ficar sempre claro no imaginário coletivo, será a omissão da Igreja Católica em se auto-depurar, na dificuldade de cortar na própria carne os casos de pedofilia, nos escândalos de corrupção e, principalmente, a compreensão, de que a renúncia, mesmo sendo uma obra possível para todos os mortais, foi uma atitude que jamais imaginaríamos que acontecesse, mostrando ainda e demonstrando claramente a face humana, frágil e marcada por dúvidas, medos, incertezas e preocupações de todos os ser humano.

Outro ponto interessante que deve ser ressaltado neste caso é o formato de escolha do sumo pontífice, muitos receiam opinar sobre este assunto, mas em um momento como este marcado por inúmeras conjecturas e incertezas, faz-se necessário indagar se não seria o momento de criar um instrumento mais democrático para a escolha do papa, um instrumento que leve em consideração a opinião dos fiéis, neste rebanho de mais de 1 bilhão de pessoas que se debruçam em oração, fazem terços e promessas querendo agradar a Deus e num momento de escolha ou, de possibilidade de escolha se retrai e entrega esta missão nas mão de iluminados, muitos deles distantes do povo e enclausurado nos dogmas deletérios do catolicismo primitivo, mal sabendo eles que nos encontramos no século XXI, num momento de grandes mudanças e transformações constantes, onde o ser humano esta sendo chamado claramente para o testemunho da fé raciocinada e reflexiva, que nos liberta e nos alarga a visão sobre o mundo e sobre todas as nossas indagações.

Outros, mais realistas, acreditam que pouco mudará na Igreja nos próximos anos, as regras e os horizontes da Igreja romana permanecerão intocados, as idéias modernas, os novos pensamentos e as teorias existem e todos nós conhecemos, transformar a estrutura exige dedicação e vontade coletivas, um trabalho hercúleo que envolve várias pessoas, acreditar que é obra de um único homem é um grande equívoco, mas um equívoco que muitos alimentam a vida toda, com isso, uma instituição milenar vai se desagregando continuamente e o resultado mais concreto é que, os indivíduos fogem cada vez mais dos ideários cristãos que são fundamentais para sedimentar a sociedade mundial.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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