Laura Carvalho fala sobre curto-circuito na política econômica e discute volta do Estado

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Para economista, valorização do papel do governo como indutor do crescimento não é fato consumado

Eduardo Cucolo – Folha de São Paula – 12/06/2020

Dois anos após o lançamento de “Valsa Brasileira: do boom ao caos econômico”, a economista Laura Carvalho (FEA-USP) lança o livro “Curto-circuito: o vírus e a volta do Estado”, no qual defende a necessidade de se repensar as funções do Estado diante de uma crise que tem exigido gastos públicos em níveis sem precedentes em todo o mundo.

Para a economista, a volta do Estado como indutor do crescimento e garantidor de um ambiente de bem-estar social não é um fato consumado. Ela diz também que o elevado nível de endividamento global, inclusive do Brasil, pode gerar uma reação semelhante àquela vista após a crise de 2008-2009, que foi seguida por uma onda de austeridade fiscal e desmonte de políticas públicas em outros países.

Sobre o título do livro, Laura diz que o curto-circuito se refere também à forma como a crise atual obrigou uma equipe econômica alinhada com esse pensamento a agir em sentido contrário e à dúvida sobre como o bolsonarismo irá se colocar diante da possibilidade de que uma política de austeridade atrase a recuperação econômica do Brasil e abale ainda mais a popularidade do presidente da República.

A senhora estruturou o livro em cima de cinco funções do Estado. A pandemia e a recuperação posterior tendem a fortalecer essas funções e a presença estatal?

São cinco funções que a pandemia contribuiu para revelar e para fazer a gente repensar. De forma alguma eu quero dizer que a volta do Estado seja um fato consumado. Não estou anunciando que o Estado voltou. O que eu tento fazer é repensar os papéis do Estado a partir dessa pandemia, muito mais no sentido de propostas do que de uma previsão ou futurologia.

Dessas cinco funções do Estado, quais a sra. considera mais fundamentais hoje e quais serão mais importantes no período de recuperação pós-pandemia?

As duas igualmente importantes hoje são as funções de Estado protetor e prestador de serviços. Eu trato no livro da questão da proteção, da renda básica universal, que é fundamental diante dessa massa de trabalhadores informais e que vêm perdendo sua renda nesse momento e precisam de alguma renda até para conseguir evitar o contágio. Na função de prestador de serviço, principalmente considerando a necessidade de recursos para a área de saúde e de uma gestão mais eficiente. Essas duas são as urgentes. Para o pós-pandemia, para uma recuperação mais rápida da economia, eu colocaria a função de investidor em infraestrutura como aquilo que pode contribuir para dinamizar a economia e, ao mesmo tempo, para superar algumas lacunas históricas que ficaram mais aparentes.

Quando se fala em ação do Estado como investidor e empreendedor, vêm à mente os problemas que ocorreram no governo Dilma Rousseff, o que é usado como argumento por muitos economistas para defender que a recuperação precisa ser puxada pelo setor privado.

A função do Estado como empreendedor tem a ver com uma crítica da política industrial que foi implementada no passado, no governo Dilma, e eu busco refletir sobre um novo modelo de política de desenvolvimento que estivesse ligada às demandas da sociedade e não à ideia de proteger algum setor.

O livro tenta partir de questões da história contemporânea para introduzir conceitos da economia, mas também tentar fazer uma análise crítica do passado mirando uma agenda futura. Em todas essas funções aparece um pouco uma crítica à trajetória e papéis que o Estado veio tendo no Brasil nas últimas décadas, ao mesmo tempo mostrando que alguns dos instrumentos foram importantes para que a gente conseguisse reagir agora, mesmo que de forma insuficiente, como o Cadastro Único, a existência do BNDES, mesmo que não tenha sido aproveitado nessa crise, o SUS. Alguns desses instrumentos vinham sendo desmontados.

A senhora faz um diagnóstico de que a economia brasileira vem, desde a saída de recessão em 2016, em um cenário de estagnação porque se tirou do Estado o papel de indutor do crescimento.

Na situação atual, ou a gente dá sorte de ter o resto do mundo puxando nosso crescimento via exportações ou precisa do Estado. Só tem essas duas maneiras de injetar ânimo em uma situação como essa. Essa pandemia criou uma situação ainda mais dramática por ter vindo sobre uma economia que, ao contrário dos países ricos, não vinha em uma trajetória de expansão, não estava com taxa de desemprego baixa, tinha informalidade recorde. Isso fará com essa crise seja ainda mais grave por aqui e o volume de recursos para responder a isso seja muito maior.

A equipe econômica do governo federal defende uma ideologia econômica que você chama no livro de anacrônica e está tendo de lidar com uma demanda por mais Estado neste momento. A pandemia pode trazer mudanças nessa política econômica?

O título do livro, curto circuito, tem dois sentidos. Um sentido é o curto circuito macroeconômico que a pandemia gerou, o diagnóstico de que as características dessa crise são bem diferentes das crises originadas no setor financeiro, de 1929, de 2008.

Mas o título também vale para a ideia, para a maneira como essas demandas de um Estado maior, muito urgentes, se dão em um ambiente de um governo que não tem essas características e não se preparou para isso. As demandas e as necessidades do momento bateram de frente com essa ideologia da equipe econômica.

O bolsonarismo entrou um pouco em curto circuito na medida em que houve uma ruptura drástica, tanto na política fiscal como na política monetária em relação ao que vinha ocorrendo nos últimos anos. A atuação do Banco Central e da política fiscal é anticíclica, ao contrário do que foi nos últimos anos. Isso em um governo que se propunha a fazer o contrário.

A política econômica continuará nesse caminho nos próximos anos?

Neste ano, a gente teve uma ruptura muito clara. O déficit vai a 7% do PIB, a dívida pública tende a subir para mais de 100% do PIB em alguns anos. Há também uma valorização do papel do Estado pela sociedade.

Agora, dizer que está claro que daqui pra frente haverá uma mudança na postura que incorpore a valorização dessas funções, criando uma agenda econômica nova, que reduza desigualdades, isso a gente não tem como afirmar. Pelo contrário, o Ministério da Economia aponta para uma tentativa de utilizar essa dívida maior para acelerar reformas que reduzam o tamanho do Estado, até de forma mais agressiva do que vinha ocorrendo.

Essa é uma das perguntas do livro. Será que o bolsonarismo abrirá mão daquele fundamentalismo de mercado que ajudou a elegê-lo e a conquistar a maior de parte das elites econômicas desde 2018 ou o manterá, com o risco de perder ainda mais apoio, dado que a gente vai ter um quadro econômico mais difícil daqui pra frente?

A senhora defende no seu livro um sistema de renda básica universal. Qual a sua proposta?

Há duas visões de renda básica.  A ideia do [ganhador do Prêmio Nobel Milton] Friedman de um Imposto de Renda negativo. Abaixo de um certo patamar de renda, as pessoas recebem o benefício e acima pagam imposto. E a renda básica universal, a ideia de que todos têm direito a uma renda mínima.

Isso cria a ideia de que vai transferir para pessoas ricas, porque está dando renda para todos, sem exigir que se comprove nada, assim com no SUS, mas você corrige isso na tributação. A Justiça não vem por tornar os serviços ou direitos mais focalizados, vem ao dar a todos esses direitos de forma universal, mas tributar mais os que ganham mais. É isso o que eu defendo como sistema.

O caminho pode ser gradual, mas é possível financiar um sistema de renda básica para todos, o que substitui os programas existentes, que exigem que se comprove renda. Uma parte do custo sai daí, mas outra parte precisa tirar da tributação progressiva, com a redução de deduções do IR para saúde e educação privadas, isenção para lucros e dividendos e até criando alíquotas mais altas para o topo da pirâmide.

RAIO-X

Laura Carvalho, 36, é professora livre-docente do Departamento de Economia da FEA (Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP) e autora de “Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico” (Todavia, 2018). Foi colunista da Folha de 2015 a 2019.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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