Há algo de podre no reino do Judiciário, por Lygia Maria.

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Venda de sentenças causa ainda mais indignação quando se sabe que juízes representam uma casta social privilegiada no Brasil

Lygia Maria, Mestre em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.

Folha de São Paulo, 28/10/2024

As notícias recentes sobre vendas de sentenças por juízes causam indignação a qualquer brasileiro não só pela distorção escabrosa da função desses servidores, mas também porque os 18.256 magistrados do país compõem uma casta social privilegiada.

Ranking da Folha mostra que eles têm o maior salário médio entre 427 ocupações: R$ 24.732. Com penduricalhos, porém, o gasto efetivo chega a R$ 70 mil.

Segundo o CNJ, 90% da despesa do Poder Judiciário se dá com pagamento de funcionários, magistrados, desembargadores e ministros de cortes superiores. Em 2023, os dispêndios atingiram R$ 132,8 bilhões, ante R$ 84 bilhões em 2009 —os valores anuais são corrigidos pela inflação.

Já o Tesouro revelou que o gasto com tribunais, incluindo remunerações, é o maior entre 53 países analisados, equivalente a 1,6% do PIB. Não apenas maior, quatro vezes maior do que a média internacional (0,4%). Do montante total de R$ 159,7 bilhões, 82% foram para ordenados.

Uma das justificativas usadas para tal remuneração nababesca é o desincentivo à corrupção. Mas para os desembargadores do Mato Grosso do Sul e da Bahia, investigados por venda de sentenças, seus gordos contracheques não foram suficientes.

Há privilégios até quando juízes cometem delitos graves no exercício da função. Como punição, são obrigados a se aposentar com recebimento dos vencimentos. Chega a ser comovente.

Dado o excesso de regalias, seria esperado que a casta ao menos aparentasse honestidade.

Contudo, os notórios convescotes de juízes e de ministros do STF com empresários e políticos, incluindo eventos em hotéis de luxo e viagens internacionais, mostram que parte dos magistrados não está nem um pouco interessada em se portar como a proverbial mulher de César.

É urgente uma reformulação geral da aplicação do orçamento do setor e do código de conduta de juízes. Sem isso, o Poder Judiciário continuará a ser alvo de críticas, até mesmo agressivas. E não adianta que o STF pretenda penalizá-las como “ataques ao Estado democrático de Direito”, dado que quem dá mostras de querer miná-lo são os próprios integrantes do sistema de justiça.

Gastos Públicos

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Nos últimos meses, percebemos uma forte pressão dos mercados para que o governo federal reduza os gastos públicos e diminua a relação existente entre dívida e produto interno bruto (PIB), gerando fortes pressões dos mercados, principalmente do financeiro, que estão impactando sobre as taxas de juros e câmbio, com fortes constrangimento sobre a solvência fiscal do Estado Nacional.

Com o arcabouço fiscal criado pelo governo federal em 2023 o Ministro da Fazenda insiste na busca do déficit zero, forçando o ministério a buscar todas as formas de aumentar a arrecadação fiscal, incrementando a entrada da receita e melhorando as condições fiscais do governo federal, todos os recursos adicionais eram vistos como positivos para a melhora das contas públicas.

Mesmo assim, o mercado não acredita e nunca acreditou que o governo federal conseguisse zerar o déficit, desta forma, partiu para o embate e pressionou para que o governo adotasse uma revisão dos gastos, sugerindo cortes de recursos mínimos em Saúde e Educação, acabando com a valorização do salário-mínimo e das vinculações de benefícios sociais, desta forma, na visão do mercado, eram suficientes para que as questões fiscais fossem equacionadas.

As medidas sugeridas pelo mercado repercutiram no governo negativamente e forçaram o presidente da república a confirmar seu compromisso histórico de que não mexeria nos gastos sociais e não renunciaria a pisos na educação e saúde, desta forma, percebemos um impasse de difícil resolução.

Diante disso, percebemos um embate diário entre o mercado e o governo, onde o primeiro deu mostras de seu descontentamento pode gerar graves constrangimentos para a economia brasileira, impactando sobre taxas de juros, inviabilizando investimentos produtivos e postergando a recuperação econômica, ainda mais, como vivemos num momento de grandes incertezas na economia mundial, com graves conflitos militares, polarizações e desequilíbrios climáticos, que exigem uma atuação mais intensa dos governos nacionais, com gastos públicos e estímulos variados, os recursos fiscais são imprescindíveis para alavancar a economia nacional.

Neste momento, percebemos uma briga de foice, todos querem garantir seus benefícios, o governo quer continuar gastando, tributar mais e reduzir as distorções tributárias nacionais, os mercados querem que o governo reduza os gastos sociais e continuem garantindo folgas fiscais para manter os ganhos das taxas de juros praticadas pela Autoridade Monetária e o Legislativo quer continuar garantindo seus elevados ganhos das emendas PIX e repassem gigantescos de recursos em emendas parlamentares, sem transparência, sem fiscalização e garantindo ganhos para a classe política.

Vivemos um impasse, desta forma, a economia cresce pouco, as desigualdades sociais melhoram marginalmente, os grandes ganhadores desta situação de degradação política nacional continuam se refastelando neste banquete que poucos conseguem enriquecer em detrimento da degradação da maioria da sociedade nacional.

 

 

 

Eleições mostram esquerda diante de enigmas que podem devorá-la, por Rodrigo Nunes.

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 Não será fechando os olhos e apostando na volta a uma normalidade perdida que os problemas serão resolvidos

Rodrigo Nunes – Folha de São Paulo, 27/10/2024

Professor da Universidade de Essex e da PUC-Rio. Autor de “Do Transe à Vertigem: Ensaios sobre Bolsonarismo e um Mundo em Transição” e “Nem Vertical Nem Horizontal: uma Teoria da Organização” (no prelo)

[RESUMO] Professor de filosofia analisa que fraco desempenho da esquerda nas eleições municipais deste ano decorre de uma série de complexos problemas aos quais ela não vem oferecendo resposta adequada, como a crescente desigualdade econômica, a precarização do trabalho, a submissão da política à lógica das redes sociais, os desastres ecológicos e o crescimento da extrema direita. Fazer de conta que a crise é passageira, e não produto de tendências de longo prazo, apenas irá acelerar derrocada das forças progressistas, avalia.

A despeito de eventuais viradas na votação deste final de semana, o veredito sobre o resultado das eleições municipais está dado. Ele indica uma incapacidade da esquerda em transformar sua volta à Presidência, uma vitória apertada há dois anos, em uma retomada mais ampla, capilarizada na política local em diferentes partes do país.

Indica também  que o governo Lula falhou até aqui em reacender o otimismo que acompanhou sua eleição duas décadas atrás, ou mesmo as memórias positivas do que veio depois.

Percebe-se ainda uma consolidação do centrão —como pano de fundo que, de tão pervasivo, ameaça a todo momento ocupar o centro da cena política brasileira— e do bolsonarismo —não apenas uma força que pode continuar a existir para além de Bolsonaro, mas um vírus suficientemente potente para sofrer mutações altamente contagiosas, como demonstrou a candidatura de Pablo Marçal em São Paulo.

Diante disso, proliferam os diagnósticos de crise, ou mesmo morte da esquerda brasileira; todos são justos à sua maneira. Mas o que ocorre no Brasil está longe de ser um caso isolado.

E ainda que estas eleições tenham sido marcadas por questões bastante nossas —o fortalecimento de um bloco de lideranças evangélicas alinhadas à extrema direita, a infiltração crescente do crime organizado na política, o papel determinante das chamadas emendas Pix no aumento da taxa de reeleição —, elas têm como pano de fundo um conjunto de enigmas que a esquerda global hoje enfrenta, sem saber dar-lhes resposta.

Isso deixa claro que tampouco se trata de uma simples dificuldade de comunicação, como se fosse apenas a propaganda em tempos de eleição que falhasse —e bastassem caras mais sorridentes ou linguagens mais “jovens” para tudo se resolver.

Estamos falando de nós problemáticos que afetam tanto a substância da política como a forma como ela é feita, nos períodos de pleito e, sobretudo, fora deles. Eles não correspondem a uma simples hierarquia de quais seriam as “questões mais importantes de nosso tempo”, embora certamente estejam entre elas, mas antes são as questões que definem nosso tempo, diferentemente de outras (como o racismo, a diferença entre gêneros, o colonialismo) que são a herança maléfica de períodos anteriores.

Neste contexto mais amplo precisamos situar o impasse que as eleições municipais revelam, que marcarão não apenas o próximo ciclo eleitoral, mas as próximas décadas.

Desigualdade e viração

O primeiro destes nós, sob muitos aspectos o mais determinante, tem a ver com o crescimento da desigualdade econômica, e por extensão política, nas últimas décadas.

Em comparação ao período do pós-guerra, a era neoliberal viu uma explosão da concentração de riqueza, claramente expressa no crescimento do número de bilionários e no iminente surgimento dos primeiros trilionários, que se traduz em concentração de poder político.

Cada vez mais, um grupo restrito de indivíduos tem uma capacidade infinitamente maior de influenciar as ações governamentais, na comparação com a maioria da população.

Isso ficou muito evidente quando, após a crise de 2008, partidos tanto de direita quanto nominalmente de esquerda em diversos países acorreram a salvar os bancos e transferiram o custo do resgate para a população, na forma de cortes na legislação trabalhista e na proteção social.

É visível também no modo como o presidente Emmanuel Macron simplesmente ignorou a vitória da esquerda nas eleições parlamentares francesas para apontar um governo que tende a fortalecer a extrema direita de Marine Le Pen no curto prazo; ou na maneira como o socialista Olaf Scholz (Alemanha), o trabalhista Keir Starmer (Reino Unido) e os democratas Joe Biden e Kamala Harris (Estados Unidos) dão as costas a uma opinião pública crescentemente crítica ao Estado de Israel para continuar apoiando ações cada vez mais indistintas do genocídio nu e cru.

O que isso significa para a forma como se faz política é que o consentimento ativo da população parece importar cada vez menos: os Estados se acostumaram a operar com baixa legitimidade, aproveitando-se de, e reforçando, uma tendência histórica de queda do engajamento na política.

E quando governos nacionais tentam se comportar de outra forma, como foi o caso da Grécia sob o Syriza em 2015, mecanismos internacionais podem facilmente dobrá-los. Em resumo, tornou-se muito mais difícil influenciar governos não só desde fora, como, inclusive, desde dentro.

O segundo nó se refere ao que se costuma chamar de “transformações do mundo do trabalho”: o aumento do subemprego e da informalidade, a precarização, a uberização etc.

Isso não apenas faz com que as velhas estruturas sindicais apareçam como defensoras de um estrato cada vez mais restrito de trabalhadores formais, mas cria todo um novo universo ao qual as categorias sobre as quais a luta laboral foi historicamente construída não se aplicam: não há mais identificação do trabalhador enquanto trabalhador, direito de se organizar, tempo livre, espaço de trabalho como espaço de organização etc.

Neste campo, os pleitos municipais trouxeram alguns sinais positivos que a esquerda faria bem em explorar e aprofundar, como a eleição para a Câmara Municipal carioca de Rick Azevedo, do movimento Vida Além do Trabalho, que luta contra a escala 6×1; e a proposta de Guilherme Boulos, já implementada em lugares como Juiz de Fora e o Distrito Federal, de instalar pontos de apoio para entregadores, que têm o potencial de se constituírem como locais de troca e organização para os trabalhadores de aplicativo.

O terceiro nó, diretamente ligado ao anterior, tem a ver com o que poderíamos chamar de longa duração da reprogramação subjetiva produzida pelo neoliberalismo. Décadas de ajustes e reformas feitas sob a lógica do recuo das proteções sociais e individualização dos riscos não têm um efeito apenas sobre a forma como as pessoas vivem, mas também sobre como elas veem a si mesmas e suas relações umas com as outras.

Daí que mesmo estratos hiperexplorados como os trabalhadores de aplicativo se identifiquem com a figura do empreendedor, e que o imperativo da “viração” —a necessidade de fazer o que for preciso para sobreviver— se traduza em internalização da ideia de que a vida social é uma guerra de todos contra todos mediada pelo mercado, de que o fracasso é uma responsabilidade pessoal, e daquilo que poderíamos chamar “solidariedade negativa”: o sentimento de que “se eu tenho que passar por isso, todo mundo também tem”.

Simultaneamente, a financeirização da economia e o fato de que o trabalho assalariado não é mais garantia de uma boa vida explicam que cada vez mais gente se volte para soluções mágicas de enriquecimento, como a indústria dos coaches e as apostas online.

Do ponto de vista da forma, isso significa que não é mais evidente que as pessoas queiram mais proteção, mais cuidados, mais participação. A combinação de um largo histórico de frustrações na entrega desse tipo de promessa com a crença crescente em atalhos, ainda que improváveis, faz com que mesmo setores historicamente desprotegidos prefiram estar “livres” para empreender e vejam atitudes antes tidas por antissociais, a evasão fiscal ou o recurso à legalidade, como sinais de esperteza e competividade.

Isso ajuda a explicar porque parte do eleitorado parece infinitamente capaz de perdoar comportamentos questionáveis de figuras como Donald Trump, Javier Milei e Pablo Marçal, assim como a receptividade de um discurso anticomunista para o qual “comunismo” é qualquer coisa que busque impor algum limite ao capitalismo de faroeste mais desenfreado.

Devir-plataforma do mundo

O quarto nó é a plataformização da economia e a colonização da política pela lógica das redes sociais.

Um aspecto da hegemonia neoliberal das últimas quatro décadas foi a substituição de políticas antitruste, voltadas a limitar o poder que monopólios podiam ter de ditar as regras de seus mercados, por uma lógica inspirada pelos argumentos de Robert Bork e seus acólitos na Universidade de Chicago, segundo a qual a formação de monopólios não seria um problema conquanto implicasse preços mais baixos para os consumidores.

Além de ignorar os efeitos sobre trabalhadores e ambiente, esta doutrina não apenas justificou a leniência com o aumento da concentração de capital nos mais diversos setores —demonstrou-se particularmente mal adaptada à economia digital, na qual empresas como Google e Meta podem oferecer serviços gratuitos porque seu verdadeiro negócio consiste em vender os dados e a atenção de seus usuários, e outras, como a Uber, têm financiamento suficiente para operar no vermelho até dominar seus respectivos mercados.

O problema, é claro, não para aí. Algumas dessas companhias não são somente monopólios, mas controlam uma fração absolutamente desproporcional de toda a informação que se produz e se consome no mundo, o que lhes confere um poder inédito sobre aquilo que se vê e não se vê, bem como sobre os dados de quem se mostra.

Os caprichos de Elon Musk à frente do ex-Twitter apenas tornam explícita uma realidade que já existe há algum tempo: a aparência de funcionamento “neutro” esconde o fato de que os algoritmos que governam essas plataformas atendem antes de tudo aos interesses econômicos e simpatias políticas de seus proprietários.

Esta situação impõe uma série de questões de substância, como a regulação das plataformas, o desmembramento de monopólios e o combate ao capitalismo anticompetição. Não é à toa que, como demonstra a entrada entusiasmada de Elon Musk e da indústria de criptomoedas (entre outros) na campanha presidencial estadunidense, a extrema direita parece cada vez mais deixar de ser o plano B para se tornar o plano A do Vale do Silício. Afinal, ninguém promete descontrole tão absoluto quanto ela.

Mas a plataformização também implica uma série de consequências para a maneira como se faz política hoje, decorrentes da lógica das redes sociais. Não se trata somente da prevalência de um certo modelo de captura da atenção, que favorece conteúdos cada vez mais extremos, da ubiquidade de processos recursivos de polarização entre diferentes públicos, da explosão da desinformação, ou da centralidade de figuras como os trolls.

Pablo Marçal e Nikolas Ferreira, talvez os maiores vencedores destas eleições, são os dois grandes expoentes atuais de um empreendedorismo que vive de converter notoriedade digital em capital econômico e político, e vice-versa.

O que se vê até aqui é que faltam ao sistema eleitoral proteções adequadas para lidar com essas transformações. E se a eleição ofereceu alguns sinais positivos de que a esquerda não está completamente perdida neste novo terreno de disputa —de novo, o avanço do Vida Além do Trabalho—, convém lembrar que a lógica das plataformas não parece favorecer apenas conteúdos de extrema direita, mas também uma forma de política centrada na personalidade de indivíduos isolados, com bases atomizadas e sem instrumentos de controle sobre o líder —o que parece mais apto a produzir novos tipos de clientelismo que projetos coletivos de emancipação.

Adiar (ou apressar) o fim do mundo

O quinto nó é, sem dúvida, o maior de todos; trata-se, obviamente, da crise ecológica.

Do ponto de vista da substância, sua consequência mais importante é a impossibilidade de manter a aposta em um crescimento infinito da economia como maneira de combater a desigualdade no longo (ou longuíssimo) prazo.

Essa foi a promessa, liberal por excelência, que a maior parte da esquerda foi obrigada a abraçar a partir do momento em que tirou a propriedade dos meios de produção de pauta: se não estava mais em questão distribuir a riqueza existente, só restava fazer o bolo crescer para tentar reparti-lo melhor.

É isso, justamente, que mais a engasga na hora de assumir plenamente a gravidade da situação. Reconhecer que não dá para seguir crescendo para sempre, ainda mais no atual ritmo —e, no caso de países como o Brasil, às custas do extrativismo desenfreado—, necessariamente forçaria a esquerda a também reconhecer que, para manter a justiça social na agenda, é preciso trazer o problema da distribuição da riqueza de volta.

Estamos falando de taxar pesadamente os setores responsáveis pelas maiores emissões, fazendo com que arquem com o custo da transição energética sem que possam repassar o mesmo ao consumidor; de restringir a oferta de crédito privado que financia atividades que aprofundam a catástrofe; de atacar o rentismo e as altas taxas de lucro para fomentar a expansão e a descomodificação de serviços públicos básicos, como os cuidados e uma rede de transporte descarbonizada; da introdução de medidas como fundos de propriedade inclusiva, com objetivo de diluir o poder de acionistas e aumentar o dos trabalhadores sobre as empresas; e assim por diante.

A emergência em que nos encontramos deveria oferecer o contexto ideal para defender esse tipo de medida. A dificuldade de dizer as coisas com clareza evidencia, contudo, a ligação íntima entre este e o primeiro nó: o modo como o poder econômico subjuga o poder político hoje faz com que, no melhor dos casos, os políticos continuem a fingir que a crise está em um futuro longínquo, e não em um presente de eventos climáticos extremos cada vez mais comuns —e sigam encenando o “faz de conta” de que o mercado encontrará uma solução para o problema mesmo após décadas de tempo valioso perdido.

A situação não é menos espinhosa do ponto de vista da forma. Em primeiro lugar, porque envolve vender a ideia de que é preciso desacelerar e decrescer a um mundo em que a necessidade e o desejo de crescimento têm valor de evidência.

Em segundo, porque tampouco se trata de desacelerar ou decrescer tudo de uma vez: é preciso saber empregar a própria mudança de rumo como instrumento de promoção da justiça, distribuindo perdas e ganhos de maneira desigual para que quem tem menos possa ter mais, enquanto quem tem mais aceite ter menos.

Isso significa, finalmente, ter de convencer diferentes frações da população mundial a abrir mão de partes de seu padrão atual de consumo em nome do bem-estar de outras, próximas ou distantes. Não se trata, ao contrário da caricatura que frequentemente se faz do ecologismo, de pregar um ascetismo monástico e ranzinza às pessoas, mas de construir o desejo por outros modos de vida, mais sustentáveis. Ainda assim, o trabalho de convencimento é inegavelmente árduo.

E aqui chegamos ao sexto e último nó: o crescimento da extrema direita na última década. Não é só que ele tenha aumentado a desinformação sobre temas como o aquecimento global ou deslocado o centro do debate político cada vez mais para a direita, nos afastando das discussões que realmente precisariam estar acontecendo. Em um certo sentido, é preciso reconhecer que a extrema direita oferece uma resposta perfeitamente razoável ao mundo em que vivemos.

Se supomos que a concentração de poder econômico e político é grande demais para ser modificada; que a democracia de baixa legitimidade veio para ficar; que haverá cada vez menos emprego formal e proteção social, cada vez mais riscos e precariedade; que a concentração de capital continuará como está, e a economia, voltada sempre mais à mera extração de renda, permanecerá estagnada; que o caminho natural das coisas, especialmente à medida em que os efeitos da crise ecológica se intensificarem, é o crescimento das populações excedentes, o recuo da fronteira que separa a vida protegida da vida descartável, a desintegração social —vem daí o poder dessublimador do discurso da extrema direita, que parece ser a única a assumir com todas as letras aquilo que as demais forças políticas disfarçam com palavras enquanto seguem fazendo com ações.

Assim, a mensagem radical de construir muros, expulsar quem é diferente, perseguir grupos marginalizados, se dessensibilizar frente ao sofrimento alheio de defender o “nosso” modo de vida a qualquer custo parece uma alternativa racional em meio à irracionalidade crescente. Se a desintegração é inevitável, o melhor a fazer é antecipar-se a ela e se posicionar da maneira mais favorável.

Decifra-me ou…

Este crescimento acabou por botar a esquerda em xeque. Incapaz de admitir o tamanho dos desafios com que se depara e frente a uma força que aposta em acelerar a desintegração, boa parte dela se viu obrigada à defesa de alguns restos de um estado de coisas em frangalhos em que cada vez menos gente acredita (as promessas da modernidade e do crescimento econômico, a forma de uma democracia sempre mais esvaziada, a racionalidade da ciência, a confiabilidade da mídia tradicional etc.).

Com isso, deixou a via aberta para que a extrema direita se apresentasse como única intérprete dos sentimentos antissistema.

Não se trata, por óbvio, de tentar emular o vandalismo conservador dos direitistas. Mas fazer de conta que a policrise atual é passageira, e não o produto de tendências de longo prazo, e que, portanto, seria possível agarrar-se ao que dá para proteger enquanto se espera a tormenta passar, quando muito retarda o pior no curto prazo, e talvez até o acelere no médio.

Essa é a lição que o crescimento de Marine Le Pen sob os anos de centrismo macroniano nos deixará —e deverá a ser repetida em breve sob Scholz, Starmer, os democratas norte-americanos e, porque não, o PT.

É evidente que não estamos falando unicamente de “falta de vontade”; os problemas são objetivamente complexos, talvez até intratáveis.

No entanto, certamente não será tapando os olhos e apostando na possibilidade de volta a uma normalidade que já não existe que chegaremos mais perto de resolvê-los.

Toda proposta que seja realista no sentido de encarar esses problemas de frente necessariamente parecerá radical, comparada ao que existe hoje. Não ter medo de dizer aquilo que pode parecer inaceitável agora e continuar trabalhando para torná-lo aceitável no futuro próximo é a melhor lição que a esquerda pode aprender com a extrema direita.

O caminho é árduo e sem garantias, mas não começará enquanto não se assumir que estes são os desafios a enfrentar pelas próximas décadas —o fato de que seja impossível resolvê-los de imediato não é desculpa para seguir adiando a construção das condições em que seja possível fazê-lo.

Talvez estes enigmas não possam ser resolvidos; mas a alternativa a nem sequer tentá-lo é aceitar ser devorado.

 

Carta póstuma de um professor, por Antônio Simplício de Almeida Neto.

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Antônio Simplício de Almeida Neto – A Terra é Redonda – 26/10/2024

O que é essa tal BNCC, senão uma proposta curricular precária dirigida à formação precária do proletariado precarizado?

Prezado Antonio,

Escrevo desde aqui, do outro lado do espelho. Confesso que nunca imaginei que faria algo desse tipo, ato inusitado, para dizer o mínimo, mas é que soube por alguns colegas dos idos tempos, que você se tornou historiador, professor de história e, como se não bastasse, está formando novos professores dessa disciplina na Unifesp. Quem diria? Gostaria de ver essa cena.

Não vou negar que sinto uma pontinha de orgulho, mas seria leviano afirmar que tive alguma influência sobre suas escolhas. Salvo engano, lá se vão quase 50 anos desde nosso último encontro…, você era um garoto miúdo, imberbe, entrando na adolescência sem muita vontade, estava na 7ª série, acho. Eu já era um senhor respeitável, veterano, professor austero, envergando o jaleco branco de algodão, óculos de armação grossa e escura, calvície avançada e cabelos alinhados com brilhantina Glostora.

Talvez fique surpreso em saber que estou morto. Infarto fulminante. Ocorreu em 1987. Estava em casa, assistindo televisão, tranquilo em minha poltrona, sozinho, de pijama. Meu corpo foi achado pelo porteiro do prédio em que eu residia, ali no centro antigo de São Paulo, depois de dois dias do funesto evento. Eu não desci para pegar o jornal diário, ele interfonou, bateu na porta, silêncio, usou a chave reserva que eu lhe confiara para alguma emergência. O Elias era um cara batuta. Foi ao meu enterro.

Contudo, não escrevo para falar desse trágico e inevitável episódio, pois todos morremos um dia, não é mesmo? Na verdade, eu resolvi escrever porque soube (aqui nesse não-espaço atemporal, nós sabemos de muitas coisas…) que você localizou uma fonte documental, um trecho de entrevista que dei a uma estudante de licenciatura em história lá da FEUSP, na disciplina Prática de ensino de história, com aquela professora… Elza Nadai (que está entre nós), e que fez estágio comigo em 1979, quando eu já estava me aposentando.

Parece que a estudante registrou em seu relatório: “Em conversa com o professor [eu!] pude observar toda uma desilusão a respeito do ensino. Leciona desde a década de 40, acredita firmemente que ser professor é virtude inata, não se aprende através de técnicas. Disse-me que já utilizou vários métodos para lecionar e atualmente utiliza aquele que a classe merece, isto é, aulas expositivas, pois [eles, os alunos] não têm nível para outra coisa.”. Vamos e venhamos, Antonio, o relatório da estudante é carregado de representações típicas de quem nunca lecionou. Esse papo de “desilusão a respeito do ensino”, valha-me Zeus!

Quero ver entrar numa sala de aula cheia de adolescentes insolentes, várias turmas e turnos, arrocho salarial, idade avançando, rotina pesada, pais torrando a paciência, direção autoritária… Seria mais apropriado falar em desencanto com o ensino e com a escola. De qualquer forma, foi mesmo incrível essa minha resposta! Eu e meu sarcasmo!… O pessoal daqui ficou perplexo e houve quem me chamasse de déspota esclarecido (aqui, apesar da imaterialidade, ainda mantemos o bom humor).

Lembro bem de quando conversei com aquela jovem estudante de história, arrogante como ela só, insinuando que eu não sabia lecionar, querendo me expor na frente dos alunos. Ah, a juventude impetuosa! Aliás, ela também morreu, num acidente de moto na Rio-Santos, a caminho de Trindade. Viva fosse, aposto que seria eleitora do excrementíssimo (adorei esse neologismo!) ex-presidente Jair Bolsonaro.

Aliás, também fiquei sabendo que numa de suas aulas, você mencionou minha metodologia catequética como exemplo a não ser seguido: ditado de perguntas e de respostas a serem decoradas para a prova. Cá entre nós, passados tantos anos, admito que minhas aulas não eram lá muito dinâmicas. Não querendo me justificar, o fato é que eu não era historiador, com formação superior em história e tudo mais, e sequer fiz licenciatura. na verdade, eu estudei direito, mas nunca tive muito jeito para advogar, e, como gostava muito de história, acabei me tornando professor como um bico, e fui ficando.

Isso era muito comum naquela época, anos 1940, 1950. De modo que, eu ia fazendo como me dava na veneta. Lembra de uma aula que dei para sua turma sobre os fenícios? Eu achava esse assunto fascinante, mas vocês não suportavam, eu ditei uma pergunta/resposta e mencionei “embarcação trirreme”, e desenhei na lousa um perfil meio tosco de um barco e três níveis de remos, para que entendessem o que era aquela expressão. Esse era o máximo de didática a que eu chegava. Já a professora Neide, com quem você teve aula na 5ª série, que era bem mais jovem (soube que morreu de Covid-19…), ingressou no magistério nos anos 1970, cursou história, licenciatura, tudo bonitinho, era adorada pelos alunos, até a voz dela era modulada para aquela faixa etária.

E tem mais…, só aqui, no além-túmulo, compreendi que naqueles anos 1970 a escola pública vivia uma verdadeira metamorfose, os filhos da classe trabalhadora (para usar a expressão do velho Marx, cuja fama revolucionária descobri aqui) passaram a frequentar os bancos escolares, era gente com outros costumes, pouco cultivados, pais sem estudo. E isso era muito complicado para professores como eu, acostumados a lecionar para os filhos da classe média, “gente como a gente”, sabe? E aí começou a chegar aquela “gente diferenciada”, como diz o pessoal de Higienópolis, alunos sem material didático, sem uniforme, não faziam o dever escolar, desorganizados, alguns vinham por causa da merenda escolar(!), modos pouco civilizados. Posso parecer preconceituoso, mas… eram horrorosos!

A bem da verdade, e da minha finada reputação, meu entendimento correspondia a certo zeitgeist, como se diz por aí. Era o espírito da época, de modo que muitos professores e autoridades educacionais compartilhavam dessa minha percepção. Lembro vivamente da Keila, professora de Música que, além de não ensinar música, era extremamente preconceituosa com qualquer estilo que não fosse o erudito; do professor Constantino, de Língua Portuguesa, que humilhava os alunos que não entregassem trabalhos impecáveis (como os do filho dele, que era seu colega de turma); do professor Juvêncio, de Educação Física, que submetia os estudantes fisicamente inábeis a um corredor polonês formado pelos hábeis (fascista!, diriam hoje); do professor Salim, de Ciências, que passava álcool na mesa e demais objetos da sala de aula, e sequer tocava no giz, com medo de se contaminar (tinha nojo dos alunos). Olhando à distância, até que havia uma fauna pitoresca.

Sabe, Antonio, devo reconhecer que foi muito difícil para aquele veterano professor que se considerava parte da elite intelectual, porque leu alguns livros a mais, e que supunha dar aula para os filhos da sua classe social, seus iguais, ter de civilizar a massa ignara, ensinar os filhos das “classes perigosas”, e ainda ser colocado numa condição salarial e de trabalho… proletária. O ressentimento – a chave que decifra o Brasil – bateu forte. Sei que você não tem um olhar complacente com o passado, coisas da formação acadêmica, mas é que aquela estagiária me pegou num mau momento.

Mudando de assunto, estou… (ia dizer “preocupado”, mas o fato é que nada mais me preocupa) estupefato, por assim dizer, pois soube que vocês estão às voltas com uma nova proposta curricular, um monstrengo chamado BNCC, que retirou a disciplina história do currículo e que, ainda por cima, houve historiador que colaborou na elaboração desse documento, dando tiro no próprio pé! E que, como se não bastasse, há historiadores discutindo “a BNCC de história que queremos”! Vanitas vanitatum et omnia vanitas! O que pequenas vantagens fazem com os seres humanos, não é mesmo? Mas o que me deixa perplexo, meu caro, não é a vaidade, pois também já cometi meus pecadilhos, mas saber que alguns de vocês, que alegam ter consciência histórica, entraram nessa barca furada.

Noto, pelo pouco que acompanho à distância, que os mentores desse documento curricular são ardilosos e mais sofisticados que os milicos et caterva de outrora. Enredaram vocês direitinho… Foi um crime curricular perfeito! Como se usassem uma enorme rede de arrasto, e capturassem toda a educação básica (incluindo o Ensino Médio), as disciplinas escolares, seus conteúdos e materiais didáticos, o ensino superior (privado e público), cursos de capacitação e treinamento, e até esses cacarecos eletrônicos, que não havia no meu tempo, como plataformas e softwares (nem sei o que é isso…). Esse pessoal das fundações privadas não dorme no ponto! Como se dizia antigamente, enquanto vocês iam com o milho, eles voltavam com o fubá.

Agora, o surpreendente é que os professores da sua geração, e alguns da geração anterior, que tanto lutaram para democratizar o ensino e formar alunos críticos, entraram nessa barca furadíssima, que não só liquidou com a disciplina História no Ensino Médio e vem depreciando a formação dos futuros professores de História, como está privando os alunos da educação básica – os filhos da classe trabalhadora! – de ter acesso ao conhecimento qualificado de História. Isso para não falar da criação desses… xenomorfos curriculares, como Empreendedorismo e Projeto de Vida, que remetem à EMC e à OSPB de outrora. Enfim, tudo aquilo deu nisso?!! Tantos debates sobre resistência, brechas e dobras, inclusão, conscientização, antirracismo, decolonialidade, seminários, congressos e publicações, para dar numa… janela de oportunidade$ e negócio$?!

Veja que curioso, meu caro, não sei se vai lembrar, mas noutra fonte documental que você utilizou em suas pesquisas, havia um trecho de uma Ata de reunião pedagógica do ano de 1970, de uma escola estadual da Vila Brasilândia, periferia de São Paulo, em que o diretor disse aos professores que eles deveriam formar os estudantes “de acordo com o nível do bairro, [e cujo objetivo] não será [seria] a intelectualização, mas sim dirigida para o trabalho.”

Essa frase soa perturbadora, não? Eu não lecionei nessa escola, mas naquela época eu teria considerado normal, pois era o jogo jogado. Agora que estou em outra dimensão e vejo tudo em outra perspectiva, parece-me que aquele diretor era um… visionário! Sim, um visionário! 50 anos depois seu vaticínio se cumpriu! O que é essa tal BNCC, senão uma proposta curricular precária dirigida à formação precária do proletariado precarizado?

Por essa, nem o Paulo Freire (também o vi circulando por aqui) esperava… E sabe o que mais me impressionou? É que esse golpe curricular aconteceu à luz do dia, foi arquitetado lentamente e amplamente anunciado, e ainda contou com a ajuda efusiva de setores acadêmicos, sob a alegação de estarem dando o melhor de si ou de “resistirem por dentro”. Quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece!!

Por essas e outras é que não tenho nenhuma vontade de retornar, reencarnar, baixar, corporificar, descer, essas coisas… Além de andar meio desencantado, desde os anos 1970…, se ao menos eu acreditasse em vida após a morte…, poderia alimentar alguma esperança de realização plena em outro nível de existência. Mas não tem jeito, Antonio, vocês terão de se haver com o “horizonte de expectativas” do seu tempo presente, como escreveu o tal do Koselleck (eita, sujeito complexo! Também morreu.). Creia, o abacaxi e o pepino que vocês cultivaram e colheram terão de ser descascados por vocês e pelas próximas gerações.

E com isso vou me despedindo, com essa menção ao trabalho duro que espera os futuros professores de História. Ou você tinha a ilusão de que haveria vida eterna? Não se iluda, meu querido, “tudo agora mesmo pode estar por um segundo”, como cantou o vivíssimo Gilberto Gil. Quando menos se espera…, babau!, passamos dessa para o… nada.

Bem…, creio que não mais nos falaremos e tampouco nos veremos, de modo que lhe desejo força nesses anos de vida que lhe restam. Já deve ter percebido que “o caminho é deserto” (essa é do Braguinha, um cara porreta!) e o lobo mau está à espreita, às vezes, dissimuladamente, participando de um evento acadêmico.

Adeus!

Professor Hélio Vieira[1]

*Antonio Simplicio de Almeida Neto é professor do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Autor, entre outros livros, de Representações utópicas no ensino de história (Ed. Unifesp).

Nota

[1] Esse texto foi publicado anteriormente no e-book Cartas do Ensino de História, organizado por ALMEIDA NETO, Antonio Simplício de; SOARES, Olavo Pereira; MELLO, Paulo Eduardo Dias de. São Carlos/SP: Pedro & João Editores, 2023.

A economia alemã, por Flávio Aguiar.

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De gigante robusto a criança-problema

Flávio Aguiar – A Terra é Redonda – 14/10/2024

Recentemente Christoph Swonke, economista, pesquisador e ligado ao Deutsche Zentral-Genossenschafts Bank, conhecido como DZ-Bank, declarou que a Alemanha tornou-se “a nova criança-problema entre os países europeus”. Ou seja: para ele, a economia alemã está deixando de ser o carro-chefe da economia europeia, para atravancá-la com seus problemas internos.

O que está acontecendo?

Na quarta-feira da semana passada, 9 de outubro, o ministro da Economia e vice-chanceler do governo alemão, Robert Habeck, do Partido Verde, declarou que pelo segundo ano consecutivo a economia do país iria se retrair. Em 2023 ela encolheu 0,3%. Agora a previsão é de que em 2024 ela encolha mais 0,2%.

Diante da situação interna adversa, com aumento do custo da energia, dos alimentos, queda no consumo, falta de investimentos, empresas alemãs estão se voltando para o exterior em busca de socorro, às custas de seus ativos. A Deutsche Bahn, empresa ferroviária alemã e outrora uma das meninas-dos-olhos do transporte europeu, enfrenta dificuldades de caixa e desempenho. Em consequência, decidiu vender sua subsidiária de cargas, a rentável Schenker, para a dinamarquesa DSV, por 14 bilhões de euros (cerca de R$ 85 bi), a fim de equilibrar seu caixa.

O Comerzbank, segundo maior banco privado do país, vendeu parte de seus ativos para o banco italiano Unicredit. Este manifestou interesse em adquirir todo o banco alemão, e o Banco Central Europeu já deu luz verde para esta possível transação.

Outras empresas estão pensando em buscar locações mais atraentes. A indústria química BASF decidiu investir 10 bilhões de euros para montar uma unidade na China.

Os proprietários suíços da empresa Techem, do setor energético, considerada de médio porte, pensam vendê-la para a norte-americana TPG.

A tradicional Volkswagen anunciou que pretende fechar unidades de produção, em parte devido à concorrência dos carros chineses, e rompeu um acordo salarial com o sindicato de trabalhadores que durava 30 anos, protegendo empregos e salários.

Um problema suplementar surgiu com a decisão alemã de romper parcial e temporariamente com o chamado acordo de Shengen, restabelecendo o controle policial de passaportes e veículos em suas fronteiras terrestres. Empresários cujas empresas localizam-se perto da fronteira com a Polônia e empregam trabalhadores deste país dizem estar apreensivos pela dificuldade de circulação que isto provoca.

Como a Alemanha ainda é a maior economia do continente, e a principal importadora e exportadora de produtos, seus problemas internos atingem toda a Europa. O clima geral é de apreensão e expectativa negativa para os próximos tempos.

Para amenizar a situação o ministro Robert Habeck previu que a Alemanha voltará a crescer a partir do próximo ano, anunciando a adoção de medidas desburocratizantes na relação entre governo e empresas e a busca de um novo programa de geração de energia elétrica considerado climaticamente neutro.

Mas as dificuldades não são pequenas. Desde 1980 sucessivos governos anunciam a intenção de desburocratizar a rotina daquela relação, com resultados considerados insatisfatórios.

Além disto, o clima geral dos mercados mundiais de comércio, finanças e investimentos produtivos também é de apreensão e cautela, devido à guerra na Ucrânia e aos confrontos no Oriente Médio, com a ação armada de Israel se expandindo na região.

Por fim, mas não menos importante, grupos ecológicos manifestam grave preocupação diante das, crescentes resistências, por parte de empresários do setor industrial e de produtores agrícolas, em relação às iniciativas verdes, consideradas pouco rentáveis e prejudiciais diante da concorrência estrangeira. A Alemanha e a Europa como um todo podem passar de líderes no setor a novas crianças-problemas no que toca a preservação do planeta.

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo)

De Gaza ao Líbano — um mundo de impunidade, por Paulo Sérgio Pinheiro

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Paulo Sérgio Pinheiro – A Terra é Redonda – 23/10/2024

Diversos conflitos armados recentes têm desintegrado completamente os sistemas de proteção da população civil

Uma perturbadora erosão gradual e constante das normas universais do direito internacional tem ocorrido nas últimas décadas. Diversos conflitos armados recentes têm desintegrado completamente os sistemas de proteção da população civil.

No mais grave e longevo desses conflitos, o Estado de Israel, à guisa de se defender do Hamas, em um ano destruiu na Faixa de Gaza todas as escolas, hospitais, universidades, mesquitas, igrejas, arquivos, museus. Cerca de 1,9 milhão de habitantes foram deslocados de suas casas. Quase 2% da população foi morta pelos bombardeios israelenses — 60% dessas 42 mil vítimas são crianças, mulheres e idosos a partir de 60 anos.

No final do mês de setembro, a escalada de ataques, iniciada em 8 de outubro de 2023 entre Israel e o grupo não estatal armado libanês Hezbollah, se agravou. Em 27 de setembro último, sem aviso prévio, Israel lançou mais de 80 bombas de 2.000 libras num bairro no sul de Beirute, destruindo seis prédios de apartamentos e resultando na morte do secretário-geral do Hezbollah, Hassan Nasrallah.

Seguiram-se 1.700 bombardeios no Líbano, inclusive, recentemente, no centro de Beirute. No total, 1,2 milhão de pessoas foram deslocadas, 2.083 mortas e 10 mil feridas desde outubro passado, a maioria nas últimas três semanas. Israel atacou soldados da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (Unifil) sob protestos de 40 países, inclusive do Brasil.

Tudo antes da morte do líder do Hezbollah, considerada pelos EUA como “medida de justiça”, parece ultrapassado. Mas, para as vítimas, o passado recente continua sendo o presente. Como foram as explosões em 17 e 18 de setembro no Líbano, e também na Síria, em pagers e walkie-talkies, atribuídas a Israel — visando o Hezbollah, mas que atingiram 3.500 libaneses, com 42 mortes. Perderam ambos os olhos 300 pessoas e, 500, uma das vistas. Houve registros de lesões graves na cintura e no rosto das vítimas, além de mãos amputadas.

Os ataques, a quem estava de posse dos dispositivos visados, violaram o direito internacional dos direitos humanos e humanitário, avaliou o alto-comissário de direitos humanos da ONU, Volker Turk. Apesar disso, as potências ocidentais que apoiam Israel não condenaram esses ataques. As reações da mídia internacional foram de um fascínio indecente, com o feito considerado “inovador” e “audacioso”.

Era de se esperar que os ataques de Israel contra o Líbano gerassem protestos aqui, visto o Brasil ter a maior comunidade de libaneses e descendentes fora do país do Oriente Médio — entre 7 e 10 milhões de pessoas.

Ledo engano. Diante desses horrores, as entidades da sociedade civil brasileira não se manifestaram. Caladas durante um ano quanto ao genocídio em curso em Gaza — cuja plausibilidade foi constatada pela Corte Internacional de Justiça —, guardam um obsequioso silêncio sobre a desesperadora situação no Líbano.

Mas uma vez nos salva desse constrangimento internacional o governo brasileiro, que condenou com veemência os ataques aos pagers e denunciou as operações militares de Israel no sul do Líbano como violação ao direito internacional, à Carta da ONU e a resoluções do Conselho de Segurança.

Acontecimentos como os ocorridos em Gaza, no Líbano e em diferentes partes do mundo solapam a aplicabilidade universal de normas e mecanismos internacionais decisivos para a proteção das populações civis.

Urge que a sociedade civil brasileira se dê conta, como há dias disse António Guterres, secretário-geral da ONU, do “mundo de impunidade” que ameaça os fundamentos da lei internacional.

*Paulo Sérgio Pinheiro é Professor Émerito da FFLCH (USP) e da Unicamp; ex-ministro dos Direitos Humanos. Autor, entre outros livros, de Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil, 1922-1935 (Companhia das Letras).

 

Precariedade: a barbárie assume seu protagonismo, por Jacob Carlos Lima.

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No Brasil industrial, ela foi vista por décadas como nódoa, condição passageira a ser superada. Nos tempos de Bolsonaro e Guedes, virou “solução”: evita que se fale em desemprego e alivia o empregador do “fardo” tributário. O que está por trás deste retrocesso?

Jacob Carlos Lima, no Boletim Lua Nova – 27/05/2024

A informalidade, vista por muito tempo como sinônimo de atraso econômico e pobreza urbana, volta à tona, agora com chancela presidencial, menos como sinônimo da modernidade do capitalismo flexível, mais como opção (ou falta de) entre empregos e direitos. Nada a se espantar com declarações desse tipo num quadro em que a barbárie é vista como solução; assistimos diariamente sua implementação com o beneplácito da sociedade de “bem”, representada por nossas instituições que, cada vez mais, representam menos.

Mas o que é esse informal declarado agora como modelo a ser seguido pelo mercado de trabalho?

Num artigo publicado há duas décadas, Luis Machado da Silva (2002) questionava o uso do termo “informal” para se referir a empregos não regulamentados, pois esse teria perdido seu caráter explicativo. Num quadro de expansão neoliberal, o termo “empregabilidade” poderia substituí-lo, assim como, acrescentamos, o de empreendedor individual poderia substituir também o de trabalhador autônomo que estava sendo reconfigurado.

O conceito de informalidade tem sido utilizado desde os anos 1970, tendo como ponto de partida estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) realizado no Quênia em 1972. No Brasil, substituiu o conceito de marginalidade social, empregado anteriormente para explicar aqueles que sobreviviam de expedientes na cidade, fora de qualquer regulamentação oficial, e eram marcados pela vulnerabilidade representada pela exclusão de qualquer benefício social.  Machado da Silva, de certa forma, antecipou o conceito em sua dissertação de mestrado defendida em 1971, na qual discutia mercados de trabalho metropolitanos.

Desde o início de sua utilização, o conceito de informalidade e trabalho informal foi objeto de críticas e questionamentos, como aliás acontece com grande parte dos conceitos sociológicos. O contexto do surgimento da utilização do termo se deu num momento de crescente regulação das relações capital e trabalho, após a Segunda Guerra Mundial e ao momento do debate sobre desenvolvimento-subdesenvolvimento dos países periféricos capitalistas, tendo como pressuposto a industrialização como sinônimo de modernização.

A insuficiência da industrialização levaria à formação de grandes massas excedentes ou marginais, excluídas do mercado de trabalho regulado, em ocupações de baixa produtividade e renda, na ocupação caótica da cidade e sem qualquer organização política. A dualidade da análise, progressivamente, foi substituída pela discussão do desenvolvimento desigual e combinado, no qual o capitalismo subordina outras formas de produção e de trabalho às necessidades de acumulação. A massa marginal, constituiria a imprecisa informalidade resultante de uma superpopulação excluída do mercado de trabalho regulada, o que explicaria também o baixo custo da força de trabalho na região, dada a abundância da oferta. O “atraso” como parte integrante do moderno, a população excedente refletindo a superposição de formas de acumulação distintas. Até a década de 1980, a informalidade era a representação do subdesenvolvimento, do atraso econômico, da precariedade e vulnerabilidade dos trabalhadores.

A partir daí houve a guinada neoliberal. Um conjunto de situações políticas, econômicas e culturais podem ser elencadas para discutirmos a crise de acumulação da década de 1970 e o início do que vai ser conhecido como capitalismo flexível. O trabalho regulado e com direitos sociais começa a ser visto como custo que encarece a produção e compromete a competitividade das empresas. Aberturas de mercado, desterritorialização da produção, migração em massa, vão se constituir na nova realidade da nova fase da acumulação capitalista, também sinônimo de globalização. O capitalismo flexível pressupõe a redução da intervenção do Estado na regulação econômica e na reprodução social, vistas como inibidora do livre mercado, e das novas necessidades da acumulação capitalista.

Na América Latina, autores como Hernando De Soto (1987), analisando a informalidade no Peru, descartaram a negatividade do conceito como atividade de pobre e para pobre e passaram a discutir o caráter empreendedor presente na economia informal, Assim, o problema não estaria na ausência do Estado, mas na sua presença excessiva. O trabalhador informal latino-americano, por suas estratégias de sobrevivência seria um empreendedor nato, e o Estado deveria eliminar os entraves regulatórios nessa atividade, inibidora da capacidade de iniciativa e criatividade dos indivíduos. A informalidade torna-se sinônimo de empreendedorismo e trabalho flexível.

Outro elemento nessa “reconfiguração” da informalidade resulta do seu aparecimento como problema também em países avançados, nos quais as condições laborais até então vigentes proporcionavam aos trabalhadores segurança, perspectivas de promoção e ascensão social (Sennet, 1999). Alejandro Portes, Manuel Castells, Lauren Benton (1989); Edna Bonacich (1989;1990) e Saskia Sassen (1988) referem-se aos mercados e às sweatshops nos centros das grandes cidades norte-americanas e europeias onde podem ser encontradas grande número de trabalhadores, sem nenhum tipo de vínculo formal no mercado de trabalho. Podem ser trabalhadores por conta própria ou pessoas que produzem bens ou serviços para algum “empreendedor”, em geral mediador entre os trabalhadores e grandes empresas industriais e/ou intermediários em redes de comercialização. É notório o recorte étnico desses segmentos da força de trabalho, que vão sendo substituídos de acordo com a sucessão dos movimentos migratórios, originados em países estrangeiros ou no interior dos próprios países. As indústrias da confecção, do vestuário e de calçados são ramos produtivos em que a constatação de sweatshops e de oficinas com condições precárias de trabalho tem sido recorrente, com predomínio de situações análogas à de trabalho escravo em várias partes do mundo. Em 2002 a OIT incluiu entre os trabalhadores informais aqueles dispensados em função da reestruturação econômica levada a efeito na década anterior e que não mais conseguiram retornar ao mercado de trabalho formal, redefinindo estratégias de sobrevivência agora na informalidade.

A precariedade das condições nesses empreendimentos, tanto na ausência das garantias laborais definidas pelo assalariamento, quanto às condições ambientais, de inserção e permanência do mercado de trabalho, revelam que os valores veiculados pela ideologia do empreendedorismo são uma falácia. A insegurança e vulnerabilidade dos trabalhadores tornam-se a perspectiva a curto, médio e longo prazo.

No Brasil, houve uma redução da informalidade a partir do final da década de 1990 com a estabilização econômica do governo FHC e continuou a se reduzir até 2013, resultante de uma situação econômica favorável, das políticas de formalização do emprego, valorização do salário mínimo e políticas sociais compensatórias dos governos petistas. Mesmo com a maior formalização, a ideologia empreendedora permaneceu como perspectiva de inserção no mercado de trabalho, na manutenção de uma racionalidade neoliberal tal como discutida por Pierre Dardot e Christian Laval (2016). O trabalho por conta própria é uma oportunidade de ocupação, de crescimento individual, aproveitando a capacidade de iniciativa dos indivíduos. O programa Microempreendedor Individual (MEI), criado em 2008, teve o objetivo de formalizar o trabalho informal a partir de uma redução da carga tributária para essa atividade e de uma constatação que este não é provisório como antes era pensado, mas definitivo.

Mesmo no trabalho regular e formalizado, o potencial empreendedor do trabalhador torna-se uma das qualidades valorizadas pelas empresas que buscam trabalhadores jovens, flexíveis e móveis para atender às demandas da produção. O trabalhador empreendedor é flexível e aberto à inovação. Nessa categoria se incluem tantos profissionais altamente qualificados, que prestam serviços na elaboração de projetos, para grandes empresas, quanto trabalhadores de pouca “empregabilidade”. Nestes últimos, podem ser incluídos vendedoras de artigos de beleza, nomeadas como consultoras de grandes empresas produtoras de cosméticos, camelôs e sacoleiros que comercializam produtos variados, dos mais simples aos mais sofisticados, de bugigangas a produtos eletrônicos e de informática.

A comercialização desses produtos intensifica a mobilidade nacional e internacional de trabalhadores, ligando os polos de venda aos polos de consumo de mercadorias explicando a circulação de trabalhadores em mercados de fronteiras, em feiras da madrugada e mercados populares (Pinheiro Machado, 2011; Lima e Rangel, 2019; Lima e Soares, 2002; Veras de Oliveira, 2013).

A informalidade representada por sacoleiros e camelôs, seus representantes mais visíveis, embora ilegal, termina sendo tolerada e em grande parte legitimada com a necessidade da população “se virar”. Aliás, com esse argumento, atribui-se a uma declaração do então presidente Fernando Henrique Cardoso nos anos 1990 que desemprego era coisa de país rico e que no Brasil seu índice era baixo, exatamente porque todo mundo “se virava”. Polos de produção informal por todo país, ao lado de mercados e feiras informais nas grandes cidades tornam-se objeto de repressão e estímulo. Repressão nos processos de fiscalização e regulação do espaço urbano e contra a pirataria. E estímulos com a constituição de shoppings populares e à regulamentação dessas atividades, como forma de aumentar a arrecadação de impostos, além de serem considerados modelos de flexibilidade na produção e do trabalho.

A esse contingente de trabalhadores, ilegais, mas legitimados, soma-se o contrabando em pequena escala (mas não só) que abastece pequenas lojas, formais e informais, e também a comercialização de produtos ilícitos como drogas, produtos roubados, além de serviços variados de suporte que os viabilizam. Esses trabalhadores não reconhecidos como tal, entre eles crianças e jovens, constitui-se num número crescente não mensurável pelas estatísticas oficiais. A rede que a mantém resulta, sem dúvida, da capacidade de seus organizadores de “empreender”, movimentando enormes quantias, que alimentam uma economia subterrânea considerada criminosa, que se espraiam pelas cidades formais e informais com a participação ostensiva de agentes privados e estatais.

A nova onda desregulatória do atual governo retorna ao discurso oficial, mesmo com todos os fracassos anteriores presentes na implementação de políticas neoliberais e suas nefastas consequências sociais. Mais uma vez estamos diante de um “discurso único” no qual as dissonâncias estão fragilizadas e sem saber como reagir. Empregos e direitos tornam-se antônimos. A informalidade surge como desejada, num mar de declarações absurdas.

Informais, precários e vulneráveis, o contingente de trabalhadores nessa situação só cresce. As novas tecnologias informacionais contribuem para sua disseminação inserindo uma nova variável – as plataformas digitais –, informalizando mais e mais ocupações.

Reformas são propostas e redigidas “imparcialmente” por empresários pensando nos seus interesses, e eliminando formas de solidariedade social, propondo capitalizações que, mais uma vez, inviabilizam o presente e o futuro. O informal, o ilegal e o ilícito, cada vez mais se confundem e as fronteiras com o institucionalizado se apagam.

Não tem mais atraso, ou subdesenvolvimento, como fase a ser superada. Com o fim do império da regulação, a barbárie assume seu protagonismo.

Referências bibliográficas:

BONACCIH, Edna. Asian and Latino Immigrants in the Los Angeles Garment Industry: An Explorationship of the Relationshin between Capitalism and Racial Oppression. ISSR Working Papers in the Social Sciences, 1989-90, Vol. 5, Number 13.

DARDOT, Pierre, LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

DE SOTO, Hernando. Economia subterrânea: uma análise da realidade peruana. Rio de Janeiro: Globo, 1987.

HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992.

LIMA, Jacob C., SOARES, Maria José B. Trabalho flexível e o novo informal. Caderno  CRH, Salvador, n. 37, p. 163-180, jul./dez. 2002.

LIMA, Jacob C.; RANGEL, Felipe. Dimensões da nova informalidade no Brasil: considerações sobre o trabalho em polos industriais e no comércio popular. In RODRIGUES, Iram Jacome. Trabalho e ação coletiva no Brasil: contradições, impasses, perspectivas (1978-2018). São Paulo: Annablume, p.15-39,  2019.

MACHADO DA SILVA, Luís A. Mercados Metropolitanos de Trabalho Manual (dissertação). Rio de Janeiro, Museu Nacional – UFRJ, 1971.

MACHADO DA SILVA, Luis. A. Da Informalidade à Empregabilidade (Reorganizando a Dominação no Mundo do Trabalho). Cadernos do CRH (UFBA), Salvador, v. 37, n.37, p. 81-109, 2002.

NUN, José Luis. O futuro do emprego e a tese da massa marginal.  Novo Estudos Cebrap, nº 56, p.43-62, março de 2000.

PINHEIRO MACHADO, Rosana, Made in China. São Paulo: Anpocs/Hucitec, 2011.

PORTES, A., CASTELLS, M., BENTON, L.A. The Informal Economy. Studies in Advanced and Less Developed Countries. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1989.

SASSEN, Saskia. New York City’s Informal Economy.   ISSR Working Papers Volume 4, Number 9/1988

SENNET, Richard. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Record, 2009.

VERAS DE OLIVEIRA, Roberto. O Polo de confecções do Agreste Pernambucano: elementos para uma visão panorâmica. In: VERAS DE OLIVEIRA, R., SANTANA, M.A. (org.) Trabalho em territórios produtivos reconfigurados no Brasil. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2013.

 

A falácia das “metodologias ativas” por  Márcio Alessandro de Oliveira.

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 Márcio Alessandro de Oliveira – 23/10/2024 – A Terra é Redonda

A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida

Este ano, tive o desprazer de deparar com um critério desagradável no edital de um Instituto Federal (IF), localizado no Nordeste: exigia o uso de “metodologias ativas”. Detesto-as.

Nem vou explorar o fato de que “metodologias” se tornou um jargão pedantesco dos pedagogos, muitos dos quais nunca lecionaram, embora insistam em vigiar o trabalho docente sob o signo da gestão, marca do neoliberalismo. Este, como sabemos, considera a escola como empresa e o aluno como cliente – e o cliente, é claro, tem sempre razão.

O cliente tem de gostar do produto mercantil em forma de “aula”, e é exatamente por isso que as falácias escolanovistas e construtivistas há uns cem anos estão sustentando, “cientificamente”, as tais “metodologias” ativas, que supostamente dão motivação inesgotável ao aluno, quer ele seja suficientemente inteligente e empenhado nos estudos que tem de fazer em casa, quer não. Entretanto, para o viés “progressista” da pedagogia, a culpa de qualquer fracasso só pode estar nos procedimentos de ensino, que, por pedantismo, os pedagogos chamam de “metodologias”.

Sempre uso a locução procedimentos de ensino por considerá-la mais precisa, ainda que a precisão seja uma consequência de sua abrangência. Contudo, mesmo se eu usasse a palavra metodologias, que tem sido usada de modo cada vez mais leviano ao ponto de ficar vazia de significado real, continuaria cabendo a seguinte pergunta: Quando foram criadas as metodologias “passivas”? Em quais disciplinas e em quais níveis elas são aplicáveis? Por que insistem em demonizar o ensino tradicional?

O ensino que a pedagogia demonizou eu divido nas seguintes etapas: revisão do conteúdo da aula anterior; lançamento de conteúdo; explicação e exemplificação do conteúdo novo; fixação da matéria por meio da avaliação formativa; dúvidas dos alunos.

O esquema acima permite a indução, a dedução, a analogia e a maiêutica, e está de acordo com a didática tradicional e conteudística, centrada que é na análise dos dados. Estes, no ensino, compõem a matéria, ao passo que, na pesquisa, compõem o corpus. Esta é a única semelhança entre o ensino e a pesquisa: os procedimentos de estudo giram em torno dos dados, de modo que são inseparáveis o ensino e a pesquisa. Contudo, são práticas muito distintas. Todo bom professor é um bom pesquisador. Daí a facilidade de concluir que o “argumento” de que o pesquisador não sabe dar aula é uma falácia.

Trata-se de um ressentimento contra os verdadeiros acadêmicos, que valorizam a organização dos dados e a clareza, o que não exclui uma dose de vocabulário técnico-científico nem o esforço do aluno. Estes dois últimos atributos a pedagogia moderna rechaça, embora os mesmos defensores das “metodologias ativas” (que, como integrantes de uma seita totalitária, não aceitam críticas aos seus dogmas) reprovem sem dó os alunos que não mostram aptidão para o mestrado ou doutorado. (Existem, é claro, pessoas aptas que são reprovadas por outros motivos. Um deles é o fato de não bajularem os professores do programa de pós-graduação, apesar de eu mesmo nunca ter presenciado isso no meu tempo de mestrando.)

O passo a passo de cinco fases também está de acordo com a premissa de que o aluno nunca fica passivo por assumir o que o linguista Mikhail Bakhtin considerava como sendo a atitude responsiva-ativa. Enquanto o receptor da mensagem recebe o texto, ele fica imaginando réplicas ou dúvidas, desde que ele preste atenção. Sendo assim, não posso aceitar a pressuposição da existência de metodologias “ativas”. Ocorre que é insustentável o conceito de metodologias “ativas”, porquanto nunca tenham existido as metodologias “passivas”.

Além disso, temos de levar em conta a origem do meu passo a passo, que é a didática de Herbart, descrita da seguinte forma: “esse ensino tradicional estruturou-se por meio de um método pedagógico, que é o método expositivo, que todos conhecem, todos passaram por ele, e muitos estão passando ainda, cuja matriz teórica pode ser identificada nos cinco passos formais de Herbart. Esses passos, que são o passo da preparação, da apresentação, da comparação e assimilação, da generalização e, por último, da aplicação, correspondem ao esquema do método científico indutivo, tal como fora formulado por Bacon, método que podemos esquematizar em três momentos fundamentais: a observação, a generalização e a confirmação. Trata-se, portanto, daquele mesmo método formulado no interior do movimento filosófico do empirismo, que foi a base do desenvolvimento da ciência moderna” [SAVIANI, 2021, p. 35-6].

Ao fragmento acima devemos adicionar outro: “se os alunos fizeram corretamente os exercícios, eles assimilaram o conhecimento anterior, então eu posso passar para o novo. Se eles não fizeram corretamente, então eu preciso dar novos exercícios, é preciso que a aprendizagem se prolongue um pouco mais, que o ensino atente para as razões dessa demora” [SAVIANI, 2021, p. 37].

Ademais, para o Sr. Luckesi, “o método pode ser entendido dentro de uma concepção teórica ou de uma compreensão técnica. O autor compreende Metodologia como a concepção segundo a qual a realidade é abordada. Esta é uma concepção teórica do método. Porém, afirma que há uma compreensão técnica do método que também atravessa o conteúdo, visto que “são modos técnicos de agir que estão dentro do conteúdo que se ensina” (p. 138). Exemplo: o modo de extrair raiz quadrada (Matemática) ou o modo de proceder numa análise sintática (Língua Portuguesa). Tanto uma quanto a outra perpassam os conteúdos tratados nas diferentes disciplinas curriculares” [GRUMBACH e SANTOS, 2012, p. 33].

Com efeito: “Todo conhecimento é atravessado por uma metodologia e é possível descobrir no próprio conteúdo exposto o método com o qual ele foi construído [LUCKESI, 1995, p. 138 apud GRUMBACH e SANTOS, 2012, p. 34]”.

Por que tantos acadêmicos defendem as metodologias “ativas”? Por que insistem em defender essa ficção pedagógica na educação básica e até no ensino superior? Posso listar alguns fatores.

Antes de tudo, a universidade, mesmo que seja pública, continua sendo um aparelho ideológico de Estado. Uma vez que o Estado fica na mão do mercado, o meio acadêmico se torna um capitão do mato do neoliberalismo, cujo eixo “moral” e cujo eixo epistemológico são o individualismo extremo, ligado ao empreendedorismo. É ela (a universidade) que, dentro do neoliberalismo, tem força equivalente ao poder que a Igreja Católica tinha na Idade Média, conforme um dos arrazoados do sociólogo Jessé Souza.

Sem o aval “científico” da universidade, não seria possível uma pedagogia que rebaixasse o professor, e, de fato, ela o rebaixa com a regularidade do sol. Basta ver o assédio moral que os docentes sofrem nas escolas municipais e estaduais. Na rede estadual do Espírito Santo, por exemplo, há uma portaria que impõe vigilância na sala de aula e uma lista de descritores a serem aplicados pelo professor, que é tratado como se fosse funcionário de uma lanchonete de franquia. Se o professor não acatar esse despautério, responderá por isso. Também responderá se não usar tecnologias ultrapassadas, compradas com o dinheiro público. Esse gosto por tecnologia, que é usada como se fosse um fim, e não um meio, é herança do tecnicismo, tendência pedagógica implantada no Brasil no tempo da ditadura militar.

As verbas para as “pesquisas” da pedagogia moderna estão condicionadas a linhas de pesquisa que não melhoram o ensino nem a vida profissional dos docentes, porém é certo que reforçam a “inclusão” escolar num país com esgoto a céu aberto, conforme a cartilha do Banco Mundial.

Outro fator da desonestidade intelectual dos doutores que defendem a baboseira em forma de “metodologia ativa” é a necessidade de tornar “lúdico” e “atraente” o ensino para que o aluno fique na escola, mesmo que ele não estude. É graças a essa pseudoinclusão que políticos e burocratas incompetentes e incultos conseguem se promover. “Assim”, escreve a sueca Inger Enkvist (2021, p. 83), “os políticos arruinaram a escola pública enquanto se faziam passar por seus defensores”. Não importa a altíssima temperatura das salas de aula, não importa a falta de ventilador, não importa a falta de erudição, não importa a falta de bibliotecas bem equipadas e protegidas por bibliotecários (profissionais raros): o que importa é que o professor dê motivação aos alunos, mesmo que a saúde mental dele esteja em frangalhos. E ai do professor que não usar os outros “espaços pedagógicos” da escola para agradar aos “líderes” de turma, que vigiam o professor tanto quanto os filhos vigiam os pais no romance 1984, de George Orwell.

Não é de surpreender que os pedagogos sejam contra o ensino conteudístico e transmissivo: eles não têm conteúdo para transmitir: sua ladainha é desprovida de substância: é um catecismo do nada. Se realmente acreditassem no poder transformador da educação, acreditariam no esforço do aluno e no ensino baseado em conhecimento acadêmico, e não em atividades práticas que exigem corte e colagem de papel ou desenhos de matinho e florzinha. Tratam todos os alunos como se fossem crianças, independentemente do nível do ensino e da modalidade.

No caso da educação linguística, tudo se resume a uma visão superficial das tipologias ou tipos textuais (que são cinco) e a gêneros textuais (que são praticamente ilimitados). Ao aluno são oferecidos textos ruins, que falam de redes sociais e outros temas que são do gosto do mercado. Os pedagogos adoram isso, porque não percebem que estão acentuando a formação de consumidores para a indústria cultural, eivada de senso comum e adolescentes falsos de séries televisivas da Nickelodeon.

Isso tudo, porém, é condizente com a visão intelectualmente desonesta dos sectaristas das “metodologias ativas”. Com efeito: um professor que tenha feito uma formação aligeirada é a justificativa perfeita para ele receber um baixo salário. Ele pode ser um agente de “inclusão” social, um “facilitador” do aprendizado, mas nunca poderá ser autoridade na matéria que leciona, a menos que queira correr o risco de ser tachado de tirano. Quem não se dobra aos dogmas dos sectaristas é perseguido a ponto de responder a um PAD (Processo Administrativo Disciplinar).

O professor não leciona propriamente: o aluno faz “atividades” para ficar “ativo”, mas não faz uma aventura intelectual, que esse tipo de exercício exige esforço e condições que os gestores não oferecem ou por incompetência, ou por má vontade. Ora, se o aluno tem de fazer “atividades” preenchendo papel em nome de avaliações externas, o professor não tem de ser um modelo de como pensa e age um intelectual.

Apesar de tudo, estou convencido de que, muito embora seja impossível começar a inclusão só pela escola num país onde alunos mal têm o que comer em casa – e defender o oposto disso seria tão absurdo quanto dizer que cobrar mensalidades dos alunos “ricos” das universidades públicas seria uma forma de igualdade e inclusão –, é fato que os países que não seguiram a pedagogia moderna, cheia de ineptos projetos, metodologias “ativas” e outras tolices que interessam tão só ao empresariado, conseguiram mais igualdade e inclusão do que os que adotaram a pedagogia moderna.

Quem mais precisa de ensino tradicional é justamente quem é pobre. A Suécia é um exemplo do que a pedagogia moderna faz: lá, o totalitarismo se consolidou, e isso porque o sistema escolar tornou burros os seus cidadãos. Esses são os efeitos danosos do escolanovismo e do construtivismo, correntes anticientíficas ignoradas por muitos professores, acostumados que estão com o “status” de peões do ensino. Se, no passado, todos tivessem se rebelado contra as falácias de Carl Rogers, expoente da linha não-diretiva e do fato óbvio de que o aprendizado acontece no cérebro do aluno, talvez tivessem conseguido exorcizar também o fantasma de John Dewey. Ambos os autores estão obsoletos, e, no entanto, suas teses “científicas” continuam se sobrepondo aos professores, que ignoram as referências com as quais poderiam combater as falácias dos cientistas das arábias.

Eu disse que somos vigiados. Isso acontece há décadas! “Entre nosso corpo e nossa sexualidade”, escreve Marilena Chauí (2018, p. 113-14), “interpõe-se a fala do sexólogo, entre nosso trabalho e nossa obra, interpõe-se a fala do técnico, entre nós como trabalhadores e o patronato, interpõe-se o especialista das ‘relações humanas’, entre a mãe e a criança, interpõe-se a fala do pediatra e da nutricionista, entre nós e a natureza, a fala do ecologista, entre nós e nossa classe, a fala do sociólogo e do politólogo, entre nós e nossa alma, a fala do psicólogo (muitas vezes para negar que tenhamos alma, isto é, consciência). E entre nós e nossos alunos, a fala do pedagogo”.

Mas há mais: Vejamos o que diz a sueca Inger Enkvist (2020, p. 275-6): “[] os pedagogos não funcionam de maneira científica nem democrática, mas como uma seita com uma fé especial que não questiona as bases de sua crença. Autoproclamados especialistas do ensino, apresentam-se como uma instância superior aos demais professores que “apenas” ensinam suas matérias. A primeira fase foi a doutrinação dos professores para justificar a presença dos pedagogos. Como não são responsáveis por ensino algum, sua presença constitui um tipo de parasitismo nos sistemas educacionais []. Como é típico das seitas, desprezam os demais. Os pedagogos são os bons, os que sabem a verdade, e introduziram uma nova linguagem para os iniciados. Além de uma crença e de uma linguagem própria, uma seita também precisa de dinheiro, e nesse caso os membros do grupo souberam instalar-se dentro das estruturas do serviço público, e viver do dinheiro do contribuinte”.

Muitos pedagogos, sem que nunca tenham lecionado, num total desrespeito ao Artigo 67 da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), tornam-se diretores escolares… perdão: tornam-se gestores escolares – e o gestor, conforme o que aponta Marilena Chauí, é análogo ao gângster dentro do neoliberalismo. Isso é tão absurdo quanto colocar na direção de um hospital um não-médico ou um médico que nunca tenha clinicado. Também há os que se tornam supervisores ou inspetores, que são capitães do mato.

Precisamos nos insurgir contra a pedagogia moderna: devemos fazer debates públicos fundamentados na verdade, e a verdade é que não funcionam as tais “metodologias ativas”: são um fracasso vergonhoso, e isso tem de ser exposto nos simpósios e nas outras comunicações realizadas em eventos acadêmicos, mesmo que isso acabe ferindo a vaidade dos doutores das arábias que veneram o Lattes.

Outro passo importante é impugnar os editais que digam que o professor tem de ser avaliado em função do uso das tais “metodologias” ativas. Por lei, cada um de nós, professores, tem direito a diferentes concepções pedagógicas, e a que eu adotei é tradicional. Não posso ser obrigado a distorcer anos de conhecimento acadêmico só porque os próprios acadêmicos querem selecionar pessoas que compactuem com as tolices deles.

Em agosto de 2024, fiquei em segundo lugar na prova objetiva do concurso de um Instituto Federal, localizado no Sudeste. Depois descobri que fui desclassificado na prova didática: tirei 48 numa escala de 0 a 100. A menos que a banca aceite o meu recurso, todo o tempo e todo o dinheiro investido em viagens e hospedagens terão sido em vão. Não posso afirmar que o fato de eu ter inserido no cabeçalho do plano de aula os excertos de Saviani e o conceito de Bakhtin para fundamentar as oposições que naquele documento eu faço às “metodologias ativas” me prejudicou, até porque o barema não apresentava o uso de tais “metodologias” como critério de avaliação da prova didática, mas a subjetividade dos avaliadores, a julgar pelo currículo deles, está eivada de tolices pedagógicas do jaez das “atividades”.

Curiosamente, apesar de todo o “progressismo”, a banca exigira conhecimentos que estão na gramática de Evanildo Bechara, um autor que, para muitos, é extremamente conservador. As questões objetivas também tinham exigido conhecimentos que só poderiam ser acumulados por um professor cujo perfil fosse acadêmico, embora um bom professor pudesse fracassar naquela etapa: caíram questões sobre o pensamento de autores cujos livros não foram mencionados no edital, que nem sequer continha bibliografia.

Permanece a minha sugestão: temos de nos insurgir contra as falácias pedagógicas. Isso quer dizer que temos de fazer um movimento de baixo para cima, de modo que seja atingido o meio acadêmico: é ele que dá o aval “científico” a toda a barbárie que nós, professores, sofremos, e que é até mais perigosa do que a do tempo da ditadura militar brasileira ou do que a da “Revolução” Cultural da China. Esta última perseguiu abertamente professores e outros intelectuais.

Não devemos sentir medo: na democracia, é salutar a contestação; na ciência, só pode haver verdade quando questionamos os pressupostos e os métodos, ou seja: o conhecimento só é confiável quando a epistemologia e o paradigma são contestados e testados. A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida.

*Márcio Alessandro de Oliveira é mestre em Estudos Literários pela UERJ e professor da rede estadual do Espírito Santo.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da Criação Verbal. Tradução feita a partir do francês por Maria Emsantina Galvão G. Pereira. 2ª ed. SP: Martins Fontes, 1997.

CARNEIRO, Moaci Alves. LDB fácil: leitura crítico-compreensiva, artigo a artigo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.

CHAUÍ, Marilena. O que é ser educador hoje? Da arte à ciência: a morte do educador. In: Em defesa da educação pública, gratuita e democrática. Organização de Homero Santiago. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. ENKVIST, Inger. O complexo ofício de ser professor. Tradução de Ricardo Harada. 1ª ed. Campinas, SP: Editora Kírion, 2021.

______. A boa e a má educação: exemplos internacionais” (tradução de Felipe Denardi. São Paulo: Kírion, 2020.

ORWEL, George. 1984. Trad. Alexandre Hubner e Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

Parece revolução, mas é só neoliberalismo: o professor universitário em meio às cruzadas autoritárias da direita e da esquerda. In: Piauí (Folha de São Paulo). Jan. 2021. Disponível em: <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/parece-revolucao-mas-e-soneoliberalismo/>.

SANTOS, Ana Lúcia Cardoso; GRUMBACH, Gilda Maria. Didática para Licenciatura: Subsídios para a Prática de Ensino (volumes 1º e 2º). Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2012.

SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. Campinas, SP: Autores Associados, 2021.

SOUZA, Jessé. A elite do atraso. Rio de Janeiro: Leya, 2017.

______. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. 2ª ed. Rio de Janeiro: Leya, 2018.

 

A Rota da Seda

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Na sociedade contemporânea encontramos grandes confrontos em curso na comunidade internacional, além dos conflitos militares que movimentam variadas regiões, gerando destruições generalizadas, o aumento das mortes e devastação na infraestrutura, além disso, encontramos o crescimento dos confrontos comerciais, retaliações, protecionismos e a busca constante pela liderança global, onde destacamos os embates entre os Estados Unidos e a China.

Neste cenário marcado por grandes confrontos estratégicos, destacamos as movimentações geopolíticas em curso na economia mundial. Desde 2013, o governo chinês, liderado por Xi Jinping propôs a construção da Nova Rota da Seda com grandes investimentos para desenvolver novas rotas comerciais terrestres e marítimas ao redor do mundo, impulsionando as estruturas produtivas globais, gerando novos empregos e fomentando todas as regiões do mundo.

Desde o lançamento, a Nova Rota da Seda expandiu-se para mais de 147 países com adesão de nações africanas, da Oceania e da América Latina, consumindo mais de US$ 2 trilhões de projetos de investimentos produtivos, movimentando variados setores econômicos e políticos, alavancando ferrovias, portos, estradas, aeroportos, oleodutos, gasodutos, parques industriais, entre outros investimentos, gerando novos modelos de negócios, renovando horizontes, abrindo novas oportunidades de crescimento econômico e produtivo.

Dentre as nações da América Latina encontramos ao menos 20 nações que aderiram a iniciativa chinesa, se integrando aos investimentos produtivos da Rota da Seda, levando os países participantes e o governo chinês a pressionarem para a entrada do Brasil nesta iniciativa ambiciosa, garantindo grandes vantagens políticas, melhoras sociais substanciais e retornos econômicos estratégicos.

A Nova Rota da Seda, iniciativa chinesa marcada por grandes investimentos produtivos, busca estimular o crescimento do comércio, o aumento da cooperação econômica e o desenvolvimento de infraestrutura nos países ao longo das rotas. Apesar das críticas sobre as dívidas geradas, seus defensores argumentam que se trata de uma ferramenta de desenvolvimento econômico.

Ao analisar o caso brasileiro, percebemos visões diferentes, alguns diplomatas acreditam que a entrada do Brasil na Nova Rota da Seda seria um grande ganho político para a China e auxiliaria na reestruturação da infraestrutura nacional, incluindo projetos de ferrovias e outros setores estratégicos para garantir ganhos de produtividade e dinamismo para competir numa economia globalizada. No entanto, há divergências entre diplomatas brasileiros sobre a adesão, alguns acreditam que o Brasil já recebe investimentos chineses significativos, reduzindo nossa autonomia econômica e aumentando a desnacionalização dos setores produtivos.

Existem pesquisas do Banco Mundial que mostram que os investimentos da Nova Rota da Seda têm diminuído os custos do comércio mundial, garantindo o incremento das trocas internacionais e garantindo o crescimento das rotas comerciais, as nações que conseguiram se preparar anteriormente, com fortes investimentos em estruturas produtivas, aumento dos dispêndios em educação, ciência e tecnologia, podem garantir grandes retornos no crescimento do comércio global.

No caso do Brasil, a entrada na Nova Rota da Seda deve ser vista como uma decisão estratégica, aderir pode trazer vantagens desde que tenhamos maiores ganhos econômicos e produtivos, além de ambicionar a transferência de tecnologias, novos investimentos estratégicos que reduzam os custos nacionais, contribuindo para atrair novos parceiros comerciais, alavancando o desenvolvimento econômico e reduzindo as gritantes desigualdades sociais que nos caracterizam historicamente.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

 

Por que as economias crescem? por Bernardo Guimarães.

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Direitos de propriedade afetam desenvolvimento econômico. E liberdade política? Não temos certeza

Bernardo Guimarães, Doutor em economia por Yale, foi professor da London School of Economics (2004-2010) e é professor titular da FGV EESP

Folha de São Paulo – 23/10/2024

Por que uns países são tão mais ricos que outros? Por que em algumas décadas algumas economias crescem muito enquanto outras ficam estagnadas?

Em 1993, Douglass North ganhou o Prêmio Nobel pelos seus trabalhos com dados históricos que apontavam para o papel das instituições políticas no desenvolvimento econômico. Em resumo, ele concluía que leis e instituições que garantiam os direitos de propriedade e o cumprimento de contratos, protegendo os investidores do governo e de outras pessoas, estimulavam investimentos e inovações, e o crescimento econômico aparecia como consequência.

Na semana passada, Acemoglu, Johnson e Robinson ganharam o Prêmio Nobel por seus trabalhos sobre instituições, aprofundando e expandindo os achados de North. Por exemplo, em um artigo publicado em 2005, Acemoglu e Johnson usaram análise estatística e dados históricos para concluir que instituições que protegem pessoas da expropriação por governos são mais importantes que instituições que permitem contratos entre as pessoas.

Os vários trabalhos nessa área levaram os autores a uma visão sobre os caminhos que países devem trilhar para a prosperidade. Essa visão foi trazida para o público geral no livro “Porque as Nações Fracassam”, de Acemoglu e Robinson, publicado em 2012. O livro enfatiza a importância de instituições inclusivas, que promoveriam inovação, prosperidade para muitos e liberdades políticas.

Poucos dias depois do anúncio do Prêmio Nobel, saiu a notícia de que o crescimento da economia chinesa poderia ficar abaixo de 5% no ano de 2024. Analistas tratam essa notícia com um tom negativo. Com exceção de 2020 (Covid) e 2022, 2024 deve trazer a menor taxa de crescimento da economia do país desde os anos 1990.

Desde meados do século passado, vários países asiáticos tiveram enorme crescimento econômico. Coreia do Sul, Taiwan e Singapura são exemplos usuais, juntamente com a China, cuja renda por habitante era parecida com a da Etiópia em 1980 e hoje já é bem maior que a do Brasil.

Acemoglu e Robinson argumentam no livro que o crescimento chinês não deve ser sustentável no longo prazo. O sistema político chinês concentra o poder nas mãos de uma pequena elite política, os líderes do Partido Comunista, e isso deve reduzir a possibilidade de inovações e crescimento de longo prazo.

Desde 2012, quando o livro de Acemoglu e Robinson foi publicado, a economia da China quase dobrou de tamanho. A economia brasileira, por outro lado, mal saiu do lugar –neste ano vamos comemorar o crescimento de 3%. Pode ser que eles estejam certos, mas esse longo prazo está demorando para chegar.

Como em geral acontece, algumas prescrições do livro são mais bem ancoradas na evidência que outras. Faz sentido, pois os autores devem mostrar ao mundo suas visões e conclusões. Mas se há bastante evidência ligando proteção de direitos de propriedade ao desenvolvimento econômico, temos menos segurança sobre o efeito de liberdade política no crescimento do PIB.