Não será fechando os olhos e apostando na volta a uma normalidade perdida que os problemas serão resolvidos
Rodrigo Nunes – Folha de São Paulo, 27/10/2024
Professor da Universidade de Essex e da PUC-Rio. Autor de “Do Transe à Vertigem: Ensaios sobre Bolsonarismo e um Mundo em Transição” e “Nem Vertical Nem Horizontal: uma Teoria da Organização” (no prelo)
[RESUMO] Professor de filosofia analisa que fraco desempenho da esquerda nas eleições municipais deste ano decorre de uma série de complexos problemas aos quais ela não vem oferecendo resposta adequada, como a crescente desigualdade econômica, a precarização do trabalho, a submissão da política à lógica das redes sociais, os desastres ecológicos e o crescimento da extrema direita. Fazer de conta que a crise é passageira, e não produto de tendências de longo prazo, apenas irá acelerar derrocada das forças progressistas, avalia.
A despeito de eventuais viradas na votação deste final de semana, o veredito sobre o resultado das eleições municipais está dado. Ele indica uma incapacidade da esquerda em transformar sua volta à Presidência, uma vitória apertada há dois anos, em uma retomada mais ampla, capilarizada na política local em diferentes partes do país.
Indica também que o governo Lula falhou até aqui em reacender o otimismo que acompanhou sua eleição duas décadas atrás, ou mesmo as memórias positivas do que veio depois.
Percebe-se ainda uma consolidação do centrão —como pano de fundo que, de tão pervasivo, ameaça a todo momento ocupar o centro da cena política brasileira— e do bolsonarismo —não apenas uma força que pode continuar a existir para além de Bolsonaro, mas um vírus suficientemente potente para sofrer mutações altamente contagiosas, como demonstrou a candidatura de Pablo Marçal em São Paulo.
Diante disso, proliferam os diagnósticos de crise, ou mesmo morte da esquerda brasileira; todos são justos à sua maneira. Mas o que ocorre no Brasil está longe de ser um caso isolado.
E ainda que estas eleições tenham sido marcadas por questões bastante nossas —o fortalecimento de um bloco de lideranças evangélicas alinhadas à extrema direita, a infiltração crescente do crime organizado na política, o papel determinante das chamadas emendas Pix no aumento da taxa de reeleição —, elas têm como pano de fundo um conjunto de enigmas que a esquerda global hoje enfrenta, sem saber dar-lhes resposta.
Isso deixa claro que tampouco se trata de uma simples dificuldade de comunicação, como se fosse apenas a propaganda em tempos de eleição que falhasse —e bastassem caras mais sorridentes ou linguagens mais “jovens” para tudo se resolver.
Estamos falando de nós problemáticos que afetam tanto a substância da política como a forma como ela é feita, nos períodos de pleito e, sobretudo, fora deles. Eles não correspondem a uma simples hierarquia de quais seriam as “questões mais importantes de nosso tempo”, embora certamente estejam entre elas, mas antes são as questões que definem nosso tempo, diferentemente de outras (como o racismo, a diferença entre gêneros, o colonialismo) que são a herança maléfica de períodos anteriores.
Neste contexto mais amplo precisamos situar o impasse que as eleições municipais revelam, que marcarão não apenas o próximo ciclo eleitoral, mas as próximas décadas.
Desigualdade e viração
O primeiro destes nós, sob muitos aspectos o mais determinante, tem a ver com o crescimento da desigualdade econômica, e por extensão política, nas últimas décadas.
Em comparação ao período do pós-guerra, a era neoliberal viu uma explosão da concentração de riqueza, claramente expressa no crescimento do número de bilionários e no iminente surgimento dos primeiros trilionários, que se traduz em concentração de poder político.
Cada vez mais, um grupo restrito de indivíduos tem uma capacidade infinitamente maior de influenciar as ações governamentais, na comparação com a maioria da população.
Isso ficou muito evidente quando, após a crise de 2008, partidos tanto de direita quanto nominalmente de esquerda em diversos países acorreram a salvar os bancos e transferiram o custo do resgate para a população, na forma de cortes na legislação trabalhista e na proteção social.
É visível também no modo como o presidente Emmanuel Macron simplesmente ignorou a vitória da esquerda nas eleições parlamentares francesas para apontar um governo que tende a fortalecer a extrema direita de Marine Le Pen no curto prazo; ou na maneira como o socialista Olaf Scholz (Alemanha), o trabalhista Keir Starmer (Reino Unido) e os democratas Joe Biden e Kamala Harris (Estados Unidos) dão as costas a uma opinião pública crescentemente crítica ao Estado de Israel para continuar apoiando ações cada vez mais indistintas do genocídio nu e cru.
O que isso significa para a forma como se faz política é que o consentimento ativo da população parece importar cada vez menos: os Estados se acostumaram a operar com baixa legitimidade, aproveitando-se de, e reforçando, uma tendência histórica de queda do engajamento na política.
E quando governos nacionais tentam se comportar de outra forma, como foi o caso da Grécia sob o Syriza em 2015, mecanismos internacionais podem facilmente dobrá-los. Em resumo, tornou-se muito mais difícil influenciar governos não só desde fora, como, inclusive, desde dentro.
O segundo nó se refere ao que se costuma chamar de “transformações do mundo do trabalho”: o aumento do subemprego e da informalidade, a precarização, a uberização etc.
Isso não apenas faz com que as velhas estruturas sindicais apareçam como defensoras de um estrato cada vez mais restrito de trabalhadores formais, mas cria todo um novo universo ao qual as categorias sobre as quais a luta laboral foi historicamente construída não se aplicam: não há mais identificação do trabalhador enquanto trabalhador, direito de se organizar, tempo livre, espaço de trabalho como espaço de organização etc.
Neste campo, os pleitos municipais trouxeram alguns sinais positivos que a esquerda faria bem em explorar e aprofundar, como a eleição para a Câmara Municipal carioca de Rick Azevedo, do movimento Vida Além do Trabalho, que luta contra a escala 6×1; e a proposta de Guilherme Boulos, já implementada em lugares como Juiz de Fora e o Distrito Federal, de instalar pontos de apoio para entregadores, que têm o potencial de se constituírem como locais de troca e organização para os trabalhadores de aplicativo.
O terceiro nó, diretamente ligado ao anterior, tem a ver com o que poderíamos chamar de longa duração da reprogramação subjetiva produzida pelo neoliberalismo. Décadas de ajustes e reformas feitas sob a lógica do recuo das proteções sociais e individualização dos riscos não têm um efeito apenas sobre a forma como as pessoas vivem, mas também sobre como elas veem a si mesmas e suas relações umas com as outras.
Daí que mesmo estratos hiperexplorados como os trabalhadores de aplicativo se identifiquem com a figura do empreendedor, e que o imperativo da “viração” —a necessidade de fazer o que for preciso para sobreviver— se traduza em internalização da ideia de que a vida social é uma guerra de todos contra todos mediada pelo mercado, de que o fracasso é uma responsabilidade pessoal, e daquilo que poderíamos chamar “solidariedade negativa”: o sentimento de que “se eu tenho que passar por isso, todo mundo também tem”.
Simultaneamente, a financeirização da economia e o fato de que o trabalho assalariado não é mais garantia de uma boa vida explicam que cada vez mais gente se volte para soluções mágicas de enriquecimento, como a indústria dos coaches e as apostas online.
Do ponto de vista da forma, isso significa que não é mais evidente que as pessoas queiram mais proteção, mais cuidados, mais participação. A combinação de um largo histórico de frustrações na entrega desse tipo de promessa com a crença crescente em atalhos, ainda que improváveis, faz com que mesmo setores historicamente desprotegidos prefiram estar “livres” para empreender e vejam atitudes antes tidas por antissociais, a evasão fiscal ou o recurso à legalidade, como sinais de esperteza e competividade.
Isso ajuda a explicar porque parte do eleitorado parece infinitamente capaz de perdoar comportamentos questionáveis de figuras como Donald Trump, Javier Milei e Pablo Marçal, assim como a receptividade de um discurso anticomunista para o qual “comunismo” é qualquer coisa que busque impor algum limite ao capitalismo de faroeste mais desenfreado.
Devir-plataforma do mundo
O quarto nó é a plataformização da economia e a colonização da política pela lógica das redes sociais.
Um aspecto da hegemonia neoliberal das últimas quatro décadas foi a substituição de políticas antitruste, voltadas a limitar o poder que monopólios podiam ter de ditar as regras de seus mercados, por uma lógica inspirada pelos argumentos de Robert Bork e seus acólitos na Universidade de Chicago, segundo a qual a formação de monopólios não seria um problema conquanto implicasse preços mais baixos para os consumidores.
Além de ignorar os efeitos sobre trabalhadores e ambiente, esta doutrina não apenas justificou a leniência com o aumento da concentração de capital nos mais diversos setores —demonstrou-se particularmente mal adaptada à economia digital, na qual empresas como Google e Meta podem oferecer serviços gratuitos porque seu verdadeiro negócio consiste em vender os dados e a atenção de seus usuários, e outras, como a Uber, têm financiamento suficiente para operar no vermelho até dominar seus respectivos mercados.
O problema, é claro, não para aí. Algumas dessas companhias não são somente monopólios, mas controlam uma fração absolutamente desproporcional de toda a informação que se produz e se consome no mundo, o que lhes confere um poder inédito sobre aquilo que se vê e não se vê, bem como sobre os dados de quem se mostra.
Os caprichos de Elon Musk à frente do ex-Twitter apenas tornam explícita uma realidade que já existe há algum tempo: a aparência de funcionamento “neutro” esconde o fato de que os algoritmos que governam essas plataformas atendem antes de tudo aos interesses econômicos e simpatias políticas de seus proprietários.
Esta situação impõe uma série de questões de substância, como a regulação das plataformas, o desmembramento de monopólios e o combate ao capitalismo anticompetição. Não é à toa que, como demonstra a entrada entusiasmada de Elon Musk e da indústria de criptomoedas (entre outros) na campanha presidencial estadunidense, a extrema direita parece cada vez mais deixar de ser o plano B para se tornar o plano A do Vale do Silício. Afinal, ninguém promete descontrole tão absoluto quanto ela.
Mas a plataformização também implica uma série de consequências para a maneira como se faz política hoje, decorrentes da lógica das redes sociais. Não se trata somente da prevalência de um certo modelo de captura da atenção, que favorece conteúdos cada vez mais extremos, da ubiquidade de processos recursivos de polarização entre diferentes públicos, da explosão da desinformação, ou da centralidade de figuras como os trolls.
Pablo Marçal e Nikolas Ferreira, talvez os maiores vencedores destas eleições, são os dois grandes expoentes atuais de um empreendedorismo que vive de converter notoriedade digital em capital econômico e político, e vice-versa.
O que se vê até aqui é que faltam ao sistema eleitoral proteções adequadas para lidar com essas transformações. E se a eleição ofereceu alguns sinais positivos de que a esquerda não está completamente perdida neste novo terreno de disputa —de novo, o avanço do Vida Além do Trabalho—, convém lembrar que a lógica das plataformas não parece favorecer apenas conteúdos de extrema direita, mas também uma forma de política centrada na personalidade de indivíduos isolados, com bases atomizadas e sem instrumentos de controle sobre o líder —o que parece mais apto a produzir novos tipos de clientelismo que projetos coletivos de emancipação.
Adiar (ou apressar) o fim do mundo
O quinto nó é, sem dúvida, o maior de todos; trata-se, obviamente, da crise ecológica.
Do ponto de vista da substância, sua consequência mais importante é a impossibilidade de manter a aposta em um crescimento infinito da economia como maneira de combater a desigualdade no longo (ou longuíssimo) prazo.
Essa foi a promessa, liberal por excelência, que a maior parte da esquerda foi obrigada a abraçar a partir do momento em que tirou a propriedade dos meios de produção de pauta: se não estava mais em questão distribuir a riqueza existente, só restava fazer o bolo crescer para tentar reparti-lo melhor.
É isso, justamente, que mais a engasga na hora de assumir plenamente a gravidade da situação. Reconhecer que não dá para seguir crescendo para sempre, ainda mais no atual ritmo —e, no caso de países como o Brasil, às custas do extrativismo desenfreado—, necessariamente forçaria a esquerda a também reconhecer que, para manter a justiça social na agenda, é preciso trazer o problema da distribuição da riqueza de volta.
Estamos falando de taxar pesadamente os setores responsáveis pelas maiores emissões, fazendo com que arquem com o custo da transição energética sem que possam repassar o mesmo ao consumidor; de restringir a oferta de crédito privado que financia atividades que aprofundam a catástrofe; de atacar o rentismo e as altas taxas de lucro para fomentar a expansão e a descomodificação de serviços públicos básicos, como os cuidados e uma rede de transporte descarbonizada; da introdução de medidas como fundos de propriedade inclusiva, com objetivo de diluir o poder de acionistas e aumentar o dos trabalhadores sobre as empresas; e assim por diante.
A emergência em que nos encontramos deveria oferecer o contexto ideal para defender esse tipo de medida. A dificuldade de dizer as coisas com clareza evidencia, contudo, a ligação íntima entre este e o primeiro nó: o modo como o poder econômico subjuga o poder político hoje faz com que, no melhor dos casos, os políticos continuem a fingir que a crise está em um futuro longínquo, e não em um presente de eventos climáticos extremos cada vez mais comuns —e sigam encenando o “faz de conta” de que o mercado encontrará uma solução para o problema mesmo após décadas de tempo valioso perdido.
A situação não é menos espinhosa do ponto de vista da forma. Em primeiro lugar, porque envolve vender a ideia de que é preciso desacelerar e decrescer a um mundo em que a necessidade e o desejo de crescimento têm valor de evidência.
Em segundo, porque tampouco se trata de desacelerar ou decrescer tudo de uma vez: é preciso saber empregar a própria mudança de rumo como instrumento de promoção da justiça, distribuindo perdas e ganhos de maneira desigual para que quem tem menos possa ter mais, enquanto quem tem mais aceite ter menos.
Isso significa, finalmente, ter de convencer diferentes frações da população mundial a abrir mão de partes de seu padrão atual de consumo em nome do bem-estar de outras, próximas ou distantes. Não se trata, ao contrário da caricatura que frequentemente se faz do ecologismo, de pregar um ascetismo monástico e ranzinza às pessoas, mas de construir o desejo por outros modos de vida, mais sustentáveis. Ainda assim, o trabalho de convencimento é inegavelmente árduo.
E aqui chegamos ao sexto e último nó: o crescimento da extrema direita na última década. Não é só que ele tenha aumentado a desinformação sobre temas como o aquecimento global ou deslocado o centro do debate político cada vez mais para a direita, nos afastando das discussões que realmente precisariam estar acontecendo. Em um certo sentido, é preciso reconhecer que a extrema direita oferece uma resposta perfeitamente razoável ao mundo em que vivemos.
Se supomos que a concentração de poder econômico e político é grande demais para ser modificada; que a democracia de baixa legitimidade veio para ficar; que haverá cada vez menos emprego formal e proteção social, cada vez mais riscos e precariedade; que a concentração de capital continuará como está, e a economia, voltada sempre mais à mera extração de renda, permanecerá estagnada; que o caminho natural das coisas, especialmente à medida em que os efeitos da crise ecológica se intensificarem, é o crescimento das populações excedentes, o recuo da fronteira que separa a vida protegida da vida descartável, a desintegração social —vem daí o poder dessublimador do discurso da extrema direita, que parece ser a única a assumir com todas as letras aquilo que as demais forças políticas disfarçam com palavras enquanto seguem fazendo com ações.
Assim, a mensagem radical de construir muros, expulsar quem é diferente, perseguir grupos marginalizados, se dessensibilizar frente ao sofrimento alheio de defender o “nosso” modo de vida a qualquer custo parece uma alternativa racional em meio à irracionalidade crescente. Se a desintegração é inevitável, o melhor a fazer é antecipar-se a ela e se posicionar da maneira mais favorável.
Decifra-me ou…
Este crescimento acabou por botar a esquerda em xeque. Incapaz de admitir o tamanho dos desafios com que se depara e frente a uma força que aposta em acelerar a desintegração, boa parte dela se viu obrigada à defesa de alguns restos de um estado de coisas em frangalhos em que cada vez menos gente acredita (as promessas da modernidade e do crescimento econômico, a forma de uma democracia sempre mais esvaziada, a racionalidade da ciência, a confiabilidade da mídia tradicional etc.).
Com isso, deixou a via aberta para que a extrema direita se apresentasse como única intérprete dos sentimentos antissistema.
Não se trata, por óbvio, de tentar emular o vandalismo conservador dos direitistas. Mas fazer de conta que a policrise atual é passageira, e não o produto de tendências de longo prazo, e que, portanto, seria possível agarrar-se ao que dá para proteger enquanto se espera a tormenta passar, quando muito retarda o pior no curto prazo, e talvez até o acelere no médio.
Essa é a lição que o crescimento de Marine Le Pen sob os anos de centrismo macroniano nos deixará —e deverá a ser repetida em breve sob Scholz, Starmer, os democratas norte-americanos e, porque não, o PT.
É evidente que não estamos falando unicamente de “falta de vontade”; os problemas são objetivamente complexos, talvez até intratáveis.
No entanto, certamente não será tapando os olhos e apostando na possibilidade de volta a uma normalidade que já não existe que chegaremos mais perto de resolvê-los.
Toda proposta que seja realista no sentido de encarar esses problemas de frente necessariamente parecerá radical, comparada ao que existe hoje. Não ter medo de dizer aquilo que pode parecer inaceitável agora e continuar trabalhando para torná-lo aceitável no futuro próximo é a melhor lição que a esquerda pode aprender com a extrema direita.
O caminho é árduo e sem garantias, mas não começará enquanto não se assumir que estes são os desafios a enfrentar pelas próximas décadas —o fato de que seja impossível resolvê-los de imediato não é desculpa para seguir adiando a construção das condições em que seja possível fazê-lo.
Talvez estes enigmas não possam ser resolvidos; mas a alternativa a nem sequer tentá-lo é aceitar ser devorado.