A força do SUS e as lutas por vir, por Túlio Batista Franco

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Embates na saúde pública tem sido duros – mas não é preciso desespero ou derrotismo. Construção coletiva e comunitária, de onde o SUS sempre tirou sua força, será mais uma vez a resposta para os desafios

Túlio Batista Franco Outra Saúde – 05/11/2024

O Brasil debate o Brasil. As eleições municipais recentes estão sendo amplamente discutidas. Independente das opiniões circulantes, estamos vivendo um momento de intensa disputa pelos rumos do país, que poderá conhecer contornos dramáticos no futuro próximo. Urge produzir um engajamento orgânico entre uma proposta política para o futuro e a maioria da população. Um país que seja libertário, livre de todo tipo de preconceito, que admita a diferença como constitutiva da paisagem humana, socialmente justo. Um mundo que caiba todos os mundos dignamente.

O movimento sanitário, que tem a Frente pela Vida como núcleo aglutinador, há 4 anos e meio assume um importante protagonismo na vida nacional. Após o enfrentamento intenso e cotidiano na pandemia, elaborou uma política de saúde para disputar as eleições em 2022, mobilizou entidades e movimentos do país inteiro em apoio à candidatura do presidente Lula e discutiu com a então Comissão de Transição do Governo, na área da saúde, soluções para o SUS. Foi contra incluir o orçamento da saúde no “arcabouço fiscal”, e vê com imensa preocupação propostas de retirada do piso constitucional da saúde, ou qualquer redução do financiamento do setor, bem como da educação, ciência & tecnologia. O que vale para qualquer política social.

E isto tem polarizado as atenções do momento. Há uma ofensiva do capital financeiro que chantageia o país com especulações, uma forma nefasta de tentar influenciar a política fiscal, notadamente com cortes em gastos sociais. Ao mesmo tempo, entramos na dinâmica da disputa eleitoral de 2026, que vai eleger o novo presidente, governadores e o Congresso Nacional. O país está em questão. O que fazer para que o muito feito até aqui seja intensificado para potencializar as forças progressistas na luta por vir?

“Se muito vale o já feito, mais vale o que será”1, nos aconselha o poeta. Então, recomenda-se haver um esforço adicional na construção mais intensiva das políticas sociais de alargamento de direitos, que faça a população perceber mudanças expressivas na sua vida cotidiana. Uma mobilização que fortaleça os vínculos comunitários nos territórios. É necessário formar uma identidade corpórea com as comunidades. Laços orgânicos de confiança, que produzam uma subjetividade solidária, e sejam capazes de organizar uma resposta coletiva contrária à ofensiva neoliberal, que propõe o empreendedor de si mesmo e o sujeito da concorrência para polarizar a base da sociedade.

Há luta por vir! E para ela contamos com um enorme ativo político, o SUS, que traz a marca da generosidade desde os momentos iniciais da sua constituição, e hoje mobiliza milhares de pessoas nas Conferências de Saúde, além de uma imensa capilaridade que o coloca em relação com a população no seu dia-a-dia. Por exempl: ele se move sobre uma rede assistencial que, só na Atenção Básica, tem 61.262 equipes de Saúde da Família, atingindo uma cobertura de 79,6% do território nacional2. São mais de 3 milhões de pessoas trabalhadoras em exercício no SUS. Destes, 403 mil são Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Endemias3, que têm uma relação cotidiana com os territórios e suas comunidades, sendo uma importante referência de cuidado, vínculo, e participação comunitária. É algo absolutamente extraordinário.

À experiência de participação social soma-se a iniciativa do Mapa Colaborativo dos Movimentos Sociais em Saúde. Este é um projeto lançado em 2024, liderado pelo Ministério da Saúde, Fiocruz e Conselho Nacional de Saúde, para dar visibilidade, mobilizar, e promover a interação entre entidades e movimentos no âmbito da saúde.

A participação comunitária ganha contornos mais amplos no governo através do Conselho de Participação Social da Presidência da República, do qual a Frente pela Vida participa representando o movimento sanitário. Aqui se constrói uma avançada proposta de participação social, com base nos territórios, e na educação popular como um dispositivo de construção. Esta iniciativa levou a uma ampla participação social na discussão do Plano Plurianual em 2023, que orienta a política econômica e social do Brasil até 2027. Também promoveu o amplo debate do Plano Clima que define as estratégias nacionais para reduzir as emissões de gases de efeito estufa, que causam o aquecimento global, e avançar na adaptação aos impactos das mudanças climáticas. Neste momento, organiza a participação social na Cúpula do G20 Social, que ocorrerá no Rio de Janeiro entre 14 e 16 de novembro de 2024. Por tudo isto, a perspectiva de uma política de saúde promissora na sua missão humanitária continua muito forte no cenário atual, construção que deverá ser coletiva e comunitária.

 

 

Segurança Pública — 21 anos depois, por Soares & Domingos Neto.

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Luiz Eduardo Soares & Manuel Domingos Neto

A Terra é Redonda – 04/11/2024

Hoje, associar-se ao discurso hegemônico e às práticas usuais das corporações policiais tornou-se um ativo político na guerra contra a democracia e os direitos humanos

Na quinta-feira passada (31.10.2024), deu-se uma reunião marcada há 21 anos. A convite de Lula, governadores e o ministro da Justiça encontraram-se no Planalto para discutir a Segurança Pública. Essa reunião foi agendada e postergada, depois cancelada, no início do primeiro mandato de Lula, em 2003. O atraso de 21 anos diz muito sobre as dificuldades de enfrentar o problema.

Em 2001, Lula presidia o Instituto Cidadania e era pré-candidato a presidente. Um grupo de trabalho formulou, então, seu programa de Segurança Pública. Profissionais de origens, experiências e perspectivas variadas debateram em audiências públicas, visitas e seminários. A proposição resultante foi entregue por Lula às casas congressuais e ao ministro da Justiça em 27 de fevereiro de 2002.

No ambiente ouriçado de hoje, é difícil imaginar que o então líder da oposição ao governo FHC fosse respeitosamente recebido por dirigentes da situação, todos valorizando a qualidade da proposta.

A edição do jornal O globo em 28.02.2002 destacava: “Tucanos elogiam plano anticrime do PT”. O ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira, admitiu adotar medidas. “Não posso deixar de louvar essa iniciativa”, afirmou o presidente do Senado, Ramez Tebet. “Este documento é até agora o mais sério e completo sobre segurança pública já elaborado e apresentado à sociedade”, disse Aécio Neves, presidente da Câmara.

Com debilidades decorrentes, sobretudo, da falta de dados internos às corporações, a iniciativa mudou o debate. Descartou clichês e bordões puídos. Agentes públicos não mais arguiriam o “sempre foi assim”. Parecia chegar ao cabo a reatividade inercial e a falta de crítica aos padrões estabelecidos. Tornar-se-iam necessários diagnósticos e planejamento para a ação pública, que passaria a ser avaliada para que erros fossem monitorados e corrigidos.

O Plano não idealizava a racionalidade técnica e apontava para ajustes de instituições públicas às determinações constitucionais. A democracia seria reforçada. Visava-se o controle da chamada criminalidade, da brutalidade letal das polícias e do sistema de Justiça criminal, do racismo e do viés de classe que encarcera jovens pobres e negros, reproduzindo iniquidades e violências. Instituições refratárias à soberania popular seriam contidas.

Lula venceu as eleições. Em janeiro de 2003, o novo secretário nacional de Segurança Pública[i] e seus colegas tocariam o programa — aperfeiçoado com a ajuda de voluntários de distintas especializações e regiões, graças ao apoio da Firjan.

Era fundamental a adesão dos 27 governadores à tese central, a criação do SUSP, sistema único de segurança pública, inspirado na arquitetura do SUS. Em junho, o endosso unânime foi obtido. O presidente convidou os governadores para celebrar o “pacto pela paz”, como o projeto foi batizado, perante autoridades dos três poderes. A proposta seria entregue ao Congresso, posto que demandava alteração constitucional. Havia otimismo. Lula detinha respaldo popular e o consenso dos governadores fortalecia a proposta.

Os governadores não acataram por entusiasmo com uma segurança cidadã, afinada com os direitos humanos. A negociação individualizada mostrara que lhes interessava dividir o desgaste político com o governo federal. Uma reestruturação que importasse em compartilhamentos e deslocamento de autoridade para a União seria bem-vinda. A insegurança era fonte inesgotável de fragilização política. O acatamento era pragmático e lógico.

Paralelamente, o governo federal encarava o dilema: valeria a pena assumir mais responsabilidades em área tão desgastante? Dizia Leonel Brizola: chamar para si a segurança é abraçar afogado. Por que, então, o secretário nacional de segurança visitaria todos os governadores? A missão espinhosa foi testemunhada pelas mídias locais. Talvez porque não fosse crível o êxito da jornada quixotesca.

O governo federal viu-se subitamente com a batata quente na mão. Como deter a iniciativa evitando constrangimentos? A resposta fica para outro momento. O gabinete presidencial estipulara data para a reunião que seria suspensa. O passar do tempo silenciaria o “pacto pela paz”. O secretário foi afastado e o plano, engavetado. O governo investiu em prisões matutinas espetaculares de suspeitos de colarinho branco.

Mas a semente do SUSP fora lançada. Cedo ou tarde, por exigência histórica, resultaria em algo. Diante de crises, projetos embolorados, devidamente lustrados, circulariam na praça. O SUSP renasceu com sotaque diferente e inegável legitimidade e coerência quando Tarso Genro foi ministro da Justiça. Seu projeto nacional de segurança com cidadania (PRONASCI) incorporava elementos do SUSP, especialmente sua face preventiva. Mas Tarso passou, assim como a reativação indireta do SUSP.

Veio o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff. A dramaticidade da insegurança pública crescia e a história aprontou ironia oblíqua, típica das tragédias: coube a Temer ressuscitar o SUSP e criar o ministério da Segurança previsto no plano original, de 2002 (por sugestão de Lula, então candidato, foi convertido em secretaria com status ministerial).

Mas a repetição deu-se como farsa: o SUSP, aprovado pelo Congresso em 2018, foi promulgado para não funcionar. Baseava-se em legislação infraconstitucional. Destinava-se a fazer crer em comprometimento dos governantes com mudanças profundas na Segurança. As novas regras jamais seriam aplicadas porque gerariam conflitos federativos; calculadamente, não tratavam de processos decisórios, de definição da autoridade coordenadora de ações. Tampouco foi casual que a ouvidoria fosse estabelecida como uma agência desprovida de poder.

A vida prosseguiu e o país foi empurrado à beira do abismo neofascista. Os golpistas instrumentalizaram as instituições armadas. A gigantesca e ativa “família militar” açambarcou os contingentes policiais de todas as esferas da União. Escapamos por um triz com a vitória de Lula, em 2022.

Retornando ao Planalto, Lula encontrou-se novamente com a dramática insegurança pública. Durante meses, flertou com o SUSP, reinscrevendo a necessidade de coordenação nacional no centro da agenda. Mas temeu mostrar a nudez do rei: o SUSP infraconstitucional colidiria com a Carta. Só fazia sentido ressuscitá-lo se figurasse na Constituição.

Finalmente, o ministro Ricardo Lewandowski, intimorato, pronunciou palavras banidas do léxico governamental: afirmou que para tratar da Segurança Pública caberia reformar a Carta. Realizou-se, enfim, a reunião marcada há 21 anos.

Neste interregno, regredimos de uma democracia limitada e contraditória para uma institucionalidade deteriorada. A sociedade viu-se acossada pela difusão de valores antidemocráticos, pelo ativismo reacionário de organismos do Estado e por organizações à margem da lei.

A PEC apresentada por Ricardo Lewandowski, embora menos ambiciosa, contém elementos fundamentais da proposta original. Aponta para o estabelecimento de uma coordenação nacional das estratégias da Segurança. Pressupõe uma linha de autoridade indispensável, mesmo que isso não seja enfatizado no discurso público. Enfrenta problema real: a refratariedade das corporações policiais, verdadeiros enclaves institucionais, à autoridade civil e política.

Mesmo que a aparência sugira o contrário, especialmente quando governadores de direita aplaudem práticas policiais condenáveis, o fato é que os executivos estaduais não comandam as organizações policiais. A ampla autonomia viabilizou-se com a omissão do Ministério Público, que deveria exercer o controle externo das polícias, e ameaça o Estado democrático, como demonstramos insistentemente em artigos, livros e entrevistas.

Integrantes de corporações armadas se alinham ostensivamente à extrema direita. Firmam-se como atores independentes, negando a hierarquia e as determinações constitucionais. Os enclaves corporativos instauram poderes rebeldes na medida em que se atribuem autoridade alheia à soberania popular e às mediações institucionais.

Esse quadro ruinoso é mais visível nas Forças Armadas. Comandantes se apresentam impunemente como representantes de um “poder moderador” e condicionam autoridades constituídas. Buscam respaldo no que nomeiam “família militar”, cuja composição inclui componentes das corporações policiais.

A PEC do ministro Ricardo Lewandowski possibilita restringir a disfuncionalidade da segurança pública; oferece amparo mínimo para o enfrentamento da criminalidade e da corrosão da autoridade fundada nos princípios democráticos. Propondo a coordenação nacional, enseja a possibilidade de reduzir o insulamento dos baronatos armados, organizados com ou sem máscara institucional (sob a forma de milícias).

O ministro e o presidente devem saber que a proposta não será aprovada. Mas enseja sinalização importante: tira o governo da defensiva e, pela primeira vez em muitos anos, aponta rumo para deter a barafunda institucional que impede o Estado de garantir segurança à cidadania. Livra a autoridade federal de exibir impotência e de absorver pautas conservadoras de governadores. No mais, deixa com a oposição o ônus da defesa do status quo.

A reação dos governadores tende a ser inversa a de 21 anos atrás porque a luta ideológica se interpôs ao velho cálculo de utilidade. Se a Segurança era somente causa de desgaste político e valia a pena sacrificar parte do suposto poder em benefício da divisão de responsabilidades com a União, hoje, associar-se ao discurso hegemônico e às práticas usuais das corporações policiais tornou-se um ativo político na guerra contra a democracia e os direitos humanos.

Há muito a ponderar. Por exemplo: a omissão na iniciativa governamental quanto à ouvidoria e ao papel do MP. Mas cabe saudar a coragem política, mesmo moderada, quando ela retorna à cena.

Falta aplicar essa disposição à Defesa Nacional. As Forças Armadas persistem essencialmente voltadas para o controle da sociedade e nunca abdicaram de se imiscuir na Segurança Pública.

*Luiz Eduardo Soares é antropólogo, cientista político e escritor. Ex-secretário nacional de segurança pública. Autor, entre outros livros, de Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos. (Boitempo)

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). Autor, entre outros livros de O que fazer com o militar — Anotações para uma nova Defesa Nacional (Gabinete de Leitura)

 

Nações falham ao escolher o jogo errado, por Álvaro Machado Dias.

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Para vencedores do Nobel de Economia, EUA são modelo para o mundo, mas índices de qualidade de vida dizem o contrário.

Álvaro Machado Dias, Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind.

Folha de São Paulo – 05/11/2024

Três raciocínios de interesse nacional emergem dos papers dos nobelistas de economia de 2024.

(1) Uma vez que instituições inclusivas são a base da prosperidade, o golpe militar pode ser descrito como um dos eventos mais danosos da República, posto que as suspendeu por décadas.

(2) Conforme a institucionalidade leva à prosperidade pela via da destruição criativa, segue que o agronegócio monocultor está nas antípodas do enriquecimento nacional. Sendo ou não pop, tech e yellow, o horizonte criativo da banana é bem menor que o da IA.

(3) Mudanças institucionais, como a reforma tributária, tendem a ser ainda mais importantes do que intuímos, porém exceções acumuladas costumam tornar arranjos novos tão ruins quanto os anteriores. Descontos atualmente negociados farão parte de teses futuras sobre as nossas falhas.

Essas perspectivas dão uma medida do grande poder translacional do paradigma dos autores, que em diferentes ocasiões apresentam os Estados Unidos como modelo de institucionalidade.

Aí o caldo entorna: tendo imigrado para lá aos 9 anos de idade, sinto que isso dialoga pouco com o campo. Um país em que é comum crianças invadirem a escola para matar os colegas de fuzil enquanto seus pais se engalfinham em lutas profissionais ferinas não me parece desenhado para revelar o melhor de nós. Do mais, no índice Edelman de confiança nas instituições de 2024, os Estados Unidos estão no fim da fila, abaixo da Colômbia, onde as Farc viraram partido.

A questão é profunda: a riqueza individual, norteadora das teses dos laureados sobre ganhadores e perdedores, não é fim, mas meio, para a realização em ato dos valores fundamentais humanos, os quais Thomas Jefferson acreditava serem “vida, liberdade e a busca da felicidade”.

No Relatório de Felicidade Global de 2024, os EUA aparecem na 23ª posição, empatados com o México, exemplo de falência institucional preferido de Acemoglu. A Costa Rica, que foi colônia extrativista, está na 12ª colocação. Mesmo onde as instituições são sólidas e a cultura próxima, a lógica da prosperidade como desfecho absoluto pede um grão de sal. A Finlândia é o país mais feliz, a Noruega é o 7º, com um PIB per capita 65% maior.

É fato que a pesquisa de felicidade global é limitada pela necessidade de só utilizar dimensões amplamente disponível. A alternativa é o conceito de bem-estar, que inclui o PIB per capita, mas também saúde, desigualdade e outros. Em saúde, os EUA estão mais perto da Arábia Saudita que do europeu menos saudável, a Alemanha (Ray Dalio, 2024). Em desigualdade, são lanterninhas entre as nações avançadas, tensionando a hipótese distributiva pela via da inovação institucionalizada. O Haiti, país das instituições mais frágeis do mundo, é menos desigual.

O que importa não é só considerar que a prosperidade numérica não passa de uma via para a vivencial e que, na vida das pessoas, instituições incluem educação, saúde, estruturas políticas de orientação dialógica e outros determinantes do bem-estar alheios à régua das patentes.

O ponto é que, para elevar a qualidade da vida levada no Brasil, a gente não precisa virar uma Coréia do Sul com PIB per capita de Luxemburgo. Se resolvermos questões mais modestas, como moradia digna e violência, é possível que nos juntemos à Costa Rica e outros exemplos de que, na prática, a teoria pode ser outra.

 

A revisão dos gastos é uma agenda inevitável, por Cecilia Machado;

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Não é possível alcançar crescimento de gastos quando diversas despesas crescem em maior velocidade

Cecília Machado, Economista-chefe do Banco BoCom BBM, é doutora em economia pela Universidade Columbia

Folha de São Paulo – 05/11/2024

Era um tanto quanto esperado que o descompasso entre o limite da expansão dos gastos e o crescimento das despesas obrigatórias trouxesse desconfiança com relação à sustentabilidade do novo arcabouço fiscal. Não é possível alcançar crescimento de gastos de até 2,5% (reais) quando diversas despesas crescem em maior velocidade. Esta inconsistência torna a revisão dos gastos uma agenda inevitável do ponto de vista fiscal.

Mas mesmo antes das inconsistências do arcabouço, já existiam bons motivos para que alguns programas fossem reavaliados. A revisão dos gastos permite ajustar as políticas públicas para que se tornem mais eficazes, além de abrir espaço para novos prioridades do governo.

No contexto atual, são inúmeras as oportunidades. Entre elas, programas como o BPC (Benefício de Prestação Continuada), o abono e o seguro-desemprego podem ser reformulados não apenas para melhorar o resultado fiscal, mas principalmente para corrigir distorções e ampliar a produtividade da economia.

O BPC —que transfere um salário mínimo para o idoso ou pessoa com deficiência que é pobre— é um híbrido de assistência e previdência que faz pouco sentido sob a ótica de qualquer um desses dois programas.

Como assistência, por qual razão um idoso pobre recebe uma transferência cerca duas vezes maior que uma criança pobre do Bolsa Família, considerando que os investimentos feitos nas crianças trazem benefícios que se manifestam ao longo de toda sua vida? Como previdência, faz sentido garantir que uma pessoa que nunca contribuiu para a seguridade social receba a mesma aposentadoria que aqueles que contribuíram a vida toda sob um salário mínimo?

Não menos importante é a influência do desenho destes programas sobre o comportamento das pessoas e as suas implicações para o funcionamento da economia. Por exemplo, a possibilidade de aposentadoria sem contribuição, como no caso do BPC, faz com que muitos trabalhadores de baixo salário prefiram empregos informais, onde não há desconto das contribuições em folha.

Na mesma direção, programas como o seguro-desemprego estimulam a rotatividade em um mercado de trabalho que acomoda arranjos informais. Pois é possível receber o seguro-desemprego em um trabalho informal, já que este tipo de vínculo não é observado pelo governo. Funcionasse apenas como um seguro para a perda de emprego —que se verifica com mais frequência quando a economia não vai bem— não deveríamos estar vendo um crescimento tão grande dos gastos direcionados a este programa quando o mercado de trabalho exibe bom desempenho, como agora.

Sob a ótica redistributiva, o abono não incide onde a pobreza está. Apenas 16% da incidência do abono se dá entre o terço mais pobre da população, enquanto 39% incide sobre o terço mais rico. Além disto, é um benefício oferecido apenas aos trabalhadores formais, que se encontram em melhores condições de renda e proteção social que aqueles informalizados. O abono não atende cerca de 40% dos trabalhadores sem carteira assinada.

É impressionante que as regras correntes do BPC, do seguro-desemprego e do abono salarial tenham sobrevivido tanto tempo apesar das falhas óbvias de desenho. Por mais custosa que seja, a crise fiscal de agora pode ser a única oportunidade possível para introduzir racionalidade e bom senso no redesenho destes programas sociais.

 

EUA: Democracia sem escolha, por Tatiana Carlotti.

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Crônica em Washington, às vésperas de uma eleição em que não há saída real. Vencerá a candidata da guerra perpétua ou o da ameaça fascista? Nas ruas, poucos parecem se importar. Mas os bilionários tomaram partido, e evita-se o voto negro

Tatiana Carlotti – OUTRAS PALAVRAS – 31/10/2024

No próximo 5 de novembro, a maior potência militar (US$ 886 bi para gastos militares), econômica (PIB de US$ 28,6 tri) e cultural (US$ 9 bi só em bilheterias) vai eleger “o seu” ou “a sua” presidenta em uma das mais acirradas e imprevisíveis disputas eleitorais nos Estados Unidos. Frente aos empates técnicos de cada sondagem registrada desde que Kamala Harris entrou no páreo contra Donald Trump, ninguém ousa cravar um resultado.

Com a aproximação das eleições, os republicanos apelam para um perigoso neofascismo, vide o comício de Trump na Madison Square Garden, domingo passado (27), promovendo uma agenda que reverbera um individualismo extremo, um profundo ódio à esquerda, uma misoginia escancarada e o racismo incrustado contra os “não-brancos”, além da xenofobia de carga explosiva. Em suma: a “sopa de ódios” que aquece as frustrações em meio “cada um por si” de um sistema mais e mais disfuncional, pelo menos, para a imensa massa ‘não-bilionária” do planeta.

Os democratas, por sua vez, apoiam-se nos argumentos e prometem a generalização de oportunidades hoje (e nem sempre) restritas à classe média e acesso a direitos básicos como saúde e moradia. Também apelam para “o bom senso” enquanto financiam um inominável genocídio de crianças e famílias inteiras em Gaza, que se expande aos demais países do “eixo do mal” no Oriente Médio; além de acenarem para a continuidade da guerra contra a Rússia na Ucrânia.

Em meio ao belicismo democrata e ao neofascismo republicano, a população estadunidense que se autodenomina “americana”, encontra-se profundamente polarizada, como mostrou na última sexta-feira, dez dias antes do pleito, a pesquisa divulgada pelo New York Times cravando exatos 48% em ambos os candidatos. A sondagem também apontava um contingente de 15% de indecisos e, após esta pesquisa, as demais que saíram, com pequenas variações, também indicam empate técnico.

Considerando, também, que as pesquisas são apenas acenam tendências, na medida em que a definição do presidente é realizada por uma maioria de delegados, a única certeza até agora, ante a impossibilidade de se cravar um resultado, é de confusão e judicialização do processo eleitoral pela turba republicana caso perca as eleições.

Vale lembrar que, em 2020, quando Trump se negou a aceitar a derrota (a primeira desde 1992 de um candidato-presidente à reeleição nos EUA), Joe Biden o vencia com uma margem expressiva: 81 milhões de votos e com o apoio de 306 delegados do Colégio Eleitoral. Na época, Trump obteve 74 milhões de votos e contou com apoio de 232 delegados.

Naquele ano, houve uma participação considerada recorde nas urnas – a maior desde 1900! – em um país onde o voto é facultativo. Neste ano, a considerar os votos já encaminhados pelo correio e os números da votação antecipada, a expectativa é de uma alta participação. Em Michigan, por exemplo, 1,5 milhões de eleitores já anteciparam seu voto em uma semana, e a soma dos que enviaram sua decisão pelo correio ultrapassa (a uma semana do pleito) vinte e três milhões.

Inversamente, a movimentação eleitoral não acontece nas ruas. O clima eleitoral, em particular nos estados como Nova York e na própria Whashington (D.C.), é ameno onde as colorações partidárias estão mais definidas, nos dois casos com a prevalência do azul (democrata) sobre o vermelho (republicano).

Por aqui, por exemplo, apesar da polarização, da ameaça trumpista e da possibilidade de muita gente simplesmente deixar de votar, ninguém usa adesivos de campanha, não há santinhos distribuídos nas ruas e muito menos aquele xingamento acalorado no cruzamento das grandes avenidas. Com Harris na liderança em pelo menos 18 pontos à frente de Trump, na “Big Apple” (NY) pelo menos, as caveiras de Halloween ganham – e de longe – das plaquinhas eleitorais.

Estados pêndulos, onde a eleição acontece

As eleições, no entanto, acontecem com força nos chamados estados pêndulos, ou swing states, onde permanecem indefinidas as tendências de votação num ou noutro partido, porque o sistema eleitoral da considerada “maior democracia do mundo”, além de não direto e facultativo, também é essencialmente bipartidário. É nestes estados – Nevada, Arizona, Wisconsin, Michigan, Pensilvânia, Carolina do Norte e Georgia – que estão acontecendo investimentos milionários e onde, de fato, a campanha eleitoral ganha as ruas.

Os democratas estão mobilizando mais de 2.500 pessoas em 353 escritórios nessas regiões para, entre outras atividades, bater de porta em porta e ajudar as pessoas a votarem. A tarefa é crucial, em particular, após os estados republicanos terem proposto uma série de medidas de restrição de votos, cerca de 400 leis estaduais em 47 estados, segundo a União Americana pelas Liberdades Civils (ALCU).

A ideia dos republicanos foi conter o boom da participação dos eleitores, em particular os mais pobres e, portanto, de tendência democrata, registrada durante as eleições presidenciais de 2020. Boa parte dessas leis foram implementadas em 2022, durante as eleições de meio de mandato para o Congresso, as midterms; e como nos EUA, cada estado tem a sua própria legislação eleitoral, por aqui inexiste um Tribunal Superior Eleitoral (TSE) regendo e coordenando todo o processo, a possibilidade do governo Biden de conter esse movimento foi nula. O que não o impediu de reclamar.

De modo geral, são pequenas medidas, porém mortais para a participação popular em um país onde o voto não é obrigatório. Obrigar as pessoas a entregarem os votos presencialmente ou somente aceitar que familiares o façam, por exemplo, atrapalhou a participação dos eleitores cadeirantes, de idosos moradores em abrigos, da população de rua. Exigir documentos com fotos para votar pelo Correio. Reduzir o tempo para a votação e até os locais de depósito das cédulas, contribuindo para o aumento das filas. Todas essas medidas aconteceram na Georgia, onde Trump perdeu por pouco para Biden, em 2020.

Além dos democratas, os republicanos estão investindo pesado nestes estados, criando comitês – Super Political Action Committees (SuperPAC), que vêm recebendo investimento graúdo de instituições privadas como o Future Coalition PAC, o Duty to America PAC ou o America PAC, criado pelo “mega-bilionário” Elon Musk com um fundo de US$ 75 milhões.

Segundo apuração do The Guardian, entre julho e outubro, o herdeiro sul-africano, publicamente convidado para participar de um eventual governo Trump, somente em anúncios para a campanha do magnata já investiu: US$ 201 mil no X, mais de 3 milhões na META (Facebook e Instagram) e US$ 1,5 milhões no Google. Todos esses anúncios são dirigidos para as populações e às necessidades destes estados decisivos.

Musk, que tão bem sabemos o que pensa da Justiça brasileira, vem participando como cabo-eleitoral de Trump e se divertindo, como uma espécie turbinada de Silvio Santos, em ofertar cheques gigantescos em comícios e anunciar sorteios de US$ 1 milhão por dia, até a eleição, para quem assinar a petição do American PAC. Sua presença, embora não tenha dito nada com nada, foi um dos pontos altos do comício de Trump.

Foram muitas horas de fila, em meio à turbe trumpista e sob a vigilância dos “snipers” – dois em cada um dos prédios que circundavam o Madison Square Garden – antes de começar o palavrório republicano. Não, não foi no mesmo Madison Square Garden que, em 1939, abrigou o desfile nazista em solo americano (as imagens são chocantes, confira aqui). O nome é o mesmo, o prédio o novo, mas o fascismo, com seu discurso de ódio, a substituição do argumento pelo slogan, a performática da testosterona e a perigosa tese do “inimigo interno” estavam sim por lá.

E a massa, que acompanhei tão proximamente na fila, aplaudiu para valer os animadores do circo trumpista – um misto de humoristas, coachings, bilionários dopados – e os políticos republicanos, além de funcionários e familiares do magnata, que tentaram cravar o slogan “New York is Trump country” no coração de um estado essencialmente democrata e que há 40 anos não elege nenhum presidente republicano.

Tirando uma ou outra figura com toda a tarimba de animador partidário, dentro do cercadinho trumpista onde passei a tarde e a noite no domingo passado, o que vi foi o povo e, em particular, um povo de imigrantes: indianos (todos homens contra Kamala), hispânicos (muitas mulheres – acima dos 40 – fãs de Trump), mais rapazes do que moças (em particular, judeus, brancos e negros).

Pelo menos onde fiquei, a incidência de homens prevaleceu sobre as mulheres. Nenhum bilionário no cercadinho, só gente que trabalha e que bateu efusivas palmas com os slogans de coaching durante o evento. Ao me pedir para desligar o gravador, um rapaz alto, branco e de óculos grossos me disse que Trump vai alavancar a economia em vez de ficar gastando dinheiro com os imigrantes miseráveis que entram pelas fronteiras.

Outro rapaz, negro e estudante de Direito, garantiu que com Trump, os Estados Unidos terão mais empregos, porque ele cortará as taxas pagas pelos empregadores, o que vem dificultando a abertura de trabalho. “Biden só cobra impostos”, frisou. Um pouco mais adiante, num grupo de simpáticas senhoras hispânicas, uma delas me disse que certamente “seria muito bom para os EUA ter uma mulher presidente, mas não Kamala. “Não gosto dela, eu gosto dele e ponto”.

Também poderia comentar sobre um casal de americanos, os dois com o boné MAGA na cabeça, que me disseram, em meio a tantas guerras, que nunca mais votarão nos democratas. A mesma questão veio forte de um estudante de economia, os cabelos de fogo, egresso da Dinamarca. Ele também me esperou desligar o gravador, para dizer que o governo Biden é assassino. E quando o questionei se o fascismo de Trump também não era, ele respondeu: “é tudo bobagem para conseguir voto”.

Infelizmente, não me pareceu bobagem a fala contra as minorias que consegui observar tão de perto naquela fila. Tampouco a agonia que, confesso, foi crescendo conforme as pessoas riam das piadas preconceituosas de Tony Hinchcliffe, que chamou Porto Rico de “ilha flutuante de lixo no meio do oceano” e disse que nós, latinos, gostamos de fazer bebês.

Ou quando o amigo evangélico de Trump, David Rem, chamou Kamala de “anticristo” e “diabo”. Quando Grant Cardone, investidor imobiliário, criticou as taxas de Biden e afirmou que Kamala e seus “cafetões” destruirão a América, sim, ele a chamou de “prostituta”. Ou diante da forma misógina como J.D.Vince, senador de Ohio, referiu-se à inteligência de Kamala, que cursou a Howard University e a Universidade da Califórnia, foi procuradora-geral da Califórnia, senadora da República, vice-presidente da República e está prestes a se tornar a primeira mulher presidenta dos Estados Unidos.

A agonia aumentou diante do inacreditável aplauso da plateia repleta de imigrantes depois que Trump – que divagou um bocado em suas considerações – prometer o maior programa de deportação da história dos Estados Unidos para deixar o país mais seguro, batendo na tecla perigosa do inimigo interno.

Como não pensar em Modi, o taxista indiano de riso fácil e sobrancelhas grossas que me ajudou a chegar até o estádio?

Há cinco anos em Nova York, ele aguarda a liberação do green card para poder trabalhar, sem pressão e sem medo, no país. Só depois de muita insistência, ele me disse que preferia Trump a Kamala, não por causa dela, filha de mãe indiana, mas por causa do Biden, “os dois são a mesma coisa”.

Modi acredita piamente que com Trump, o documento sai. “Biden atrapalhou muito”, balança a cabeça, “Trump não, ele faz. É um empresário”.

Enquanto isso, na Pensilvânia…

No corpo a corpo com os eleitores da Filadélfia, na Pensilvânia, onde disputa o voto dos indecisos no estado, Kamala apresentava para o eleitorado hispânico e negro, um programa de redução das desigualdades, prometendo oportunidades, emprego e ajuda ao pequeno comerciante.

“Sei que famílias negras têm 40% menos probabilidade de serem donas de uma casa. Parte da minha política beneficiará a todos, mas estou ciente de que precisamos dar às pessoas a oportunidade de ter uma casa própria, que é a oportunidade de construir riqueza intergeracional. Meu plano inclui uma assistência para os compradores pela primeira vez de um imóvel de US$ 25.000, para ajudá-los a dar o primeiro passo para a casa própria”.

Ela prometeu, também, um crédito tributário infantil de US$ 6.000. “É o que vai ajudar os pais jovens que desejam criar seus filhos, mas nem sempre possuem os recursos. Vai ajudá-los a pagar pelos cuidados infantis, comprar um berço, uma cadeirinha para as crianças no carro. Quando fizemos o Crédito Tributário Infantil pela última vez, reduzimos a pobreza infantil negra pela metade. São essas coisas que pretendo fazer, com foco no que podemos fazer e que comprovadamente funciona”, disse a uma rádio local.

A ver o apelo que mais moverá a escolha dos americanos. Enquanto a incerteza paira, um breve compilado, publicado pela Forbes nesta terça-feira (29), de várias pesquisas locais nos estados pêndulos. Os números correspondem às primeiras sondagens citadas pela reportagem:

Pennsylvania
Harris 48%, Trump, 48%

Michigan
Harris 51%, Trump 46%

Wisconsin
Harris 50%, Trump 47%

Nevada
Harris 51%, Trump 47%

Arizona
Trump 51%, Harris 47%

Georgia
Trump 51%, Harris 46%

North Carolina
Trump 50%, Harris 48%

Tatiana Carlotti, Doutora em Semiótica pelo Departamento da Linguística da Universidade de São Paulo (USP).

 

 

Vivemos uma epidemia de solidão, por Ronaldo Lemos.

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Pesquisa mostra que 1 a cada 4 pessoas enfrenta solidão severa

Ronaldo Lemos, Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

Folha de São Paulo – 04/11/2024

A cidade de Seul acaba de anunciar que vai investir US$ 327 milhões para combater a solidão. A capital sul-coreana é a mais nova integrante do clube de governos que estão combatendo isolamento social com política pública.

O dinheiro vai ser aplicado de várias formas. A cidade vai oferecer apoio psicológico gratuito para todos os residentes, além de um serviço emergencial chamado “Adeus, Solidão”. Fez parceria com os aplicativos de delivery para identificar as pessoas que vivem sozinhas. Vai dar incentivos a quem participar de atividades sociais, incluindo visitar bibliotecas, festivais, parques e restaurantes.

Em Seul, as “mortes por solidão” têm crescido ano a ano. O fenômeno afeta principalmente homens (84% dos casos) na faixa dos 50 e 60 anos (50% dos casos).

Seul não está sozinha no problema. O Japão enfrenta há anos a crise dos “hikikomori”, jovens que romperam vínculos e vivem isolados. Há 1,5 milhão deles, muitos vivendo no próprio quarto. O problema está em todas as idades. A onda agora são os “8050”. A expressão se refere a pessoas reclusas na faixa dos 50 anos que dependem da ajuda dos pais de 80. Para combater tudo isso, o Japão tem criado centros de apoio, excursões turísticas para promover vínculos e até ajuda financeira supervisionada para reintegração social.

Quem leu até aqui pode achar que o problema é maior na Ásia. Nada disso. Em 2018, a Inglaterra criou o seu Ministério da Solidão (o nome oficial é Subsecretaria de Estado para a Solidão), que já teve quatro integrantes. A solidão cresce no país em todos os segmentos, especialmente entre 16 e 29 anos.

Nos EUA, o problema é similar. Em 2023, o cirurgião-geral (porta-voz do governo para saúde) anunciou com todas as letras que o país vive uma epidemia de solidão. Criou um plano para “reparar o tecido social”, baseado na constatação que um a cada dois americanos alegam sofrer de isolamento social.

Para quem ainda não está convencido é só olhar para a OMS. Em 2023 a Organização Mundial de Saúde decretou a solidão como prioridade global de saúde. Criou inclusive a Comissão de Conexão Social para tratar o problema, com representantes de vários países como Chile, Japão, Suécia e EUA (o Brasil ficou de fora).

Os dados publicados pela OMS são chocantes. Em pesquisa global feita pelo Gallup em 142 países, uma a cada quatro pessoas enfrentam solidão severa e o mesmo número enfrenta solidão moderada. Curiosamente os menos solitários são os mais velhos (mais de 65 anos). Já os mais sozinhos são os jovens entre 19 e 29 anos. 27% deles com solidão severa e 30% moderada.

O dano da solidão acontece em várias camadas, físicas e mentais. Um estudo de 2022 apontou que o efeito de estar sozinho para a saúde equivale a fumar 15 cigarros por dia (o equivalente em nicotina a mascar 10 sachês de Zyn, a nova tendência do momento). O Brasil não está de fora. Pesquisa IPSOS de 2021 apontou que o país ocupava o 1º lugar entre entre os que mais sentem solidão. Está na hora de reparar o tecido social aqui também.

 

Esquerdas.

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Os partidos de esquerda ou de centro esquerda apresentaram resultados pouco vistosos na última eleição, em alguns locais seu crescimento foi marginal, na maioria das vezes os ganhos foram pouco e inconsistentes, trazendo preocupações para estes grupos políticos, enquanto os partidos vulgarmente chamados de centrão, foram os grandes ganhadores no pleito municipal, notadamente o MDB e o PSD, cacifando-os para voos mais estruturados. Uma parte central deste crescimento está atrelado aos efeitos perversos do orçamento secreto, que injetou bilhões de reais nos grupos políticos de direita ou extrema direita, garantindo um naco maior de poder e de legitimidade a partir do próximo ano, um momento central e fundamental para a construção dos próximos candidatos aos governos estaduais e o governo federal.

Neste cenário, destacamos os conflitos existenciais dos partidos de esquerda, mesmo sabendo que o conceito de esquerda no século XXI está marcado por grandes dificuldades analíticas, vivemos num momento de grandes incertezas e instabilidades políticas. No front da esquerda, partindo do conceito de uma esquerda mais tradicional, destacamos uma grande dificuldade de compreender as grandes transformações do mundo do trabalho, um momento de fragilização dos sindicatos, o crescimento de novas formas de trabalho, novos modelos de negócios e alterações nas organizações sociais e produtivas, tudo isso, contribui enormemente para desestruturar os modelos anteriores, gerando medos, rancores e ressentimentos.

Destacamos ainda, as dificuldades de compreender as mudanças no mundo religioso, onde a Igreja Católica perdeu espaço para novos modelos de organização religiosa, com o fortalecimento das igrejas evangélicas, que passaram a arrebatar uma grande parte dos fiéis, com novos conceitos de religião, novas formas de estruturação social e coletiva, tudo isso, contribui imensamente para que entendamos as dificuldades dos grupos políticos mais à esquerda da sociedade.

Destacamos questões ligadas às famílias, sempre vistas como um agente imprescindíveis para as organizações sociais e que, vem passando por grandes alterações estruturais, novas formas de organização familiar, novas formas de estruturação e novos modelos de negócios, tudo isso, levou a uma erosão dos grupos de esquerda na compreensão da chamada família tradicional.

São muitos os desafios, mas gostaria de acrescentar mais um, as esquerdas estão com grande dificuldade de compreender as questões ligadas à segurança pública, perdendo espaço nas narrativas políticas e perdendo força na construção dos diagnósticos feitos pelos grupos mais à direita ou de extrema-direita.

Os desafios contemporâneos são elevados e prescindem de grandes discussões políticas, neste momento, cabem aos grupos de esquerda e de centro esquerda uma ampla reflexão para voltarem a ter influência e relevância no debate político quando o assunto está relacionado com a segurança pública, a família contemporânea, as questões religiosas e as grandes transformações no mundo do trabalho.

Os grandes desafios são imensos e precisam de grande maturidade, olhar internamente suas dificuldades, os medos e os ressentimentos mais íntimos e pessoais.

Derrota e Descaminho, por Antônio Martins

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Fiasco eleitoral do governo é dramático e expõe necessidade de mudança de rumos. Porém, Fazenda insiste no erro e pode tornar Lula refém do rentismo e do Centrão. Há alternativas; mas presidente não tem muito o tempo para buscá-las

Antônio Martins, editor de OUTRAS PALAVRAS – 28/10/2024

Mesmo quando previstas, as derrotas graves são doídas. Embora Lula governe o país, os partidos de esquerda e centro esquerda fecharam, ontem, o pleito deste ano elegendo apenas três, de 26 prefeitos de capitais – uma queda abrupta frente aos 14, em 2012, e abaixo mesmo dos 6, em 2020, sob o mandato de Jair Bolsonaro. A esquerda perdeu redutos históricos como Diadema (SP), onde governou por 32 anos nas últimas quatro décadas e elegeu, em todo o país, um número de prefeitos menor de que o alcançado há quatro anos. No primeiro turno, o PL, de Jair Bolsonaro, foi o partido mais votado (com 13,95% dos votos), graças a sua ascensão nas grandes cidades; e o PT, apenas o sexto (com 7,79%).

Mas no cômputo geral dos municípios, prevaleceram os quatro partidos do Centrão – cujo compromisso com as pautas neoliberais, na economia, e conservadoras, nos costumes, é indisputado. PSD, MDB, PP e União Brasil venceram juntos em 3097 cidades, quase onze vezes mais que a federação formada por PT, PCdoB e PV. No Nordeste, tradicional reduto lulista, PT e PSB elegeram apenas duas prefeituras – contra sete do Centrão (5) e PL (2) somados. Em São Paulo, a coalizão formada em torno de Ricardo Nunes venceu em todos os distritos eleitorais da periferia, exceto dois. Em todo o país, as pesquisas sugerem que direita e Centrão avançaram sobre o eleitorado jovem, invertendo uma tendência histórica.

Embora muitos fatores (inclusive internacionais) devam ser elencados para buscar os motivos do fiasco, um parece claro. Em seus primeiros dois anos, o governo Lula foi incapaz de corresponder às esperanças de que iniciaria a reconstrução nacional, superando o interregno de retrocessos aberto pelo golpe de 2016 e ampliado por Bolsonaro. As condições eram difíceis desde o início, mas o Palácio do Planalto acomodou-se à correlação de forças existente – ao invés de tentar alterá-la. A mobilização popular, sua principal ferramenta para fazê-lo, foi sempre desprezada.

Disso advieram duas consequências, desastrosas e complementares. As instituições conservadoras, que atuam como barreiras das elites para manutenção dos privilégios e da desigualdade, jamais sentiram-se pressionadas a fazer concessões. Um exemplo típico é o Banco Central. Bem cedo seus dirigentes – nomeados por Bolsonaro e abertamente partidários do ex-presidente – perceberam que, embora esbravejasse contra as taxas de juros, Lula não os submeteria a constrangimentos reais; assim como não mobilizaria os bancos públicos para aliviar a inadimplência e captura dos tostões da população endividada. O mesmo ocorreu com as concessionárias privadas do setor elétrico ou, em muito maior escala, com o Congresso Nacional, onde as pautas antipopulares tramitam sem tensão.

O segundo efeito é que, ao não abrir disputa contra os conservadores, Lula é visto como mais um entre eles – ou seja: parte da minoria que enriquece enquanto o país definha. Num cenário de crise prolongada, esta identificação dá origem a fenômenos bizarros, pois entrega à direita a poderosíssima bandeira de “antissistema”. Como em São Paulo, onde parte expressiva do eleitorado atribuiu esta imagem a Pablo Marçal – um milionário que se identifica com o homem mais rico do mundo – e não a Guilherme Boulos, que associou sua figura à do chefe do governo…

A baixa potência de Lula 3 deveu-se especialmente à obsessão do ministro da Fazenda por um “ajuste fiscal”, materializado no “arcabouço” no “déficit primário zero”. Num país empobrecido e reprimarizado, o investimento público pode ser a principal alavanca do governo para melhorar a vida das maiorias, renovar a infraestrutura e criar milhões de ocupações dignas. Além disso, os conservadores têm enorme dificuldade para se opor. Imagine-se o impacto que teriam, na sociedade e no Congresso, propostas como a garantia de escola pública em período integral, a extensão de Equipes de Saúde da Família a todo o território nacional, a duplicação das redes de metrô, a despoluição dos rios urbanos e a contratação de todos os profissionais necessários a estas tarefas.

Ao invés de abraçar projetos como estes, a Fazenda optou por perseguir uma “disciplina” só benéfica aos rentistas (a China, por exemplo, mantém déficits fiscais de 3% ao ano há décadas e acaba de ampliá-las; a União Europeia debate neste exato momento o Plano Draghi, que pode elevar o déficit anual a 5% do PIB; os EUA registrarão déficit de 7,3% em 2024). A eleição escancarou os resultados políticos de tal escolha. Lula conserva popularidade mediana. Mas a capacidade que ele teve, nos dois primeiros mandatos, de sinalizar tempos novos para a maioria (“nunca antes na história deste país”) e mobilizar o eleitorado em favor de seu campo político esfumaçou-se. Sensível ao declínio, o presidente retraiu-se durante a campanha. E este encolhimento pode se consolidar caso prospere a movida que o próprio Fernando Haddad articulou, nas últimas semanas. Se concretizada, ela alterará, de forma definitiva, o próprio caráter do governo.

Por volta de 10 de outubro, quando o ministro da Fazenda deu inicio à fase crucial do movimento que deflagrara quatro meses antes, o resultado das urnas já estava delineado. Haddad sabia, portanto, que seus atos incidiriam sobre um cenário de derrota eleitoral do governo e de início das definições rumo a 2026. Decidiu ir adiante.

Em 15 de outubro, algumas das colunas jornalísticas mais prestigiadas do país – em especial, as de Mônica Bergamo e Míriam Leitão – publicaram entrevistas em que o ministro admitia publicamente, pela primeira vez, seu desejo de promover “cortes estruturais” no gasto social da União. As medidas exatas, disse ele às jornalistas, estavam sobre a mesa de Lula (ou chegariam, nos dias seguintes), depois de terem sido longamente arquitetadas por seu ministério e pelo Planejamento, de Simone Tebet. Seriam feitos após as eleições.

Mas os itens do cardápio eram claros. Fim dos dispositivos que asseguram à Saúde e Educação percentuais mínimos do Orçamento. Restrições ao Benefício de Prestação Continuada (BCP), a aposentadoria dos mais pobres. Cortes no seguro-desemprego. Em certas versões, fim da âncora que protege as aposentadorias, ligando-as à evolução do salário-mínimo. Caberia a Lula optar. Mas em todos os momentos o ministro frisou “ver razão” nas pressões da Faria Lima por mais apertos nos gastos públicos. Insinuou que, se fossem satisfeitas, o “interesse internacional” poderia manifestar-se em busca de “vantagens comparativas que têm a ver com nossa matriz produtiva e energética”. Um brinde à ENEL e suas correlatas…

A manobra, porém, ainda não estava completa. No dia seguinte, 16/10, Haddad conduziria ao encontro de Lula os maiores banqueiros do país, que se reuniram juntos com o presidente pela primeira vez. O acerto, conta a repórter e analista Maria Cristina Fernandes, no Valor, vinha sendo feito pelo ministro e pela Febraban desde junho. Ou seja: as entrevistas da véspera tinham a intenção de reforçá-lo, criando sinergia entre os dois eventos. E assim foi. A própria Maria Cristina reportou mais tarde que, embora tenham tratado também de temas laterais (como o efeito dos saques na poupança sobre o crédito imobiliário e a regulação das bets), os banqueiros quiseram frisar, acima de tudo, seu apoio à cruzada de Haddad pelo corte “estrutural” nos gastos públicos. [Ninguém tocou, decerto, num tema-tabu: o fato de os juros pagos pelo Estado a um punhado de rentistas corresponder, a cada ano, a 2,5 vezes todo o orçamento federal para a Saúde, que atende 210 milhões de pessoas em 5600 municípios…].

A Economia precisa encontrar-se com a Política. Em vista das eleições, qual será o perfil do governo Lula, caso ele aceite o sentido do pacote proposto pelo ministro da Fazenda? E que cenário está pressuposto nesta “conversão” do presidente?

À esquerda, as perdas de Lula serão inevitáveis. Nos grupos de internet ligados à defesa do SUS, por exemplo, já circulam manifestos contra o fim da garantia de verbas para a Saúde Pública – que contam com a simpatia, inclusive, de ex-ministros de Lula e Dilma. Porém, é possível que Haddad (e talvez seu superior) faça(m) outros cálculos. Nestas contas hipotéticas, a esquerda não terá outra alternativa: engolirá o corte de verbas e direitos, pois será forçada a apoiar Lula (ou seu eventual candidato sucessor…) contra a ultradireita, em 2026.

E o desenho da disputa presidencial, em dois anos, será muito diferente do vivido em 2022. De um lado estará a ultradireita. De outro, Lula (ou um sucessor…). A Frente ampla que o apoiará já não terá em sua espinha dorsal a esquerda e a centro-esquerda. Basta olhar para a composição do Congresso (e a das prefeituras recém-eleitas) para enxergar. Nesse novo arranjo, dará as cartas o Centrão. Gilberto Kassab (PSD) e Baleia Rossi (MDB) serão os ministros mais poderosos – ou as eminências pardas…

Caberá à esquerda coadjuvar, tanto no ministério quanto – muito mais importante – na definição dos planos de governo.

Estamos condenados a tão pouco? A primeira resposta cabe a Lula. Ele se conformará a tal conchavo? Aceitará – assim como Gabriel Boric no Chile, Emmanuel Macron na França, Alberto Fernandez na Argentina ou Olaf Sholz na Alemanhha – o papel de figura decorativa, a lembrar que houve vida e ousadia, onde então só restará subalternidade? Saberemos nas próximas semanas.

E caso ele sucumba? Estaremos dispostos a trocar nossos projetos e sonhos de um país reconstruído por um punhado de ministérios de consolação? Ou, pior ainda, a fazer parte de um projeto que não sobreviverá à onda de ultradireita, devido à sua própria claudicância?

Nas últimas semanas, têm surgido, entre personagens de uma esquerda insubmissa, considerações de que este destino não é digno, nem aceitável. As próximas semanas e meses dirão se esta ousadia tem futuro.

 

A grande promessa das eleições, por Ana Paula Vescovi

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Resultados dos pleitos em diversos países neste ano apontam para mais juros e menor crescimento global, e o Brasil precisa se preparar para esse cenário

Ana Paulo Vescovi, Economista-chefe do Santander Brasil.

Folha de São Paulo, 03/11/2024

Um dos principais temas em 2024 é o aumento da incerteza com a agenda global tomada por eleições, majoritárias ou proporcionais. Economistas costumam não se aventurar no terreno da política, mas o amplo e inédito movimento eleitoral pode trazer sinais importantes para a economia nos próximos anos.

Segundo dados do Council on Foreign Relations, o mundo jamais se deparou com um número tão grande de eleitores votando como em 2024. São 2 bilhões em mais de 80 países, incluindo 8 entre os 10 mais populosos do mundo. A lista inclui Brasil, Índia e Estados Unidos, além da União Europeia e outros.

Globalmente, a polarização política e cenários eleitorais incertos dificultam consensos, aumentam gastos públicos e enfraquecem ações contra mudanças climáticas.  Em países emergentes, nota-se fragilidade institucional e menor apoio a reformas.

Nem todas as eleições foram realmente abertas e transparentes, havendo a recondução de incumbentes em países com regimes fechados. Na Venezuela, na Rússia ou em Bangladesh, o resultado das urnas gerou revoltas populares, seja nas ruas em conflitos conflagrados, seja por meio de elevado absenteísmo como forma de protesto silencioso, seja pela deposição do eleito poucos meses depois. É um pedaço do mundo que convive com tensões sociais aumentadas.

Entre as principais economias emergentes, Índia, México e África do Sul, os sinais foram mistos. Nos dois primeiros, os incumbentes mantiveram a sua força, se reelegendo ou elegendo sucessores. Na África do Sul, o partido de Nelson Mandela perdeu a sua força após 30 anos de hegemonia.

Entre as economias avançadas, os sinais são o aumento de gastos públicos e a ausência de ajuste fiscal, com dívidas soberanas mais altas e ainda crescentes. Isso implica juros mais altos por mais tempo, menos investimentos e pressões inflacionárias latentes.

As eleições para o Parlamento Europeu também surpreenderam, anos após o brexit e a invasão na Ucrânia. Os nacionalistas e a extrema direita aumentaram o número de cadeiras e, embora não tenham chegado à maioria, cresceram na Itália, em Portugal e na Alemanha, além de Áustria, Polônia e Holanda.

Na França, a governabilidade precisará ser bastante negociada. Foi surpreendente a convocação antecipada (em três anos) de eleições legislativas, a qual resultou em uma composição parlamentar fragmentada, com nenhuma das coalizões —Nova Frente Popular, de esquerda; a Aliança Centrista, do presidente Macron; a Reunião Nacional, da ultradireita— conseguindo maioria absoluta.

E, por fim, em poucos dias conheceremos o resultado das eleições presidenciais e congressuais nos Estados Unidos. Pesquisas denotam uma corrida bastante disputada, com os republicanos sinalizando leve vantagem nos estados que não têm a tradição de apoio persistente a um dos dois lados. O que mais atrai a atenção dos mercados são dois pontos: riscos de contestação do resultado, com atrasos na decisão final e mais fricções institucionais; e uma possível vitória majoritária —a Presidência e as duas Casas no Congresso— de um dos partidos, o que reduziria os freios e contrapesos nas discussões de medidas econômicas.

O que mais pesa são as propostas anunciadas na campanha. As estimativas de piora fiscal (aumento de gastos ou redução de impostos) giram em torno de 15% a 25% do PIB nos próximos dez anos. Espera-se ainda o acirramento do protecionismo, especialmente em relação a produtos chineses, com a imposição de tarifas, por parte dos republicanos, ou a aposta de mais subsídios para política industrial, no caso dos democratas.

Não bastasse, a questão geopolítica emerge com outros temas, que vão desde a influência para a redução do financiamento de guerras por meio do aumento de oferta e redução dos preços de petróleo até a retirada do suporte financeiro aos países envolvidos nelas (Israel e Ucrânia), passando pela rediscussão do papel das organizações multilaterais.

Ademais, o protecionismo e a fragmentação do comércio exterior retiram produtividade e crescimento da economia global. A eventual imposição de tarifas comerciais mais altas nos Estados Unidos concorre, com juros mais altos, para a valorização do dólar ao longo do tempo.

Assim, o quadro mais geral que emerge das mudanças políticas é um mundo que retrocede nos aspectos institucionais e na coordenação multilateral e, possivelmente, caminha para mais juros, menos crescimento e dólar mais valorizado, tal como nos anos 1980.

O Brasil abre novas oportunidades para escapar dessa tendência. As eleições municipais recentes sinalizaram um passo mais à direita, mas com ampliação do centro político, o que pode favorecer a busca por consensos e o equilíbrio de forças entre Poderes.

O eleitorado brasileiro indica redução da polarização, o que, se bem traduzido pelos representantes políticos, poderá nos levar para uma agenda mais pragmática. É urgente interromper o crescimento da dívida pública e do seu custo de financiamento, persistir na melhoria do ambiente de negócios (estamos próximos a uma reforma tributária), em políticas sociais mais efetivas e na promoção das vantagens comparativas.

Trata-se de um apelo para o senso de urgência que precisamos ter em relação à busca mais enfática pelo grau de investimento e pelo reposicionamento do Brasil nos mercados globais, com sustentação do seu processo de desenvolvimento.

 

Combate ao crime organizado é questão de Estado, por Oscar Vilhena Vieira.

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Sem paz não haverá prosperidade nem democracia

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023)

Folha de São Paulo, 02/11/2024

Debelar o crime organizado constitui hoje o principal desafio da democracia brasileira. Muitos dirão que temos desafios mais importantes. O fato, porém, é que dificilmente conseguiremos êxito em outras frentes sem que a criminalidade organizada seja contida.

A expansão da criminalidade organizada vem submetendo parcelas cada vez maiores da população brasileira à brutalidade e à exploração econômica. Estima-se que 23 milhões de brasileiros vivam hoje em áreas dominadas por milícias e facções. Nessas áreas não há lei nem direitos. A regra são a violência e o arbítrio. É um erro acreditar que o crime organizado se interesse apenas por atividades ilegais altamente lucrativas, como o narcotráfico, o garimpo ilegal, a grilagem, o desmatamento criminoso, o tráfico de seres humanos ou a prostituição. O crime tem expandido suas ações para a distribuição de combustíveis —e mesmo a produção de álcool—, o mercado imobiliário, de transporte coletivo e de apostas e a lavagem de dinheiro, para ficar apenas nos exemplos mais evidentes.

Milícias e facções têm se dedicado a controlar o acesso da população aos serviços públicos, ao mercado local, à liberdade básica de ir e vir e até mesmo o acesso à religião. O chamado “narcopentecostalismo” é hoje um fenômeno que vem ganhando força em muitas comunidades. São, portanto, milhões de brasileiros reféns de um estado cotidiano de exceção.

Particularmente preocupante é a expansão do crime organizado pela amazônia. Como aponta Marta Machado, secretária Nacional de Políticas sobre Drogas, há hoje uma forte conexão entre narcotráfico e degradação ambiental. Pistas clandestinas, rotas de escoamento, lavagem de dinheiro e prostituição fazem parte das mesmas redes. O enfrentamento da questão climática, no Brasil, está hoje umbilicalmente ligado ao combate ao crime organizado.

Múltiplos são os fatores que levaram a essa expansão do crime, que vão da ausência ou presença arbitrária do Estado à inexistência de oportunidades econômicas. Há, porém, uma dimensão institucional, que decorre de escolhas erradas no campo da segurança pública e da política criminal.

O primeiro desses erros tem sido apostar numa política de encarceramento indiscriminado e em massa. O Estado tem se tornado, assim, o principal parceiro do crime organizado. Nas prisões, as facções cresceram e se fortaleceram.

Um segundo erro tem sido negligenciar a profissionalização, a integração, as boas condições de trabalho, o investimento em inteligência e o controle das polícias, reduzindo sua eficiência e, em algumas circunstâncias, favorecendo a milicianização das forças de segurança.

Um terceiro erro foi flexibilizar o acesso a armas e munições, que têm migrado para as mãos de criminosos, aumentando o poder de fogo contra a população e mesmo contra a polícia.

O mais preocupante, neste momento, tem sido o avanço do crime organizado sobre a política partidária, o Legislativo, governos, polícias e mesmo a Justiça. É fundamental que medidas urgentes sejam tomadas antes que esse processo de captura do Estado se torne irreversível.

A PEC apresentada pelo Governo Federal aos governadores nesta semana pode representar um primeiro passo na criação de uma política de Estado de segurança pública. Conservadores e progressistas têm que se unir contra o crime.