Efeito dominó do desmatamento na Amazônia, por Márcia Castro

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Danos acumulados não são revertidos apenas com a redução das taxas anuais

Márcia Castro, Professora de Demografia e Chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard.

Folha de São Paulo – 08/11/2024

Na última quarta-feira (6), o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inep) divulgou dados do desmatamento. De agosto de 2023 a julho de 2024, o desmatamento na amazônia caiu 30,6% comparado ao período anterior.

Um dia depois, dados do Observatório de Clima mostram que o Brasil reduziu em 12% a emissão de gases de efeito estufa em 2023. Na amazônia, as emissões devido ao desmatamento tiveram uma queda de 37%.

Os dois indicadores são positivos e estão relacionados. Mas muito ainda precisa ser feito.

Os efeitos acumulados em função do histórico de desmatamento não são revertidos apenas com a redução das taxas anuais. Além da contínua redução das perdas ambientais, são necessários programas efetivos, de larga escala e sustentáveis de recuperação ambiental.

A equação é simples: menos árvores resultam em menos umidade do ar, o que reduz a potência dos rios voadores, resultando em menos chuvas e, portanto, redução do nível de água dos rios. Esse efeito dominó acelera o processo de mudanças climáticas.

Além disso, afeta a segurança energética do país, já que a energia hidrelétrica, em 2023, responde por 48,6% da capacidade instalada e 60,2% da geração total.

Um estudo da PUC-Rio mostra que 17 das 20 maiores hidrelétricas do Brasil estão na rota dos rios voadores e, portanto, são afetadas pelo desmatamento na amazônia. Destas, apenas oito estão localizadas na amazônia.

Fica claro que os efeitos do desmatamento não respeitam fronteiras. O estudo mostra que o desmatamento na amazônia entre 2002 e 2022 resultou em uma perda de geração de cerca de 3% nas hidrelétricas localizadas na bacia do Paraná.

A redução da geração de energia hidrelétrica em momentos de seca demanda o uso de usinas térmicas que, além de terem um custo maior, são emissoras de gases de efeito estufa, acelerando as mudanças climáticas.

Cabe relembrar que os possíveis efeitos das mudanças ambientais e climáticas na futura capacidade de geração de energia hidrelétrica no Brasil já haviam sido ressaltados no Projeto Brasil 2024 que, infelizmente, foi ignorado.

Os efeitos do desmatamento também são sentidos na saúde. Um estudo recente mostra que, entre 2003 e 2022, a cada aumento de 1% na área mensal desmatada houve, em média, um aumento de 6,3% nos casos de malária na amazônia no mês seguinte ao desmatamento. Esse efeito varia por estado e chega a 10,6% de aumento da malária no Amazonas.

Esses e tantos outros efeitos do desmatamento ressaltam a necessidade da recuperação ambiental.

Imagine que a amazônia é um órgão do corpo humano. Os rios são as artérias. As árvores são as veias. Não é preciso remover todas as árvores ou contaminar todos os rios com o mercúrio usado no garimpo para que amazônia deixe de existir.

A falência do órgão acontece quando o estrago chega a um ponto que compromete o seu funcionamento. Essa é a ideia do ponto de não retorno. Evitá-lo demanda redução do desmatamento e recuperação de áreas degradadas.

Estamos a um ano da COP 30 em Belém. O Brasil pode, deve e precisa assumir o protagonismo na agenda ambiental. Precisa fazê-lo pelo Brasil e pela humanidade. Afinal, após a eleição de Trump, esse protagonismo é de extrema importância.

 

Alunos de Gestão Empresarial da Fatec Catanduva – 2024

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Trump: promessas e perspectivas

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Nesta semana Donald Trump ganhou a eleição para a Presidência dos Estados Unidos, neste percebemos que as nações estão todos alvoroçadas, afinal a presença de Trump na presidência dos EUA gera incertezas e instabilidades de todas as regiões.

Governos nos mais diferentes matizes ideológicos estão preocupados, mas destacamos as nações que mais geram preocupações da sociedade norte-americana, como a China, a Rússia, o Irã, o México, a Coréia do Norte e o México, países que, de uma forma ou outra, ameaçam a liderança estadunidense.

Neste cenário, onde a sociedade estadunidense perde a sua hegemonia global e percebe ainda, o crescimento de novos atores econômicos, políticos e sociais, as reações do governo Donald Trump podem alavancar constrangimentos para a sociedade mundial, como a adoção de fortes políticas protecionistas, limitação da atuação de agências multilaterais, tais como a ONU, a OMC, a OMS, dentre outras, que podem culminar no refluxo da globalização.

Me chamou a atenção na campanha eleitoral, as promessas, que são sempre muito interessantes, muitas delas bastante exóticas e irreais, onde o ganhador ameaçou aumentar a proteção tarifária da economia norte-americana, taxando as importações que geram constrangimentos para a economia e impacta fortemente os trabalhadores, principalmente das regiões industrializadas, essas regiões que antes eram fortes exportadores de produtos industrializados, perderam espaço no comércio global e, suas populações estão perdendo renda, empobrecendo e aumentando a degradação social e levando grande parte da população para votarem em candidatos de extrema-direita.

As tarifas alfandegárias podem reduzir as importações internas e acomodar a produção interna, mas sabemos que as outras nações não vão aceitar passivamente, que podem gerar um conflito comercial, cujos efeitos são assustadores, preocupantes e podem aumentar os confrontos entre as nações.

Outro ponto que devemos destacar neste ambiente, é que, a redução da importação global dos Estados Unidos, como forma de proteger a indústria americana, vai impactar fortemente sobre o consumo interno, com elevação dos preços dos produtos e gerando um incremento da inflação, cujo impacto imediato é a elevação das taxas de juros que tendem a reduzir os investimentos produtivos, diminuindo o crescimento dos empregos e a queda da renda agregada.

O mundo globalizado é muito mais complexo do que as pessoas imaginam, muitas promessas são impossíveis de serem implementadas, desta forma, muitos políticos eleitos perdem a legitimidade, com inúmeras promessas na campanha que são difíceis de serem colocadas em práticas, gerando o descrédito, a desesperança e a repulsa a todos os candidatos, para todos os partidos políticos e para todo o sistema democrático, gerando um verdadeiro retrocesso.

A ascensão de Donald Trump pode motivar uma nova agenda internacional, menos multilateralismo, crescimento da extrema direita, o incremento da turbulência e com a imigração perdendo espaço, já que a promessa de endurecer a entrada de pessoas de outras nações nos Estados Unidos podem contribuir para que o mundo fique, cada vez mais, centrado nas incertezas, nas instabilidades e nas crescentes volatilidades.

 

 

O economista de Donald Trump, por Alessandro Octaviani

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Alessandro Octaviani – A Terra é Redonda – 07/11/2024

É um erro tomar Peter Navarro, um dos raros economistas a quem Trump dá alguma credibilidade, como “excêntrico”, “retrato de um acidente”, ou “desvio, que em breve será arrumado”

Peter Navarro é atualmente diretor do Office of Trade and Manufacturing Policy, do Governo Federal dos EUA, e um dos raros economistas a quem Donald Trump dá alguma credibilidade. [1]

Durante a crise do Covid-19, sua atuação foi ainda mais marcante. Como noticiado, em 2 de abril de 2020, “Donald Trump recorreu (…) à Lei de Produção de Defesa para ajudar as empresas que fabricam respiradores (…). (…) General Electric, Hill-Rom Holdings Inc, Medtronic Plc, Resmed Inc, Royal Philips NV e Vyaire Medical Inc”. [2]

Esse reforço para as empresas nacionais norte-americanas ficou a cargo de Peter Navarro, que se incumbe da missão como um verdadeiro “Falcão Econômico”: “Sobre sua ‘nova autoridade sobre empresas e suas redes mundiais de suprimentos’, ele conta como a usou com a 3M, que tem fábricas na China: ‘A empresa não estava disposta a informar sobre a distribuição das máscaras que produz ao redor do mundo e a fornecê-las ao povo americano. Ela quer agir como uma nação soberana (…). E nesta crise existe apenas um país e apenas um presidente”. [3]

A imprensa noticiou recentemente o movimento jurídico de Donald Trump rumo à tentativa de monopolizar, para os EUA, a exploração mineral na Lua e em outros corpos celestes: “Em meio à pandemia do coronavírus, que já contaminou mais de 360 mil estadunidenses, o presidente dos EUA, Donald Trump, envolve-se em mais uma polêmica após publicar um decreto que dá ao país o direito à exploração dos recursos da Lua, contrariando o acordo feito sobre o satélite natural do planeta Terra. ‘Os americanos devem ter o direito de se envolver em exploração comercial, recuperação e uso de recursos no espaço sideral, de acordo com a lei aplicável. O espaço exterior é um domínio legal e fisicamente único da atividade humana, e os Estados Unidos não o veem como um bem comum global. (…)’, diz o decreto assinado por Trump, que foi rechaçado por Moscou”.[4]

Essa proposta também tem o dedo de Peter Navarro, como se lê em Death by China (escrito em parceria com Greg Autry, para ser uma espécie de programa de ação para o Estado capitalista norte-americano ante o perigo chinês e a ameaça à sua hegemonia global): dentre as proposições concretas para “confrontar o desafio espacial chinês” consta “reivindicar a Lua antes que a China o faça”. [5]

Para Peter Navarro, a China é uma ameaça aos EUA, em razão de sua ascensão industrial capitaneada pelo Estado chinês e suas políticas de cunho mercantilista, protecionista, imperialista, planejadas e agressivas.

Dentre os instrumentos chineses, estariam (i) a formação de uma rede complexa de subsídios ilegais à exportação; (ii) moeda astutamente manipulada e brutalmente desvalorizada; (iii) flagrante falsificação, pirataria e subtração descarada da propriedade intelectual norte-americana; (iv) envolvimento em degradação ambiental significativa; (v) padrões de saúde e segurança do trabalho excessivamente frouxos; (vi) tarifas e quotas de importação ilegais; (vii) fixação de preços e uso de demais práticas predatórias com vistas a expulsar rivais estrangeiros dos principais mercados de recursos para, então, cobrar excessivamente dos consumidores por meio de monopólio de preços; e (viii) impedimento de todos os competidores internacionais de estabelecerem seus negócios em solo chinês. [6]

As cinco partes de Death by China são nomeadas em termos militaristas, “preparando a guerra” (que viria de fato a se instalar alguns anos depois de sua publicação, quando suas formulações revelaram-se adequadas às concepções de Donald Trump): “‘Buyer beware’ on steroids”, “Weapons of job destruction”, “We will bury you, Chinese style”, “A hitchhiker’s guide to the Chinese gulag” e “A survival guide and call to action”.

São elencadas medidas estratégicas a serem modeladas, em caráter amplo e urgente, várias das quais atualmente em pleno curso: (i) evitar os produtos chineses; [7] (ii) desmantelar as armas de destruição de empregos da China; [8] (iii) fixar limites rígidos para a espionagem chinesa e guerra cibernética; [9] (iv) confrontar e combater a crescente ameaça militar chinesa; [10] (v) combater o colonialismo global chinês; [11] (vi) frear as mortes na China pela China; [12] (vii) enfrentar o desafio espacial chinês. [13]

É um erro tomar Peter Navarro ou Donald Trump como “excêntricos”, “retratos de um acidente”, ou “desvios, que em breve serão arrumados”. Eles representam a expressão arraigada do Estado capitalista norte-americano e sua disciplina jurídica, vertidos, sempre, à defesa radical de seus interesses e da manutenção de suas posições de poder.

Não se trata de “excepcionalismo”, mas de “estrutura profunda”, que ecoa a célebre modelagem da “Super 301” – instrumento jurídico dos EUA para punir unilateralmente países que os afetem comercialmente – e a atuação do deputado Richard Gephardt, que propunha a incidência do diploma automaticamente “contra países que tivessem saldos superavitários excessivos em suas balanças comerciais com os EUA. Segundo o projeto, seriam feitas duas exceções: países com dificuldades de balanços de pagamentos e casos em que a ação 301 pudesse significar dano aos interesses econômicos dos EUA. (…) Derrubada por veto do Presidente Reagan, sob a justificativa de que era ‘por demais draconiana para ser efetiva’, a chamada ‘emenda Gephardt’ deu lugar à Super 301, como seu dispositivo substituto”. [14] Substituiu-se a obrigação automática de sancionar outros países pela possibilidade discricionária de atacá-los…

*Alessandro Octaviani é professor de direito econômico da Faculdade de Direito da USP.

Notas

[1] Cf., entre outros, ROGIN, Josh. “How Peter Navarro got his groove back”. The Washington Post. Publicado em 27/02/2018.

[2] Publicado em 2/04/2020.

[3] Publicado em 8/4/2020.

[4] Publicado em 7/4/2020.

[5] NAVARRO, Peter; AUTRY, Greg. Death by China: Cronfronting the Dragon – A Global Call to Action. New Jersey: Pearson FT Press, 2011, p. 257-259.

[6] Ibidem, p. 1-11.

[7] Ibidem, p. 234-239. Algumas das proposições específicas: não comprar produtos “made in China”; leis mais duras contra a China e produtos chineses que prejudiquem os americanos.

[8] Ibidem, p. 239-245. Algumas proposições concretas: enviar emissário secreto à China para avisá-la sobre a intenção americana de estigmatizá-la como manipuladora de moeda; frear o sequestro dos trabalhos de pesquisas e desenvolvimento; proibir as empresas estatais chinesas de comprarem empresas privadas.

[9] Ibidem, p. 245-249. Algumas proposições concretas: penalizar de forma mais séria e agressiva os espiões chineses; declarar os ataques cibernéticos promovidos por Estados nacionais como atos de guerra.

[10] Ibidem, p. 249-252. Exemplos de propostas: reconhecer que os EUA precisam conseguir um maior retorno do complexo industrial militar, em vista da superioridade quantitativa crescente do armamento chinês; evitar uma corrida armamentista com a China, que está numa situação econômica e militar muito mais favorável do que os EUA.

[11] Ibidem, p. 252-255. Propostas: expandir e mensagem dos EUA pelo mundo, como forma de ganhar acesso a mercados e difundir os valores democráticos; substituir o ensino de francês e alemão nas escolas de ensino médio por mandarim, como forma de conhecer o inimigo.

[12] Ibidem, p. 255-257. Algumas proposições concretas: reinstituir os direitos humanos como elemento da política externa americana (os EUA devem continuar a exercer pressão sobre a China a fim de que ela respeite os direitos humanos); realização de investimentos em empresas e moedas de países ricos em recursos, como Austrália e Brasil, que se expandem tanto quanto a China.

[13] Ibidem, p. 257-259. Proposições concretas, como mencionado acima: reivindicar a Lua antes que a China o faça; concessão de bolsas, empréstimos estudantis e subsídios/financiamentos educacionais direcionados de forma desproporcional às áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática.

[14] ARSLANIAN, Regis. O Recurso à Seção 301 da Legislação de Comércio Norte-Americana e a Aplicação de seus Dispositivos Contra oBrasil. Brasília: Instituto Rio Branco, 1994, p. 77.

 

Donald Trump — mais um prego no caixão da democracia liberal, por Luis Felipe Miguel

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Luis Felipe Miguel –  A Terra é Redonda – 07/11/2024

 Do mandato de Donald Trump, pelos sinais apresentados até agora, se pode esperar uma tentativa de orbanização do sistema político estadunidense

Evito fazer projeções bombásticas, mas é difícil resistir no calor no momento: a nova eleição Donald Trump bateu, não digo o último, mas um dos últimos pregos no caixão da democracia liberal tal como ela foi edificada ao longo do século XX.

A vitória de Donald Trump não é exatamente inesperada. O velho farsante alaranjado nunca perdeu o apoio de sua base original — operários e rednecks e empobrecidos, os que se sentem cada vez mais excluídos e sem perspectivas nos Estados Unidos de hoje. E cresceu tanto junto ao dinheiro grosso quanto ao eleitorado negro e latino.

Dos bilionários antes simpáticos aos democratas, Donald Trump ganhou o apoio declarado, a simpatia discreta ou no mínimo a neutralidade. Já entre negros e latinos há um crescente descrédito com o discurso do “neoliberalismo progressista” que é oferecido a eles pelo Partido Democrata.

De fato, o Partido Democrata parece não saber o que oferecer ao eleitorado. Em 2020, Joe Biden obteve uma vitória apertada — em um país mergulhado no caos da primeira gestão de Donald Trump, incluindo uma gestão da pandemia tão criminosa quanto a de Jair Bolsonaro.

Na presidência, ele pareceu julgar que a volta à “normalidade” (isto é, à velha política de sempre) era o que o povo queria. Esforçou-se por melhorar os indicadores econômicos, sem perceber que o efeito eleitoral deles já não era o mesmo.

No começo do mandato, em gesto ousado, Joe Biden apoiou a greve dos trabalhadores da Amazon, que reivindicavam o direito de se sindicalizar. Mas o saldo não foi angariar o apoio do vasto setor de precarizados (aqueles retratados no oscarizado Nomadland) e sim angariar a antipatia dos barões da “nova economia” — reforçado pelas tímidas tentativas de regular as big techs.

Não custa lembrar que Jeff Bezos, da Amazon, determinou que o Washington Post, o jornal do qual também é dono, rompesse a tradição de apoiar candidatos democratas e se declarasse neutro na eleição deste ano.

Quando a incapacidade física e mental de Joe Biden para concorrer à reeleição se tornou evidente demais e — após um longo e desgastante processo — ele teve que ser substituído, a opção por sua vice parecia “natural”, mas nem por isso menos equivocada.

Ela parecia ser a solução mais rápida, capaz de unir o partido. Mas, afora isso, reconhecidamente uma política pouco hábil, má oradora e desprovida de carisma, seu único trunfo era ser uma mulher com ascendência africana e indiana.

Com o apelo identitário se mostrando cada vez mais contraproducente, afastando mais eleitores do que congregava, e tendo que ser colocado em segundo plano, Kamala Harris fez uma campanha errática.

Era a mesma velha política morna, de fazer acenos em múltiplas direções para, no final das contas, manter tudo como está.

Do mandato de Donald Trump, pelos sinais apresentados até agora, se pode esperar uma tentativa de orbanização do sistema político estadunidense. Isto é: seguir os passos de Viktor Orbán, na Hungria, e suprimir todos os controles a seu poder pessoal.

Esse desfecho é o resultado da crise do modelo liberal democrático.

O segredo desse arranjo repousava na capacidade da classe trabalhadora de impor limites ao funcionamento da economia capitalista. Ou seja, as democracias históricas não se definem como um conjunto de regras do jogo abstratas, como frequentemente se apresenta na ciência política, mas como o resultado de uma determinada correlação de forças.

A acomodação da democracia liberal permite, por um lado, que os dominados tenham alguma voz no processo decisório e, por outro, que os dominantes saibam calibrar as concessões necessárias para garantir a reprodução de sua própria dominação.

Um componente necessário nessa equação é, obviamente, a capacidade regulatória do Estado. Outro é sua autonomia relativa em relação aos proprietários, a fim de que possam ser adotadas medidas que os contrariam no curto prazo.

A crise que ora se vê é marcada pela erosão de praticamente todos os pilares desse arranjo. O “populismo de direita” dá respostas a ela — ilusórias, mentirosas, mas ainda assim respostas. O centro e a esquerda eleitoral não chegam nem a isso. E, sem a retomada da capacidade de pressão de uma classe trabalhadora transformada, o modelo da democracia liberal fatalmente vai degringolar para uma oligarquia escancarada, com um frágil verniz eleitoral.

Estamos falando dos Estados Unidos. Mas, como disse Horácio (e Marx gostava de citar): de te fabula narratur.

*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica)

 

 

A guerra civil psicótica de volta à Casa Branca, por Franco ‘Bifo’ Berardi

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Franco ‘Bifo’ Berardi – OUTRAS PALAVRAS – 06/11/2024

Entender Trump exige política e psicanálise. Ele sintetiza a desintegração do capitalismo em meio à miséria, violência e depressão. E mobiliza a psicose coletiva que aliena multidões em nome de um ideal: “vencer a qualquer preço”

Tal como as algas mutantes e monstruosas que invadem a lagoa de Veneza, as nossas telas de televisão estão povoadas, saturadas, de imagens e opiniões “degeneradas”. Outra espécie de algas que vale a pena ter em conta, desta vez relacionada com a ecologia social, consiste nesta liberdade de proliferação concedida a homens como Donald Trump, que se apoderam de bairros inteiros de Nova Iorque, Atlantic City, etc., para os “renová-los” no processo em que os alugueis sobem e expulsam milhares de famílias pobres, a grande maioria das quais estão condenadas a perder a sua casa, sendo este caso o equivalente, para os nossos propósitos, a peixes mortos na ecologia ambiental. (Félix Guattari: Les trois écologies, Paris, Éditions Galilée, 1989, p. 34.)

Nestas linhas, escritas quando Trump começava a ocupar a cena pública, Guattari prevê o que agora é mais claro que a luz do dia: a desregulação neoliberal permite que algas monstruosas contaminem as águas. Tudo se desenrolou pontualmente e agora o mar superaquecido desencadeia tempestades terríveis, que matam centenas de pessoas na costa espanhola. Além disso, a desregulação permite a proliferação de fontes de declarações destinadas a contaminar a mediosfera e, consequentemente, a psicosfera. Aconteceu pontualmente: turbas de psicoadictos votam num sem-vergonha, que promete a maior deportação de migrantes da história. Estas poucas linhas de Guattari descrevem a gênese de um ambiente venenoso, que gera violência e opressão, ao mesmo tempo que desencadeia a guerra de todos contra todos, gerando as condições para uma tirania cínica, barroca e destrutiva.

Reconsideremos as premissas distantes daquilo que chamamos de desregulação. No início está a criação tecnológica do paradigma rizomático. Graças à comercialização de tecnologias electrônicas durante as décadas de 1960 e 1970, tornou-se possível a difusão democrática de fontes autonomas de informação. Na Itália e na França criamos centenas de estações de rádio livres depois de travarmos uma batalha cultural contra o monopólio estatal da informação. Então, a criação da world wide web possibilitou a proliferação de inúmeros centros de netcultura ao redor do mundo. Mas pela fenda aberta pela criatividade difusa entraram grandes grupos econômicos e mafiosos (Berlusconi em Itália, Trump nos Estados Unidos e indivíduos semelhantes em todos e cada um dos países do mundo), cujo objetivo não era certamente a criação, a cultura ou a informação, mas a acumulação de capital e a aquisição de poder político ilimitado sobre as mentes de uma sociedade psiquicamente subjugada.

Zed is dead, baby

Vi The Apprentice (2024), filme de Ali Abbasi, que aborda o período de aprendizagem do candidato republicano das atuais eleições estadunidenses. O título é habilmente retirado do programa televisivo em que, há algumas décadas, Donald Trump submetia os candidatos a diversas humilhações, que apareciam diante dele para serem insultados, ridicularizados, questionados e, por fim, despedidos (“You’re fired”). Havia filas para serem ridicularizadas publicamente por aquele indivíduo loiro. Porque? O enigma de Trump demonstra que os instrumentos de análise política já não são úteis. Na verdade, para compreender tal monstruosidade ética, psíquica e política, é necessário falar em humilhação, tristeza epidêmica, autodepreciação, é necessário falar em liberdade ilimitada para escravocratas, tiranos psicóticos e fabricantes de armas. O filme de Abbasi consegue isso até certo ponto: pode ser não seja um grande filme, mas é útil para compreender alguns dos antecedentes psíquicos, existenciais e mafiosos em que Trump cresceu. É útil compreender as ferramentas de seu domínio sobre a psique de um povo miserável e imensamente ignorante.

O filme não é sobre o programa The Apprentice, do qual apropriadamente tira o título, mas na verdade sobre o aprendizado do próprio Trump. Como se tornou o que é? Para responder a esta questão, a psicanálise pode ser mais útil do que a teoria política. A sobrinha do homem laranja, Mary L. Trump, psicóloga de formação, escreveu um livro intitulado Too Much and Never Enough: How My Family Designed the World`s Most Dangerous Man (2020), no qual ela tenta entender seu tio de um ponto de vista psicanalítico. A primeira impressão que tive ao ler o livro é que a vida desse indivíduo foi (e é) imensamente triste. O pai de Trump era, na opinião de Mary, uma pessoa sociopata, mas eficiente. O filme de Abbasi também consegue mostrar como a relação com o pai foi decisiva. Donald viveu sua infância e adolescência com medo da humilhação a que seu pai o submeteu sistematicamente, o que lhe causou profundas feridas psicológicas. “A crença fundamental de Fred (o pai sociopata) é esta: na vida há sempre apenas um vencedor e todos os outros são perdedores; a amabilidade, por outro lado, significa apenas fraqueza”. “Ou você é um perdedor ou é uma pessoa que aposta tudo”, diz o pai ao pequeno Donald. Partindo de tais premissas, é impossível desfrutar das relações com os outros, pois essas relações só podem ser de competição, agressão ou submissão. Mas, infelizmente, não será este um traço decisivo da personalidade coletiva dos habitantes deste país, que não teria existido sem o genocídio dos nativos americanos e sem a deportação e a escravidão?

As três regras que Donald aprende com um advogado racista da máfia (Roy Cohn) são as seguintes:

1.Ataque, ataque, ataque.
2. Sempre minta.
3. Sempre declare vitória e nunca admita a derrota.

Como observa um personagem do filme, que é jornalista do The New York Times, esses três princípios descrevem muito bem a política externa estadunidense dos últimos 30 anos. Eu diria que eles definem o espírito público dos Estados Unidos da América, do princípio ao fim. O inconsciente coletivo dos estadunidenses brancos é um porão fétido de onde emergem monstros como aquele que Tarantino retratou em Pulp Fiction (1994). Você se lembra de quando Bruce Willis liberta Marcellus daquele porão, onde Zed, o torturador, o mantém amarrado para abusar dele? Não há melhor maneira de explicar os anos Trump, embora, infelizmente, me pareça que Zed está vivo e bem, preparando-se para pisotear um bando de pobres.

Nomen est omen

No início de 2021, logo após o ataque ridículo ao Capitólio pelas tropas do general Trump, publiquei um ensaio intitulado “The American Anyss” no e-flux. Quatro anos mais tarde, esse abismo está se tornando mais profundo e um perigo torna-se cada vez mais evidente: a desintegração da mente estadunidense pode desencadear uma reação em cadeia que acabará por aniquilar a vida humana na Terra. Às vezes penso no nome desse indivíduo: trump significa vencer, superar, subjugar, mas o substantivo trump também significa peido, peido fedorento. Se alguma vez a frase “nomen est omen” [o nome é tudo] foi verdade, é esse o caso. O homem laranja é um peido fedorento, que se propõe (e consegue) a empestear a atmosfera psíquica, humilhando e ameaçando. Se eu tivesse a infelicidade de ser cidadão estadunidense, não votaria em nenhum dos candidatos: a senhora Harris, que prometeu que os militares dos EUA estarão sempre equipados com a letalidade máxima, é mais perigosa do que o senhor Trump do ponto de vista europeu, porque com a senhora Harris como presidente, a guerra na Ucrânia se estenderia até o limiar atômico. Trump, que representa consciente e explicitamente os interesses da raça branca, seria uma catástrofe para os palestinos e, de forma mais geral, para os migrantes, a quem Trump e Vance prometeram “a maior deportação da história”. Mas é difícil imaginar como Trump poderia ser mais implacável do que Biden e Obama, que deportaram mais migrantes durante as suas presidências do que o homem peido. E é difícil imaginar como é que ele poderia ser mais implacável com os palestinos do que Biden, que nunca deixou de apoiar financeiramente ou de enviar armas aos exterminadores israelenses. Talvez eu fosse menos hipócrita.

Psicose memética

Em 6 de janeiro de 2021, enquanto o novo presidente democrata se preparava para assumir o seu lugar na Casa Branca e o Congresso se reunia para realizar os seus rituais institucionais, uma multidão heterogênea respondeu ao apelo de Trump para salvar a América e alguns milhares de perturbados marcharam em direção ao Capitólio. Sem encontrar qualquer resistência séria por parte da polícia, estes lunáticos entraram nas salas do Capitólio, quebraram os vidros das janelas, vociferando enquanto agitavam bandeiras confederadas e bandeiras com suásticas. Donald Trump incitou os alvorotados a recuperar o poder pela força. “Você nunca recuperará seu país com fraqueza. Devem mostrar força e ser forte. […]. Lutem, lutem como homens condenados. E se vocês não lutarem como condenados, não haverá país para vocês”. No final do dia a multidão voltou para casa, como faz depois de um belo passeio de domingo. Algumas pessoas ficaram feridas e uma foi morta após tiros de um policial. Os comentaristas democratas ficaram realmente indignados, como não compreendê-los, mas a indignação dos Democratas perante as falsidades contadas por Trump e nas quais os seus seguidores acreditam é pueril. Depois de 2008, os estadunidenses brancos, atolados em duas guerras insanas, humilhados pelo empobrecimento provocado pela crise financeira e aterrorizados pelo colapso demográfico, agarraram-se desesperadamente às suas armas, aos seus SUVs, ao seu direito de comer carne e ao seu direito de matar.

O que aconteceu em Washington no dia 6 de janeiro de 2021 não foi uma insurreição ou um golpe de Estado, mas sim um episódio ridículo e criminoso da guerra civil americana, que é o entrelaçamento de vários conflitos, ou seja, um conflito entre o nacionalismo branco e o globalismo liberal, um conflito entre a população branca e a população negra, latina e asiática, um conflito entre as metrópoles e as áreas rurais empobrecidas e um conflito cultural entre secularistas e fanáticos de algum Jeová sintético, mas esta guerra está diante de uma guerra civil psicótica guerra de lunáticos armados, que decidem matar a primeira pessoa que se coloque no caminho. Este é o abismo estadunidense, não a propagação de fake news. Em 2016 aconteceu o impensável: um nazista loiro tingido venceu as eleições. A partir desse momento ficou claro que a maior potência do mundo is running amok [está fora de controle], que perdeu a cabeça, enquanto tem 120 armas de fogo para cada cem habitantes. Os Democratas queixam-se de que as redes sociais produzem uma avalanche de falsidades, mas só uma pessoa ingênua não perceberia que as falsidades não podem ser erradicadas, porque os Estados Unidos são o reino da falsidade.

Entre 1º de janeiro e 31 de agosto de 2023, ocorreram 28.293 mortes por armas de fogo nos Estados Unidos. As mortes em ações de mass-shooting (como traduzir uma palavra tão ligada à língua dos pistoleiros?) foram 474. Os homicídios não intencionados por arma de fogo, ou seja, os mortos por acidente no manuseio de arma, foram 1.070.

Um pai estadunidense

Apesar de consumirem quatro vezes mais eletricidade e muito mais carne do que qualquer outra pessoa no planeta (ou talvez por causa disso), os cidadãos dos Estados Unidos levam vidas miseráveis. A expectativa média de vida na Espanha é de 83,3 anos, na Suécia 83,1, na Itália 82,7, na China 77,1. Nos Estados Unidos, a expectativa de vida nos últimos anos é de 76,1 anos. 65% dos habitantes não têm poupanças e, se adoecerem, têm boas chances de acabar nas ruas. Em 2022, se produziram 100 mil mortes por overdose de opiáceos. A maior potência militar do planeta está se desintegrando. A palavra “impensável” é recorrente no discurso público estadunidense nos últimos anos.“Precisamos pensar o impensável sobre o nosso país” é o título de um editorial do The New York Times publicado em 13 de janeiro de 2022, escrito por Jonathan Stevenson e Steven Simon:

As próximas eleições nacionais serão inevitavelmente disputadas sanha e talvez violência. É correto afirmar que a ameaça que a direita representa aos Estados Unidos – e o seu objetivo evidente de lançar as bases para tomar o poder ilegitimamente, se necessário, em 2024 – é politicamente existencial. […] O pior cenário é este: os Estados Unidos como conhecemos poderão desintegrar-se.

The Unthinkeble: Trauma, Truth, and the Trials of American Democracy por outro lado, é o título de um livro de Jamie Raskin, publicado em 6 de janeiro de 2022, no primeiro aniversário da insurreição psicótica. O autor não é apenas um escritor, mas um importante membro do Congresso, eleito em Maryland para as fileiras do Partido Democrata. Além disso, Jamie Raskin é professor de Direito Constitucional, autodenomina-se liberal e pai de três filhos na faixa dos vinte e trinta anos. Um deles, Tommy, de 25 anos, ativista político, apoiador de causas progressistas e defensor dos animais, morreu na noite do último dia do ano de 2020. Tommy escolheu morrer, suicidou-se como dizem. Fez isso depois de uma longa depressão, mas também como consequência da longa humilhação moral que o trumpismo infligiu aos seus sentimentos humanitários. Para Jaimie Raskin, a decisão final de Tommy não é apenas uma catástrofe emocional, mas o início de uma reconsideração radical das suas convicções. Ao ler este livro, partilhei a dor de um pai e o tormento de um intelectual, mas ao mesmo tempo foi revelada a profundidade da crise que está dilacerando o Ocidente e, em particular, obscurecendo o horizonte cultural da democracia liberal. O pai não tem mais nenhum mundo de valores para transmitir ao filho. No livro, três histórias diferentes se desenrolam simultaneamente e se alimentam reciprocamente: a primeira é a história do fascismo estadunidense emergente. A segunda é a vida de Tommy, a sua educação, os seus ideais e a constante humilhação da sua sensibilidade ética. A terceira é o efeito da covid-19 nas mentes da geração mais jovem, aquela que mais sofreu com as regras de distanciamento. Tommy sofria de depressão e, em sua última mensagem, fala sobre isso: “Perdoe-me, minha doença venceu”.

Jamie Raskin escreve:

Tal como muitos jovens da sua geração, Tommy foi arrastado pela covid-19 para uma espiral maligna. Com os centros educativos fechados, a sua vida social foi reduzida a um ponto frágil acompanhado da máscara, as viagens tornaram-se um pesadelo. As relações tornaram-se difíceis, forçadas a uma intimidade prematura e torpe ou de fato condenadas ao esquecimento virtual. Muitos jovens sofreram com o desemprego, a falta de oportunidades econômicas e uma profunda incerteza. Muitos, como Tommy, foram obrigados a voltar para a casa dos pais e ficar em uma sala cheia de livros de bacharelado […]. Tommy declarou-se antinatalista porque não podia aceitar a perspectiva de comprometer outro ser humano com uma vida destinada a ser dominada pela dor da tristeza e do sofrimento.

Por mais que Sarah e eu tentássemos descrever para ele a alegria de ter filhos, Tommy não renunciava a sua determinação, porque ninguém tem o direito de impor a outra pessoa a inevitável experiência de dor. Não me dá muito conforto saber que uma parcela enorme e crescente da sua geração sente o mesmo em relação à opção de não ter filhos.

O antinatalismo é provavelmente um efeito da depressão – como não seria? – mas mostra que a depressão pode ser uma condição de sabedoria e não apenas uma doença. Torna-se uma doença quando não compreendemos a sua mensagem e tentamos desesperadamente conformar-nos com as normas dominantes de produtividade, eficácia e dinamismo. Rechaçar a mensagem da depressão, reafirmar a força de vontade contra a mensagem que ela nos envia, é uma forma de cair numa tendência suicida. Se formos capazes de compreender o significado e a sabedoria da depressão, é possível uma evolução consciente e partilhada da mesma. No caso de Tommy isto é evidente: o seu denatalismo é talvez mais sábio do que a decisão irresponsável de dar à luz a inocentes destinados a uma vida quase certamente infeliz.

Após a morte do filho, a percepção de Raskin muda: seu otimismo constitucionalista vacila diante da explosão da força bruta, que tende a anular a força da razão, enquanto suas certezas democráticas vacilam diante da proliferação da depressão.

De repente, meu otimismo constitucional me deixa numa situação difícil, como se fosse uma vergonha. Temo que o meu resplandecente optimismo político, que muitos dos meus amigos apreciaram em mim, se tenha se tornado uma armadilha de auto-engano massivo, uma fraqueza que pode ser explorada pelos nossos inimigos.

O otimismo político deste generoso professor de Direito Constitucional é abalado pela súbita constatação de que a democracia liberal está sentada em alicerces frágeis. De fato, ele escreve:

Sete dos nossos primeiros dez presidentes eram proprietários de escravos. Estes fatos não são acidentais, mas nascem da própria arquitetura das nossas instituições políticas.

A escravidão faz parte da bagagem psíquica da nação estadunidense. Como pode esta nação esperar servir de exemplo para as outras? Como podemos não pensar que esta nação é um perigo para a sobrevivência da humanidade?

A lei do pai não tem mais poder sobre o caos

Trump poderá voltar a ser presidente dos Estados Unidos da América [este texto foi escrito antes da vitória do ex-presidente estadunidense], enquanto o mundo entrou, por meio das instâncias estadunidenses, num ciclo de guerra civil psicótica, cujos resultados são imprevisíveis e, na verdade, verdadeiramente impensáveis. O pai não tem mais um mundo de significado para legar ao filho. A lei do pai não tem mais poder sobre o caos. Quem quer que ganhe estas eleições dopadas de bilhões de dólares, o caos está garantido.

 

Revisão dos gastos

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Vivemos momentos de grandes incertezas econômicas e financeiras que impactam sobre todo o sistema produtivo, com aumento nas taxas de juros, desvalorização cambial e preocupações crescentes sobre a inflação, desta forma, percebemos a piora dos indicadores econômicos e o incremento dos desequilíbrios políticos.

Neste cenário, os agentes econômicos e financeiros usam seus instrumentos de pressão para pressionar o governo federal para revisar os gastos públicos para evitar que a dívida pública cresça de forma acelerada, impactando fortemente sobre a economia nacional e melhore as perspectivas econômicas, estimulando o sistema produtivo e contribuindo para a recuperação nacional.

Desde a crise financeira internacional de 2008 e, principalmente, depois da pandemia os governos nacionais foram incentivados a adotarem uma política mais intervencionista, com aumento dos gastos públicos e uma visão mais protecionista com o objetivo de proteger seus setores produtivos, garantindo mais empregos e incremento dos salários, desta forma, a economia retomaria seu caminho de mais investimentos produtivos e uma maior geração de renda agregada.

Depois de grandes estímulos fiscais e financeiros, os governos nacionais buscam um maior equilíbrio fiscal, reduzindo os estímulos e reorganizando as contas públicas, reduzindo ineficiências e adotando medidas mais efetivas para melhorar a arrecadação nacional como forma de evitar o estouro da dívida pública. Neste ambiente, os mercados pressionam o governo nacional para uma maior racionalização das contas públicas, impedindo que a dívida pública cresça e a inflação impactem sobre taxas de juros maiores, refletindo negativamente sobre as atividades econômicas.

A revisão dos gastos públicos deve ser feita por todos os governos como forma de aumentar a eficiência e a melhor alocação de recursos públicos, objetivando uma melhora dos serviços públicos e evitando os desperdícios que acometem a gestão pública. Neste momento, percebemos a grande dificuldade do Estado Nacional para rever os gastos públicos e a racionalização dos recursos da comunidade, afinal rever gastos de grupos privilegiados pode ser visto como uma declaração de guerra. Todos falam a favor da redução dos gastos públicos, criticando os dispêndios governamentais, desde que a conta caia sobre os ombros de terceiros. Os grupos sociais mais bem organizados defendem seus privilégios, muitos deles “garantidos” a muitos séculos, mesmo sabendo que seus privilégios existem em detrimento de outros grupos sociais, que muitas vezes querem apenas garantir um direito essencial, gerando incertezas e instabilidades que desestabilizam os governos de plantão.

Neste momento, os palácios governamentais estão discutindo como fazer para restringir os gastos públicos e dar racionalidade ao arcabouço fiscal, reduzindo os recursos com o BPC (Benefício de Prestação Continuada), o Abono e os seguro-desemprego, que impacta fortemente sobre os grupos mais fragilizados da sociedade brasileira, tudo isso garantiria recursos adicionais para melhorar o ambiente econômico e uma melhora dos horizontes, principalmente dos financistas. Neste momento, a sociedade brasileira está perdendo tempo, devemos fazer uma revisão geral dos gastos públicos, adotando taxação de lucros e dividendos, revendo isenções fiscais e tributárias que consomem bilhões, acabando com penduricados que engordam salários elevados, além da tributação das grandes fortunas, desta forma, o ajuste  fiscal contribuirá para que o sistema tributário nacional seja menos regressistas e tão desigual.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Pragmatismo e desinteresse de Trump devem marcar relação com a América Latina, por Monica Hirst

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Apesar de sua condição periférica, regiao sofrerá impactos do novo governo na questão migratória; crise na Venezuela deve ser ponto de contato, mas sem visão coordenada.

Monica Hirst, Professora da Universidade Torquato di Tella (Buenos Aires) e pesquisadora-colaboradora do IESP-UERJ; autora de livros sobre a relação EUA-Brasil

Folha de São Paulo – 06/11/2024

A vitória de Donald Trump encontra uma América Latina prostrada, dividida e silenciosa. Mantendo-se fiel ao perfil de baixa prioridade estratégica para a grande potência do Norte, a região já não se projeta internacionalmente como um coletivo com voz política própria e difenciada. Trata-se de uma zona geográfica de poucas palavras, de peso decrescente na economia mundial, cobiçada por interesses extrarregionais em razão de suas riquezas minerais, de seu lugar como pulmão verde de um planeta que respira mal e de sua sistemática capacidade de oferta de delito organizado.

Independentemente de sua condição periférica, a região sofrerá o impacto do resultado das urnas americanas, particularmente com referência a três temas: questão migratória, democracia e geopolítica mundial.

Com certa ironia, a região deu seu aporte ao mote Faça a América Grande Outra Vez (“Make America Great again”), slogan que também vem sendo subentendido como Faça a América Branca Outra Vez. Durante toda sua campanha, o republicano mencionou o tema migratório de forma entrelaçada com os problemas causados pela porosidade em vários pontos dos 3,2 mil quilômetros de fronteira com o México.

De fato, trata-se de uma contribuição pelo avesso, já que ela se dá a partir de uma agenda negativa, a qual não só foi de enorme serventia para Trump como atuou como um estímulo de sentimentos que frequentam a agenda do ódio das massas que o apoiam. A menção constante do México e seus migrantes como os grandes responsáveis pela entrada do crime e da violência no país passou a legitimar sentimentos de xenofobia, racismo e agressividade.

A proposta do presidente eleito de uma maciça deportação (em 2022, 45% dos 11,3 milhões de imigrantes em situação irregular nos EUA eram mexicanos) seria uma “bukelização” das práticas migratórias do novo governo, a seguir o exemplo de crueldade de Nayib Bukele no tratamento da sua população carcerária em El Salvador. O sentido racista imbuído na proposta de Trump não deixa também de mostrar seu parentesco com programas de limpeza étnica tão conhecidos ao longo da história do século 20 em diferentes partes da Europa e atualmente posto em prática na Faixa de Gaza pelo governo de Israel.

O segundo tema, da democracia, ganhou um lugar privilegiado nos discursos de Kamala Harris. A inclusão desse ponto na agenda democrata fez eco em alguns países da América Latina, com menção especial ao Brasil. A articulação dos grupos de extrema direita nas redes sociais tornou-se especialmente veloz na região. O calendário eleitoral na década recente foi funcional para dar asas à regionalização de uma nova extrema direita com lideranças que atuam dentro e fora das instituições representativas, junto e dentro de organizações religiosas evangélicas, apoiadas por setores jovens de diversos segmentos sociais cativados pelo ideário libertário. Depois do período 2019-2022 do governo de Jair Bolsonaro, a chegada de Javier Milei ao poder na Argentina em 2023 deu continuidade a essa tendência.

De forma inusitada, o governo Lula se posicionou frente à disputa eleitoral a favor da candidata democrata. O resultado das urnas americanas terminou presenteando às forças opositoras no Brasil um lugar vencedor.

A retomada por Brasília de uma linha de atuação pragmática em seu bilateralismo com Washington, que dê destaque às agendas positivas em campos econômico-comerciais, poderá atenuar esse tipo de reflexo, mas não impedirá o fortalecimento dos laços políticos entre trumpistas e bolsonaristas, especialmente com a mira posta nas eleições de 2026. É de se esperar, portanto, uma via dupla de relacionamento bilateral nos próximos dois anos.

O terceiro ponto do impacto refere-se à geopolítica mundial e ao relacionamento de Trump com a região. O ponto de intersecção entre ambos deverá dar-se com respeito à Venezuela, em um mix de reedição da Doutrina Monroe e do uso de métodos esperados numa Guerra Fria 2.0. Neste caso, se aplicaria uma receita com três modos de atuação, possivelmente complementares: a coerção, com uma robusta e dolorosa aplicação de sanções econômicas; a transação, que implica um acerto amplo com Rússia sobre a Ucrânia e incluiria uma retirada de mãos (hands-off) da Venezuela; e a intervenção, instrumentalizada pelo Comando Sul e apoiado pela Guiana.

Retomando o início desta reflexão, é de se esperar que a América Latina manterá sua posição de “nada a declarar” diante de cada um desses cenários. Na América do Sul, o primado do pragmatismo e a preservação dos vínculos com a China compram o silêncio.

 

As instituições e o Prêmio Nobel, por Luiz Carlos Bresser Pereira

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Faz sentido usar as instituições para explicar o atraso sem considerar as estruturas sociais?

Luiz Carlos Bresser Pereira, Professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC)

Folha de São Paulo – 07/11/2024

Acemoglu, Robinson e Johnson ganharam o Prêmio Nobel de Economia neste ano. Em 2001, eles explicaram o atraso dos países em relação aos países ricos com a tese de que os países que se atrasaram não foram colônias de povoamento como foram os Estados Unidos ou a Australia. Estavam em parte corretos, porque essa foi a tese clássica de Caio Prado Júnior. Não discutirei aqui esse trabalho.

Em 2005, eles “descobriram” que o atraso dos países periféricos em relação aos países centrais poderia ser explicado pelo fato de suas instituições não terem garantido suficientemente a propriedade e os contratos e, assim, haverem desestimulado os empresários a investir. Estavam, neste caso, errados.

Afirmar a importância de boas instituições para o desenvolvimento é a mesma coisa que dizer que a água é importante. É óbvio que as instituições —as normas que organizam a vida social— são fundamentais.
A questão real não é essa, mas sim se faz sentido usar as instituições para explicar o atraso em vez de considerar as estruturas sociais, como eles fizeram sem saber no trabalho anterior. Elas nos dizem, no caso do atraso, se o país teve uma colonização de povoamento ou de exploração mercantil, como nos países latino-americanos.

Nos primeiros, formou-se logo uma classe média e a evolução para o capitalismo foi quase natural, enquanto nos países periféricos o caráter tradicional da sociedade e a condição colonial ou dependente se mantiveram por muito tempo; no caso da dependência, até agora. Nos dizem qual foi o peso do escravismo em cada sociedade.

O que os novos nóbeis de Economia —ou a escola novo-institucionalista à qual pertencem— subestimam é que as instituições são endógenas. Elas dependem das estruturas sociais; elas mudam conforme mudam essas estruturas.

A partir do livro de 1990 de Douglas North, “Instituições, Mudança Institucional e Desempenho Econômico”, o institucionalismo se transformou em uma teoria de desenvolvimento. Surgiu, não por acaso, em torno de 1980.

Foi nesse momento que os Estados Unidos e os demais países ricos fizeram a “virada neoliberal” e perceberam que as instituições eram uma forma muito mais cômoda de explicar o atraso da periferia. Dessa maneira, a nova escola livrava-se não apenas de questões estruturais mais difíceis de mudar mas também do imperialismo ao qual os países periféricos foram e continuam sendo submetidos.

A tese novo-institucionalista da propriedade e dos contratos parece verdadeira à primeira vista, mas realmente não faz sentido.

Tomando-se como referência os primeiros anos do século 19: como seria possível comparar países em que a estrutura social era tradicional e a população em grande parte indígena ou descendente de escravos com a estrutura social de países como os Estados Unidos ou a Austrália?

Dar importância às instituições sem considerar as estruturas tornou mais fácil para o centro neoliberal definir o que os países periféricos deveriam fazer. Bastaria fazer as reformas institucionais —privatizar, desregular, liberalizar— e tudo seria resolvido.

Há ainda a considerar que em países de renda média é comum haver instituições mais modernas e adequadas do que nos países em desenvolvimento. Nós, por exemplo, temos a regulamentação dos medicamentos genéricos que poucos países ricos têm. Na Grã-Bretanha, a obtenção de documentos é mais demorada do que no Brasil. Nos Estados Unidos, o uso de armas de fogo é permitido senão incentivado.

Mudar as instituições é fácil, mudar as estruturas é mais difícil, e o país se livrar do imperialismo é mais difícil ainda. Muito mais fácil é realizar as reformas neoliberais, principalmente a completa liberalização comercial e financeira. O centro não quer o desenvolvimento da periferia; ele não quer que esta produza bens com mão de obra barata para com ele concorrer e quer manter a troca desigual entre manufaturas e commodities.

Sim, as instituições, assim como a água, são importantes. É impossível viver sem elas, mas assim como por trás da água estão as nascentes, por trás das instituições estão as estruturas econômicas e sociais.

 

Ajuste fiscal: impacto ao SUS pode ser trágico, por Guilherme Arruda

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Manifesto com forte adesão entre sanitaristas critica proposta de impor mais limites ao gasto social. Alerta é claro: abandonar investimento em áreas essenciais pode ser destrutivo para Saúde e Previdência – e abrir caminho para grande frustração popular

Guilherme Arruda – OUTRA SAÚDE – 01/11/2024

O momento pode ser um divisor de águas. Após um mês de sinais indiretos e especulações na imprensa, ministros como Fernando Haddad (Fazenda) e Simone Tebet (Planejamento) agora afirmam abertamente que o Governo Federal deve promover cortes nas políticas sociais para cumprir com os rígidos controles de gastos impostos pelo Arcabouço Fiscal e acalmar a chamada “tensão no mercado”. Na quarta-feira (30/10), Haddad confirmou que uma Proposta de Emenda Constitucional contendo um mecanismo de limitação das despesas obrigatórias será apresentada “no mês de novembro”.

A movimentação não ficou sem resposta na sociedade: um manifesto divulgado no mesmo dia se posicionou firmemente contra a proposta de ajuste fiscal, alertando que “ceder a essa lógica de cortes e restrições não é apenas um erro econômico; é um ataque frontal aos direitos sociais e à dignidade da população”. Notavelmente, o documento teve adesão expressiva na área da Saúde, a exemplo do ex-ministro José Gomes Temporão, o diretor do Instituto de Saúde Coletiva da UFF Túlio Batista Franco, o presidente da Associação Brasileira de Economia em Saúde (ABrES) Francisco Funcia e os sanitaristas Ana Maria Costa e Itamar Lages. “O Estado brasileiro tem uma enorme dívida com a sua população e não pode, na sua política fiscal, cortar nos gastos sociais. Pelo contrário, eles devem ser uma prioridade”, afirmou Túlio a Outra Saúde.

Para muitos, a assinatura no manifesto não consiste em uma ação “contra o governo” – mas uma cobrança para que ele se atenha aos compromissos de reconstrução nacional e retomada do investimento social e no SUS que firmou ainda em 2022 com o movimento sanitário, além de todo o povo brasileiro, durante a batalha contra as forças obscurantistas que conduziam o país. “Esse é o tom necessário hoje, porque essa decisão pode levar a uma regressão muito forte das políticas sociais e do direito à saúde. Recuar frente à pressão hegemônica da direita e do mercado? Não dá”, avaliou Ana Maria Costa.

A este boletim, uma dezena de especialistas, acadêmicos de diversas áreas e parlamentares alertaram para o retrocesso que os cortes anunciados podem significar para políticas tão diversas quanto o piso constitucional da saúde e o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Os riscos, como ilustra o próprio manifesto, são claros: “Ao abandonar investimentos em áreas essenciais, o governo abre caminho para o avanço de discursos autoritários e reacionários que se alimentam do desespero e da frustração popular”.

Uma tese fiscal questionável

No âmbito da Saúde, a discussão em torno do orçamento não é nova. A nível histórico, o movimento sanitário sempre frisou a necessidade de amplos recursos para que o projeto do SUS se materializasse em toda sua potência – assim como alertou sobre o risco mortal que o subfinanciamento acarreta para a concretização dos princípios da universalidade, integralidade e equidade. Mais recentemente, como sempre relembra a própria ministra Nísia Trindade, a PEC de Transição articulada antes da posse de Lula foi decisiva para que o orçamento da Saúde fosse “o maior da história” em 2023. Porém, um terceiro fato é o que realmente faz o tema pairar no ar há mais de um ano: desde a aprovação do Arcabouço Fiscal – e Outra Saúde cobriu o imbróglio em profundidade –, o Ministério da Fazenda lança “balões de ensaio” para testar a viabilidade de flexibilizar o piso constitucional de investimentos na saúde, que prevê que 15% da Receita Corrente Líquida (RCL) anual deve ir para a área.

No raciocínio da pasta, a flexibilização do piso da saúde – ou outra das medidas atualmente em discussão, como mudanças no BPC e no seguro-desemprego – poderia garantir o espaço fiscal necessário para que o orçamento não fique estrangulado e o “equilíbrio fiscal” seja alcançado. Contudo, na avaliação do economista e presidente da ABrES, Francisco Funcia, essa hipótese é imprecisa: “O que está comprovado desde a pandemia é que aumento do gasto público não inviabiliza em hipótese alguma as contas do governo. Cortar gastos não vai trazer qualquer avanço na busca pelo equilíbrio fiscal. Pelo contrário, a teoria econômica mostra que os gastos sociais, como parte dos gastos públicos, têm um efeito dinâmico na atividade econômica. Não dá para pensar na questão do equilíbrio das contas públicas com um olhar de economia doméstica, como tem sido feito pela mídia e também por alguns setores do governo”.

Funcia aponta que os próprios recursos que o governo garantiu para o orçamento da Saúde em 2023 e 2024 “têm tido um efeito positivo para a dinâmica econômica, além de terem sido uma iniciativa importante na linha da garantia dos direitos da cidadania”, depois da tragédia que o governo Bolsonaro representou para o SUS. Isto é, a nova iniciativa de contenção dos gastos estaria em contradição com os resultados concretos da destinação de recursos para a Saúde até aqui. “Eu acho muito importante destacar que o governo começou resgatando os investimentos sociais e a nova proposta vai na contramão desse resgate”, ele ressalta.

Se é mesmo preciso que uma fatia do Orçamento federal sofra cortes drásticos, como defende a equipe econômica, o manifesto propõe outro alvo: as despesas financeiras, especialmente o pagamento de juros que beneficiam os grandes rentistas. “Nós estamos em uma situação em que a única fatia do orçamento público nacional em que não se mexe é o serviço da dívida”, critica a sanitarista Ana Maria Costa.

Impacto mortal?

Por enquanto, não foi anunciado pelo Governo se os cortes impactarão áreas específicas dos investimentos sociais ou se haverá um mecanismo geral de contenção dos gastos. Contudo, onde quer que recaiam, os prognósticos apresentados por especialistas ouvidos por Outra Saúde são de uma tragédia para a população mais pobre.

Se recair sobre a Saúde, seja na forma da flexibilização do piso de investimentos ou outra, o corte de gastos “vai acabar gerando definitivamente um SUS ruim, de baixa qualidade e insuficiente para a população. A saúde que a Constituição prometeu, que é direito de todos, já não é possível com o atual gasto de 4,2% do PIB, imagine se for menos”, avalia Ana Maria Costa. Em sua visão, o próprio projeto do SUS pode estar em jogo com a futura PEC: “É essencial que se faça essa discussão agora para salvar o projeto político da saúde como um direito universal”, defende a signatária do manifesto.

Por sua vez, caso recaiam sobre a Previdência Social, os cortes “sem dúvida vão fazer com que a velhice e a pobreza voltem a ser sinônimos”, pontua Jorge Félix, professor da EACH-USP dedicado às pesquisas sobre o envelhecimento e a economia. Se as conquistas da Constituição de 1988 tiveram o mérito de melhorar a qualidade da vida dos idosos do Brasil, a “desumana desvinculação do salário mínimo da seguridade social e a estigmatização do BPC” que vem sendo aventadas pelo Governo seriam comparáveis a uma nova Reforma da Previdência em seus efeitos para os mais velhos – gerando empobrecimento e miséria em grande escala.

Parlamentares signatários do manifesto que foram ouvidos por Outra Saúde também concentraram suas críticas nos possíveis efeitos dos cortes sobre os direitos dos brasileiros mais vulneráveis. “As suspeitas de que a busca do equilíbrio fiscal recairia na revisão ou restrição de benefícios socioassistenciais têm que ser logo afastadas. Não se pode buscar ajuste fiscal sobre os mais pobres, mas sobre os mais ricos”, opinou o deputado estadual Renato Roseno (PSOL-CE).

“A previdência pública e direitos como BPC, aposentadoria, FGTS e seguro-desemprego foram duramente conquistados e são muito importantes para garantir um mínimo de dignidade para o povo brasileiro. Para mim, a importância da mobilização em torno desse manifesto é deixar bem claro que a posição de grande parte das pessoas do campo democrático é contrária a qualquer tipo de retrocesso na assistência social e nos direitos”, complementou Luana Alves (PSOL-SP), vereadora de São Paulo e trabalhadora da saúde.

Bandeiras históricas sob ameaça

Estratégico para o clima de inevitabilidade dos cortes sociais, avaliam muitos dos entrevistados, é o bombardeio midiático intenso em prol do fiscalismo. Para a professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e estudiosa da Economia Política de Comunicação, Helena Martins, “a mídia dominante tem exercido um papel fundamental de legitimar essas ações que são restritivas de direitos e apresentá-las como única saída econômica”. Contudo, ela relembra que “em todo o mundo, já se mostrou que o ajuste fiscal pavimenta o caminho da extrema-direita e o governo comete um erro grave ao seguir nessa direção”.

No mesmo sentido, a professora da UFRJ Lena Lavinas destaca que “não é verdade que solapar direitos em nome de um regime monetário e fiscal inadequado seja a única medida ao alcance do governo para promover o desenvolvimento de uma sociedade radicalmente democrática, igualitária e comprometida com a preservação do planeta. Fazer ajustes em cima de direitos essenciais é causa de sofrimento e não caminho para o progresso. Esse governo precisa ouvir e dialogar, para não comprometer o futuro”.

“A política tem sido esvaziada do seu sentido mais pleno, alimentando a descrença e não a esperança. O exercício da cidadania exige mobilização e expressão das demandas populares, tal como faz agora este manifesto, rompendo, portanto, com o marasmo e a apatia que se abateram sobre a sociedade brasileira frustrada crescentemente nas suas expectativas pela manutenção das regras de austeridade”, continua Lavinas.

O sentimento foi ecoado por outros signatários do texto, que o tomam como o alerta definitivo para que o Governo Federal tenha clareza da temeridade que representa a decisão de dar seguimento aos cortes de gastos, pondo em risco conquistas históricas dos trabalhadores. “Se nós não tivermos o tom do manifesto daqui pra frente, vamos perder nosso papel histórico enquanto movimento sanitário. Nós saímos da pandemia com o SUS valorizado pelo povo, não é hora do medo e do recuo”, afirma Ana Costa.

“O abaixo-assinado é um ato amoroso, embora duro e contundente, de solidariedade crítica. Assim, não é o manifesto que expõe e fragiliza o governo, são as medidas que o governo diz que quer adotar”, completa Itamar Lages, professor de Enfermagem da UPE e membro do Cebes Recife.