O que economistas têm a dizer sobre a democracia e a riqueza de países? por Claudio Ferraz

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Vencedores do Nobel construíram modelos matemáticos para incorporar política e instituições em análises da economia

Claudio Ferraz, Professor da Escola de Economia de Vancouver (Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá) e da PUC-Rio.

Folha de São Paulo, 17/11/2024

O Prêmio Nobel de Economia de 2024, concedido a Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson, coroa décadas de pesquisas voltadas a compreender como instituições criadas durante a colonização moldaram a trajetória da democracia e do desenvolvimento econômico dos países, contribuição fundamental para responder por que algumas nações prosperam e outras fracassam, uma das questões mais primordiais da disciplina.

Em 2003, eu cursava o segundo ano de doutorado na Universidade da Califórnia em Berkeley. Tinha ido para lá decidido em me especializar na área de desenvolvimento econômico e esperava aprender os modelos matemáticos de fronteira que explicavam por que alguns países se desenvolviam e outros não.

A primeira disciplina de desenvolvimento econômico focava as falhas de mercados de países pobres, a chamada microeconomia do desenvolvimento. O livro “Development Microeconomics”, de Pranab Bardhan e Christopher Udry, tinha acabado de sair, e o campo passava por um ressurgimento, com mais ênfase na microeconomia e em trabalhos empíricos.

Cheguei na segunda disciplina com a expectativa de estudar modelos de crescimento econômico e temas como educação, saúde e capital social. Logo na primeira aula, no entanto, percebi que aquele curso seria diferente. O professor não era do departamento de economia, mas de ciência política.

Em vez de enfatizar os trabalhos acadêmicos que iríamos ler, ele buscou nos convencer que, para ter boas ideias, teríamos que ler livros, algo que os economistas, infelizmente, não fazem no doutorado. A primeira leitura seria “Markets and States in Tropical Africa”, livro do cientista político Robert Bates.

Depois de distribuir a ementa, James Robinson foi para o quadro e começou a ensinar o modelo de crescimento de Solow, algo padrão naquela época, mas emendou um modelo matemático de economia e política para tentar apresentar as causas e as consequências econômicas do apartheid na África do Sul. Seu argumento era que a desigualdade que surgiu depois da colonização gerou a repressão e a exclusão de parte da população pela elite branca. Isso tinha desdobramentos não só políticos quanto econômicos.

Para mim e para grande parte do campo da economia nas universidades de ponta dos EUA, aquilo era uma novidade. No começo dos anos 2000, poucos economistas olhavam para a política usando modelos matemáticos. A exceção era um grupo de macroeconomistas, como Alberto Alesina, Torsten Persson e Guido Tabellini, que usava modelos políticos para entender déficits fiscais, ciclos políticos e decisões de estabilização.

Economia política não era lecionada em quase nenhum programa de doutorado de ponta e, no campo do desenvolvimento econômico, aspectos políticos não estavam na agenda, exceto por textos mais descritivos, como um trabalho de Albert Hirschman dos anos 1970.

O Prêmio Nobel de Economia deste ano foi concedido a Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson, que lançaram luz sobre uma das questões mais fundamentais em economia: por que algumas nações prosperam enquanto outras fracassam? Diferentemente da literatura anterior, que se concentrava nos fatores de crescimento, a contribuição dos três pesquisadores foi trazer quantitativamente aspectos políticos para a análise dos economistas.

Seus trabalhos mostraram que é impossível entender o desenvolvimento econômico dos países sem levar a sério aspectos políticos. O prêmio coroa décadas de pesquisa e celebra duas agendas complementares: uma empírica, que busca compreender as raízes institucionais do crescimento, e outra teórica, voltada a modelos matemáticos que explicam a persistência de instituições ineficientes e as causas econômicas de transições de regimes políticos.

Durante décadas, economistas tentaram explicar as desigualdades de renda entre países. Nos anos 1950, Robert Solow, Nobel de 1987, desenvolveu um modelo que atribuía essas disparidades à acumulação de capital e ao crescimento populacional dos países. Nações que poupam mais e cuja população cresce mais devagar terão renda per capita mais alta a longo prazo.

Uma predição empírica desse modelo: países mais pobres deveriam crescer mais rapidamente, convergindo para o nível de renda dos países ricos, algo que raramente se observou na prática. Em 1997, Lant Pritchett publicou um artigo em que argumentava que a convergência de renda só ocorreu entre os países ricos no século 20. Já os países de baixa renda, com poucas exceções, permaneciam presos em uma armadilha de pobreza.

Como explicar o fato de países ricos continuarem a crescer mais rapidamente que muitos países em desenvolvimento? No final dos anos 1980, economistas como Philippe Aghion, Robert Lucas e Paul Romer começaram a destacar o papel do capital humano e do investimento em inovação como fatores centrais para o crescimento econômico.

Eles mostraram que os países que investiram cedo na educação e direcionaram recursos para pesquisa e desenvolvimento cresceram mais rapidamente na segunda metade do século 20. Estudos empíricos que incluíam educação e ciência se provaram mais eficazes em explicar as diferenças de renda entre os países que modelos que consideravam apenas o capital físico.

Os economistas continuavam, porém, sem entender sistematicamente o que levou alguns países a investir em educação ou inovação tecnológica e outros não. Aspectos políticos não faziam parte da modelagem utilizada pela maioria dos economistas neoclássicos, mesmo que historiadores econômicos como Douglas North e Robert Thomas já tivessem enfatizado, nos anos 1970, a importância das instituições.

Esses autores argumentaram que as regras do jogo que regulam as interações entre pessoas, empresas e governos eram fundamentais para entender a trajetória econômica dos países. Em seus trabalhos, sugeriram que países que protegiam direitos de propriedade, por exemplo, geraram mais inovação e incentivos para o empreendedorismo e que isso acontecia quando instituições políticas restringiam o poder dos líderes.

A tese de que instituições e políticas governamentais eram importantes foi testada por Robert Hall e Charles Jones. Em 1999, eles publicaram um trabalho muito influente que mostrava que diferenças de acumulação de capital e produtividade estavam relacionadas com o que eles chamaram à época de infraestrutura social dos países —instituições e políticas governamentais que determinam o ambiente econômico em que indivíduos acumulam habilidades e firmas acumulam capital e inovam.

Os autores usaram dados de consultorias de risco político e mediram índices de lei e ordem, qualidade burocrática, corrupção e risco de confisco e expropriação. Permanecia, no entanto, a pergunta: por que alguns países tinham infraestrutura social melhor?

Nessa mesma época, o proeminente economista Jeffrey Sachs argumentava que o principal problema dos países pobres era sua geografia. Países localizados nos trópicos têm clima menos propício à agricultura e grande propensão a doenças em razão de suas florestas cheias de mosquitos e malária. Tudo isso contribuiria negativamente para o crescimento econômico e geraria diferenças de longo prazo.

Foi depois de uma palestra de Jeffrey Sachs no final dos anos 1990 que James Robinson começou a pensar no papel histórico da geografia no desenvolvimento econômico dos países. Se a geografia é tão determinista, como países que foram ricos no passado em razão da sua geografia são pobres hoje?

Ao lado de Daron Acemoglu e Simon Johnson, Robinson se debruçou sobre dados históricos. No começo dos anos 2000, os pesquisadores publicaram dois artigos seminais que contestavam a importância direta da geografia como o principal determinante da riqueza das nações. O argumento de Acemoglu, Johnson e Robinson reconhecia que a geografia importava, mas não devido à qualidade do solo ou à proliferação de doenças, como argumentava Jeffrey Sachs, mas pelo efeito que teve sobre a colonização.

Em um trabalho, eles argumentaram que, onde havia recursos abundantes e a colonização era difícil devido à alta mortalidade, os colonizadores estabeleceram uma sociedade que tinha como objetivo extrair riquezas e, em locais mais propícios à sobrevivência, criaram instituições mais inclusivas que facilitavam a sua permanência.

Testar empiricamente a relação entre boas instituições e desenvolvimento econômico não era fácil. O que era causa e o que era consequência? Boas instituições poderiam ter facilitado o acúmulo de riqueza, mas o contrário também poderia ter acontecido. Como saber o que veio primeiro?

Acemoglu, Johnson e Robinson usaram o que economistas chamam de experimento natural. Essas técnicas se disseminaram na economia no final da década de 1980 e no início dos anos 1990 como forma de avaliar o impacto de políticas sociais. A ideia básica é selecionar lugares parecidos, onde uma política foi adotada em só parte deles, e comparar o que aconteceu com cada um deles ao longo do tempo. Até então, essas metodologias não eram usadas para avaliar eventos históricos —eram utilizadas para avaliar programas educacionais ou de mercado de trabalho.

Os três pesquisadores compararam países com diferentes processos de colonização e mostraram que, naqueles onde a mortalidade foi maior no período colonial, existem hoje instituições piores e, na média, os países são mais pobres. O argumento central é que, onde a mortalidade era mais alta, foram estabelecidas instituições extrativistas, sem Estado de Direito e com direitos de propriedade fracos, e que essas instituições persistiram até hoje.

Se as instituições impostas na colonização foram realmente importantes, civilizações que eram prósperas antes de se tornarem colônias devem ser hoje mais pobres como consequência da imposição de instituições extrativistas. Esse argumento já havia sido defendido por outros cientistas sociais, como os historiadores Stanley Engerman e Kenneth Sokoloff em um trabalho sobre a reversão da riqueza nas Américas. Eles notaram que grandes proprietários fundiários e instituições extrativistas (trabalho escravo) foram favorecidos em locais onde a produção agrícola demandava grandes extensões de terra. Isso gerou desigualdade e concentrou o poder político em uma pequena elite.

Faltava, contudo, uma metodologia capaz de quantificar esses efeitos. Em um trabalho, Acemoglu, Johnson e Robinson compararam a renda per capita dos países no final do século 20 com as taxas de urbanização e densidade populacional por volta de 1500, quando os europeus começaram a colonização. Os pesquisadores descobriram que países relativamente ricos em 1500 são hoje relativamente pobres, o que sugere que a geografia não pode ser um fator determinante no crescimento das nações.

A pesquisa dos vencedores do Nobel impulsionou uma enorme literatura. Diversos pesquisadores chamaram a atenção para problemas com os dados históricos e o tratamento do processo de colonização como experimento natural. A principal crítica veio dos economistas Edward Glaeser, Rafael La Porta, Florencio López de Silanes e Andrei Shleifer, que argumentaram que os colonizadores também trouxeram capital humano, o que pode ter gerado investimentos em educação que explicariam o desenvolvimento a longo prazo.

Uma forma de testar se instituições afetam a prosperidade a longo prazo é focar um país e analisar a variação entre regiões que tiveram experiências históricas distintas.

Melissa Dell, orientada por Daron Acemoglu no MIT, analisou, em um trabalho publicado em 2010, os efeitos de longo prazo da mita, instituição de trabalho forçado em que espanhóis obrigavam aldeias indígenas a ceder parte da sua população para a mineração de prata. Dell demonstrou que locais onde a mita existiu são mais pobres até hoje.

Sara Lowes e Eduardo Montero, alunos de James Robinson em Harvard, estudaram a extração de borracha no Congo belga. Eles mostraram que locais onde houve concessões para essa atividade são hoje mais pobres, têm índices de escolaridade menores e indicadores de saúde piores.

Em relação ao Brasil, Joana Naritomi, Rodrigo Soares e Juliano Assunção publicaram um trabalho em 2012 que mostrou que locais que fizeram parte do boom de cana-de-açúcar ou do ouro no período colonial têm pior governança e pior provisão de bens públicos.

A contribuição acadêmica de Acemoglu e Robinson não se reduz a demonstrar que instituições têm um efeito causal na prosperidade dos países. Eles construíram modelos matemáticos para explicar por que instituições políticas são fundamentais para o processo de consolidação democrática e desenvolvimento econômico. Em países onde o poder político é distribuído mais igualitariamente, políticas públicas e escolhas de instituições econômicas geram mais prosperidade.

Essas ideias contrastam radicalmente com a forma como a maioria dos economistas modelavam o desenvolvimento econômico até os anos 1990, ignorando totalmente aspectos políticos.

Usar modelos em que a adoção de inovações tecnológicas dependem da aprovação do governo é uma forma de pensar a relação entre elites políticas e desenvolvimento econômico. Podemos imaginar uma sociedade agrícola em que a elite mantém seu poder político controlando os trabalhadores rurais. A modernização por meio da industrialização não só muda a atividade econômica predominante, mas leva à perda da capacidade da elite de controlar os trabalhadores. Em um caso como esse, a elite poderia frear a industrialização e atrasar a adoção de tecnologias modernas pelo país por temor de perda de poder político.

Durante os anos 2000, Acemoglu e Robinson publicaram uma série de trabalhos na área de economia política buscando responder por que países não adotam instituições que maximizam o bem-estar da sua população. Como instituições ineficientes são sustentadas ao longo do tempo? Em que contextos acontecem transições de regimes autoritários para regimes democráticos?

Os autores usaram modelos matemáticos para construir uma teoria geral do processo de democratização, consolidação democrática e reversão autoritária por meio de golpes de Estado. Suas teorias, resumidas no livro “Economic Origins of Dictatorship and Democracy “, de 2005, partem de duas premissas. Primeiro, que o povo —mesmo em sistemas autocráticos, em que não tem poder político— pode fazer uma revolução e tirar os ricos do poder. Segundo, que a elite, para evitar que isso aconteça, pode reprimir o povo usando violência ou redistribuir recursos.

Eles mostram que, para satisfazer as demandas da população mais pobre e prevenir uma revolução, a elite precisa fazer concessões, mas que essas concessões podem não ser críveis, já que as condições econômicas podem mudar ao longo do tempo. Mesmo que a elite promova uma redistribuição de renda no presente, a probabilidade de uma revolução pode ser baixa no futuro e a elite decida redistribuir menos.

A questão do compromisso crível é central nos modelos de Acemoglu e Robinson. A democratização, em seus modelos, surge como uma forma de tornar crível a promessa de redistribuição futura. Quando a população mais pobre adquire o direito ao voto, as políticas implementadas tendem a refletir os interesses do cidadão mediano em vez de atender exclusivamente aos desejos da elite. Portanto, a democratização é vista como uma concessão estratégica por parte da elite para evitar uma revolução.

Em modelos posteriores, os pesquisadores ultrapassaram a dicotomia entre ditadura e democracia e se perguntaram por que vemos transições democráticas sem a esperada redistribuição para a população mais pobre. Para explicar esses fenômenos, eles construíram um modelo que distingue as instituições entre regras “de jure” e “de facto”.

Uma coisa é que o que está escrito na Constituição, outra é o que realmente acontece na vida real. Mesmo que um país permita que seus indivíduos mais pobres passem a votar, a elite ainda pode recorrer à compra de votos, à violência ou mesmo a regras eleitorais que façam com que o voto dos mais pobres valha menos.

Um exemplo desse modelo foi testado empiricamente por Thomas Fujiwara que estudou a introdução do voto eletrônico no Brasil em 1996. O economista brasileiro mostrou que, apesar de indivíduos analfabetos terem o direito de votar desde 1985, grande parte dos seus votos eram anulados. A introdução do voto eletrônico mudou essa situação, garantiu mais representatividade “de facto” e mudou as políticas implementadas pelos políticos eleitos.

Os modelos de Acemoglu e Robinson nos ajudam a entender uma variedade de fatores que facilitam ou dificultam a consolidação democrática, como o nível de organização da sociedade civil, a desigualdade entre ricos e pobres e o impacto de crises econômicas. Ao incorporar a dinâmica política nas análises, seus estudos não apenas explicam por que algumas nações fracassam, mas oferecem dicas valiosas sobre como promover o crescimento econômico sustentável e inclusivo.

Em um momento em que a democracia enfrenta desafios globais, focar as instituições políticas é uma contribuição essencial e oportuna.

 

 

Lula na encruzilhada, por José Luis Fevereiro.

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Por trás da hesitação diante pacote proposto por Haddad, há uma guerra. A Faria Lima e a mídia chantageiam para definir de vez os rumos do governo. O presidente parece ter percebido que, se ceder, caminha para uma derrota desonrosa em 2026.

José Luis Fevereiro – OUTRAS PALAVRAS – 10/11/2024

Lula foi eleito em 2022 numa frente ampla que ia da esquerda até a parte da Faria Lima, mais exatamente a Febraban.

O mesmo acordo, “com o STF com tudo” que tirou Lula de Curitiba e anulou suas condenações fajutas, viabilizou a sua candidatura em defesa das liberdades democráticas e contra Bolsonaro.

A Democracia Liberal não é apenas um conjunto de regras para arbitrar as disputas entre classes sociais, mas também para arbitrar os conflitos intra classes sociais. Bolsonaro era disfuncional para isso e parte da burguesia brasileira decidiu se livrar dele.

O acordo com Lula, a Frente Ampla, não era apenas colocar Geraldo Alckmin na sua roupagem de simpático médico do interior como vice. Alckmin era o símbolo de um acordo.

Lula obtinha um expressivo impulso fiscal garantido pela PEC da transição que somava quase 200 bilhões de reais ao já turbinado orçamento de 2022 com a PEC eleitoral de Bolsonaro, revogava-se o teto de gastos, mas em contrapartida se aprovaria um novo arcabouço fiscal que garantiria novas amarras ao gasto público a serem usadas quando o desemprego baixasse a patamares que elevassem o poder de barganha do trabalho em relação ao Capital, viabilizando ganhos reais de renda além do crescimento da produtividade, reduzindo desta forma a participação dos lucros na renda nacional.

Parte da esquerda achou boa ideia a Frente Ampla e agora manifesta seu espanto quando a Banca cobra o cumprimento do acordado. Desde 2023 que se sabe que o arcabouço fiscal não se sustentaria sem o pleno enquadramento aos seus limites do conjunto dos gastos contidos no orçamento. A quebra dos pisos constitucionais da saúde e educação, a limitação da política de valorização do salário mínimo e os gastos previdenciários acabariam sendo colocados na mesa.

Lula tentou administrar essa situação empurrando com a barriga se possível até depois de 2026. Só que o desemprego caiu ao menor patamar desde 2013 e o trabalho recuperou condições de barganha em relação ao Capital. A burguesia cobra para já o cumprimento do pactuado.

A Faria Lima em si não tem voto, mas os aparatos mediáticos que se alinham com ela, como a Globo, por exemplo, formam opinião e foram importantíssimos na eleição de Lula. E a Faria Lima tem força para chantagear o governo pressionando o câmbio e contando com a colaboração do Banco Central.

Por outro lado, uma investida do governo Lula cortando renda dos mais pobres, tornando mais rígidos os critérios de acesso ao BPC, alterando a política de valorização do salário mínimo, e mexendo nos pisos da saúde e educação, atingirá diretamente a sua base social.

Nestas horas é importante lembrar que o Partido Democrata acaba de perder as eleições, não porque Trump tenha aumentado sua votação (perdeu mais de 1 milhão de votos em relação a 2020), mas porque mais de 10 milhões de eleitores de Biden em 2020 desistiram de votar este ano.

Lula tem dois caminhos pela frente. Manter o pacto da Frente Ampla e garantir mais tempo de trégua com seus aparatos mediáticos (nenhuma garantia de apoio em 2026, porque seguem sonhando com um candidato dos seus sem a disfuncionalidade de Bolsonaro) , pagando o enorme preço da perda de confiança e de motivação de parcela importante da base social que o elegeu com consequências eleitorais dramáticas em 2026; ou romper esse pacto, enfrentar os riscos inerentes a essa ruptura, governar os dois anos restantes sob fogo de barragem da mídia e sob a chantagem dos mercados, mas manter coesa e mobilizada a sua base social.

Em qualquer cenário, perder as eleições em 2026 será uma forte possibilidade. Mas se for para perder que seja defendendo os seus porque isso constrói melhores condições para o futuro. Melhor o risco de uma derrota eleitoral que o risco de uma derrota eleitoral com cara de derrota histórica.

 

Ainda estou aqui, por Erik Chiconelli Gomes

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Erik Chiconelli Gomes – A Terra é Redonda – 09/11/2024

Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles

Ainda estou aqui transcende a mera representação histórica para se estabelecer como um documento vivo da memória coletiva brasileira. O filme se apropria magistralmente das experiências cotidianas para construir uma narrativa que evidencia as múltiplas camadas de resistência presentes na sociedade brasileira durante o período ditatorial.

A construção narrativa proposta por Walter Salles dialoga intimamente com a ideia de que a história se manifesta através das experiências vividas por indivíduos comuns, especialmente aqueles que se encontram em situações de opressão e resistência. Neste sentido, a escolha de centralizar a narrativa em Eunice, interpretada magistralmente por Fernanda Torres, não é apenas uma decisão estética, mas também metodológica.

O filme evidencia como as estruturas de poder se materializam no cotidiano das pessoas, transformando espaços de convivência em locais de vigilância e opressão. A cena inicial, com o helicóptero sobrevoando a praia do Leblon, estabelece uma metáfora poderosa sobre a onipresença do aparelho repressivo estatal.

A transformação da protagonista de uma típica dona de casa da elite carioca em uma figura de resistência demonstra como as situações históricas podem mobilizar indivíduos para além de suas posições sociais predeterminadas. Esta mudança reflete um processo histórico mais amplo de conscientização e mobilização social.

A narrativa estabelece um diálogo profundo com as práticas de resistência cotidiana, demonstrando como as pequenas ações de enfrentamento ao regime se manifestavam nos gestos mais simples, desde a preservação da memória familiar através de filmagens em Super 8 até a manutenção da esperança em meio ao desaparecimento forçado.

O trabalho fotográfico de Adrian Tejido merece destaque especial por sua capacidade de traduzir visualmente a dialética entre opressão e resistência. O uso consciente da luz e da sombra cria uma atmosfera que reflete as contradições do período histórico retratado.

A presença da câmera na mão em determinados momentos estabelece uma conexão direta com o cinema verdade brasileiro, criando uma ponte entre a ficção e o documento histórico. Esta escolha estética reforça o compromisso do filme com a verdade histórica sem abrir mão de sua potência narrativa.

A construção narrativa do filme dialoga diretamente com as pesquisas historiográficas que evidenciam o caráter sistemático da violência estatal durante o regime militar. A cena da prisão de Rubens Paiva, retratada com uma brutalidade contida, mas impactante, ecoa os relatos documentados pela Comissão Nacional da Verdade sobre os métodos de repressão utilizados pelo Estado.

O ambiente do DOI-CODI, retratado com uma frieza calculada por Walter Salles, representa não apenas um espaço físico de tortura, mas simboliza todo um sistema institucionalizado de repressão. A interpretação de Fernanda Torres nesses momentos traduzida cinematograficamente o que os arquivos do DOPS, hoje disponíveis para pesquisa, revelam sobre o tratamento dado aos prisioneiros políticos.

A narrativa familiar de Paiva serve como microcosmo para compreender uma questão mais ampla: o desmantelamento sistemático das estruturas democráticas brasileiras. O filme evidencia como a classe média intelectualizada, inicialmente apoiadora do golpe, gradualmente também foi vitimada pelo aparelho repressivo que ajudou a legitimar.

O aspecto mais contundente da obra reside em sua capacidade de demonstração como o terrorismo de Estado operava em vários níveis. Para além da violência física, o filme expõe a violência psicológica perpetrada contra as famílias dos desaparecidos políticos. A busca incessante de Eunice por informações sobre o marido reflete uma realidade ainda presente na sociedade brasileira.

Walter Salles consegue capturar, através da transformação de Eunice, o processo de politização forçada que muitas famílias experimentaram durante o regime. O filme dialoga com estudos historiográficos que demonstram como as mulheres, especialmente as esposas e mães de desaparecidos políticos, tornaram-se importantes agentes de resistência.

A constante presença do medo, representada através de elementos sutis como olhares desconfiados e conversas sussurradas, encontra-se paralelamente nos depoimentos coletados por pesquisadores que estudaram a memória do período. O filme evidencia como o terror psicológico foi uma ferramenta deliberada de controle social.

O uso de imagens de arquivo familiar no Super 8 não serve apenas como recurso estético, mas representa uma importante fonte histórica sobre o período. Essas filmagens caseiras, comuns entre famílias de classe média da época, tornaram-se documentos importantes para compreender o cotidiano durante a ditadura.

O filme aborda também a questão da impunidade e do silenciamento institucional. A ausência de respostas sobre o destino de Rubens Paiva reflete um problema maior: a política de ocultamento e negação que persiste até hoje em setores da sociedade brasileira.

A transição entre períodos históricos é magistralmente representada pela presença de Fernanda Montenegro como a Eunice dos anos 2000. Esta escolha narrativa dialoga com estudos sobre memória e trauma coletivo, demonstrando como as feridas da ditadura permanecem abertas nas gerações subsequentes.

O filme evidencia como a estrutura familiar, tradicionalmente vista como espaço de proteção, tornou-se alvo direto da violência estatal. A desestabilização das relações familiares era parte integrante da estratégia de terror renovada pelo regime.

A representação da elite carioca e suas contradições encontra respaldo em estudos historiográficos sobre o papel das classes privilegiadas durante o regime militar. O filme expõe as fissuras dentro dessa classe social, evidenciando como o apoio inicial ao golpe se transformou em resistência quando a violência atingiu seus próprios círculos.

Walter Salles consegue, através de sua narrativa, contribuir para o que os historiadores têm chamado de “dever de memória”. O filme se estabelece não apenas como obra artística, mas como documento importante para a construção de uma memória coletiva sobre o período.

A ausência de respostas definitivas sobre o destino de Rubens Paiva, mantida no filme, dialoga com a luta permanente por verdade e justiça no Brasil. O filme evidencia como o desaparecimento foi uma política de Estado que continua reverberando no presente.

A obra se insere em um importante momento de revisão historiográfica sobre o período ditatorial, contribuindo para desconstruir narrativas que minimizam ou justificam a proteção dos direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro.

*Erik Chiconelli Gomes é pós-doutorando na Faculdade de Direito na USP.

Referência

Ainda estou aqui
Brasil, 2024, 135 minutos.
Direção: Walter Salles.
Roteiro: Murilo Hauser e Heitor Lorega.
Direção de Fotografia: Adrian Teijido.
Montagem: Affonso Gonçalves.
Direção de Arte: Carlos Conti
Música: Warren Ellis
Elenco: Fernanda Torres; Fernanda Montenegro; Selton Mello; Valentina Herszage, Luiza Kosovski, Bárbara Luz, Guilherme Silveira e Cora Ramalho, Olivia Torres, Antonio Saboia, Marjorie Estiano, Maria Manoella e Gabriela Carneiro da Cunha.

 

Bibliografia

 

Alves, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984), Petrópolis: Vozes, 1984.

ARNS, Paulo Evaristo. Brasil: Mais Nunca . Petrópolis, Vozes, 1985.

Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Final. Brasília: CNV, 2014.

FICO, Carlos. Como Eles Agiam: Os Subterrâneos da Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record, 2001.

Gaspari, Élio. A Ditadura Escanarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Joffily, Mariana. No Centro da Engrenagem: Os Interrogatórios na Operação Bandeirante e no DOI de São Paulo (1969-1975). São Paulo: Edusp, 2013.

PAIVA, Marcelo Rubens. Ainda estou aqui. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.

Reis Filho, Daniel Arão. Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade  Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

Ridenti, Marcelo. O Fantasma da Revolução Brasileira. São Paulo: Editora UNESP, 2010.

Teles, Janaína de Almeida. Os Herdeiros da Memória: A Luta dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos por Verdade e Justiça no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2017.

 

Project 2025: Como Trump ameaça o mundo, por Mel Gurtov

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Ampliar agressão econômica e geopolítica à China, potência nuclear. Impor novas restrições ao comércio internacional. Ameaçar Irã, Coreia do Norte, Venezuela e até o México. Visita à delirante (e perigosíssima) agenda externa do candidato

Mel Gurtov – OUTRAS PALAVRAS – 05/11/2024

Uma conspiração de extrema direita às claras

O Projeto 2025, o ambicioso guia de planejamento de políticas da extrema direita publicado como Mandate for Leadership (Mandato para Liderança), foi concebido para desmantelar o “Estado Profundo” e instalar um presidente e aliados leais que levarão adiante a agenda autoritária de Donald Trump. Agora, ele supostamente não existe mais – mas não é verdade. A campanha de Trump, preocupada com a má impressão que o Projeto 2025 estava recebendo, ordenou que ele fosse desconectado. Mas não se engane: embora Trump possa discordar de algumas das recomendações, o projeto foi concebido com ele, e somente ele, em mente.

Trump afirma que “não sabe nada sobre o Projeto 2025”, mas seu nome aparece no documento mais de 300 vezes; a CNN conta pelo menos 140 pessoas que trabalharam no documento do Projeto 2025 e que trabalharam anteriormente para o governo Trump; e Trump mantém laços estreitos com a Heritage Foundation, que publicou o documento. Se houver outra presidência de Trump, os colaboradores do Projeto 2025, muitos da Heritage Foundation e outros de uma rede de extrema direita em Washington chamada Conservative Partnership Institute, povoarão seu governo.

Nesta análise em duas partes, exploro os capítulos do Mandate for Leadership que dizem respeito a assuntos internacionais e à política externa dos EUA. Na primeira parte, observarei os aspectos autoritários do documento e, em seguida, examinarei suas propostas de políticas com relação à China e à Rússia. Na parte 2, examinarei o que o documento tem a dizer sobre comércio, armas nucleares e gastos militares, Coreia do Norte, Oriente Médio e América Latina.

O plano para reordenar os Estados Unidos

A maior parte da atenção da mídia dos EUA e dos legisladores democratas tem sido dedicada, com razão, ao lado doméstico da agenda do Projeto 2025 – seus planos para colocar o Departamento de Justiça a serviço do presidente, livrar-se do Departamento de Educação como um passo para emascular a educação pública, tornar os Estados Unidos indesejáveis para imigrantes negros, proibir o aborto em todo o país, dar ao setor de combustíveis fósseis o que ele quiser e conter a dissidência pública.

As ideias sobre relações exteriores seguem essa agenda porque, para serem implementadas, todas elas dependem de um executivo todo-poderoso e de uma burocracia que foi expurgada de liberais e esquerdistas. (“Grande parte da força de trabalho do Departamento de Estado é de esquerda e está predisposta a discordar da agenda e da visão política de um presidente conservador”, diz o documento).

O Projeto 2025 propõe três tarefas essenciais de governança para promover sua causa: reafirmar o papel dominante do presidente na formulação de políticas, desmantelar as principais agências governamentais preocupadas com o bem-estar social e substituir muitos funcionários públicos que não passam no teste de lealdade (eles serão reclassificados como trabalhadores comuns) por funcionários políticos leais ao chefe do Executivo. O plano busca maneiras de contornar a burocracia do governo, o que, por si só, é um objetivo comum a todas as administrações anteriores.

Mas ele difere drasticamente em sua submissão aos impulsos autoritários de Trump. Todas as páginas do documento enfatizam que os funcionários e outros membros da equipe devem alinhar seus pontos de vista com os do presidente, com a forte implicação de que não fazer isso resultará em demissão ou reatribuição. É uma fórmula para limitar o debate político dentro das agências ou entre elas ao que o presidente já decidiu.

Política da China e da Rússia

O Projeto 2025 é absolutamente obcecado pela China. Como já aconteceu com as opiniões dos EUA sobre a União Soviética, agora acredita-se que a China esteja por trás de todas as situações problemáticas em todos os continentes. A China recebe tanta atenção, diz o autor da seção sobre o Departamento de Estado, porque ela é “a ameaça definidora”.

Esse é Kiron K. Skinner, que anteriormente era responsável pelo planejamento da política de Trump no Departamento de Estado e depois se juntou à equipe da Heritage Foundation. Da mesma forma, escreve Christopher Miller na seção sobre o departamento de defesa, “Pequim representa um desafio aos interesses americanos em todos os domínios do poder nacional”. (Miller, um coronel aposentado das Forças Especiais, foi o secretário de defesa interino de Trump por cerca de três meses).

Além disso, a ameaça militar que a China representa é especialmente grave. Ele retrata a China como uma “ameaça imediata” a Taiwan e aos aliados dos EUA no Pacífico, sem mencionar o perigo nuclear, tudo isso sem nenhuma evidência convincente. No entanto, Miller recomenda como prioridade máxima “a construção de um planejamento de força convencional para derrotar uma invasão chinesa em Taiwan antes de alocar recursos para outras missões. . .” Essas outras missões provavelmente incluem a Ucrânia.

Skinner critica a política de Biden para a China por estar tratando a China com indulgência. Ela argumenta que alguns profissionais de política externa “conscientemente ou não, ‘papagaiam’ a linha comunista. Líderes globais, incluindo o presidente Joe Biden, tentaram normalizar ou até mesmo elogiar o comportamento chinês”.

Na verdade, o oposto é verdadeiro. Biden também exagerou a ameaça da China e rotulou Xi Jinping de “ditador”. Quando Skinner escreve que a China é um país “cujo comportamento agressivo só pode ser contido por meio de pressão externa”, ele optou por ignorar como, sob o comando de Biden, os EUA alinharam vários países do Leste Asiático, incluindo Japão, Índia, Coreia do Sul e Filipinas, em uma coalizão contra a China – e é por isso que Pequim acusa os EUA de novamente seguir uma política de contenção.

O tratamento dado pelo Projeto à Rússia está muito distante de sua análise da China. A Rússia é uma ameaça apenas com relação à segurança da Ucrânia. Não há nenhuma consideração sobre a crença de Vladimir Putin no excepcionalismo russo, suas ideias políticas, seu histórico de direitos humanos ou suas ambições imperiais. (O documento do Projeto 2025 dá mais espaço para o Ártico do que para a Rússia).

Skinner observa três vertentes do pensamento conservador sobre a política da Ucrânia e conclui:

“Independentemente dos pontos de vista, todos os lados concordam que a invasão da Ucrânia por Putin é injusta e que o povo ucraniano tem o direito de defender sua pátria. Além disso, o conflito enfraqueceu muito a força militar de Putin e impulsionou a unidade da OTAN e sua importância para as nações europeias.”

Skinner conclui que o apoio dos EUA à Ucrânia deve continuar, desde que seja “totalmente pago; limitado à ajuda militar (enquanto os aliados europeus atendem às necessidades econômicas da Ucrânia); e tenha uma estratégia de segurança nacional claramente definida que não arrisque vidas americanas”.

Alguns desmentidos de Trump

Donald Trump nunca falou sobre o direito de autodefesa da Ucrânia ou sobre a importância da unidade da OTAN diante da agressão russa. Ele também não concorda com o pagamento integral da missão na Ucrânia. A principal preocupação de Trump são as relações com a Rússia e a Europa, não a segurança da Ucrânia. Ele já disse várias vezes que Putin é um grande amigo, que Putin não teria iniciado uma guerra com a Ucrânia se Trump fosse o presidente e que ele, Trump, vai elaborar um acordo de paz muito rapidamente.

Pode ser por isso que a Ucrânia nem sequer seja mencionada na plataforma do Partido Republicano, que se refere simplesmente à restauração da “paz na Europa”. Em resumo, Trump quer se livrar do problema da Ucrânia apaziguando a Rússia. Ele só está na mesma página do Projeto 2025 ao argumentar que a Europa e a OTAN devem ser tratadas em termos transacionais, ou seja, ao insistir que os europeus paguem mais pela defesa e ofereçam mais em termos de comércio.

Trump também pode não estar totalmente de acordo com o Projeto 2025 no que diz respeito a Taiwan. Como ele já demonstrou no passado, o ganho financeiro e a vingança são marcas registradas de sua abordagem às relações internacionais, seja lidando com amigos ou adversários.

Lembre-se de que Trump assumiu o cargo em 2017 acreditando que tanto o Japão quanto a China haviam enganado os EUA nas relações comerciais. Em seguida, ele se distanciou da OTAN, argumentando que seus membros precisam pagar mais por sua defesa ou sacrificar o apoio dos EUA.

Portanto, quando lhe perguntaram, em uma entrevista à Bloomberg News em 25 de junho, qual seria sua política em relação a Taiwan, ele não pensou em defender a ilha, o que os republicanos no Congresso consideram a primeira prioridade, mas sim o seguinte: “Eles ficaram com cerca de 100% do nosso negócio de chips. Acho que Taiwan deveria nos pagar pela defesa. Sabe, não somos diferentes de uma companhia de seguros. Taiwan não nos dá nada”. Isso não significa que Trump abandonará Taiwan; ele pode simplesmente estar pressionando o país a pagar mais, assim como exigiu da OTAN.

Segunda Guerra Fria

Em resumo, o Projeto 2025 é menos uma análise séria e objetiva do que um documento ideológico. Ele eleva o nível das ameaças internacionais aos interesses dos EUA, sendo a China o inimigo central; apoia uma enorme expansão do poder presidencial; pede uma ênfase maior do que a de Biden na modernização e expansão das armas nucleares; deixa para os aliados a principal responsabilidade de confrontar a Rússia; pressiona por grandes aumentos no orçamento militar dos EUA; e defende o fortalecimento da base industrial de defesa dos EUA e o aumento das vendas de armas estadunidenses no exterior.

Não procure por iniciativas diplomáticas, questões de direitos humanos, preocupações ambientais, o papel do direito internacional ou discussões sobre pobreza, autocracia ou democracia. Se uma agenda Trump-Projeto 2025 for implementada, podemos esperar crises cada vez maiores na Europa Central e no Oriente Médio, novas corridas armamentistas com a Rússia e a China, outra guerra comercial com a China e novas tensões no Estreito de Taiwan.

Um “gênio estável” estará no comando. Qualquer pessoa que não tenha vivido a primeira Guerra Fria terá uma oportunidade de vivê-la agora.

O retorno do “Tariff Man”

O capítulo de Navarro está totalmente alinhado com as ideias de Trump, o “Tariff Man”, sobre política comercial. Navarro argumenta que uma política comercial dos EUA que se iguale às altas tarifas da China, da Índia ou de qualquer outro país é a melhor maneira de reduzir o déficit comercial dos EUA. Segundo ele, a imposição de tarifas elevadas também forçará as empresas multinacionais dos EUA a construir fábricas no país e será bom para os agricultores estadunidenses (Lembre-se de que nada disso aconteceu durante o mandato de Trump).

Navarro também é a favor do comércio e da dissociação financeira da China, que ele acusa de nada menos que cinquenta formas de “agressão econômica”. Bem conhecido por sua visão ideologicamente voltada para a China, Navarro escreve que os chineses “nunca negociam de boa fé”. Suas propostas praticamente acabariam com a maior parte do comércio com a China, com os investimentos dos EUA no país asiático e com os investimentos chineses nos EUA. Os intercâmbios educacionais e de pesquisa com a China também seriam bastante restritos.

Os custos dessas propostas para os consumidores e as instituições de pesquisa científica e tecnológica dos EUA, o impacto sobre as cadeias de suprimentos globais, a provável retaliação na forma de uma interrupção das exportações chinesas de terras raras e outros minerais vitais para os EUA e o aumento das tarifas da China em resposta às tarifas mais altas dos EUA – todos esses resultados muito prováveis nunca são considerados por Navarro, assim como não o foram por Trump como presidente.

Alguém poderia ler o capítulo de Navarro e pensar que ele e Trump se opõem aos interesses das corporações multinacionais e estão profundamente preocupados com os interesses dos trabalhadores americanos. Mas sabemos, por experiência própria, como Trump mascarou seu objetivo real de obter favores do grande capital, conforme evidenciado por seus cortes de impostos que beneficiaram principalmente o 1% das famílias mais ricas e sua dependência de grandes doações de alguns dos líderes corporativos mais ricos. Agora, Trump propõe reduzir a alíquota do imposto corporativo de 21% no projeto de lei fiscal de 2017 (que era de 35%) para 15%. E você pode apostar que Trump nomeará chefes da Comissão Federal de Comércio e do Federal Reserve que são fãs da América corporativa.

Políticas: Irã, Coreia do Norte, Venezuela, México, armas

Sobre o Irã, o Projeto 2025 diz: “os Estados Unidos podem utilizar suas próprias ferramentas econômicas e diplomáticas e as de outros países para facilitar o caminho rumo a um Irã livre e a um relacionamento renovado com o povo iraniano”. Como fazer isso? Outra reversão às políticas anteriores de Trump: sanções mais severas, apoio a Israel para “tomar o que considerar medidas apropriadas para se defender contra o regime iraniano” e, por fim, buscar uma mudança de regime. O Oriente Médio recebe pouca atenção.

Sobre a Coreia do Norte: “Os Estados Unidos não podem permitir que a Coreia do Norte continue a ser uma potência nuclear de fato com a capacidade de ameaçar os Estados Unidos ou seus aliados. . . . Não se deve permitir que a RPDC lucre com suas violações flagrantes de compromissos internacionais ou ameace outras nações com chantagem nuclear. Ambos os interesses só podem ser atendidos se os EUA não permitirem o comportamento desonesto do regime da RPDC.” Deixando de lado o significado de “proibir” e “não permitir”, essa proposta segue o fracasso de Trump em fechar um acordo com Kim Jong Un quando ele teve a chance. O Projeto 2025 deixa em aberto a possibilidade de outra rodada de ameaças nucleares entre os EUA e a Coreia do Norte.

A Venezuela é o foco da seção América Latina do Projeto 2025. Ele diz: “o próximo governo deve tomar medidas importantes para colocar os abusadores comunistas da Venezuela em alerta e, ao mesmo tempo, fazer progressos para ajudar o povo venezuelano”. Esse conselho ambíguo foi amplamente superado pelos acontecimentos. A eleição presidencial contestada da Venezuela em 28 de julho já levou os EUA a reconhecer o oponente do presidente Nicolás Maduro, Edmundo Gonzalez, como o vencedor, manter as sanções e oferecer a Maduro anistia e uma carona para fora do país. Por enquanto, o governo Biden tem contado com os antigos amigos da Venezuela – os presidentes do México, Brasil e Colômbia – para tentar persuadir Maduro a renunciar. No entanto, não há sinais de que, sob Biden, os EUA colocarão Maduro “em alerta”.

O México é tratado como um “Estado cartel” que perdeu sua soberania. “O próximo governo”, diz o documento do Projeto, ‘deve adotar uma postura que exija um México totalmente soberano e tomar todas as medidas à sua disposição para apoiar esse resultado da maneira mais rápida possível’. A falta de soberania total do México é um argumento para uma intervenção mais direta dos EUA no México? Sabe-se que Trump já expressou a opinião, enquanto presidente, de que os EUA deveriam considerar invadir o México sob o pretexto de interromper o comércio de drogas.

Com relação a armas nucleares e gastos militares, o Projeto 2025 propõe aumentar a produção e a modernização de armas nucleares e retomar os testes com elas (em violação ao Tratado de Proibição Total de Testes Nucleares). Essas ideias, totalmente alinhadas com a paixão de Trump por armas nucleares, estão todas ligadas a propostas para grandes aumentos no orçamento militar dos EUA, para fortalecer a base industrial de defesa estadunidense e para aumentar as vendas de armas dos EUA no exterior. Como se Biden já não estivesse gastando o suficiente com as forças armadas e armas nucleares, ou se afastando da venda de armas!

Conclusão

Em resumo, nas relações exteriores e na segurança nacional, o Projeto 2025 eleva o nível das ameaças internacionais aos interesses dos EUA, com a China como inimigo central; apoia uma enorme expansão do poder presidencial, às custas da diplomacia e das descobertas de inteligência; pede uma ênfase maior do que a de Biden na expansão militar-industrial, incluindo a modernização de armas nucleares; deixa para os aliados a principal responsabilidade de confrontar a Rússia; e parece defender a mudança de regime no Irã, na Venezuela e até no México. Como presidente, Trump teria a liberdade de aceitar ou rejeitar qualquer parte das ideias do Projeto 2025. Mas o que quer que ele aceite não será menos perigoso do que qualquer uma das ideias que ele, como um “gênio estável”, carregou consigo do passado.

 

Gabinete Trump – de, por e para os ricos, por Branko Marcetic

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O alto-escalão do novo governo dos EUA será ocupado por bilionários e CEOs, como Elon Musk. Objetivos estão traçados: menos impostos para corporações, desregulamentações e austeridade para pobres e classe média. É o cinismo de um presidente que se diz “pró-trabalhador”

Branko Marcetic – OUTRAS MÍDIAS -14/11/2024

O alto-escalão do novo governo dos EUA será ocupado por bilionários e CEOs, como Elon Musk. Objetivos estão traçados: menos impostos para corporações, desregulamentações e austeridade para pobres e classe média. É o cinismo de um presidente que se diz “pró-trabalhador”

Após uma derrota eleitoral desmoralizante, o Partido Democrata está mergulhado em debates e acusações enquanto tenta descobrir o que realmente quer ser nos próximos anos: um partido de trabalhadores ou de CEOs e bilionários. O lado de Donald Trump, enquanto isso, já decidiu: vai com os CEOs e bilionários. Tudo o que estamos vendo sobre os planos do novo governo por meio de pessoas de dentro deixa bem claro que este será um governo de, por e para grandes empresas.

Os assessores de Trump disseram à Axios que, no primeiro dia, o novo presidente vai promover “uma agenda favorável aos negócios de cortes de impostos, desregulamentação e expansão da produção de energia” e “preencherá seus altos escalões com bilionários, ex-CEOs, líderes de tecnologia e legalistas”. Há planos em andamento para reduzir ainda mais as taxas de impostos corporativos, desregulamentar uma variedade de setores como criptomoedas, inteligência artificial e grandes bancos, e expulsar a presidente antimonopólio da Federal Trade Commission, Lina Khan, para abrir caminho para mais uma vitória corporativa.

Isso não é nenhuma surpresa, já que Trump já entregou as rédeas de sua presidência para a elite empresarial. A transição de Trump está sendo liderada por dois doadores milionários para sua campanha: Linda McMahon, que como ex-CEO da World Wrestling Entertainment acumulou um longo histórico enganando trabalhadores (e pode ser recompensada ainda mais com o posto de Secretária de Comércio), e o CEO da empresa de negociação Cantor Fitzgerald, Howard Lutnick, que cortou financeiramente as famílias de seus funcionários mortos no ataque de 11 de setembro apenas um dia depois de chorar na televisão sobre suas mortes. O recém-nomeado chefe de gabinete de Trump é um lobista corporativo que trabalhou para empresas de tabaco, seguros e carvão. Alguns gestores de fundos de hedge estão concorrendo para ser seu secretário do tesouro.

Esses são apenas alguns dos bilionários e executivos que silenciosamente moldam a futura presidência de Trump nos bastidores, incluindo o ultra-capitalista Marc Andreessen e o ex-presidente da Marvel Entertainment, Ike Perlmutter. Mas um nome merece menção especial: o bilionário Elon Musk.

Musk é mais um megadoador da campanha de Trump que agora está tendo o favor retribuído pelo presidente eleito. Ele será encarregado, ao que parece, de cortar US$ 2 trilhões de suposto desperdício e fraude do governo, uma ideia que foi pessoalmente endossada por Trump em público. O que está sendo sinalizado é um programa de austeridade implacável para os pobres e a classe média, um que Musk admitiu aberta que mergulhará os americanos em “dificuldades” e uma crise econômica “severa”, mesmo que o governo enriqueça os ultra-ricos.

Não é de se admirar, então, que os dez homens mais ricos do mundo já tenham aumentado sua riqueza em US$ 64 bilhões com a vitória de Trump na última terça-feira, o que fez o mercado de ações ferver com antecipação para a elite empresarial?

Com a eleição garantida, Trump e sua equipe nem se preocupam mais em fingir que passarão os próximos quatro anos lutando contra a elite econômica em nome do trabalhador americano oprimido. Em vez disso, eles vão, muito abertamente, unir forças com essa elite para seguir uma agenda que empobrecerá ainda mais os muitos eleitores que depositaram sua confiança em Trump para tirá-los das atuais dificuldades econômicas.

A reformulação da marca do velho Partido Republicano como o “partido dos trabalhadores” sempre foi uma farsa, especialmente vindo de um líder cuja principal realização legislativa no primeiro mandato foi um corte massivo de impostos para os ricos. Tudo sugere que eles estão prestes a tornar essa “reformulação de brading” mais uma piada.

Branko Marcetic é escritor da redação da Jacobin e mora em Toronto, Canada.

 

Tecnologia não é sinônimo de progresso, por Suzana Herculano-Houzel

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Parar de pensar acentua as desigualdades

Suzana Herculano-Houzel, Bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

Folha de São Paulo – 15/11/2024

Estou achando difícil ser um animal da espécie humana ultimamente, quando meu vício profissional é pensar o tempo todo em como chegamos aqui: somos fruto de uma sequência de oportunidades amplificadas exponencialmente por um truque tecnológico, o pré-processamento do que comemos, que colocou mais calorias em nossas bocas, mais neurônios em nosso cérebro, e mais tempo em nossas mãos.

A história sobre como alcançamos a biologia que temos, radicalmente transformada pela primeira tecnologia que nossos antepassados criaram, que foi o uso de pedras lapidadas na forma de ferramentas para modificar o que comiam, é a história da evolução biológica da nossa espécie.

A história sobre como nos tornamos os humanos que somos hoje é outra coisa: uma história de progresso. Evolução é apenas mudança ao longo do tempo, nem para pior, nem para melhor. Progresso, agora sim, é mudança que melhora a situação: que traz mais possibilidades, que abre portas, que gera complexidade que torna a vida mais interessante.

Na visão panorâmica da história da humanidade, progresso tem sido o produto do uso de mais e mais novas tecnologias, que geram oportunidades até então inexistentes e mudam a maneira de fazer e pensar. Cordas e machados, depois barro, cimento, concreto e aço transformaram onde vivemos; barro, depois papel e tinta, e então computadores e agora a internet mudaram como estendemos nossos pensamentos e memórias a repositórios externos que podemos consultar à vontade.

Mas esse tempo todo, cabia a nós, humanos, pensar. Juntar coisa com coisa e virar ideias na cabeça, com um problema em mente, até elas fazerem sentido. Usar a tecnologia não como um fim, mas como um meio. As tecnologias armazenavam e traziam informação —mas tornar informação em conhecimento sempre dependeu de humanos usarem a tal informação para melhorar sua vida. O progresso da humanidade não está simplesmente em dispor de mais informação, mas em transformá-la em conhecimento, acumulado e mantido vivo conforme geração após geração aprende a pensar, sintetizar, usar e transmitir.

Donde minha dificuldade, que vem de olhar ao redor e ver minha espécie fazendo muita, mas muita força para automatizar e terceirizar a geração de conhecimento, efetivamente excluindo-se da história. É sério que nós construímos toda uma riqueza de conhecimentos e civilizações diferentes para então gerarmos uma maneira de tornar o cérebro e a experiência humana… obsoletos?

Estou falando, é claro, da tecnologia dita “inteligência artificial” e do seu uso para direcionar a experiência humana. Já escrevi aqui que tecnologias que são apenas algoritmos repetitivos, mesmo que produzam à força de muito treino algo que é indistinguível de linguagem, não têm nada de inteligente, pois inteligência é flexibilidade. Tecnologias não são inteligentes; o uso que fazemos delas é que pode ou não ser.

Mas pior do que confundir algoritmo e automação com inteligência é pensar que todo e qualquer uso dessas tecnologias é inteligente e inevitavelmente traz progresso. Não é, e não traz. A história mostra que automação, sozinha, só enche os bolsos da elite que detém o poder, enquanto acentua a desigualdade.

Meu medo é que a humanidade, encantada com o brinquedo novo, não nota que ele rouba suas oportunidades para parar, pensar, e aprender, e se faz cada vez mais à mercê de uma elite pensante cada vez menor e mais rica.

 

 

Vitória de Trump significa rejeição do liberalismo clássico e inaugura nova era nos EUA e no mundo, por Fukuyama

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Resta saber se republicanos conseguirá cumprir promessas autoritárias e aprofundar degradação das instituições.

Francis Fukuyama, Filósofo e economista americano, é professor da Universidade Stanford e autor dos livros ‘O Fim da História e o Último Homem’ e ‘Liberalism and Its Discontents’ [O Mal-Estar no Liberalismo, em tradução livre].

Folha de São Paulo – 12/11/2024

A vitória esmagadora de Donald Trump e do Partido Republicano no último dia 5 levará a grandes mudanças em áreas importantes na política dos Estados Unidos, desde a imigração até a Ucrânia. Mas o significado da eleição vai muito além dessas questões específicas e representa uma rejeição decisiva dos eleitores americanos al liberalismo e à maneira particular como a compreensão de uma “sociedade livre” evoluiu desde os anos 1980.

Quando Trump foi eleito pela primeira vez em 2016, era fácil acreditar que esse evento era uma aberração. Ele estava concorrendo contra uma oponente fraca que não o levava a sério e, de qualquer frma, Trump não venceu no voto popular. Quando Biden conquistou a Casa Branca quatro anos depois, parecia que as coisas tinham voltado ao normal após uma desastrosa Presidência de um mandato só.

Após a votação do dia 5, agora parece que a anomalia foi a Presidência de Biden, e que Trump está inaugurando uma nova era na política dos EUA e talvez no mundo como um todo. Os americanos votaram nele com pleito conhecimento de quem Trump era e o que ele representava. Não só ele ganhou a maioria dos votos e todos os estados-pêndulo mas os republicanos retomaram o Senado e parecem que vão manter a maioria da Câmara dos Representantes. Dada a sua já existente dominância na Suprema Corte, eles agora estão prontos para controlar todos os Três Poderes do governo.

Mas qual é a natureza desta nova fase da história americana?

O liberalismo clássico é uma doutrina construída em torno do respeito pela dignidade dos indivíduos por meio de um Estado de Direito que protege seus direitos e de controles constitucionais sobre a capacidade do Estado de interferir nesses direitos.

Mas, ao longo do último meio século, esse impulso básico sofreu duas grandes distorções. A primeira foi a ascensão do neoliberalismo, uma doutrina econômica que canonizou os mercados e reduziu a capacidade dos governos de proteger aqueles prejudicados por mudanças econômicas. O mundo ficou muito mais rico ao todo, enquanto a classe trabalhadora perdeu empregos e oportunidades. O poder se deslocou dos lugares onde nasceu a Revolução Industrial para a Ásia e outras partes do mundo em desenvolvimento.

A segunda distorção foi a ascensão do identitarismo ou do que se poderia chamar de liberalismo “woke” (forma como é chamado o discurso de pautas identitárias nos EUA), em que a preocupação progressista com a classe trabalhadora foi substituída por proteções direcionadas para um conjunto mais restrito de grupos marginalizados: minorias raciais, imigrantes, minorias sexuais e afins. O poder do Estado foi cada vez mais usado não a serviço da justiça imparcial, mas sim para promover resultados sociais específicos para esses grupos.

Enquanto isso, os mercados de trabalho estavam mudando para uma economia da informação. Em um mundo em que a maioria dos trabalhadores se senta em frente a uma tela de computador em vez de levantar objetos pesados do chão da fábrica, as mulheres têm uma posição mais igualitária. Isso transformou o poder dentro das famílias e levou a percepção de uma celebração aparentemente constante das conquistas femininas.

A ascensão desses entendimentos distorcidos a respeito do que é o liberalismo impulsionou uma grande mudança na base social do poder político. A classe trabalhadora sentiu que os partidos políticos de esquerda não estavam mais defendendo seus interesses e começou a votar em partidos de direita.

Assim, o Partido Democrata perdeu o contato com sua base da classe trabalhadora e se tornou um partido dominado por profissionais urbanos escolarizados. Os trabalhadores escolheram votar nos republicanos. Na Europa, eleitores do partido comunista na França e na Itália desertaram para Marine Le Pen e Giorgia Meloni.

Todos esses grupos estavam insatisfeitos com um sistema de livre comércio que eliminou seus meios de subsistência, ao mesmo tempo em que criou uma nova classe de super-ricos, e também estavam insatisfeitos com partidos progressistas que aparentemente se importavam mais com estrangeiros e o meio ambiente do que com sua própria condição econômica.

Essas grandes mudanças sociológicas foram refletidas nos padrões de votação na terça-feira. A vitória republicana foi construída em torno de eleitores brancos da classe trabalhadora, mas Trump conseguiu atrair significativamente mais eleitores negros e hispânicos em comparação com a eleição de 2020. Isso foi especialmente verdadeiro para os homens dentro desses grupos. Para eles, a classe importava mais do que raça ou etnia. Não há razão particular para que um latino da classe trabalhadora, por exemplo, deva se sentir particularmente atraído por um liberalismo woke que favorece imigrantes recentes e se concentra em avançar os interesses das mulheres.

Também está claro que a grande maioria dos eleitores da classe trabalhadora simplesmente não se importava com a ameaça à ordem liberal, tanto doméstica quanto internacional, representada por Trump.

Donald Trump não quer apenas reverter o neoliberalismo e o liberalismo woke, mas é uma grande ameaça ao próprio liberalismo clássico. Essa ameaça é visível em várias questões políticas; uma nova Presidência de Trump não se parecerá em nada com seu primeiro mandato. A verdadeira questão neste ponto não é se suas intenções são malignas, mas sim sua capacidade de verdadeiramente cumprir o que ameaça.

Muitos eleitores simplesmente não levam sua retórica a sério, enquanto republicanos tradicionais argumentam que os freios e contrapesos do sistema americano o impedirão de fazer o pior. Isso é um erro: devemos levar suas intenções declaradas muito a sério.

Trump é um protecionista autoproclamado, que diz que tarifa é a palavra mais bonita da língua inglesa. Ele propôs tarifas de 10% ou 20% contra todos os bens produzidos no exterior, por nações amigas ou inimigas, e não precisa do aval do Congresso para fazê-lo.

Como um grande número de economistas apontou, esse nível de protecionismo terá efeitos extremamente negativos sobre a inflação, produtividade e emprego. Será extremamente prejudicial para as cadeias de suprimentos, o que levará os produtores domésticos a solicitar isenções. Isso então proporciona a oportunidade para altos níveis de corrupção e favoritismo, à medida que as empresas correm para agradar o presidente.

Tarifas nesse nível também convidam a retaliações igualmente massivas por outros países, criando uma situação em que o comércio (e, portanto, a renda) colapsa. Talvez Trump recue diante disso; ele também pode responder como a ex-presidente argentina Cristina Kirchner, corrompendo a agência estatística que reporta as más notícias econômicas.

Com relação à imigração, Trump não quer mais simplesmente fechar a fronteira; ele quer deportar o máximo possível dos 11 milhões de imigrantes em situação irregular lá no país. Essa é uma tarefa administrativa tão grande que exigirá anos de investimento na infraestrutura necessária para realizá-la — centros de detenção, agentes de controle de imigração, tribunais e assim por diante.

Terá efeitos devastadores em vários setores que dependem da mão de obra imigrante, particularmente construção civil e agricultura. Também será enormemente desafiador em termos morais, à medida que pais são separados de seus filhos americanos, e criaria o cenário para um conflito civil, já que muitos dos imigrantes vivem em jurisdições democratas que farão o que puderem para impedir que Trump consiga o que quer.

Com relação ao Estado de Direito, Trump se concentrou, durante a campanha, em buscar vingança pelas injustiças que acredita ter sofrido nas mãos de seus adversários. Ele prometeu usar o sistema de justiça para perseguir de Liz Cheney e Joe Biden ao ex-presidente do Estado-Maior Mark Milley e Barack Obama. Ele quer silenciar críticos da mídia retirando suas concessões ou impondo penalidades.

Se Trump terá o poder de fazer qualquer uma dessas coisas é incerto: o sistema judicial foi uma das barreiras mais resilientes aos seus excessos durante o primeiro mandato. Mas os republicanos têm trabalhado consistentemente para inserir juízes trumpistas no sistema, como a juíza Aileen Cannon na Flórida, que rejeitou o forte caso dos documentos confidenciais contra Trump.

Algumas das mudanças mais importantes virão na política externa e na natureza da ordem internacional. A Ucrânia é de longe a maior perdedora; sua luta militar contra a Rússia estava enfraquecendo mesmo antes da eleição, e Trump pode forçá-la a se render nos termos da Rússia ao reter armas, como a Câmara Republicana fez por seis meses no inverno passado.

Trump ameaçou reservadamente sair da Otan, mas mesmo que não o faça, ele pode enfraquecer gravemente a aliança ao não cumprir sua garantia de defesa mútua do Artigo 5. Não há líderes europeus que possam substituir os Estados Unidos como líder da aliança, então sua futura capacidade de enfrentar a Rússia e a China está em grave perigo. Pelo contrário, a vitória de Trump inspirará outros populistas europeus, como a Alternativa para a Alemanha e a Reunião Nacional na França.

Aliados e amigos dos EUA no Leste Asiático não estão em posição melhor. Embora Trump tenha falado duramente sobre a China, ele também admira muito Xi Jinping por suas características autocráticas e pode estar disposto a fazer um acordo com ele sobre Taiwan. Trump parece avesso por natureza ao uso do poder militar e é facilmente manipulado, mas uma exceção pode ser o Oriente Médio , onde ele provavelmente apoiará completamente as guerras de Benjamin Netanyahu contra o Hamas, o Hezbollah e o Irã.

Há fortes razões para pensar que Trump será muito mais eficaz em cumprir essa agenda do que foi durante seu primeiro mandato. Ele e os republicanos reconheceram que a implementação de políticas depende da equipe. Quando foi eleito pela primeira vez em 2016, ele não entrou no cargo cercado por um grupo de assessores leais; em vez disso, teve que contar com republicanos do establishment.

Em muitos casos, eles bloquearam ou retardaram suas ordens. No final de seu mandato, ele emitiu uma ordem executiva que retiraria todas as proteções de estabilidade dos servidores federais e permitiria que ele demitisse qualquer burocrata que quisesse. Um renascimento dessa medida está no cerne dos planos para um segundo mandato de Trump, e os conservadores têm estado ocupados compilando listas de potenciais funcionários cuja principal qualificação é a lealdade pessoal a Trump. É por isso que ele tem mais chances de executar seus planos desta vez.

Antes da eleição, críticos, incluindo Kamala Harris, acusaram Trump de ser um fascista. Isso foi equivocado na medida em que ele não estava prestes a implementar um regime totalitário nos EUA. Em vez disso, haveria uma decadência gradual das instituições liberais, assim como ocorreu na Hungria após o retorno de Viktor Orbán ao poder em 2010.

Essa decadência já começou, e Trump causou danos substanciais. Ele aprofundou uma polarização já significativa e transformou os EUA de uma sociedade de alta confiança para uma de baixa confiança; ele demonizou o governo e enfraqueceu a crença de que ele representa os interesses coletivos dos americanos; ele tornou o discurso político mais grosseiro e deu permissão para expressões abertas de intolerância e misoginia; e ele convenceu a maioria dos republicanos de que seu antecessor foi um presidente ilegítimo que fraudou a eleição de 2020.

A amplitude da vitória republicana, estendendo-se da Presidência ao Senado e provavelmente à Câmara dos Representantes também, será interpretada como um forte mandato político confirmando essas ideias e permitindo que Trump aja como quiser. Só podemos esperar que algumas das barreiras institucionais restantes sigam de pé. Mas pode ser que as coisas tenham de piorar muito antes de melhorarem.

 

Incertezas crescentes

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A sociedade mundial vem passando por grandes alterações econômicas e produtivas, com impactos generalizados sobre todas as regiões, alterando comportamentos arraigados, alterando a agenda das comunidades, com o incremento de desenvolvimentos científico e tecnológico que transformaram os  modelos de negócios, reconfigurando o mercado de trabalho, aumentando as exigências para todos os trabalhadores, movimentando as estruturas políticas e democráticas dos Estados Nacionais e gerando novos desafios para toda a comunidade global.

Diante destes desafios contemporâneos que agitam a sociedade internacional, percebemos ventos de mais protecionismos dentro das comunidades locais, nações que pregavam enfaticamente o livre comércio, que eram árduos defensores de mais concorrência como forma de alavancar o crescimento econômico e estimulavam a diminuição do Estado na economia estão revendo princípios e valores que eram vistos como intocáveis.

Neste cenário, percebemos o crescimento de políticas protecionistas para proteger suas estruturas econômicas e produtivas, com fortes investimentos subsidiados pelos governos nacionais, além do incremento de tarifas de importação para reduzir a entrada de produtos estrangeiros, desta forma, garantem a sobrevida de setores nacionais que perderam espaço no comércio global e foram substituídos por concorrentes estrangeiros mais eficientes, mas produtivos e detentores de tecnologias mais modernas e mais sofisticadas.

Com a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, percebemos o renascimento de um discurso fortemente protecionista e messiânico, centrado nos interesses norte-americanos, com forte teor protecionista e imediatista, com o incremento de políticas anti-imigração e de deportação em massa, além da intensificação do conflito comercial entre EUA e China, reversão de políticas adotados no governo atual que estimulavam os conflitos militares em curso na sociedade mundial e o afastamento dos tratados internacionais, principalmente os vinculados ao Meio Ambiente.

Internamente, percebemos que o novo governo Donald Trump deve adotar políticas protecionistas para fortalecer estados e regiões inteiras que foram fortemente desindustrializadas nos momentos de ascensão da chamada globalização. Estados que sempre se caracterizaram por forte desenvolvimento industrial, pela pujança econômica, por uma classe média consolidada e que perderam a capacidade de competição global, levando uma massa gigantesca de empresas nacionais a fecharem suas unidades locais e abrirem filiais em outras regiões, notadamente na Ásia, onde a mão de obra era mais barata, mais abundante, com os custos de produção imensamente menores.

O protecionismo estadunidense pode gerar graves constrangimentos internos e externos, deportar imigrantes, sobretaxar produtos estrangeiros, adotar políticas agressivas contra os interesses de empresas chinesas e pressionar empresas transnacionais para incrementar novos investimentos internos, tais políticas podem gerar graves constrangimentos inflacionários, levando as Autoridades Monetários ao incremento das taxas de juros e levando nações a desequilíbrios nas contas externas.

Vivemos momentos de grandes incertezas e instabilidades. Depois dos problemas ambientais, dos desequilíbrios energéticos, das guerras fratricidas que crescem em escalas ascendentes, dos desajustes do mercado de trabalho, das desesperanças que crescem em todas as regiões do globo, percebemos que mais desequilíbrios e intolerâncias crescem todos os momentos na comunidade global. A eleição nos Estados Unidos nos traz uma grande lição, a melhora econômica e os bons indicadores da economia são insuficientes para garantir a manutenção do poder…abram os olhos!

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Qual fantasia subjaz à reeleição de Trump? por Vera Iaconelli

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Os americanos votaram e o fizeram sabendo qual produto estavam comprando

Vera Iaconelli, Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “Manifesto Antimaternalista” e “Felicidade Ordinária”. É doutora em psicologia pela USP

Folha de São Paulo – 12/11/2024

Embora ninguém pudesse afirmar de antemão que a gata Harris estava morta dentro da caixa, a notícia de sua derrota foi recebida com surpreendente conformismo. A que se deve tal reação, ou a falta dela? A reeleição de Trump implicou uma escolha que não foi feita às cegas, que não se justifica apenas pelas fake news e na qual a narrativa de outsider não existe mais. Os americanos votaram e o fizeram sabendo qual produto estavam comprando. Como bem resumiu Oliver Stuenkel, haveria quatro “is” envolvidos nessa escolha: inflação, imigração, instabilidade global e insegurança masculina. Além dos bilhões de dólares investidos na campanha, claro.

Mais do que se debruçar sobre a infindável —e imprescindível— investigação das razões pelas quais essa figura execrável foi reeleita para governar o país mais poderoso da atualidade, há que se pensar também sobre a desrazão, tema crucial da psicanálise. Embora hoje tenhamos que conviver com o ultraje de ver associado ao nome da psicanálise as palavras “positiva”, “evangélica”, “de direita”, “certificada” ou ainda “certificada pelo MEC”, nosso trabalho é de outra ordem.

O analista convive com uma rotina nada glamourosa de escutar a repetição da queixa do paciente, por vezes, ao longo de anos. Alguns sintomas podem até ceder, mas a mudança da posição do sujeito diante da vida, que o leva a um sofrimento insistente, requer um trabalho mais radical. Não raro, o paciente troca de trabalho, sexo, marido/esposa ou casa sem que isso o faça sair da posição que o mantém numa existência miserável.

O prazer inconfesso que se obtém com a repetição de certos padrões de comportamento está recalcado sob a queixa. Daí a importância de ajudá-lo a reconhecer sua parte naquilo do qual se queixa. O analista não tem a pretensão de modificar a escolha do paciente, mas de fazê-lo assumir sobre que bases se dá essa escolha. A atitude aqui é ética, de responsabilização, e não moral, de dever a ser cumprido.

A escolha por Trump —o exterminador do futuro das mulheres, dos negros, dos pobres e, por fim, do próprio planeta— se revela como renovação na aposta na objetificação do outro, a quem, a depender da posição relativa na escala social, poderemos continuar explorando. Trata-se, enfim, da renovação da aposta capitalista em sua versão turbinada, neoliberal. Algo como: sofro, mas não me privo de fazer o outro sofrer, alucinando a possibilidade de um dia estar na posição mais alta da hierarquia social. Aquela na qual roubar, abusar, matar não seriam atos passíveis de responsabilização. Lembremos da pilha de condenações ligadas ao candidato em questão.

Embora a guilhotina tenha feito seu papel, nunca superamos inteiramente o sonho monarquista, no qual o presidente-rei paira incólume sobre os pobres mortais. Como acabar com esse jogo perverso se não conseguimos abrir mão da esperança de um dia ser nossa vez de brincar de todo-poderoso?

Psicanalistas se orientam pelo que repete incessantemente na clínica porque é a partir da identificação da repetição que se pode localizar a fantasia inconsciente que nos move. No caso de Trump, a fantasia é de delírio de grandeza e de gozar impunemente. Temos nosso exemplar no Brasil, que não deveria sequer voltar às capas desse jornal.

Direita vai bem, Bolsonaro vai mal e Trump não pode salvá-lo, por Christian Lynch

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Nova configuração de poder emerge no Brasil, com controle do centrão e conservadorismo mais pragmático que radical

Christian Lynch, Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), editor da revista Insight Inteligência, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa

Folha de São Paulo – 11/11/2024

[RESUMO] O domínio do centrão nas eleições deste ano, sustenta o autor, aponta que o sistema político brasileiro, depois de um período de forte instabilidade e polarização extrema, passa por um processo de reequilíbrio, marcado por um presidencialismo de coalizão fraco e níveis menores de radicalidade ideológica. Partidos de centro-direita têm interesse em manter a inelegibilidade de Bolsonaro, e a esquerda, sem novos líderes, depende cada vez mais de Lula.

Os resultados das eleições municipais deste ano confirmam que o sistema político brasileiro passa por um processo de reequilíbrio em torno de novas bases ideológicas e de governabilidade. Bases distintas daquelas que definiram o período de estabilização do regime democrático entre os anos 1990 e 2010, assentadas sobre um eixo ideológico de centro-esquerda e do presidencialismo de coalizão forte ou imperial como modelo de governabilidade, que levava a reboque o chamado centrão.

Há cerca de dez anos, o eixo ideológico começou a se deslocar para a centro-direita, sustentado por partidos de centro-direita e direita, que deixaram a periferia do sistema para se tornar seu núcleo de estabilidade e controle. O modelo de governabilidade, perdido ou desarranjado durante aqueles anos de transição, parece agora se estabilizar na forma de um presidencialismo de coalizão fraco ou, conforme seus críticos, um “parlamentarismo bastardo”.

Essas mudanças decorrem de uma crise de legitimidade do sistema representativo, que estalou nas jornadas de 2013, se aprofundou com o impeachment de Dilma Rousseff (PT) em 2015 e culminou, em 2018, na eleição de Jair Bolsonaro (à época no PSL). Crise gerada pela emergência de uma nova direita que não se percebia no sistema político da República de 1988 e o hostilizava.

Embora Bolsonaro representasse a nova direita radical, que canalizava o ressentimento popular contra o sistema e o suposto establishment, o centrão renovado pela mesma eleição se adaptou à nova conjuntura, assumindo uma postura conservadora pragmática e reforçando seu papel como pilar de estabilidade. Passou a agir para limitar tanto as prerrogativas da Presidência quanto do STF.

Tudo aponta para uma tendência em direção a um novo equilíbrio sistêmico e ao afrouxamento da polarização para níveis menores de radicalidade.

A Constituição de 1988 foi concebida em um contexto progressista, em que havia um consenso de que o país deveria se afastar das práticas autoritárias da ditadura militar e se comprometer com um projeto de inclusão social e liberdades públicas. Esse espírito se refletiu nas primeiras décadas de democracia, em que o eixo ideológico predominante esteve à esquerda, sustentado por uma Constituição com fortes valores social-democratas.

Entre os anos 1990 e 2010, o sistema político se estabilizou em torno do chamado presidencialismo de coalizão, um arranjo em que o presidente, mesmo minoritário no Congresso, usava seu vasto poder sobre o Orçamento e a máquina governamental para construir maiorias legislativas e garantir a governabilidade.

Esse modelo se consolidou a partir do Plano Real, que gerou estabilidade econômica e legitimidade para Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Tanto ele quanto Lula e Dilma Rousseff, seus sucessores, governaram formando coalizões com partidos mais conservadores que se alinhavam pragmaticamente ao governo em troca de cargos e influência.

Era esse um presidencialismo forte ou imperial, marcado pelo poder de agenda do chefe de Estado na definição de políticas progressistas, voltadas para promover um ambiente de maior liberdade política, civil e econômica, mas também maior igualdade social, racial e de gênero.

No entanto, a partir dos anos 2010, o consenso progressista começou a dar sinais de desgaste. O contexto político e social havia mudado: a sociedade brasileira, transformada por décadas de políticas sociais e de inclusão, se tornou mais complexa e polarizada. Em paralelo, denúncias de corrupção e o colapso do modelo de presidencialismo alimentaram uma crise de legitimidade.

As manifestações de 2013 expressaram o descontentamento generalizado com a classe política e marcaram o início de um período de grande instabilidade. Bancado pela PGR (Procuradoria-Geral da República) e pelo STF, a “revolução judiciarista” pautou a Operação Lava Jato, derrubou Dilma Rousseff, quase derrubou Michel Temer (MDB), além de prender e condenar dezenas de figuras do establishment a título de purgá-lo da corrupção.

Esse processo abriu espaço para que o centrão reagisse em busca de sobrevivência. Para alcançar esse fim, precisaria deixar de ser apenas um grupo de apoio pragmático e passasse a atuar de forma mais autônoma e ativa, buscando consolidar sua hegemonia.

Nesse contexto, o centrão se adaptou para sobreviver e fortalecer sua influência. Até então, seus partidos haviam operado pragmaticamente, compondo com presidentes de diversos espectros políticos. Entretanto, após o impeachment de Dilma e com a ascensão de figuras mais conservadoras, assumiu sua posição conservadora sem perder o pragmatismo, perseguindo primazia sobre os demais Poderes.

Na impossibilidade de aprovar o semipresidencialismo, esse processo culminou em uma nova forma de presidencialismo de coalizão, agora fraco, menos centralizado na Presidência e mais ancorado no Legislativo. Uma espécie de parlamentarismo bastardo.

Por meio de estratégias como o uso de emendas parlamentares (como as emendas Pix e o orçamento secreto), o centrão passou a controlar a distribuição de recursos e fortalecer suas bases locais, garantindo seu domínio sobre a política nacional, o que contribuiu para a vitória de seus candidatos na última eleição municipal e fortaleceu sua influência. Essa apropriação do Orçamento e da máquina pública se tornou um mecanismo de autossustentação, tornando tais partidos cada vez mais independentes do presidente, seja ele de direita ou de esquerda.

O resultado foi um conservadorismo inercial que garante estabilidade ao sistema político ao custo de fazê-lo rodar muito mais lentamente.

As ideologias passaram a ocupar um lugar mais central na organização e na definição das identidades políticas do centrão. Seu conservadorismo sempre existiu, mas estava adormecido pelo consenso progressista. Findo este, saiu da incubadora.

Mas se trata de um conservadorismo moderado, mais pragmático que doutrinário, voltado principalmente para a proteção dos mecanismos de sua autorreprodução com pouca interferência do governo e do Judiciário. Daí a defesa daquilo que eufemisticamente chamam de prerrogativas do Congresso.

A crise de legitimidade vivida pela democracia brasileira e, em paralelo, o avanço da nova direita na década passada deram força política, em estilo abertamente populista, a ideologias radicais que antes estavam à margem, como o reacionarismo e o libertarianismo. A social-democracia identificada com o PT entrou em crise.

No entanto, o pacto pragmático do liberalismo democrático centrista com o conservadorismo tradicional da direita moderada tem garantido que o sistema permaneça estável, coibindo o avanço de pautas progressistas, ora decadentes, mas, também e principalmente, o avanço do populismo autoritário.

Essa relação entre ideologia e pragmatismo se revela na ambiguidade de líderes da direita do centrão, como Ciro Nogueira (PP) e Valdemar Costa Neto (PL). Querem o estoque eleitoral do populismo radical, mas submetendo-o à disciplina partidária tradicional e, assim, podando seus efeitos antissistêmicos.

Mesma ambiguidade visível em Tarsício de Freitas (Republicanos), que representa no governo de São Paulo o impossível “bolsonarismo moderado”, com que busca atrair eleitores de centro-direita acenando periodicamente para o radicalismo. Na centro-direita, Gilberto Kassab (PSD) segura Tarcísio com a mão direita e Lula com a esquerda, estabelecendo as alianças amplas que elegeram o maior número de prefeitos neste ano.

A direita brasileira está consolidada, e seu sucesso cria novos problemas. O maior reside na oposição entre moderados ou sistêmicos, identificados, de um lado, com Kassab e Eduardo Paes (PSD), e radicais antissistêmicos, como Bolsonaro e Pablo Marçal (PRTB).

A liderança de Bolsonaro, inelegível e sem expectativa de poder, está francamente decadente. Egoísta e inábil, o ex-presidente confia sempre e unicamente na sua camarilha de bajuladores e pretende submeter toda a direita ao seu objetivo particular de fugir da cadeia por meio de uma anistia que reverta sua inelegibilidade ou lhe permita lançar à Presidência um candidato subserviente.

Por essas e outras razões, com toda a sua ambiguidade, a própria direita moderada centrônica o percebe como um estorvo e não vê a hora de se livrar dele definitivamente. Prefere gente como Tarcísio e Ronaldo Caiado (União Brasil), este em rota de colisão com Bolsonaro.

A decadência de Bolsonaro se dá também no campo da direita radical. Aparentemente, a apologia da tortura, da ditadura e do golpe militar saíram de moda. Nesse contexto, a figura de Marçal emergiu como um populista neoliberal, camaleão que busca capitalizar o sentimento anti-establishment de gerações mais novas, mais preocupadas com enriquecimento rápido e que veem a religião como terapêutica para problemas pessoais e familiares.

Em termos eleitorais, Bolsonaro também se engajou pessoalmente em campanhas municipais, não só contra a esquerda, mas contra gente da própria direita, e saiu derrotado em quase todas. Muitas igrejas evangélicas também já desinvestem do radicalismo, pregando a despartidarização da religião ou mudando de lado.

Em outras palavras: a direita vai bem, Bolsonaro vai mal. A direita populista, a despeito de sua força eleitoral e histrionismo, continua longe de ameaçar os centrônicos. A eles interessa manter a inelegibilidade de Bolsonaro, fingindo ajudá-lo a escapar quando, na verdade, mais o aproximam do abismo. Mas também lhes interessa a inelegibilidade de Marçal.

Ao mesmo tempo, é improvável que a própria Justiça Eleitoral declare a inelegibilidade de Tarcísio pela declaração que fez a respeito de Guilherme Boulos (PSOL) no dia do segundo turno. Tarcísio pode dar suas “bolsonaradas” à vontade: o sistema o percebe como um dos seus.

Já a esquerda, que historicamente liderou o processo de redemocratização, enfrenta uma situação complexa. Com seu declínio e a falta de renovação de suas lideranças, o PT perdeu o protagonismo e depende cada vez mais da figura de Lula para se manter relevante.

Se Bolsonaro não consegue ser maior que a direita, Lula consegue ser maior que a esquerda. Ele se reinventou como piloto de uma frente democrática ou ampla e se comportou assim nas eleições, se afastando o tanto quanto possível da imagem de partidário.

Em outras palavras: a esquerda vai mal, mas Lula vai relativamente bem. Ao mesmo tempo que a esquerda se torna cada vez mais “lulodependente”, o presidente se vê obrigado a se mover cada vez mais para o centro para preservar e aumentar seu arco de alianças. Enquanto o governo vai se tornando cada vez menos de esquerda, a fissura entre os socialistas se aprofunda. Alguns acham que falta pragmatismo, outros acham ser preciso recuperar as bandeiras históricas do socialismo.

O retorno de Donald Trump à Presidência dos EUA, um reacionário golpista, condenado criminalmente e movido pelo desejo de vingança e de escapar da cadeia, põe a democracia americana em uma posição frágil. Sua influência direta sobre o Brasil, contudo, encontra limites importantes.

Primeiro, o Brasil não enfrenta uma crise de decadência geopolítica ou de imigração para catalisar o tipo de ressentimento e identidade nacionalista que Trump mobiliza.

Segundo, o sistema político brasileiro, embora tenha falhas, possui mecanismos institucionais que oferecem resistência a investidas autoritárias, como a independência do STF e um sistema constitucional mais recente e adaptado às necessidades de uma sociedade democrática.

O sistema bipartidário, que permite que todos os setores conservadores se aglutinem em torno de um radical como Trump, tampouco existe no Brasil. Bolsonaro não consegue ascendência nem sequer sobre Valdemar Costa Neto. Além disso, o centrão não possui interesse em uma ruptura autoritária que abale o equilíbrio de poder do qual depende para manter influência e controle sobre o governo.

Assim, apesar de uma possível pressão da internacional reacionária liderada por Trump e das tentativas de importar mais uma vez sua retórica e seu messianismo, nada indica que ele abalará o atual modelo de governabilidade de tendência conservadora, mas pragmática do Brasil. Bolsonaro, que tentou sempre emular Trump, está cada vez mais isolado.

Da mesma forma, nenhuma das alternativas conservadoras à Presidência se mostra disposta a romper o presidencialismo de coalizão fraco. Aparentemente, querem todas ser apenas um Michel Temer com votos. Nem a Justiça Eleitoral, nem o governo, nem o STF parecem dispostos a anistiar Bolsonaro para que ele volte a se candidatar.

Nesse quadro, o que Trump poderá efetivamente fazer de útil para Bolsonaro? Bolsonaro quer, claro, explorar em benefício de sua anistia a tese delirante de que Trump mandará fuzileiros navais prenderem Alexandre de Moraes.

Trump estará ocupado redesenhando as instituições e a sociedade norte-americana à sua feição. Está interessado em reduzir a presença militar dos EUA no mundo, não em aumentá-la. Se precisar de um bajulador sul-americano, já tem à mão um Milei para posar ao seu lado. Mais provável são tuítes destemperados apoiados por Elon Musk ou a concessão de asilo diplomático na calada da noite.

As eleições municipais de 2024, ao consolidar o controle do centrão e do conservadorismo pragmático sobre a política local, indicam que o Brasil está caminhando para uma nova configuração de poder. Esse processo de normalização do sistema, que agora gira em torno da centro-direita, sugere que a polarização política extrema dos últimos anos pode estar cedendo lugar para uma moderação pragmática.

No entanto, essa normalização enfrenta desafios, especialmente no que diz respeito à convivência com o STF, visto por muitos como o último bastião de um sistema democrático e liberal. Há arestas entre o tribunal e o centrão, decorrentes da tentativa de preservar o avanço feito pelo Congresso sobre o Orçamento.

Sabe-se que, no quadro de fraqueza imposta ao governo pelo “parlamentarismo bastardo”, o governo também conta com a maioria do STF como parceiro para restabelecer alguma paridade de armas. É o “judiciarismo de coalizão”, identificado principalmente com o ministro Flávio Dino.

Enfim, tudo indica uma tendência ao reequilíbrio sistêmico em torno do centro-direita e um afrouxamento da radicalização ideológica.

É cedo para discutir as eleições de 2026. Não se sabe se Lula passará o bastão a Fernando Haddad (PT) ou se será candidato à reeleição, opção que parece cada vez mais provável. Nem se sabe para que lado penderia a centro-direita de Kassab, apoiando um candidato como Tarcísio, mais seguro à reeleição em São Paulo, ou Caiado. A reversão da inelegibilidade de Bolsonaro é remota, e Marçal deve ser declarado inelegível pela falsidade assacada contra Boulos durante a campanha em São Paulo.

Do ponto de vista sistêmico, porém, a depender do resultado das eleições de 2026, saberemos se o sistema político absorveu definitivamente, como parece, as tensões subversivas da direita radical ou se sofrerá o ataque de um populista apoiado por cerca de um quarto do eleitorado e, talvez, pela internacional reacionária.