Eis a nova estrutura do poder global, por Ladislau Dowbor

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Após quatro décadas de disputa política, os homens mais ricos do mundo são mais poderosos que qualquer poder estatal no Ocidente. As lógicas que comandam vão reduzir o planeta a um inferno social e ambiental – até que alguém os detenha

Por Ladislau Dowbor – OUTRAS PALAVRAS – 14/03/2025

O Fórum Econômico Mundial em Davos, Suíça,
onde o grupo é conhecido por se reunir anualmente,
para limpar sua reputação
Peter S. Goodman – O Homem de Davos, 2024

Esses Estados neoliberais abriram
cada território nacional para o saque corporativo
transnacional de recursos, mão de obra e mercados
William I. Robinson, 2016

Nossas atividades econômicas diárias geralmente são bem simples. A farmácia, as lojas, o supermercado, o ônibus, eventualmente um Uber, o posto de gasolina, levar as crianças para a escola e assim por diante. Parece bem local. Mas olhar para cima, em vez de obedecer ao filme Don’t Look Up, é o mais necessário, se quisermos entender por que os preços sobem, por que há tanto plástico e por que as prateleiras dos supermercados estão cheias de comida ultraprocessada. Sabemos que tudo isso é ruim, e as lojas também sabem. Tudo isso deveria ser regulado – mas se espalha, cada vez mais. Na verdade, quem está no comando?

Finalmente, muitos pesquisadores ousaram olhar para cima e aos poucos trouxeram luz à bagunça que temos e às formas estamos começando a distinguir. Um bom ponto de partida é a crise financeira global de 2007, que levou o ETH, o principal instituto público de pesquisa suíço, a apresentar em 2011 o primeiro estudo abrangente sobre a rede de controle corporativo global. Os resultados foram impressionantes: 737 corporações controlam 80% do mundo corporativo global. Destas, 147 controlam 40% — e 70% delas são instituições financeiras. Este é o topo da pirâmide: basicamente, gestão de dinheiro.

O governador do Banco da Inglaterra comentou à época que o estudo mudava nossa visão sobre como a economia funciona. Os autores da pesquisa afirmavam no artigo: não havia como evitar a constatação de que estávamos diante do “clube dos ricos”. Igualmente impressionante é o fato, destacado por eles, de que este foi o primeiro estudo global sobre o poder corporativo, embora o processo de sua formação estivesse em andamento por décadas – basicamente desde que Margareth Thatcher e Ronald Reagan colocaram-se a serviço das corporações. Claramente, não havia interesse em jogar luz sobre o assunto. Mas agora temos uma imagem mais clara.

A corporação Vale é um bom exemplo. É uma multinacional e a maior produtora de minério de ferro e níquel do mundo. De acordo com a Wikipedia, “também produz manganês, ferroligas, cobre, bauxita, potássio, caulim e cobalto, operando atualmente nove usinas hidrelétricas e uma grande rede de ferrovias, navios e portos usados para transportar seus produtos.” O total de ativos em 2021 é de cerca de US$ 90 bilhões, pertencentes a Ma’aden, Previ, BlackRock e Mitsui & Co. Foi uma empresa estatal brasileira, e na época seus lucros permitiam ao Estado financiar distintos projetos de desenvolvimento, como ocorria também com a Petrobrás. Atualmente, a Vale basicamente exporta matérias-primas brasileiras, gerando dividendos para acionistas internacionais e seus parceiros brasileiros. É uma corporação enorme e diversificada que serve interesses dos que estão no topo da pirâmide.

Privatização também é desnacionalização e representa, em essência, um escoamento das riquezas minerais do país. Isso fragiliza a capacidade de investimento público em políticas sociais como educação, saúde, segurança e outros serviços públicos essenciais que representam os “salários indiretos” da população. Também afeta infraestruturas como energia, transporte, comunicações e o complexo de água/esgoto, essenciais para a população, mas também para a produtividade da economia como um todo. A privatização tornou-se um dreno: a população e as empresas locais pagam o preço. As corporações de gestão de ativos, no topo, enriquecem mais. Tudo isso aprofunda o abismo global de desigualdade.

O processo de decisão é essencial aqui. É o que podemos chamar de governança corporativa. A empresa está no Brasil e os materiais extraídos estão no território brasileiro, mas o processo de decisão migrou para alguns acionistas-chave como BlackRock, Vanguard, UBS, JP Morgan e afins. Eles são os chamados proprietários ausentes, e isso mudou o sistema geral de governança. A Vale e sua empresa dependente Samarco sabiam que precisavam consertar as barragens que continham subprodutos contaminados da mineração – mas os proprietários ausentes decidiram que aumentar os dividendos era mais importante. O resultado foi a tragédia de Mariana e Brumadinho, enormes rompimentos de barragens, perda de vidas e contaminação geral. Os acionistas da Vale – como a empresa saudita Ma’aden, a americana BlackRock e a japonesa Mitsui – tomavam as decisões, maximizando os dividendos no curto prazo.

Uma impressionante série de processos judiciais seguiu-se e continua até hoje; as empresas terão que pagar dezenas de bilhões, mas estão “negociando”. Lembra-se a tragédia da plataforma Deepwater Horizon, da British Petroleum, no Golfo do México? Agora temos os relatórios, e o próprio processo foi encontrado. A BP havia suspendido a manutenção para aumentar os dividendos. E, como os bônus dos gerentes estão ligados aos dividendos, o processo de decisão privilegia o fluxo do dinheiro para o topo, não os resultados na base. É simples assim. O crescimento fantástico dos salários dos CEOs — de 20 para 300 vezes o salário médio da empresa, em algumas décadas – está diretamente ligado à explosão dos lucros financeiros (rentas, na verdade, já que não se baseiam em contribuição produtiva) no nível de gestão de ativos no topo, e ao crescimento lento no nível dos que produzem.

É difícil para as pessoas imaginarem onde fica o topo ou com o que ele se parece. A edição de 2024 da Forbes Bilionários do Mundo mostra as 2.781 pessoas nesta condição, no mundo, sentados sobre uma riqueza acumulada de US$ 14 trilhões — mais da metade do PIB dos Estados Unidos. Sua riqueza cresceu 17% em 12 meses. Como o crescimento do PIB foi de cerca de 3%, estamos enfrentando uma extração líquida pela pequena elite feliz . O principal processo de acumulação de riqueza é apenas marginalmente baseado em investimento produtivo, sendo essencialmente derivado de investimento financeiro. Basta controlar uma pequena parte das ações, no universo geral de acionistas dispersos, para impor o controle das empresas por parte das principais corporações de gestão de ativos.

Em Titans of Capital (2024), Peter Phillips nos traz o panorama geral do sistema de governança global. “Os 0,05% mais ricos do mundo são 40 milhões de pessoas, incluindo mais de 36 milhões de milionários e 2.600 bilionários, que repassam seu capital excedente para empresas de gestão de investimentos como BlackRock e JP Morgan Chase. As dez maiores entre estas empresas controlavam juntas cerca de 50 trilhões de dólares em 2023. Essas empresas são gerenciadas pelas 117 pessoas identificadas abaixo. As dez maiores empresas de investimento de capital investem extensivamente umas nas outras. Os investimentos cruzados entre elas totalizaram US$ 320 bilhões em 2022. As práticas de investimento cruzado implicam um monitoramento próximo e recíproco das políticas de cada uma, e uma comunalidade de interesses mútuos na manutenção e crescimento do mercado. Os 117 Titãs decidem como e onde o capital global será investido.

As dez corporações gerenciaram US$ 26,1 trilhões em 2017 e US$ 49,5 trilhões em 2022, um crescimento de 89,4% em cinco anos. Isso nos dá não apenas a dimensão da concentração de poder econômico, mas também o nível de aceleração. Ao focar no que ele chama de titãs — os principais gestores desses 10 gigantes corporativos — Phillips traz uma nova abordagem, mas que converge de perto com a pesquisa suíça sobre a rede de controle corporativo mundial e a lista de bilionários da Forbes mencionadas acima. Temos, assim, o controle corporativo e os gigantes de riqueza resultantes, e agora passamos aos 117 diretores das 10 principais corporações. “Embora possa haver milhares de pessoas com riqueza pessoal igual ou maior do que a dos 117 titãs individuais, o que os torna significativos é sua responsabilidade pelas decisões de investimento de cerca de US$ 50 trilhões”.

“Sentados nos conselhos da mais alta concentração de riqueza de capital na rede global de investimentos, suas decisões aceleram a concentração de capital, impactam o meio ambiente, garantem lucros com guerras regionais e globais, minam as democracias e colocam em risco a estabilidade socioeconômica para todos.” Esses são os gestores do sistema global. Dois terços deles são americanos. “Eles nasceram nos Estados Unidos ou na Europa, foram criados em uma família rica e frequentaram uma universidade privada de elite… Eles levam a sério sua responsabilidade fiduciária de maximizar os retornos sobre os investimentos de capital sob seu controle.”

Isso tem pouco a ver com a competição de livre mercado. A maioria desses diretores gerencia simultaneamente interesses semelhantes, em corporações situadas entre as dez primeiras. Phillips apresenta suas posições em 133 corporações desse grupo. Assim, por exemplo, a BlackRock tem 17 diretores, com ativos sob gestão (AUM) de US$ 9,5 trilhões em 2022, e investimentos cruzados na Vanguard, StateStreet, CapitalGroup, FidelityInvestments e MorganStanley. Apenas como referência de proporções, enquanto em 2024 os diretores da BlackRock gerenciam mais de US$ 10 trilhões, o orçamento federal manejado pelo presidente dos Estados Unidos é de cerca de US$ 6 trilhões.

A maioria dessas 10 principais corporações de gestão de ativos investe e exerce controle em outro grupo de gigantes, as 7 empresas de tecnologia dos EUA5:

Os interesses convergentes de gestores de dinheiro e corporações de alta tecnologia alcançam cada um de nós por meio de diferentes áreas ou de intermediação, para compras ou na indústria da atenção — horas do nosso tempo diário. Também geram um novo sistema de controle pesado no topo, com poder extremamente concentrado, além de uma rede capilar global que atinge a todos nós. Eles controlam os três conselhos políticos de elite (Conselho de Relações Exteriores, Business Roundtable e Business Council), exercem uma influência-chave no Fórum Econômico Mundial, participam das principais instituições de inteligência e militares e das corporações produtoras de equipamentos bélicos; das 10 maiores corporações de petróleo e gás; das 6 maiores produtoras de carvão; das 5 maiores corporações de tabaco; das indústrias de plásticos, armas de fogo e jogos de azar; e do sistema prisional privado, em expansão. Tudo o que gera muito dinheiro.

Descendo a pirâmide, podemos ver como esses diretores da BlackRock determinarão decisões no mundo corporativo brasileiro:

A BlackRock está em muitas áreas da economia brasileira, mas também em muitos outros países. O denominador comum no processo de decisão é a maximização de curto prazo para os acionistas. Esse dinheiro virtual pode atingir, literalmente, todos os bolsos. A enorme dívida estudantil em todo o mundo afeta incontáveis estudantes, a dívida de saúde tornou-se um problema gigante – particularmente nos países onde os serviços de saúde foram privatizados – e todos nós contribuímos com parte de nossos gastos em todas as áreas, pagando através da Visa, por exemplo, pegando um Uber ou fazendo compras na Amazon. A desigualdade global tornou-se absurda, como documentado em muitos relatórios. Os dramas ambientais são igualmente desafiadores. Este estudo de Peter Phillips mostra os titãs desempenhando um papel fundamental em ambos os processos.

Larry Fink, bilionário e CEO da BlackRock, atua como curador do Fórum Econômico Mundial e continua se referindo a ESGs e responsabilidade corporativa. Jamie Dimon, presidente do Business Council e CEO da JP Morgan Chase, enfatiza que “esses princípios modernizados refletem o compromisso inabalável da comunidade empresarial em promover uma economia que sirva a todos os americanos.” De acordo com Phillips, “o Manifesto de Davos fornece aos Titãs uma justificativa moral para continuar seu caminho de desigualdade, enquanto se posicionam como sensíveis às preocupações com direitos humanos e meio ambiente.”

A concentração de poder econômico, social e político em nível planetário tem se acelerado nas últimas décadas, à medida que as tecnologias avançam e o poder gera mais poder, permitindo mais concentração. Estamos enfrentando uma enorme pirâmide de poder de geração de dinheiro, que devasta o mundo por meio da desigualdade e de catástrofes ambientais, e derrubam qualquer tentativa de regulamentação.

1Texto publicado originalmente em inglês, na revista digital Meer.

2 S. Vitali et al., A rede de controle corporativo global – ETH – 2011.

3 Forbes Brasil, ano XI, n. 118, 2024.

4 Peter Phillips – Titans of Capital: como a riqueza concentrada ameaça a humanidade – The Censored Press, Nova York, 2024.

5 US Big Stocks Surge – Visual Capitalist – O Valor Crescente dos Sete Magníficos

6João Peres – No Brasil, maior gestora de fundos do planeta tem investimento três vezes mais poluidor que na Europa e nos EUA – O Joio e o Trigo, 18 de maio de 2024.

Tradução: Antonio Martins

Keynes: sua ousadia e seus limites, por Eleutério F. S. Prado

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Novo livro tenta interpretar papel do economista mais influente nos “anos dourados” do pós-guerra. Ele rechaçava a idea do mercado ordenador da sociedade. Mas jamais almejou uma democracia radical, por não ir além do horizonte burguês

Eleutério F. S. Prado – OUTRAS MÍDIAS – 12/07/2021

De modo bem sintético, o keynesianismo talvez possa ser exposto por meio de uma analogia atrevida que emprega o circuito do capital em geral. Pelo menos está assim apresentado no livro de Geoff Mann,[i] No longo prazo estaremos todos mortos (2017): “Assim como a mercadoria foi posta por Marx, no circuito do capital em geral, isto é, em D – M – D’, como um termo médio na expansão do valor, a dialética keynesiana captura a dinâmica central do liberalismo iliberal pondo o Estado como um termo médio no circuito L – E – L’, o qual realmente vem existindo há dois séculos” (Mann, 2017, p. 386).

Ora, como a tese contida nessa analogia se afigura bem atilada mesmo após uma segunda vista, a nota que se segue visa explicá-la.

Note-se logo que Mann caracteriza John M. Keynes como um liberal iliberal, como alguém que atua como advogado da intervenção do Estado para modificar e preservar o liberalismo, isto é, a liberdade forçada e a prosperidade restritiva que o sistema econômico realmente existente faz existir. Mas isto, segundo ele, não é novo. Pois, o capitalismo não tem subsistido por força apenas dos mercados, mas, ao contrário, tem sido renovado e reconstituído pelo Estado e pela economia política intervencionista há muito tempo. Segundo esse autor, tem sido assim pelo menos desde o golpe de novembro de 1799, quando Napoleão Bonaparte tomou o poder em França, após a Revolução de 1789.

Keynes, portanto, foi mais um protagonista, mesmo se importantíssimo, num contínuo de atuação econômica e política estatal contra-arrestante que vem de bem longe. Tal como outros antes e depois dele, julgava de modo iliberal que as sementes de sua própria destruição estão sempre a germinar no capitalismo. E que elas não se desenvolvem até o ponto em que isto realmente acontece porque a atuação do Estado protege, salva e, assim, repõe constantemente o liberalismo.

Eis como Mann explica o keynesianismo: “A contribuição decisiva do keynesianismo para o liberalismo consistiu em legitimar a sua hegemonia, generalizando continua, pragmática e cientificamente uma visão do mundo na qual o bem-estar proporcionado pelo Estado e a prosperidade da sociedade civil se apresentam conceitualmente como inseparáveis. E esta é mesmo a própria definição de “civilização” [na ótica de Keynes]. Este inescapável liberalismo iliberal mostrou-se essencial para a sobrevivência mesmo do liberalismo clássico, bem mais dogmático; pois, lhe abasteceu com uma lógica política ansiosa, sem a qual ele não teria sobrevivido sem um uso constante da força bruta. A burguesia e a classe média são assim tanto efeito como causa da “civilização” keynesiana”. (Mann, 2017, p. 386).

Mas por que menciona que a lógica política do keynesianismo está atravessada pela ansiedade? Mann sugere que um misto de esperança e de medo está subjacente ao legado desse economista que não endossava o liberalismo clássico. E que esse composto contraditório se encontra implícito na declaração emblemática de que “no longo prazo estaremos todos mortos” – expressão esta que, por isso mesmo, foi escolhida como título do seu livro. Eis que o keynesianismo instala-se entre a promessa de sucesso econômico e a ameaça constante de que sobrevenham novos desastres, mesmo eventualmente grandes tais como aquele da Crise de 1929. Ele sabe que o sistema econômico apronta sempre novos acidentes e que, portanto, a vida dos seus gestores não é fácil.

Essa expressão sugere, ademais – como ressalta Mann –, que viver num certo estado de inquietação quanto ao devir é a sina inexorável de toda a “civilização” possível. Sob essa perspectiva, não haveria, também, qualquer caminho para construir outro futuro melhor além daquele que conserva o núcleo do capitalismo do melhor modo possível. Existiriam outras alternativas, mas todas elas, inevitavelmente, trariam de algum modo o espectro do autoritarismo e mesmo do barbarismo. Dito de outro modo, para Keynes o capitalismo seria o fim hegeliano da história.

Do ponto de vista econômico, o keynesianismo é aquilo que os economistas keynesianos fazem em termos teóricos e práticos ou aquilo que está referido a um conjunto bem definido de proposições sobre o funcionamento do sistema econômico, as quais estão presentes e demarcam a herança de Keynes, em particular na Teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro? Ainda que a primeira alternativa possa ser aceitável, é evidente que o legado de Keynes tem certas características bem definidas: a atividade do dinheiro, a instabilidade do investimento na manutenção da demanda efetiva, a incerteza sistêmica que envolve as decisões empresariais, o papel contra-arrestante do Estado etc.

Há, entretanto, um ponto fundamental. É central observar que a sua teoria econômica é estagnacionista: “quanto mais rica for a comunidade, mais tenderá a ampliar a lacuna entre a sua produção efetiva e a potencial; e, portanto, mais óbvios e maléficos os defeitos do sistema econômico” (Keynes, 1983, p. 33). Assim como verificar que essa sua visão crítica se alevanta de uma análise focada na circulação – e não na produção de mercadorias, tomando estas como formas de capital (Prado, 2016). Pois, como indicou Marx ironicamente, “a esfera da circulação ou do intercâmbio de mercadorias (…) é de fato um verdadeiro éden dos direitos naturais do homem (…) liberdade, igualdade, propriedade e Bentham” (Marx, 1983, p. 145).

É, pois, na esfera da sociabilidade do mercado que se encontram as reservas de Keynes ao capitalismo. A exploração, a alienação e o conflito entre as forças produtivas e as relações de produção não são problemas para ele. Diferentemente, ele enfatiza sobretudo que a própria natureza das interações mercantis dificulta a conciliação do interesse individual com o bem-estar coletivo. E, nesse sentido, como ressalta Mann, ele não compartilha o otimismo cínico de Bernard Mandeville exposto em sua Fábula das abelhas. Para ele a busca do auto interesse não teria sempre como consequência o bem-estar comum – mas um latente e permanente mal-estar. Ademais, a má repartição da renda e o desemprego decorrentes, em última análise, das interações movidas pelos interesses próprios, costumam alimentar uma raiva de fundo na sociedade mercantil que pode minar – julga ele – o seu potencial civilizador.

Segundo Geoff Mann, três características distinguem a longa tradição a qual pertence John M. Keynes. A primeira delas é a ausência de um humanismo universalista capaz de projetar um futuro civilizado para todos os seres humanos. Ao contrário, toda a sua preocupação civilizatória concerne apenas ao mundo euro-americano; eis que apenas o bem-estar desta fração da humanidade lhe interessa: “o keynesianismo” – diz – “tem sido quase sempre não apenas uma crítica elaborada no interior do capitalismo liberal dos estados-nações ‘industriais’ da Europa Ocidental e da América do Norte – mas tem sido sobretudo uma crítica que ignora todo o resto”. Nesse sentido, trata-se – como também diz – de uma crítica social moderadora que “espelha perfeitamente o mundo burguês, colonialista, masculino e branco no qual e para o qual fala” (Mann, 2017, p. 47).

A doutrina liberal do keynesianismo é geralmente denominada de “liberalismo embutido” para acentuar que prevê a realização da liberdade burguesa apenas no interior de uma ordem social que põe certa unidade, certa harmonia. Keynes, em particular, é crítico do que também se costuma chamar de “liberalismo desembutido”, o qual embasara a visão de mundo da economia política clássica e do imperialismo do livre-comércio. Em consequência de seu viés euro-americano, essa doutrina, tal como aquela que visa superar, é plenamente consistente com a aceitação ativa ou passiva da falta grosseira de liberalismo na periferia do sistema global. Mais do que isso, é consistente com a tese de que a ordem internacional pode e deve ser posta apenas pelo conjunto dos países ricos que se veem como mais desenvolvidos – mesmo se os países pobres e remediados a recusam.

A segunda característica é a ausência de adesão ao dogma liberal que manda priorizar sempre a liberdade individual frente a igualdade e a justiça social. Diferentemente, essa tradição acolhe costumeiramente um individualismo mitigado, tomando a liberdade da pessoa como condição necessária, mas não exclusiva em si mesma e, assim, não suficiente, para realizar uma sociedade civilizada. Se é um fim, é também um meio para negociar a realização de um estado social em que ela própria pode existir junto como o bem-estar coletivo. Segundo Mann, o projeto keynesiano contém no fundo uma ambição para criar algo novo, um lugar, portanto, que ainda não existe. Eis que acredita que “liberdade, solidariedade e segurança podem ser plenamente alcançadas numa ordem social racional”, isto é, numa ordem construída pela vontade e pela razão humana (Mann, 2017, p. 49).

Nesse sentido, é bem sabido que Keynes considerava o estado lamentável da sociedade de seu tempo como uma confusão colossal (colossal muddle), a qual desejava ver superada. É sabido também que ele próprio estava se esforçando nos anos 1930 para contribuir ao máximo para que isso ocorresse. A sua teoria geral nunca foi um empreendimento puramente acadêmico, ao contrário, pretendia intervir nos rumos da sociedade, isto é, da sociedade que lhe interessava.

A terceira característica do keynesianismo é um certo otimismo prático, uma crença forte na capacidade de resolver os problemas da sociedade por meio de intervenções públicas adequadas. É assim que Mann explica a falsa consciência que obra no interior dessa corrente de pensamento:

Diante das forças autodestrutivas produzidas pela própria sociedade civil, quer mostrar que tais tendências funestas não devem necessariamente levar a um fim trágico ou mesmo a uma ruptura temporária ou ainda a uma severa penitência. Ao contrário, sustenta que mediante paciente e pragmática supervisão, as instituições existentes, as ideias e as relações sociais têm o potencial de produzir, sem quebras, uma transformação radical da ordem social.

Se os conservadores arguem que é possível chegar ao ‘melhor de todos os mundos possíveis’ zelosamente protegendo o status quo, se os liberais falam que é possível alcançá-lo por meio do compromisso com um conjunto de ideais abstratos, se os radicais afirmam que isto é possível por meio de uma reconstrução pela raiz da vida social, os keynesianos dizem que um mundo radicalmente diferente se encontra pacificamente em potência na ordem social existente – na ordem euro-americana, liberal e capitalista, obviamente. (Mann, 1917, p. 50).

O keynesianismo é, portanto, autoconfiante. Propugna por um capitalismo sem capitalismo a ser alcançado por meio de uma revolução sem revolução, afirmando peremptoriamente que sabe muito bem como se chega lá. Em consequência, afirma-se na teoria – e mais ainda na prática-política – com certa arrogância. Quando é chamado por uma força política vencedora, passa a atuar para criar a boa e prospera ordem social que julga possível. Esta – crê – pode ser realizada historicamente mediante o constante emprego de uma inteligência prática de administradores competentes, ou seja, de um construtivismo social capaz de pôr em prática boas correções e reformas em resposta aos problemas que surgem.

É muito claro que Keynes, o pai fundador dessa corrente de pensamento prático-político em sua versão contemporânea, não acreditava nem na capacidade de autorregulação da sociedade nem no bom funcionamento espontâneo dos mercados. Ao contrário, ele pensava que a sociedade e os mercados, ao serem deixados por sua própria conta, tendiam à desordem, aos impasses e às crises, alongar-se-iam na criação de esgarçamentos e rupturas que sempre podem vir a crescer e a ameaçar a sua própria existência. Segundo Mann, com Hobbes, Keynes pressentia que sob o “contrato social” vigente escondia-se o “estado de natureza” e que, portanto, ele apenas se manteria incólume por meio da ação do Estado.

Ou seja, em resumo, L – E – L’. Ou ainda “não L – L”, ou seja, o keynesianismo é uma negação determinada, não radical, do liberalismo clássico.

O keynesianismo tem, pois, fé no Estado – e não mercado – como força constantemente restauradora da “civilização”. Acredita, pois, que apenas o Estado se constitui como potência capaz de integrar a sociedade, de “harmonizar o particular e o universal, material e ideologicamente, sem sacrificar nenhum deles” (Mann, 2017, p. 54). É ele e somente ele que pode fazer existir o “estado de bem-estar social”.

Entretanto, é preciso ver que essa “civilização” almejada pelo imaginário keynesiano não pode advir de uma “democracia popular” ou de um “democratismo populista” ainda no âmbito do capitalismo e muito menos poderia decorrer da democracia radical que, segundo Marx, seria posta historicamente, ao seu devido tempo, pelos “trabalhadores livremente organizados”. Ao contrário, o keynesianismo mantém certo desapreço pelo potencial civilizador da democracia, pois, para nele acreditar, é preciso confiar fortemente na capacidade da sociedade de resolver os seus próprios problemas. Ora, tal como os marxistas secretamente hobbesianos,[ii] ele nunca acreditou nisso. Nesse sentido, o keynesianismo – do mesmo modo que o neoliberalismo – quer resguardar do voto popular um espaço crucial para certas decisões tecnocráticas – aquele âmbito em que se tomam, por exemplo, as decisões que afetam os fundamentos da economia e da segurança nacional.

Em consequência, ambas essas correntes têm algo em comum.

É preciso reforçar, para finalizar, que também o neoliberalismo pode ser sinteticamente explicado pela lógica L – E – L’, com a diferença de que, para ele, a tarefa central do Estado não é realizar o “estado de bem-estar social”, mas, ao contrário, é impor a concorrência e a competição como norma de vida em todas as esferas da sociedade (Dardot e Laval, 2016).

Enquanto o keynesianismo propõe uma metamorfose plástica do liberalismo por meio da mediação do Estado, o neoliberalismo propõe uma metamorfose cínica. Confessa que a “justiça social” não convém à “ordem liberal”; postula que os humanos devem ser apenas sujeitos do dinheiro; e, para chegar aos seus objetivos, quer fracionar ao máximo a sociedade para reforçar o domínio da burguesia. A diferença em relação ao keynesianismo, pois, não é pequena – e pode mesmo ser considerada imensa –, mas ela está posta num fundo comum de identidade. Ora, é este último – o privilégio do Estado na mudança social – que atualmente precisa ser superado.

Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Complexidade e práxis (Plêiade).

Referências

Dardot, Pierre & Laval, Christian. A nova razão do mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

Keynes, John M. Teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Mann, Geoff. In the long run we are all dead: Keynesianism, political economy, and revolution. Londres: Verso, 2017.

Marx, Karl. O capital. Crítica da Economia Política. Livro I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Prado, Eleutério F. S. “Como Marx e Keynes demarcam o campo da macroeconomia”. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, nº 45, outubro-dezembro de 2016.

Notas

[i] Professor da área de Geografia da Universidade Simon Fraser, Canada.

[ii] A mediação do Estado, neste caso, não visa repor o liberalismo, mas instalar o “socialismo realmente existente”, isto é, L – E – SOREX.

 

Varoufakis: a Europa em rota de desastre.

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Diante da arrogância de Trump, governantes do Velho Continente agem para remilitarizá-lo. Cortarão gastos sociais e se tornarão ainda mais ilegítimos. A saída: a Europa de Paz, com investimento público e novos acordos com Moscou e Pequim

Yanis Varoufakis – OUTRAS PALAVRAS – 11/03/2025

Incorporar a Ucrânia à OTAN, após forçar a Rússia a recuar para suas fronteiras anteriores a 2014. Este tem sido o único objetivo estratégico que os líderes da União Europeia (UE) conseguem enxergar desde a invasão russa, há três anos. Infelizmente, bem antes da nova eleição de Donald Trump, esse objetivo entrou no reino da inviabilidade. Os sinais já estavam evidentes há algum tempo.

Primeiro, a economia de guerra imposta ao presidente russo Vladimir Putin mostrou-se uma dádiva para seu regime. Segundo, até mesmo o predecessor de Trump, Joe Biden, foi extremamente relutante em pressionar pela adesão da Ucrânia à OTAN, preferindo conduzir o país por um caminho incerto com promessas vagas. E, terceiro, havia nos Estados Unidos uma forte oposição, bipartidária, à ideia de tropas da OTAN lutarem ao lado dos ucranianos.

Em uma demonstração de hipocrisia impressionante, os muitos discursos de “Putin é o novo Hitler” nunca resultaram em um compromisso de lutar ao lado dos ucranianos até que o exército de Putin fosse derrotado. Em vez disso, um Ocidente covarde continuou enviando armas aos ucranianos exaustos, para que eles pudessem derrotar o “novo Hitler” em nome do mundo eurocêntrico – mas sozinhos.

Como era inevitável, o único objetivo estratégico dos líderes europeus virou pó. Esta realidade teria se tornado inegável, independentemente de quem tivesse vencido a presidência dos EUA em novembro passado. Trump apenas acelerou isso com uma brutalidade que reflete seu desprezo de longa data não apenas pelo presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, mas também pela própria UE. E assim, sem um Plano B, uma Europa enfraquecida por uma recessão econômica de duas décadas agora luta para responder à política ucraniana de Trump.

Após o Acordo de Munique em 1938, Winston Churchill proclamou que Neville Chamberlain, o então primeiro-ministro do Reino Unido, teve a chance de fazer a escolha entre a guerra e a desonra. “Você escolheu a desonra, e terá guerra”. Em sua angústia por não cometer o mesmo erro, os líderes da UE estão prestes a repeti-lo, ao contrário: sua abordagem de guerra até a vitória dará lugar à paz humilhante que Trump imporá com prazer a eles e ao governo de Zelensky, quando finalmente vierem a implorá-la.

Embora não haja dúvidas de que ou a Europa se ergue, ou se desintegra, a questão é: levantar-se como? O que realmente está errado com a Europa? O que mais lhe falta?

É difícil acreditar que os europeus não consigam reconhecer a resposta que os encara diretamente: à Europa está faltando um Tesouro, além do equivalente ao Departamento de Estado dos EUA e um Parlamento com o poder de decidir sobre como funciona seu governo (o Conselho Europeu). Pior ainda, ainda não há discussão sobre como preencher essas lacunas na arquitetura institucional da Europa.

A União Europeia sempre temeu o início de qualquer processo de paz na Ucrânia exatamente porque isso exporia a nudez do bloco. Quem representaria a Europa na mesa de negociações, mesmo que Trump a convidasse a participar? Mesmo que a Comissão Europeia e o Conselho Europeu pudessem usar uma varinha mágica para criar um grande exército da UE bem armado, quem teria a autoridade democrática para enviá-lo à batalha para matar e morrer?

Além disso, quem pode arrecadar impostos suficientes para garantir a prontidão permanente de combate do exército da UE? O sistema atual de tomada de decisões da UE significa que ninguém tem a legitimidade democrática para decidir nada.

Quando Ursula von der Leyen, a presidente da Comissão Europeia, anunciou recentemente sua nova iniciativa ReArm Europe, tristes memórias do Plano Juncker, do Green Deal e Plano de Recuperação voltaram à tona. As manchetes voltaram a mencionar grandes números, apenas para que fossem exposto, sob um exame mais detalhado, seu caráter de fumaça e espelhos. Alguém realmente espera que a França aumente seu já insustentável déficit das finanças públicas para financiar armamentos?

Na ausência das instituições para implementar o keynesianismo militar, a única maneira pela qual a Europa pode se rearmar hoje é desviar fundos de seu Estado social e sua infraestrutura física em ruínas. Isso enfraqueceria ainda mais um bloco que já colhe os frutos amargos do descontentamento popular e que está alimentando o crescimento de forças de extrema-direita em todo o continente. E para quê? Alguém acredita que Putin será dissuadido por uma Europa que pode ter alguns mísseis e canhões a mais, mas está se afastando cada vez mais da perspectiva da governança federal necessária para decidir questões de guerra e paz?

O ReArm Europa não fará nada para vencer a guerra pela Ucrânia. No entanto, quase certamente levará a UE a uma recessão econômica ainda mais profunda – a causa essencial da fraqueza do continente. Para manter os europeus seguros diante dos desafios duplos representados por Trump e Putin, a UE deve embarcar num processo multifacetado de Paz Agora.

Primeiro, a UE deve rejeitar categoricamente o esforço predatório de Trump para se apoderar dos recursos naturais da Ucrânia. Em seguida, após sugerir a possibilidade de relaxar as sanções e devolver US$ 300 bilhões em ativos congelados (que não podem ser usados simultaneamente como moeda de troca e para a reconstrução da Ucrânia), a UE deve iniciar negociações com o Kremlin. Elas teriam como objetivo oferecer a perspectiva de um arranjo estratégico abrangente, no qual a Ucrânia se torne o que a Áustria foi durante a Guerra Fria: soberana, armada e tão integrada à Europa Ocidental quanto seus cidadãos o desejem – porém neutra.

Terceiro, em vez de um impasse permanente entre dois grandes exércitos ao longo da fronteira a ser negociada na Ucrânia, a UE deve propor uma zona desmilitarizada de pelo menos 500 quilômetros de profundidade em cada lado, o direito de retorno de todas as pessoas deslocadas, um acordo para a governança das áreas disputadas e um Green New Deal para as áreas devastadas pela guerra – financiado conjuntamente pela UE e pela Rússia. Todas as questões pendentes devem ser tratadas em negociações realizadas sob a égide das Nações Unidas.
Por fim, a UE deve usar a perspectiva de relaxar as tarifas sobre os produtos chineses (especialmente tecnologia verde) e as sanções às exportações de tecnologia. O objetivo é abrir negociações com a China para um novo arranjo de segurança, que reduza as tensões e envolva os chineses no objetivo de salvaguardar a soberania da Ucrânia.

Se realmente queremos fortalecer a Europa, o primeiro passo não é se rearmar. É forjar a união democrática sem a qual a estagnação continuará a corroer as capacidades do continente, tornando-o incapaz de reconstruir o que restar da Ucrânia quando a guerra terminar.

Tradução: Antonio Martins

 

 

 

As molas mórbidas do capitalismo tardio,, por Ricardo Abramovay

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Nos EUA, 20% do PIB já se originam de doença ou vício: em opioides, tabaco, bets, ultraprocessados e dispositivos digitais. Mobilizar nas pessoas aquilo que elas não controlam é agora indispensável ao sistema. Há um pretexto: liberdade de escolha

Ricardo Abramovay – OUTRAS PALAVRAS – 12/03/2025

A rápida recuperação econômica dos Estados Unidos no pós-pandemia consagrou o lugar comum do “excepcionalismo norte-americano”, que Tej Parikh procura desmistificar, numa recente coluna no Financial Times. É verdade, escreve ele, que, a partir de 2022, o mercado de ações bombou e que as inovações tecnológicas ligadas ao avanço da inteligência artificial deram notável impulso ao setor privado. Mas isso não pode escamotear o fato de que 20% do PIB norte-americano vem de gastos com saúde, muito mais (mesmo em termos per capita) que em outros países da OCDE. 40% dos novos empregos privados criados desde 2023 estão em healthcare.

Na verdade, é mais apropriado falar em gastos com doença e não com saúde: nos EUA, morrem mais jovens e as doenças evitáveis ou passíveis de tratamento matam mais do que em outros países ricos. Dos dez setores econômicos norte-americanos com maior faturamento, em 2020, os três primeiros estão ligados a tratamentos médicos, seguros médicos, remédios e hospitais. A conclusão de Tej Parikh é peremptória: parcela significativa do boom econômico norte-americano é gerada pela doença. E o que propaga e pereniza a doença é o empenho meticuloso em difundir em larga escala o vício.

Cuidadosamente formulado, planejado e propagado, o vício é um vetor decisivo, talvez o mais importante, das doenças que marcam parcela significativa do crescimento econômico contemporâneo e não só nos EUA. Que se trate dos opioides, do tabaco, dos alimentos ultraprocessados, das famigeradas bets ou dos dispositivos digitais em que nossa interação social está compulsivamente mergulhada, conquistar a adesão das pessoas por meio de fatores sobre os quais elas não exercem qualquer controle se tornou um componente decisivo do próprio crescimento econômico contemporâneo. O pior é que esta perda de autonomia, esta interferência corporativa organizada na decisão pessoal é apresentada e cada vez mais socialmente legitimada como seu contrário, ou seja, como expressão de liberdade de escolha. Tudo se passa como se a vontade de cada um de nós tivesse força suficiente para se contrapor ao trabalho de milhares de profissionais especializados em moldar e determinar as preferências humanas. Esta ingerência não seria tão grave se ela não tivesse consequências tão sérias sobre a saúde pública e, quando se trata dos dispositivos digitais, sobre a saúde da própria democracia.

Hoje há uma farta documentação e um conjunto robusto de decisões jurídicas baseadas na evidência de que a indústria do tabaco, por exemplo, sempre soube que seu produto era não apenas tóxico, mas, sobretudo viciante e daí derivava, claro, seu benefício econômico. Mas tanto em sua publicidade, como nos tribunais, os dados vinculando o cigarro a graves enfermidades eram sistematicamente negados por cientistas contratados para chegar aos resultados convenientes à indústria. É verdade que campanhas (das quais o Brasil está entre os pioneiros) antitabagistas vêm provocando a diminuição da quantidade de fumantes em várias partes do mundo. Mas, como mostra um relatório recente da Organização Mundial da Saúde, a pressão da indústria sobre diferentes governos (na tentativa de atenuar as restrições pelo atrativo da arrecadação fiscal) segue firme.

Um dos mais emblemáticos sinais da relevância do vício planejado como base do bom desempenho corporativo é apresentado nas fascinantes Royal Institutions Christmas Lectures pelo médico Chris van Tulleken. Para se ter uma ideia de sua importância, trata-se de um evento criado por ninguém menos que Michael Faraday, em 1825, e que recebe anualmente, desde então, cientistas de grande prestígio e reconhecimento internacionais. Chris van Tulleken montou um evento espetacular onde convidou profissionais que trabalharam na indústria de ultraprocessados e que revelam as técnicas pelas quais estes, que mal podem ser chamados de alimentos, tornam-se irresistíveis e, sobretudo viciantes. E tanto nestas conferências como em seu livro lançado há alguns meses pela Editora Elefante (Gente Ultraprocessada), ele mostra que alguns dos gigantes corporativos do tabaco se tornaram grandes acionistas e atores decisivos na indústria de ultraprocessados. No tabaco e nos ultraprocessados, quando confrontados com os prejuízos à saúde pública trazidos pelo consumo de seus produtos, as empresas respondem cultivando o mito de que quem decide é o indivíduo e que interferir em sua liberdade de escolha abre caminho ao autoritarismo.

A responsabilidade da indústria farmacêutica na crise dos opioides, que já matou mais de 500 mil pessoas nos EUA é exposta nos 1,3 milhão de documentos dos “Opioid Industry Documents Archive”, que demonstram todo um mecanismo de cooptação de médicos para receitarem uma droga cuja natureza viciante e perigosa era conhecida, mas não divulgada. Aí também, o minucioso trabalho junto aos médicos é escamoteado e o vício aparece como produto de fraqueza individual.

Qualquer adulto com filhos sabe o que são vícios digitais e é impossível não reconhecer nossa quase completa impotência para combatê-los. A inteligência artificial e a computação quântica aumentam fantasticamente o poder daquilo que B. J. Fogg da Universidade de Berkeley chama de captologia (em Persuasive Technology: Using Computers to Change What we Think and Do, Stanford University Press), a ciência que estuda a capacidade dos dispositivos digitais em magnetizar a atenção dos indivíduos, sobretudo pelo espetacular, pelo grotesco, pela vulgaridade, muito mais que pelo afeto e pela inteligência.

O vício como força propulsora de parte tão expressiva do crescimento contemporâneo não é incluído nas atuais negociações globais em torno do clima, da biodiversidade ou da desertificação e não está incluído na pauta do G20. Mas se os segmentos pensantes do mundo corporativo não conseguirem, junto com a sociedade civil e os governos democráticos, pautar esta discussão, a distância entre o que estamos vivendo e os valores fundamentais do desenvolvimento sustentável só vai aumentar.

 

Desaceleração econômica

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A economia internacional vem passando por grandes momentos de incertezas e instabilidades, geradas pelas movimentações protecionistas adotadas pelo governo norte-americano, com impactos generalizados para todas as economias nacionais e preocupações para os setores produtivos, inibindo investimentos, postergando parcerias econômicas e movimentações estratégicas.

Nos últimos dias, percebemos preocupações crescentes dos analistas econômicos e financeiros sobre uma possível recessão nos Estados Unidos, com repercussão negativa para toda a economia internacional, aumentando a volatilidade do comércio internacional, impulsionadas pelas políticas protecionistas adotadas pela nova administração norte-americana, que buscam a reestruturação dos setores industriais e produtivos, mas que podem colher resultados adversos.

A adoção sistemática de políticas protecionistas pela administração dos Estados Unidos tende a gerar graves constrangimentos para a sociedade norte-americana, aumentando os preços internos, com incremento sistemático da inflação, exigindo alterações constantes das estratégias produtivas dos setores econômicos, gerando incertezas e instabilidades que tendem a prejudicar as relações comerciais entre as nações, gerando inimizades e ressentimentos crescentes.

Recentemente o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou dados do produto interno bruto (PIB) do ano de 2024, trazendo informações interessantes sobre o comportamento da economia nacional, dados positivos, números robustos e algumas reflexões preocupantes. Segundo o IBGE, a economia brasileira cresceu no ano passado 3,4%, impulsionada pelo consumo das famílias que chegaram a um incremento de 4,8%, um número bastante auspicioso para o governo, mas percebemos uma nítida desaceleração econômica no último trimestre, motivada pelo aumento dos preços dos alimentos, pelas incertezas externas e pelo aumento das taxas de juros internos, tudo isso contribuiu ativamente para o crescimento das incertezas e as preocupações sobre os investimentos produtivos.

O desenvolvimento econômico é imprescindível para todas as nações, servindo como instrumento de melhorias estruturais para toda a população, reduzindo a pobreza, a exploração e a miséria nacionais, aumentando as oportunidades de ascensão social, melhorando e consolidando políticas públicas, investindo fortemente em capital humano, canalizando sólidos recursos no desenvolvimento científico e tecnológico, mas para isso, é fundamental a construção de um consenso interno dos setores econômico, político e social, evitando boicotes e impedindo a limitação das capacidades internas de desenvolvimento nacional.

Percebemos o crescimento dos desajustes econômicos e financeiros globais em todas as regiões do mundo, a recessão econômica com graves constrangimentos sociais e políticos, tendem a pulular em muitas nações, levando os governos a adotarem políticas intervencionistas, além de medidas tarifárias para estimularem seus setores produtivos, tudo isso contribuiu para o crescimento da insegurança interna, aumentando os medos e a desesperança, um espaço crescente para a adoção de políticas populistas que flertam cotidianamente com os ideários da extrema-direita, como estamos vislumbrando nos países europeus e em muitas regiões do planeta.

No mundo globalizado, caracterizado pela interdependência entre nações, se faz necessário, além das integrações econômica e produtiva, viabilizar a integração política e a consistência diplomática, sem estas últimas, e num cenário marcado por uma nação que quer impor seus interesses econômicos e político para a comunidade internacional, o mundo caminha a passo largos para um conflito militar com consequências impossíveis de mensurar.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Podridão cerebral, por José Costa Júnior

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José Costa Júnior – A Terra é Redonda – 10/03/2025

Liberdade cognitiva em tempos de economia da atenção

Conforme amplamente noticiado, a Oxford University Press, editora do prestigiado Oxford English Dictionary, escolheu “brain rot” (“podridão cerebral”) como a palavra do ano de 2024. O termo faz referência aos efeitos da sobrecarga digital de conteúdos superficiais e triviais em nossos cérebros. A exposição constante a vídeos curtos, memes, recortes e reações, entre outros conteúdos nas redes de interação social digital, ocorre em paralelo ao aumento nas dificuldades de concentração, atenção e memorização – o que seria um indício da “podridão” descrita.

O termo reflete preocupações e evidências recolhidas por muitos pesquisadores e usuários. O processo de escolha da palavra contou com pesquisas no banco de dados da editora e uma pesquisa online. Segundo a instituição, a busca pelo termo cresceu 230% ao longo de 2024, que demonstra alguma preocupação por parte de quem está conectado. No entanto, a discussão também envolve temas e conceitos mais profundos, que demandam alguma análise no âmbito da infoética – uma área de estudos que aborda a simbiose humanidade-tecnologia, seus pressupostos e consequências.

Primeiramente, o vocabulário que envolve a conexão intensa nas redes é cada vez mais vasto: influenciadores, seguidores, inteligência artificial, viralização, aplicativo, gestão algorítimica, sugestões, curtidas, reações, notificações, encaminhamentos, mentorias, tendências, entre outras expressões comuns na atualidade. Além de serem termos ligados à experiência digital, esse amplo léxico está ligado também aos impactos esperados em nossas subjetividades, atenção e pensamentos.

O que quer um influenciador senão influenciar nossas escolhas e decisões? Uma notificação não busca chamar a nossa atenção para uma mensagem ou dado que nos chega por um aplicativo? Seguir as tendências (ou trends) não nos incita a ter determinada ação ou comportamento? É possível continuar com essa exposição de questões que exemplificam a situação, mas o ponto básico é que, nas atuais circunstâncias das nossas interações com tecnologias socialmente disruptivas, nossos pensamentos, subjetividades e atenção são a todo momento desafiados por tais meios, com o objetivo de angariar recursos e impacto em nossos corações e mentes.

Essa mobilização é fruto da ação do conglomerado de corporações que atuam no nosso tempo de economia da atenção. As chamadas Big Techs desenvolvem suas tecnologias persuasivas, cuja principal finalidade é desenvolver modos de captura da atenção e produzir estímulos à nossa subjetividade, com o simples objetivo de lucrar. Enquanto no distante século XX as estratégias da propaganda também tinham tais elementos como matéria prima, as tecnologias persuasivas do mundo digital no tempo da economia da atenção operam com mais intensidade e com meios constantemente disponíveis.

Temos assim um cenário de “capitalismo de vigilância” (Zuboff, 2019), no qual o acompanhamento constante de nossas trilhas digitais garante rendimentos à corporações e governos, a partir de um “colonialismo de dados” (Couldry, 2019), no qual nossas informações, dados e subjetividades são constantemente explorados sem que tenhamos muito controle sobre isso. Outra descrição vai literalmente mais fundo e aponta esse cenário como uma forma de “capitalismo límbico” (Courtwright, 2019), no qual nossas reações, emoções e sensações mais profundas também são estimuladas, captadas e quantificadas a partir de nossas experiências no mundo digital.

Porém, uma tensão ronda esse contexto. Algumas das pressuposições da Modernidade que deram forma ao mundo em que vivemos encontram desafios em tais cenários e descrições. O sujeito moderno, do qual se esperava autonomia, liberdade, soberania e razão para deliberar livremente sobre o mundo à sua volta, passa a ter a sua subjetividade constantemente impactada – juntamente com sua autonomia, liberdade e soberania. Se o que vejo, o que sinto, o que desejo e o que escolho são fruto de influências exteriores, quem pensa por mim? Isso traz consequências sociais, políticas e econômicas, assim como para a construção das nossas visões de mundo.

O rico vocabulário descrito no início evidencia o caso. Alguns desafios já haviam sido colocados às alegadas características do sujeito moderno nas teorizações sobre a humanidade no século XX, mas nas décadas iniciais do século XXI o desafio parece ser maior. Com tantas possibilidades de influência a partir da ampliação do alcance de tecnologias persuasivas e seu impacto sobre nossa subjetividade, atenção e racionalidade, é sempre possível perguntar como são formadas nossas concepções e conclusões sobre o mundo. E também sobre o quanto nossa atenção é livre em circunstâncias nas quais os estímulos são constantes e quase irresistíveis.

O que comumente chamamos de atenção é a capacidade de focar numa parte do fluxo de informações provenientes de nossos sentidos. Focamos nosso olhar em uma pequena parte do mundo ao nosso redor, enquanto o resto do campo sensorial desempenha um papel secundário. Num pequeno artigo do começo do século XXI sobre filosofia da mente, intitulado “Zumbis não podem se concentrar”, a filósofa britânica Mary Midgley (1918-2018) defendeu que grande parte da nossa atividade ao longo do tempo é “drasticamente moldada pelo esforço e, portanto, pela atenção”.

Esse esforço cognitivo que envolve a atenção é parte do nosso cotidiano nas circunstâncias mais comuns. Ir ao banheiro e levantar adequadamente a tampa do vaso sanitário, escolher a chave certa no chaveiro para abrir a porta, avaliar as condições climáticas antes de sair de casa são exemplos de atividades que envolvem algum esforço cognitivo e direcionamento de atenção.

Caso não tenhamos a atenção adequada, podemos falhar. Não é incomum que distrações, situações de multitarefas, impactos na atenção e outros elementos até inconscientes possam nos impactar, mas, considerando a análise de Midgley, fica claro que “a atenção consciente é um fator causal no mundo, tão bem reconhecido quanto o envenenamento, a chuva ou o sarampo”. É “um fenômeno natural comum”, que dialoga constatemente com o nossos processos cognitivos, formando nossas visões de mundo e deliberações nas muitas circunstâncias das nossas vidas.

Porém, num mundo com tantos estímulos e possibilidades de distração, nossa capacidade de prestar atenção pode diminuir ou ser direcionada, impactando pensamentos e concepções da realidade. A centralidade das tecnologias persuasivas no âmbito das disputas políticas contemporâneas é um exemplo desse estado de coisas. Debates intensos e acalorados, polêmicas e ataques constantes, recortes de vídeos públicados nas redes sociais capturam a atenção e mobilizam emoções variadas, entre outras abordagens. Tais conteúdos são promovidos no contexto da economia da atenção, angariando resultados para quem os promove.

Temos assim reações indignadas ou de aprovação, compartilhamentos por apoio ou revolta e comentários e viralizações que também são mostras de como as tecnologias persuasivas envolvem acabam por mobilizar nossa atenção, promovendo cada vez mais “engajamento” por parte dos “usuários”. E conforme apontando por Mary Midgley, nossa atenção é um elemento decisivo naquilo que nos compõem, um fator causal no mundo que produz ações e reações, impactando o que somos e o que pensamos.

Todos esses elementos estão diretamente ligados à nossa cognição. Impactada por estímulos diversos e potentes tecnologias disruptivas e persuasivas, passa a ser relevante nos preocuparmos com os impactos na nossa liberdade cognitiva. Essa liberdade dos processos de cognição, atenção e pensamento pode agora ser impactada por meios maquínicos que atravessam nossas subjetividades e que nos são opacos. De acordo com a análise da pesquisadora americana Nita Farahany, nunca foi tão importante considerarmos a liberdade cognitiva, uma vez que as grandes corporações possuem recursos tecnológicos de influência e impacto em nossas consciências jamais observados.

Em sua concepção, qualquer um que valorize sua capacidade de ter pensamentos e reflexões privadas num “mundo interior”, sem grande interferência de ritmos tecnológicos, deveria se preocupar com a liberdade cognitiva. Não se trata de criar proibições ligadas às práticas digitais, mas encontramos regulações, controles e debates sobre os limites das tecnologias que envolvem nossa cognição. No seu livro de 2023, intitulado The Battle for Your, Farahany argumenta que as intrusões nas nossas mentes através da tecnologia já são uma realidade e precisamos estabelecer proteções e direitos sobre o tema.

Cenários distópicos como a leitura de mentes e estímulos à pensamentos e ações ainda são distantes, mas a ampla pesquisa neurocientífica e psicológica desenvolvida para as Big Techs já dá resultados – nos mais diversos âmbitos da política, da economia, da cultura, etc. As mediações algorítimicas da experiência, que garantem o funcionamento da economia da atenção configuram cenários preocupantes. As atuais sociedades polarizadas e o grande potencial para a desinformação são reflexos dessa situação.

Nesse sentido, a liberdade cognitiva é a liberdade de ter algum controle soberano sobre os próprios pensamentos e consciência, um direito a autodeterminação sobre nossos cérebros e nossas experiências mentais. Assim, qualquer manipulação externa ou interna seria passível de discussão e questionamento. Nessa “batalha por nossos cérebros”, Farahany reconhece o potencial das grandes corporações, que exploram o que temos de mais humano, para evitar cenários ainda mais críticos. Em tempos de “podridão cerebral”, é importante que que lutemos essa batalha. Afinal, apenas zumbis não são capazes de prestar atenção na sua própria condição, conforme nos avisou a atenta Mary Midgley.

José Costa Júnior é professor de filosofia e ciências sociais no IFMG –Campus Ponte Nova.

Referências

COULDRY, Nick; MEJIAS, Ulises. The costs of connection: How data are colonizing human life and appropriating it for capitalism. 2019.

COURTWRIGHT, David. The age of addiction: How bad habits became big business. Harvard University Press, 2019.

FARAHANY, Nita. The battle for your brain: Defending the right to think freely in the age of neurotechnology. Nova York: St. Martin’s Press, 2023.

MIDGLEY, Mary. “Zombies Can’t Concentrate” In: Philosophy Now. Número 44, Fevereiro de 2004.

ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power. Londres: Profile Books, 2019.

 

Donald Trump – tempos dramáticos e trágicos, por Leonardo Boff

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Leonardo Boff – A Terra é Redonda – 12/03/2025

O que Donald Trump quer conservar com unhas e dentes é o seu país como o único poder a conduzir os destinos do planeta

Se tomarmos a sério o projeto imperial de Donald Trump sob o lema “America First” (em subentendido só a América) não é impensável que tempos dramáticos e até trágicos possam ocorrer. Seu propósito básico é usar o poder para todos os âmbitos é da vida. Compreendamos bem o tipo de poder. Não como expressão da cidadania, mas o poder como dominação no sentido que os pais fundadores da modernidade, Galileo Galilei, René Descartes, Isaac Newton, especialmente Francis Bacon conferiram a poder: é a vontade de potência/dominação sobre a natureza, sobre os povos (colonização) sobre as classes, sobre a matéria até o último topquark, sobre a vida até seu último gene. Esse projeto formulado na Europa, com o qual dominaram o mundo, foi radicalizado por Donald Trump. E talvez tenha chegado também ao seu fim.

Percebendo o império norte-americano em ocaso, assume o poder como dominação na sua maior radicalidade. Passa por cima da ONU, da OMC, OMS, de acordos internacionais, não respeite lei nenhuma, rompe com os próprios amigos como os europeus. Tenta o diálogo, senão faz funcionar uso da força e da rendição do adversário. Nesse afã de poder bem no estilo de Hobbes, grande teórico do poder, se propõe agregar aos EUA o Canadá, se apropriar da Groelândia e ocupar o canal do Panamá.

Talvez a dimensão mais desumana e cruel seja a expulsão de milhões imigrantes indocumentados, dividindo famílias, negando cidadania americana a nascidos nos EUA, de filhos de imigrantes. Sua arrogância de fazer “a América Novamente Grande” (NAGA) o levou a impor altas tarifas a produtos importados e ameaçando com pesadas penas econômicas e políticas aos países que se negarem a atender a suas pretensões. Deixa claro que os EUA é o único país cujos interesses são globais e se dá o direito de intervir para fazer a “América Grande Novamente”.

Todos os acordos mundiais acertados para minorar o efeito estufa foram por ele abandonados e considerados ridículos como o Acordo de Paris de 2015. Incentiva exploração de energias fósseis e de carvão, principais causadores dos bilhões de toneladas de CO2 e metano lançados anualmente na atmosfera. É um negacionista radical, negando a ciência, fazendo cortes profundos à pesquisa notoriamente avançada nos EUA. Levar a efeito tal propósito que vai contra a corrente mundial preocupada com o aquecimento global, com os efeitos extremos que revelam que a Terra está mudando e até já mudou, faz-se um inimigo da vida e da Humanidade. Possui uma mente assassina e ecocida, obcecado pelo poder absoluto, submetendo todo o planeta como seu fosse o seu quintal ampliado do qual pode dispor como quiser.

Logicamente a todo poder absoluto se opõe outro poder que lhe resiste e rejeita a estratégia de dominação mundial. O que Donald Trump quer conservar com unhas e dentes é o seu país como o único poder a conduzir os destinos do planeta. Opõe-se radicalmente a mundo multipolar, pois potências poderosas como a China e a Rússia e eventualmente os BRICs estão na mesma arena política, disputando poder no cenário mundial.

Como Noam Chomsky e outros analistas da geopolítica mundial têm observado depois de uma guerra econômica segue uma guerra militar. Observa ainda Noam Chomski que há suficientes loucos no Pentágono que arrisquem uma guerra letal segundo a fórmula 1+1=0, vale dizer, um destrói totalmente o outro e leva junto toda a humanidade. Se isso ocorrer, será o fim de grande parte da humanidade, o céu ficará branco pelas partículas, a fotossíntese das plantas e florestas será praticamente impossível, haverá perda das safras, grande fome, doenças derivadas do terror nuclear e morte de milhões. Foi o sonho prognóstico de C. G. Jung antes de morrer.

Tal tragédia não é impossível porque os dados estão aí e nossa cultura insana que instaurou a ditadura da razão analítica sem qualquer consciência e compaixão pelas consequências daí derivadas; criou o princípio de autodestruição; salvaguardados todos os benefícios que essa razão, inegavelmente trouxe para a vida humana. Mas tudo isso pode perder-se.

Outros analistas aventam a possibilidade que não haverá guerras letais mas total reedição da potência que chegou atrás do desenvolvimento da Inteligência artificial autônoma, capaz de controlar cada pessoa, toda a estrutura energética e toda a vida de um país. Por isso há uma desesperada corrida pela Inteligência artificial tipo Deep Seek, pois quem chega primeiro paralisaria o país do concorrente e tornaria totalmente ineficaz seu aparato bélico. Seria a abominação da desolação, em termos bíblicos, um drama atrás do outro e, quem sabe, o fim trágico do experimento humano. Depois que assassinamos o Filho de Deus quando se encarnou em nossa existência, nada mais trágico poderia acontecer, segundo a crença crista.

Nos perguntamos, por que não temos desenvolvido a “emoção radical”, já que esta é a milhões de anos mis ancestral e mais fundamental em nós, que a Inteligência? Esta jamais seria negada por ser uma característica essencial de nossa existência, mas com a incorporação da emoção artificial que prefiro chamar de radical, por ser a raiz de nosso ser profundo e ser onde razão continuamente molha suas raízes, outra seria a atual situação humana: imperaria mais amor que ódio, mais cooperação que competição, mais cuidado que devastação da natureza.

A vida passou por imensas crises e sempre sobreviveu, não será agora que vai desaparecer miseravelmente pela nossa falta de cuidado e de justa medida.

Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Cuidar da Casa comum: pistas para protelar o fim do mundo (Vozes);

 

O que está por trás da mudança dramática nos mercados globais, por Mohamed El-Erian

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Mudança repentina nas expectativas de crescimento dos investidores para as três maiores economias desestabiliza operações consensuais

Mohamed El-Erian, Presidente do Queens’ College, em Cambridge, e conselheiro da Allianz e da Gramercy

Financial Times/ Folha de São Paulo, 12/03/2025

Os mercados financeiros testemunharam uma mudança drástica que está revertendo com operações que eram consenso e que dominaram até o início de fevereiro deste ano.

Quedas nas ações dos EUA e seu desempenho inferior em relação a outros países refletem uma reviravolta notável nas opiniões dos investidores sobre as perspectivas econômicas para a América e a Europa —e, em menor grau, a China.

O que é menos claro é se a mistura resultante de tudo isso é favorável ou desfavorável a longo prazo. E isso importa muito para o bem-estar global, a inflação e a estabilidade financeira.

Três fatores principais sustentam a recente reviravolta de 180 graus nas opiniões consensuais sobre ações, títulos e moedas: 1) crescentes preocupações com a economia dos EUA; 2) um potencial “momento Sputnik” na Europa impulsionado por uma possível mudança na Alemanha em relação à política fiscal e ao financiamento europeu; 3) e indícios de uma resposta política mais determinada da China.

A crença no excepcionalismo americano foi erodida, com não apenas as ações dos EUA caindo, mas também os rendimentos dos títulos caindo devido a preocupações com o crescimento e o enfraquecimento do dólar.

Tendo lidado com um cheiro de estagflação, os mercados estão sofrendo um bom e velho susto de crescimento devido a uma significativa volatilidade da política dos EUA. As incertezas associadas às tarifas intermitentes sobre os principais parceiros comerciais e aliados dos EUA, como Canadá e México, foram agravadas pela preocupação com o impacto nos empregos e na renda dos cortes contínuos no setor público.

Funcionários do governo dos EUA argumentam que essas “perturbações” são pequenas e devem ser vistas como parte de uma jornada acidentada para um destino muito melhor —um futuro de comércio internacional mais justo, grande eficiência do setor público, redução da dominância fiscal e o desencadeamento de um empreendedorismo e atividade do setor privado mais poderosos.

De fato, segundo eles, é apenas uma questão de tempo até que a própria jornada melhore devido a preços de energia mais baixos, cortes de impostos e desregulamentação significativa.

A preocupação é que a jornada acidentada possa levar a um destino diferente, menos favorável. A recente imprevisibilidade dos EUA corre o risco de roubar dos EUA uma de suas importantes e diferenciadoras “vantagens” —a confiança de longo prazo dos investidores na estrutura e na tomada de decisões políticas.

A política dos EUA também é responsável pela mudança repentina de visão dos mercados sobre a Europa, que agora vê o potencial, finalmente, para uma mudança dramática na política econômica.

Abalada pelo tratamento dos EUA às alianças de defesa militar e pela mudança  em sua política para a Ucrânia, a Alemanha está subitamente contemplando uma flexibilização de suas restrições fiscais de longa data. Isso poderia se traduzir em aumento dos gastos com defesa, maiores investimentos em infraestrutura e maior financiamento regional.

Enquanto isso, a China está sinalizando uma mudança em direção a uma mistura mais adiante de estímulos a reformas. Os mercados veem isso como essencial para contrariar a crescente ameaça de “japonificação” da economia chinesa, que foi novamente destacada nos dados de domingo, com os preços ao consumidor e ao produtor caindo em fevereiro.

No papel, essa confluência de fatores apresenta dois cenários possíveis para a convergência entre o que antes era o bom (EUA), o ruim (China) e o feio (Europa) da economia global. A visão otimista antecipa uma convergência ascendente do crescimento global, com Europa e China acelerando para se aproximar do desempenho até então excepcional da economia dos EUA.

Isso resultaria em um nível geral mais alto de crescimento global, já que uma desaceleração de curto prazo dos EUA seria mais do que compensada pela recuperação na China e na Alemanha.

A perspectiva mais pessimista seria uma convergência descendente caracterizada por estagflação. Este cenário seria devido a atrasos na implementação da política da Alemanha; a contínua luta da China para equilibrar estímulos e reformas; e uma economia dos EUA desacelerando em direção à velocidade de estagnação em meio a baixa confiança do consumidor, insegurança no emprego, uma abordagem corporativa de esperar para ver sobre investimentos e as pressões estagflacionárias das tarifas.

Embora ainda não esteja claro qual caminho a economia global seguirá, os níveis absolutos e relativos de preços nos mercados sugerem expectativas que estão ligeiramente mais inclinadas para uma convergência favorável a longo prazo.

Isso implica uma crença na capacidade da Europa de superar sua inércia fiscal, na capacidade da China de navegar em seus desafios políticos e na resiliência da economia dos EUA, apesar de suas atuais perturbações.

A aposta é que a economia global provavelmente escapará das garras da estagflação e alcançará uma trajetória de crescimento mais equilibrada e sustentável. Devemos todos esperar que isso esteja certo.

 

 

 

 

Educação, Estado e poder, por Vinício Carrilho Martinez

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Vinício Carrilho Martinez ´ Terra é Redonda – 10/03/2025

Desde O Príncipe de Nicolau Maquiavel, a política sempre vem associada a um sentido de força, imposição – na falta de convicção e de convencimento

Como fazer Educação para o poder (popular), se a política perdeu a graça? Há outra palavra que rima com essa, mas não vou dizer. Em todo caso, fica essa pergunta e uma certeza: o político sem graça, que perdeu a simpatia, só a irá encontrar nos amigos de verdade, junto ao povo pobre, negro e oprimido.

Dentro desse contexto, cabe dizer que o título do texto é o mesmo da minha próxima disciplina na graduação (optativa) e há uma infinidade de questões que passam por essa tríade, desde a emancipação que interessa aos pobres, negros e oprimidos (educação para o poder) até o que há de podre no Reino da Dinamarca (Shakespeare no Hamlet).

Ainda é possível tratarmos de outras variações ou desdobramentos, como: política, dominação, decisão ou alteridade, autoridade, imposição. Desde O Príncipe de Nicolau Maquiavel, a política sempre vem associada a um sentido de força, imposição – na falta de convicção e de convencimento – e isto os antigos chamavam de virilidade. A política era entendida como atributo masculino, ainda que as mulheres sempre tenham feito muito mais política (como “a nobre arte da sobrevivência”) do que os homens dominantes (“falocracia”). Por sua vez, essa “virilidade” nem sempre (ou quase nunca) vinha associada às requeridas “virtudes”: também chamavam de virtù.

Porém, como atualização de sentidos, vamos denominar a política atuante como “rudeza” [1] e que, por sua vez, desconstrói a simpatia: as forças da extrema direta e do Fascismo Nacional são predizíveis nessa seara política. Ou seja, o que prevalece é a imposição (enquanto dominus [2]) e suas decisões são “firmes o suficiente” (como deveria ser o Estado) para que a força (virilidade) jamais possa ser questionada.

Neste caso, de imediato, sem considerar muitas das demais sintonias, vejamos que estamos num paradoxo muito estranho: simpatia, no dicionário etimológico, é a “capacidade de estar com duas ou mais pessoas” e a política, em outra definição bem simples, alude à condição de pautar, convocar, e reunir a fim de se decidir para um fim coletivo.

Então, sem muito esforço da inteligência política, se não há simpatia, podemos indagar: como é que se faz política?

Pois é a este dilema que o país parece estar submetido: o país perdeu sua graça, está sem carisma – assim como nossa política. Comparativamente ao passado recente, hoje, talvez por excesso de mágoa não resolvida, por escassez de tempo e urgência diante nas avaliações negativas, ou por imposição do mero brilho do ego, os “líderes simpáticos” de outrora estão encastelados, envoltos por “amigos” contra seus (nossos?) “inimigos”. E eis então que chegamos em outro beco sem saída, aquele que definha a política numa “relação amigo/inimigo” – “aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei” (leia-se, a rudeza, a frieza, a truculência).

De certa forma, não é difícil explicar como uma liderança política perde seu carisma, aquela ação/vibração ou capacidade de produzir “simpatia política” [3]: a “graça de quem faz política com pessoas, para as pessoas”. O difícil é fazer o jacaré fechar sua bocarra: essa expressão quer dizer que, quando os polos se afastam, sobretudo apontando níveis insuportáveis de parca adesão, com a boca da inimizade política cada vez mais aberta, é praticamente impossível reverter o processo.

A figura de linguagem do jacaré de boca aberta é muito forte na simbologia e na análise política, por duas razões: quando o jacaré fecha a mordida na sua presa, não há o que o faça abrir, a não ser a vontade de comer; troquemos o jacaré por um crocodilo e chegaremos ao mito do Estado. A primeira ou mais forte representação sobre o Estado foi dada por Thomas Hobbes; no entanto, o filósofo do Renascimento fazia referência a uma passagem bíblica (Isaias 27:1 [4].

Para interagirmos melhor com o animal símbolo do poder, imaginemos derrotar um crocodilo do rio Nilo, um dos mais vorazes e fortes animais da natureza, com lanças e flexas da Idade do Bronze (um metal macio): sua couraça representaria uma força superior ao tanque de guerra mais possante da atualidade (feito com aço e cheio de contramedidas), comparando-se a resistência da couraça com a tecnologia bélica da época. O resultado dessa associação entre força, resistência, indestrutibilidade, seria o Estado.

Voltando à “simpatia política” (ou antipatia, a depender de como analisamos a aceitação e as “intenções de voto”), pensemos como é intransponível a montanha que ameaça desmoronar (ou já desmoronou) para quem perdeu o carisma: o jacaré de boca aberta que está à espreita.

Sem o carisma, poderíamos pensar em uma nova política, sendo feita com esmero, capacidade técnica inquestionável, racionalidade, uma relação numeral que mais acerta do que erra – e não é o caso atual. Aliás, antes de avançarmos, frisemos que a simpatia em baixa (ou antipatia em alta) logo se associa ao preconceito, ao ranço, ao rechaço, às famosas náuseas que levam à interdição política.

Um líder político que passou pelo céu e pelo calvário foi Benito Mussolini. Precursor da Itália fascista, o Duce praticamente reinventou o “carisma político” – meio que na esteira de seu compatriota Caio Júlio César, o mais consagrado general romano –, indo aos píncaros solares do populismo de direita, mas que acabou de ponta-cabeça em praça pública.

Com muito marketing mercantil, no Brasil, tivemos Fernando Collor de Melo, instado ao poder com fomento popular e que acabou em um célebre impeachment. De cunho mais “técnico”, vimos Fernando Henrique Cardoso – alocado no poder central a partir de um “partido de quadros” e com seu “notório saber” – vimos o neoliberalismo avançar seus primeiros passos. Depois, foi defenestrado por um arranjo de petições ideológicas, levando Lula ao primeiro mandato, na soleira de um “partido de massas”. Saiu, no segundo mandato, com 80% de aprovação: um marco para a política mundial, sem dúvida – ainda mais por se tratar de um metalúrgico. Entretanto, aqui importa destacar a simpatia reunida: 80% de amigos, se preferirem dizer assim.

Hoje, sem tanta simpatia, tampouco consegue emplacar forças e partidos de quadros. É óbvio que não tratamos aqui de “partidos revolucionários”.

Faz muito tempo que o PT se afunilou como “partido de poder” – e com isso quero dizer que, numa associação ao PRI (Partido Revolucionário Institucional), do México do século XX, tornou-se uma agremiação que luta (exclusivamente) pelo poder e para se manter no poder. Contudo, nessa praia, o que parece óbvio, não é, efetivamente. Na política, nada é muito o que parece ser.

Basta-nos pensar que os partidos, os mais notáveis ou honestos (mais ainda se olhados pelo ângulo da esquerda), deveriam se voltar à mudança social, muito mais à transformação do que à preservação do status quo. Talvez os índices crescentes de perda de simpatia (carisma em baixa) se devam a isso, uma vez que não se espera de um “partido de esquerda” mover-se do mesmo modo, na mesma lagoa dominada pelo jacaré insaciável da direita (ou extrema direita).

Por fim, volta a pergunta que não quer calar: como angariar simpatia, sem sair da lagoa desse implacável crocodilo?

Com o perdão dos trocadilhos, emprestados para o entendimento mais direto, parece que, sem carisma, não se atenta mais ao fato de que “em lagoa que tem piranhas, jacaré nada de costas”.

Ou será, em outra hipótese, que os amigos encastelados não são tão amigos assim e, no fundo da lagoa, já estariam “dando boi às piranhas”?

Quando não há simpatia política, tudo é bem possível (até provável), porque “o barco furado faz muita água” e a “política do toma lá, dá cá”, parece não satisfazer a todos os ratinhos do porão do poder. É desse modo que o político carismático vira um bicho-papão.

Como dito no início, os amigos do político carismático (simplificado como populista) estão no meio do povo pobre, negro e oprimido. No castelo, no Palácio, estão os “amigos da onça”.

*Vinício Carrilho Martinez é professor do Departamento de Educação da UFSCar. Autor, entre outros livros, de Bolsonarismo. Alguns aspectos político-jurídico e psicossociais (APGIQ)

Notas

[1] O primeiro texto que vou utilizar é esse do link abaixo, sobre a dança das cadeiras na política que deixou Nísia Trindade (Ministra da Saúde) de pé – na porta da serventia.

2 Olhar o relógio é desrespeitoso e foge ao decoro da liturgia do cargo.

[2] “A lei do mais forte”, a lei do capital ou a lei da espada que dita o direito de vida e morte.

[3] As pessoas envelhecem, querem sossego – é um direito legítimo. Mas, erram pecaminosamente ao não investirem na renovação dos quadros, das lideranças políticas.

[4] Assim se dizia biblicamente sobre o Leviatã: “Naquele dia, o Senhor castigará com a sua dura espada, grande e forte, o leviatã, a serpente veloz, e o leviatã, a serpente tortuosa, e matará o dragão que está no mar”.

 

Desconectar para conectar, por Stephanie Habrich

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Proibir celulares nas escolas é só o começo: desafio maior é preparar jovens para interagirem de forma saudável tanto no mundo real quanto no virtual

Stephanie Habrich, Fundadora e diretora-executiva dos jornais Joca e Tino Econômico

Folha de São Paulo, 11/03/2025

O início do ano letivo trouxe polêmica com a lei que baniu celulares nas escolas. A pausa forçada no uso das telas gera resistência, mas levanta uma questão importante: isso realmente criará um ambiente de aprendizado mais saudável?

A ciência mostra benefícios claros dessa restrição: maior concentração e foco, redução da ansiedade, melhora na interação social e no contato humano. Além disso, combater o cyberbullying e incentivar atividades físicas e culturais são ganhos significativos. O “detox digital” também pode fortalecer o senso crítico e a autonomia dos estudantes.

Essa mudança, porém, exige acolhimento e conscientização. É essencial ouvir as preocupações dos alunos e explicar os benefícios. Pais e professores também precisam entender os impactos do uso excessivo da tecnologia, promovendo debates sobre saúde mental e dependência digital.

Pesquisas indicam que o excesso de telas compromete habilidades cognitivas essenciais, como memória e criatividade, além de estar associado a transtornos do sono e aumento da impulsividade. Escolas que já adotaram essa medida ao redor do mundo notam melhores resultados acadêmicos e maior engajamento em atividades extracurriculares.

Claro, a tecnologia é indispensável no mundo atual e pode ser uma grande aliada no aprendizado. O desafio está no equilíbrio entre seus benefícios e a necessidade de desenvolver habilidades interpessoais e emocionais. Cabe aos adultos orientar crianças e jovens no uso seguro e responsável das telas.

A educação midiática é um caminho essencial nessa jornada. Ensinar a diferenciar informações confiáveis de fake news fortalece o pensamento crítico e reduz a vulnerabilidade à desinformação. Esse processo começa cedo e se torna fundamental para a autonomia intelectual dos estudantes.

O afastamento do celular nas escolas também resgata o aprendizado ativo, incentivando a resolução de problemas, a colaboração em projetos e o desenvolvimento da criatividade sem distrações digitais. A aprendizagem significativa acontece quando há espaço para reflexão, troca de ideias e experimentação.

Reduzir o uso de celulares contribui para um futuro mais saudável, tanto para os estudantes quanto para seus relacionamentos. Mais do que proibir a tecnologia, trata-se de construir um ambiente que desenvolva habilidades essenciais para a vida e o mercado de trabalho, como empatia, resiliência e argumentação.

A discussão sobre o uso de celulares nas escolas vai além de evitar distrações em salas de aula. É uma oportunidade de repensar o papel da escola e o tipo de sociedade que queremos construir. A proibição é apenas o começo: o verdadeiro desafio está em preparar os jovens para interagirem de forma saudável tanto no mundo real quanto no virtual.

Os jornais Joca e Tino Econômico, voltados ao público infantojuvenil e seus educadores, acompanham temas atuais como o “brain rot” – ou “apodrecimento cerebral” – , causado pelo consumo excessivo de conteúdos digitais de baixa qualidade. Afinal, informação sem reflexão é só ruído.