Jayati Ghosh: Como, agora, taxar os super-ricos?

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 Proposta brasileira foi aprovada por consenso no G20. E agora? Haverá fuga de capitais? E os paraísos fiscais? Como enfrentar declarações fraudulentas? Economista indiana explica os mecanismos para tributar, e redistribuir, 250 bilhões de dólares ao ano

Entrevista à Andy Robinson, OUTRAS MÍDIAS, 22/11/2024

A cúpula do G20, que se realizada nos dias 18 e 19 de novembro sob a presidência brasileira no Rio de Janeiro, está prestes a chegar a um consenso sobre uma proposta ousada de aplicação de um imposto sobre a riqueza ou o rendimento dos chamados “super ricos” do planeta, uma das prioridades do Governo Lula. Se isto acontecer, os Estados poderão ter entre 200 e 250 bilhões de dólares em rendimentos adicionais em todo o mundo. Neste momento, como destacou Lula no seu discurso no início da cúpula, 3 mil pessoas têm uma riqueza superior a 13 bilhões de dólares – mais do que o PIB agregado da América e da América Latina – enquanto 733 milhões de pessoas passam fome. Apenas um dos 19 países reunidos esta semana se opõe à proposta: a Argentina, cujo presidente, Javier Milei, chegou ao Rio após participar do banquete oferecido por Donald Trump em sua residência em Mar-a-Lago, em Palm Beach, para comemorar sua vitória e em que foi fotografado com o apresentador e com o homem mais rico do mundo, Elon Musk.

Nesta entrevista, realizada no mês passado em Washington, a economista Jayati Ghosh, uma das promotoras da ideia do imposto para os super-ricos, explica porque é necessário e como seria concebido. Nascida na Índia em 1955, Ghosh é uma especialista em desenvolvimento da escola heterodoxa, que após 35 anos na Universidade Jawaharlal Nehru, em Deli, ingressou no departamento iconoclasta de Ciências Econômicas da Universidade de Amherst, em Massachusetts, juntamente com Bob Pollin e Isabella Weber.

Eis a entrevista

Como você definiria o termo super rico?

Pois bem, Gabriel Zucman, da Escola de Economia de Paris, que elaborou o relatório sobre o imposto para o G20 no Brasil, propôs aplicá-lo aos bilionários. Mas existem apenas 3 mil bilionários em todo o mundo. Então eu diria que seria para pessoas com 70 ou 50 milhões. Estamos falando de pessoas muito, muito, muito ricas.

Quantos impostos os super-ricos pagam?

Menos que nós. Jeff Bezos, por exemplo, não paga um centavo de imposto de renda. Todos os super-ricos têm consultores fiscais e contabilísticos que os aconselham a contrair dívidas de consumo para pagar juros dedutíveis de impostos e registrar perdas. Deixe-os declarar ganhos de capital não realizados. Então eles não pagam impostos. Existem estudos rigorosos sobre o assunto nos EUA, Canadá e França. E, para os super-ricos, verifica-se que a taxa média de imposto está entre zero e 0,5%. Compare isso com os impostos que você e eu pagamos.

O imposto sobre os super-ricos seria cobrado em cada país separadamente, certo?

Sim. Seriam impostos totalmente nacionais. Temos que gerar nossos próprios recursos fiscais. Os governos de todo o mundo precisam desesperadamente deles. Especialmente países em desenvolvimento como o meu, onde a desigualdade é obscena. Precisamos dele para a proteção social, para o desenvolvimento, para as alterações climáticas. Para tudo. E sabemos que a riqueza, o patrimônio, está distribuído de forma extremamente desigual, ainda mais que o rendimento.

Os bilionários já estão entrando diretamente no poder político.

Sim. A riqueza vem com o poder. Uma vez rico, você terá muito poder para o bem social e econômico. Você pode influenciar governos, comprar uma plataforma de mídia porque gosta da ideia e depois mudá-la da maneira que desejar. Você pode voar para a lua se quiser. Isso é muito poder. Portanto, temos de moderar esse excesso de poder que provém do excesso de riqueza.

Como se explica o aumento da riqueza dos super-ricos?

Nada justifica este excesso de riqueza. Não é resultado da produtividade, mas sim das instituições que criamos. E a razão pela qual a situação está piorando é que os super-ricos podem influenciar essas mesmas instituições para as mudarem a seu gosto. Portanto, por muitas razões, um imposto sobre a riqueza é muito importante.

Há muito apoio à proposta?

É enorme. Houve uma pesquisa do Clube de Roma, do qual sou membro. Fizemos um estudo com a Gallup e 68% das pessoas entrevistadas em 17 países da OCDE apoiam um imposto sobre os super-ricos. Apenas 11% acham que é uma má ideia. Na Índia, o apoio foi de 80% porque temos níveis francamente obscenos de desigualdade de riqueza.

Então qual é a ideia?

Cada super-rico deveria pagar um mínimo de 2% de sua riqueza como impostos. Isso não significa que seja um imposto sobre a riqueza. Pode ser tributado sobre rendimentos de dividendos ou sobre algum outro ganho de capital não realizado. Como tributamos não importa. Quer dizer, existem diferentes maneiras de fazer isso, em diferentes contextos. O FMI acredita que é melhor tributar o rendimento do capital do que a riqueza. E não tenho nenhum problema com isso. A questão principal é que os super-ricos devem pagar 2% dos seus ativos. O economista francês Gabriel Zucman afirmou isso no relatório que preparou para o governo brasileiro visando a sua presidência do G20. Faz parte da agenda brasileira do G20.

Existe algum precedente?

Sim. A ideia é a mesma da taxa mínima de imposto sobre as sociedades de 15% que foi aprovada na OCDE. Isto serve para contrariar o truque empresarial de transferir os lucros das multinacionais para paraísos fiscais. Você sabe, quando, por exemplo, o Google diz ao governo espanhol: “Sinto muito. Eu não gero nenhum lucro em seu país. Tenho que pagar royalties sobre a propriedade intelectual e isso vai para a Irlanda. É uma pena, mas não posso pagar impostos aqui.” E a Irlanda tem uma taxa de imposto muito baixa, apenas 12,5%. É a famosa tática. Mas com o novo plano adotado pela OCDE, o país onde essa empresa opera pode dizer: “Tudo bem, mas se pagar apenas 12,5% na Irlanda, vamos tributar-lhe os restantes 2,5% aqui”.

E o mesmo sistema se aplicaria a indivíduos com alto patrimônio líquido e às empresas, correto?

Sim. É a mesma ideia aplicada aos indivíduos. Ou seja, o princípio deste imposto mínimo foi aceito pela OCDE para as empresas. Também deve ser feito para pessoas super ricas.

Como isso seria aplicado aos indivíduos?

A ideia é esta: que cada país aplique um imposto mínimo de 2% sobre a riqueza dos super-ricos. Se disserem que todo o seu dinheiro está nas Ilhas Cayman, bem, o país onde você reside diz: “Mas você não está pagando nenhum imposto nas Ilhas Cayman, então, de acordo com os novos regulamentos, posso tributar 2% de seus ativos.”

Não haveria problemas com mudanças e fuga de capitais?

Não, porque o Zucman tem outra ideia, que acho muito boa. É verdade que você costuma fazer isso e todo mundo ameaça se mudar. Está ocorrendo na Inglaterra neste momento com o fim do regime “non dom” (residentes temporários). Portanto, Zucman propõe um imposto de saída com base no tempo de permanência no país e na quantidade de riqueza que acumulou enquanto esteve nesse país. Em outras palavras, os super-ricos têm que pagar mesmo que saiam do país.

Mas como seria aplicado um imposto de saída?

Vejamos o caso de Gérard Depardieu. Você se lembra que em 2012 ele se mudou para a Bélgica porque achava que a taxa de imposto francesa era muito alta? Na medida em que ainda tenha alguns negócios em França, essa taxa de partida seria aplicada se quisesse regressar a Paris, por exemplo, para jantar. Antes de regressar à Bélgica, teria de pagar.

Como é que o G20 vai implementar isto?

Já sabe que as cúpulas do G20 são locais onde as pessoas mais falam do que agem. E tudo bem porque é melhor conversar do que ir para a guerra. Mas isso não leva necessariamente a nada. No entanto, o que aconteceu globalmente é que ocorreram duas grandes mudanças. Uma delas foi em 2016, quando conseguimos a troca automática de informações bancárias. 142 países assinaram. Todas as informações bancárias são trocadas automaticamente entre jurisdições fiscais. Muitos paraísos fiscais ficaram de fora; Os Estados Unidos ficaram de fora. Mas isso é o suficiente para começar.

Qual é a outra mudança?

Conseguimos, graças à União Africana, um acordo para criar uma convenção fiscal da ONU. O que é uma grande conquista. Sim. Isso não significa que todos os países terão de implementar os mesmos impostos. Estabelecer apenas os princípios nos quais as leis fiscais podem se basear. Então é uma espécie de harmonização. A transferência de lucros e tudo isso vai ficar muito mais difícil. São avanços muito importantes.

O que resta fazer?

São grandes avanços e o imposto para os super-ricos será outro. Mas os super-ricos não tendem a guardar dinheiro em seus próprios nomes. Eles usam relações de confiança. Portanto, precisamos de registros de ativos que identifiquem os proprietários beneficiários de todos os trustes. Normalmente, o truste é controlado por seu contador ou advogado. A UE introduziu esse regulamento, onde é necessário identificar o beneficiário efetivo. O problema é que eles não compartilham as informações com outras pessoas. Assim, se um bilionário na Índia tiver um truste, a UE poderá saber quem é o beneficiário efetivo. Mas o governo indiano não saberá. Precisamos compartilhar. Cada país deve fazer este registro de ativos e depois partilhar essa informação. Se as pessoas soubessem, exigiriam isso. Não há barulho suficiente sobre isso. Deve ser melhor comunicado. E este é o trabalho de meios de comunicação como o seu.

 

China X EUA

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Neste espaço, analisamos algumas das grandes transformações da sociedade internacional, destacando as mudanças nos modelos de negócios, transformações motivadas pelos desenvolvimentos científicos e tecnológicos, modificações no mundo do trabalho e as grandes agitações da lógica geopolítica, onde encontramos um novo confronto entre duas grandes nações, ambas vislumbrando a hegemonia do século XXI, buscando o domínio das estruturas econômicas e políticas. Neste novo século, encontramos uma rivalidade crescente entre os Estados Unidos e a China, deste conflito perceberemos o nascimento de uma nova sociedade global.

A hegemonia norte-americana foi incontestável no período pós segunda guerra mundial, onde os Estados Unidos liderou a recuperação da economia internacional, injetando bilhões de dólares nas estruturas econômicas ocidentais, exportando seu modelo produtivo, levando suas empresas para todas as regiões do mundo, internacionalizando seus valores centrados na concorrência, no individualismo e no imediatismo, liderando a construção de organizações multilaterais, tais como o Banco Mundial, a Organização das Nações Unidas, o Fundo Monetário Internacional, além de outras agências mundiais e impondo à sociedade global a sua moeda como o instrumento monetário e financeiro, transformando o dólar na moeda mais importante do mundo, responsável pelos fluxos comerciais e financeiros globais, garantindo para os Estados Unidos um privilégio exorbitante.

Nos anos 1980, a sociedade chinesa começa um processo de reestruturação interna, abertura econômica, centralização política, com forte planejamento do Estado Nacional, com grandes estímulos nos setores exportadores, centrados em políticas industriais ativas, atraindo interesses estrangeiros e exigindo a transferência de tecnologias para reestruturar os seus modelos econômicas e produtivos, ao mesmo tempo, o governo nacional incrementou os investimentos em educação, pesquisa científica e o desenvolvimento de novas tecnologias, copiando produtos, aprendendo modelos e aprimorando setores econômicos, ganhando mercados externos, com fortes estímulos fiscais e financeiros, levando a economia chinesa a crescer de forma acelerada e se transformando na indústria do mundo.

Na contemporaneidade, percebemos o embate entre dois grandes atores econômicos globais. A China se transformou na indústria do mundo, detentora de grandes tecnologias, retirando mais de 800 milhões de pessoas da indigência, um recorde global, além de criar empresas transnacionais que crescem de forma acelerada e é vista como uma nação marcada por grande disciplina, flexibilidade, autoconhecimento e grande capacidade de transformação nacional. Do outro lado, encontramos uma nação dividida, com forte crescimento das desigualdades, dotada de grande potencial bélico e militar, forte desenvolvimento tecnológico, detentora da moeda mais importante das finanças globais, que vem recorrendo ao protecionismo comercial como forma de evitar o crescimento do grande rival global e evitando a perda de espaço na economia internacional.

Neste ambiente de confrontos geopolíticos, o Brasil precisa compreender a importância de adotarmos uma política externa pragmática, flexível e responsável, fortalecendo a autonomia nacional e consolidando sua soberania política, conversando com todos as nações, negociando com todos os atores internacionais, fortalecendo seu setor industrial, participando dos fóruns globais, exigindo transferências de tecnologias, atraindo grandes empresas estrangeiras em parceria com conglomerados nacionais, fortalecendo a política industrial, incrementando os investimentos em educação, saúde, pesquisa e desenvolvimento tecnológico, reduzindo a dependência externa e fortalecendo setores inovadores e que apresentam grande potencial de desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário

Golpismo bolsonarista vem dos porões da ditadura, por Marcos Augusto Gonçalves

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Golpismo bolsonarista vem dos porões da ditadura

Tramas reveladas pela PF expõem necessidade de cordão de isolamento entre a política e as Forças Armadas

Marcos Augusto Gonçalves, Editor da Ilustríssima, formado em administração de empresas com mestrado em comunicação pela UFRJ. Foi editor de Opinião da Folha.

Folha de São Paulo, 22/11/2024

As investigações da Polícia Federal acerca das tramas golpistas no entorno de Jair Bolsonaro vão confirmando o que já se sabia: o ex-presidente é um filhote dos porões da ditadura militar, discípulo e admirador de Carlos Brilhante Ustra e da facção de torturadores e fanáticos que viviam nos subterrâneos tenebrosos do regime e acabaram derrotados durante seu processo de decadência.

Mentiroso contumaz, sádico e inimigo da democracia, Bolsonaro foi acusado de indisciplina em campanhas por grupos salariais no Exército e de tramar explosões de bombas para desestabilizar os comandos. Foi considerado culpado por uma junta de três coronéis e depois absolvido por 8 a 4 pelo Superior Tribunal Militar, numa decisão acochambrada, que antecedeu sua saída da Força.

Beneficiando-se de medidas judiciais heterodoxas da Lava Jato, que levaram seu maior rival à prisão, Bolsonaro cresceu num momento internacional de turbulências em democracias. Contou com o apoio de elites econômicas de visão curta, quando não apenas chucras e irresponsáveis, e de uma classe média indignada com a corrupção e com o sistema político. Ganhou ainda o voto de uma massa de “batalhadores”, além de pobres desesperançados, entorpecidos pela mistificação religiosa e pelo moralismo evangélico reacionário.

Com sua experiência de ativista incendiário, Bolsonaro promoveu comícios e alastrou a politização na caserna, sob a sombra cúmplice de figuras sinistras como o general Eduardo Villas-Bôas. Seu partido usava farda.

Visto inicialmente com simpatia por setores expressivos da mídia, que acreditaram numa hipotética revolução liberal na economia a ser liderada pelo mitômano (o termo é de Persio Arida) Paulo Guedes, o ex-capitão não demorou muito a mostrar os dentes, que, aliás, já havia exibido, mas se fingia que não morderiam.

Conhece-se bem o que se passou a viver no Brasil, um vendaval a cada semana. O governo desmontou os mecanismos de proteção ambiental, apostou contra a crise climática e as vacinas, passou a atacar a imprensa, com sua característica perversão misógina, e a solapar a lógica da democracia. O ministério, um horripilante trem fantasma, contava com um general da ativa, Eduardo Pazuello, na Saúde.

Como nunca se viu desde a ditadura, a ocupação de cargos públicos por militares e policiais disparou. Ao mesmo tempo, surgiam as relações com milicianos e apostava-se no armamentismo.

Às primeiras evidências de fracasso político, Bolsonaro entregou a chave do cofre para o centrão e tratou de investir contra as instituições que poderiam certificar uma já factível derrota eleitoral. Tramava-se contra o Estado de Direito, golpistas acampavam diante de quartéis acolhedores, e a urna eletrônica era apedrejada todo dia. Um resultado negativo seria visto como fraude.

A conspiração dos nostálgicos dos porões, que arrastou beócios extremistas à “festa de Selma”, continua se revelando ao país. O complô, que incluía até planos de assassinatos de autoridades, não contava com a maioria da cúpula militar, mas nada pode ser visto como fato isolado. É preciso de uma vez por todas estabelecer um cordão de isolamento entre a política e as Forças Armadas. E revisar na Carta o artigo 142, que só fomenta pretensões fantasiosas na caserna.

Donald Trump e o sistema mundial, por José Luís Fiori

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José Luís Fiori – A Terra é Redonda – 21/11/2024

Se houver um acordo de paz na Ucrânia, o mais provável é que ele seja ponto de partida de uma nova corrida armamentista dentro da própria Europa e entre os EUA e a Rússia

A maioria dos analistas está de acordo que o fracasso internacional do governo de Joe Biden teve um papel importante na vitória de Donald Trump, nas eleições do dia 5 de novembro de 2024. Com destaque para a humilhante retirada americana do Afeganistão; para o fracasso da OTAN na Guerra da Ucrânia; ou finalmente, para a ambiguidade dos EUA frente ao genocídio israelense da Faixa de Gaza, dividido entre seus apelos humanitários, e o fornecimento direto das armas, do dinheiro e das informações utilizadas pelo governo de Israel no bombardeio da população palestina.

Neste momento ainda não se pode saber se a reeleição de Donald Trump será apenas uma rodada a mais da “gangorra” política americana. Desta vez, entretanto, Donald Trump não pode reeleger-se e terá um mandato de apenas quatro anos, mas ao mesmo tempo contará com uma maioria conservadora no Congresso, no Senado e na Corte Suprema, e disporá de uma equipe de auxiliares homogênea. O que lhe permitirá, em princípio, levar à frente, de forma rápida e imediata, a sua “agenda nacional”. Mas na área internacional, entretanto, o horizonte é menos claro.

Neste campo a consigna básica de Donald Trump foi sempre a mesma: “a paz através da força”, e não pela guerra. Mas, além disso, o projeto internacional de Donald Trump abre mão da “excepcionalidade moral” dos EUA, e adota o “interesse nacional americano” como a única referência de todas as suas escolhas, decisões e alianças que poderão variar através do tempo. Seguindo-se daí o ataque de Donald Trump contra todas as instituições multilaterais, e contra todos os acordos e regimes comerciais, ou associados com a “questão climática” e a “transição energética”.

As “políticas internas” de Donald Trump envolvem decisões soberanas e autônomas, e poderão ser tomadas sem maiores consultas a outros países e governos. Mas no caso da agenda internacional do novo governo, o problema é muito mais complexo, porque envolve acordos passados dos EUA, e se enfrenta com a vontade soberana de outros países, e de outras Grandes Potencias, como no caso da China, do Irã, da Rússia, ou mesmo dos seus aliados da OTAN.

Com relação à China, é muito provável que Donald Trump consiga negociar acordos comerciais e tecnológicos pontuais. Mas a competição e o atrito entre os dois países deve se manter e aumentar de intensidade nos próximos anos. Até porque a China já foi definida pelos estrategos americanos, já faz algum tempo, como principal competidor e a principal ameaça aos Estados Unidos, no Século XXI. Nesse campo se pode falar inclusive de um consenso bipartidário, entre democratas e republicanos, com diferenças apenas de gradação e intensidade. De fato, o governo de Joe Biden manteve a mesma política protecionista contra China do primeiro governo de Donald Trump.

Com a diferença que agora a China se encontra melhor preparada e não será surpreendida como aconteceu no primeiro governo Trump. Além disto, nestes anos recentes a China aprofundou sua relação econômica com seus vizinhos asiáticos, e com os países africanos e latino-americanos. E desde o início da Guerra da Ucrânia, em 2021, os chineses estreitaram seus laços econômicos e sua aliança estratégica com a Rússia, fechando a porta para qualquer tentativa de repetir a estratégia de Henry Kissinger, do século passado, só que agora invertendo os papéis da China e da Rússia.

Por tudo isto, o mais provável durante o segundo mandato de Donald Trump, é que as relações entre as duas potências sigam regidas pela “armadilha de Tucídides”, com uma aceleração sem precedentes da sua competição tecnológica e militar, com a universalização de sua “guerra comercial”, incluindo-se a possibilidade anunciada por Donald Trump, de punição dos países que não utilizem o dólar em suas transações internacionais, em particular no caso do grupo do BRICS.

No caso do Oriente Médio, também, são muito pequenas as diferenças entre as posições dos democratas e dos republicanos. Donald Trump deve inclusive aumentar o apoio do governo norte-americano à Israel e às suas guerras em Gaza e no Líbano. E deve aumentar a política de “pressão máxima” contra o Irã. Mas neste seu segundo mandato Donald Trump deve encontrar no Oriente Médio uma realidade militar e política muito diferente da que existia no seu primeiro mandato, sobretudo depois do sucesso dos dois ataques militares diretos do Irã contra a território israelense, da ruptura radical da Turquia com Israel, e da reaproximação entre o Irã e a Arábia Saudita, promovida pela China e abençoada pela Rússia.

Por isto qualquer acordo de cessar-fogo imediato que possa ser logrado não significará que Israel e o Irã suspendam a sua disputa de longo prazo, que é do tipo “soma zero”. A hipótese dos “dois estados” parece completamente afastada e a resistência dos palestinos deve prosseguir, assim como a ameaça permanente de uma guerra entre os persas e os judeus com a possibilidade de transformar-se num conflito generalizada dentro do Oriente Médio.

Já na Europa o panorama é completamente diferente, e existe uma oposição radical entre o posicionamento dos democratas e o dos republicanos. Neste caso, a simples vitória eleitoral de Donald Trump, junto com a implosão do governo alemão de Olaf Scholz, provocaram de imediato, um profundo abalo e uma primeira divisão dentro do bloco belicista liderado pela presidenta da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e por sua nova Chefe de Política Externa, Kaja Kallas, e apoiado pelo governo Biden, pela francês Emmanuel Macron, e pelo governo do primeiro-ministro inglês, Keir Stramer.

Ainda não está excluída a hipótese de que esta “coalisão russofóbica” se lance num ataque suicida contra a Rússia, antes da posse de Donald Trump. Mas o mais provável agora é que se iniciem de imediato as negociações de paz, com o reconhecimento implícito por parte dos EUA da vitória militar russa. Mas também aqui não há que ter ilusões. Depois de sua vitória militar e econômica os russos não aceitarão mais o mundo unipolar tutelado pelos EUA. E o mais provável é que os EUA e a Inglaterra, junto com seus aliados europeus sigam se armando contra a Rússia, o grande “inimigo externo” que serviu como uma espécie de “princípio organizador estratégico” das potências ocidentais, e em particular da Inglaterra durante todo o Século XIX e dos EUA, no Século XX.

Se este “inimigo necessário” desaparecesse os EUA e a Inglaterra teriam que sucatear parte importante de sua infraestrutura militar global, construída com o objetivo de conter o “expansionismo russo”, envolvendo um investimento gigantesco em armas e em todo tipo de recursos materiais e humanos, civis, militares e paramilitares. E a OTAN, em particular, perderia sua razão de ser levando de roldão a estrutura de poder atual da União Europeia.

Por isto, se houver um acordo de paz na Ucrânia, o mais provável é que ele seja também o ponto de partida de uma nova corrida armamentista, cada vez mais intensa, dentro da própria Europa, e obviamente, entre os EUA e a Rússia, com repercussões em cadeia, em todas as direções e latitudes do sistema mundial.

Por fim, os países periféricos da América Latina e da África não têm a menor importância dentro do projeto internacional de Donald Trump, que supõe sua submissão pura e simples ao poderia monetário e econômico dos EUA. E neste caso, é muito provável que se repita o que passou na década de 80 do século passado, quando a periferia capitalista foi submetida e/ou derrotada pela política econômica norte-americana do “dólar forte” e do “keynesianismo militar’ de Ronald Reagan, sendo depois “resgatadas” pelas políticas e reformas neoliberais” impostas pelos “programas de ajuste” do FMI.

Só que agora o enquadramento e submissão dos Estados e das economias endividadas da América Latina e África deverá acontecer como derivação ou consequência indireta do novo “protecionismo econômico” anunciado por Donald Trump. Seu efeito imediato deverá ser o aumento da inflação e dos juros dentro dos EUA, e este aumento dos juros deverá provocar uma desvalorização generalizada das demais moedas nacionais, com aumento da dívida externa dos países endividados em dólares, junto com o aumento das suas taxas de inflação, paralisia fiscal dos seus estados e estagnação de suas economias. E no fim, a volta e a submissão provável ao FMI, como no caso patético da Argentina de. Javier Milei.

Resumindo, portanto, o que se deve esperar no campo internacional para os próximos quatro anos da administração Trump: os Estados Unidos abdicam do projeto de universalização messiânica dos seus valores nacionais, e deixam de ser os “Cavaleiros Templários” de uma “ordem mundial regida por regras”. E se propõem atuar dentro do Sistema Mundial a partir exclusivamente dos seus “interesses nacionais” utilizando-se da sua força bruta, financeira, tecnológica e militar para impor sua vontade onde considere que seja necessário. Com um apelo, só em última instância, ao recurso da guerra.

*José Luís Fiori é professor emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de Uma teoria do poder global (Vozes)

 

Por que a guerra comercial de Trump causará caos, por Martin Wolf

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Tarifas, especialmente sobre um país, levarão a uma bagunça econômica e política desastrosa

Martin Wolf, Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Folha de São Paulo, 19/11/2024

Donald Trump deve ser levado ao pé da letra ou a sério? Salena Zito ofereceu essas alternativas em uma coluna no The Atlantic publicada em setembro de 2016. Hoje, antes de ele obter poder pela segunda vez, Trump deve ser levado mais a sério e mais literalmente do que da última vez.

As evidências vêm de suas nomeações, notavelmente Robert F. Kennedy Jr na saúde, Pete Hegseth na Defesa, Tulsi Gabbard na Inteligência nacional e Matt Gaetz na justiça. Essas pessoas mostram que Trump será muito mais radical. Além disso, a política comercial há muito é a área em que ele deve ser levado tanto a sério quanto literalmente; o protecionismo não é apenas uma crença pessoal de longa data, mas uma à qual ele já estava dedicado da última vez.

Infelizmente, o fato de que Trump precisa ser levado ao pé da letra e a sério não significa que ele (ou aqueles ao seu redor) entendam a economia do comércio. Se ele está disposto a acreditar nas bobagens “anti-vacina” de Kennedy, por que se importaria com o que os economistas pensam sobre isso?

Ele comete dois grandes erros: primeiro, não tem noção de vantagem comparativa; segundo e pior, não entende que o saldo comercial é determinado pela oferta e demanda agregadas, não pela soma dos saldos bilaterais. É por isso que sua guerra tarifária não reduzirá os déficits comerciais dos Estados Unidos. Pelo contrário, especialmente no contexto atual, é mais provável que leve à inflação, conflito com o Federal Reserve e perda de confiança no dólar.

Se alguém quer produzir mais de algo —substitutos de importação, por exemplo, como Trump deseja— os recursos devem vir de algum lugar. As perguntas são “de onde?” e “como?”. A resposta pode ser “das exportações, via um dólar mais forte”, já que as tarifas reduzem a demanda por moeda estrangeira, com a qual se compram importações. Dessa forma, um imposto sobre importações acaba sendo um imposto sobre exportações. O saldo comercial não melhorará.

Fundamentalmente, a macroeconomia sempre vence, como Richard Baldwin do IMD em Lausanne nos lembra em uma nota para o Peterson Institute for International Economics. O saldo comercial é a diferença entre rendas e gastos agregados (ou poupança e investimento). Enquanto isso não mudar, o saldo comercial também não mudará.

Os EUA têm gasto consideravelmente mais do que sua renda há muito tempo. Isso é mostrado no fornecimento líquido consistente de poupança estrangeira, que em média foi de 3,9% do PIB, entre o segundo trimestre de 2021 e 2024. Assim, os setores domésticos devem, em conjunto, ter registrado déficits correspondentes.

De fato, o superávit de poupança sobre investimento no setor doméstico foi em média de 2,3% do PIB e no setor corporativo de 0,5%. Em suma, apenas o governo registrou um déficit, que em média foi de enormes 6,7% do PIB. Se alguém quer eliminar os déficits externos, os setores domésticos devem ajustar-se na direção oposta, em direção a superávits maiores de poupança, com o maior ajuste certamente vindo desses enormes déficits fiscais.

No entanto, como Olivier Blanchard observa em outro artigo para o Peterson Institute, Trump prometeu estender os cortes de impostos promulgados em 2017. Além disso, ele sugeriu que os benefícios da Seguridade Social e gorjetas se tornem totalmente não tributáveis, que as deduções de impostos estaduais e locais sejam aumentadas, e que a taxa de imposto corporativo, que foi reduzida de 35% para 21% em 2017, seja ainda mais diminuída para 15% para empresas de manufatura. Ele também sugeriu a deportação em massa de cerca de 11 milhões de imigrantes indocumentados.

Em resumo, ele planeja reduzir a oferta e estimular a demanda. Isso piorará o saldo comercial, não o melhorará. Além disso, também criará pressão inflacionária, que o FED terá que reprimir. Enquanto isso, a dívida federal continuará em seu caminho explosivo, talvez ameaçando a confiança no próprio dólar.

Em suma, não há possibilidade de reduzir o déficit comercial geral com as políticas que Trump propõe. Reduzir o déficit bilateral com a China apenas aumentaria os déficits com outros. Isso é inevitável, dadas as pressões macroeconômicas persistentes. Além disso, suas políticas comerciais discriminatórias, com tarifas de 60% sobre a China e de 10% a 20% sobre outros, estão destinadas a se espalhar.

Trump e seus funcionários verão que as exportações de outros países estão substituindo as da China via transbordo, montagem em outros países ou competição direta. As respostas serão ou a imposição de “regras de origem”, com toda a burocracia que isso requer, ou um aumento nas tarifas para 60% sobre todas as importações de manufaturados. Enquanto isso, sem dúvida, também haverá retaliação.

Tal disseminação de altas tarifas nos EUA e em todo o mundo provavelmente levará a um rápido declínio no comércio e na produção mundial. O Instituto Nacional de Pesquisa Econômica e Social do Reino Unido prevê: “Cumulativamente, o PIB real dos EUA pode ser até 4% menor do que seria sem a imposição de tarifas.”

Meu palpite é que isso é muito otimista, dada a incerteza que também seria desencadeada. No entanto, mesmo assim, os déficits externos dos EUA podem não encolher. Isso dependeria de se os gastos caíssem ainda mais do que a produção. Se isso acontecesse, o saldo comercial melhoraria. Mas isso também significaria uma recessão profunda.

Na semana passada, apontei que a política comercial é muito improvável de reverter o declínio de longo prazo na participação de empregos na manufatura dos EUA.

Esta semana, acrescento que tarifas não apoiadas por uma redução nos gastos agregados em relação à produção não eliminarão déficits externos. Tarifas sozinhas, especialmente tarifas discriminatórias sobre um país, apenas causarão uma bagunça econômica e política, à medida que se espalham como ervas daninhas pelo globo.

Quando o rei Canuto da Inglaterra supostamente se sentou diante da maré que subia, ele o fez para provar que não podia comandar o mar. Donald Trump acredita que pode. Ele ficará desapontado. E, infelizmente, nós também.

 

 

Efeitos dos eventos climáticos nas grandes cidades, por Carlos Nobre.

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Ilhas de calor urbanas podem ampliar em até 10°C a temperatura nessas áreas

Carlos Nobre, Climatologista, é pesquisador sênior pelo Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e copresidente do Painel Científico para a Amazônia; foi eleito em maio de 2022 membro estrangeiro da Royal Society

Folha de São Paulo, 19/11/2024

As cidades brasileiras são resilientes aos eventos climáticos extremos? Os eventos extremos tropicais são cada vez mais frequentes e trazem às cidades distúrbios diversos, como chuvas excessivas, alagamentos, rajadas de vento, raios e ondas de calor, com forte impacto nas pessoas e na economia local. Uma realidade que exige adaptações das cidades, especialmente nas áreas urbanas e superpopulosas, onde os eventos vêm causando grandes desastres.

A Organização Meteorológica Mundial mostra que desastres naturais nos últimos 50 anos somaram 11 mil eventos, somando US$ 3,5 trilhões de prejuízo e 91% da mortalidade nos países em desenvolvimento. Entre outras características, a resiliência climática de uma cidade pode ser enquadrada como a quebra dos seus serviços de segurança hídrica e de regulação térmica.

A ilha de calor urbana é um fenômeno notado globalmente, com ampliação de temperatura nas áreas urbanizadas em escalas de até 10ºC, com maior ênfase nas grandes cidades. Municípios como São Paulo, superpopulosos, absorvem energia radiativa atmosférica muito superior à de áreas com vegetação.

Os fatores urbanísticos que mais reduzem as mortes e doenças decorrentes do calor urbano excessivo são a utilização de ar refrigerado e pronunciada vegetação próxima às habitações. Porém, essas condições não prevalecem em cidades como São Paulo, que está dominantemente coberta por edifícios e asfalto, com pouca vegetação e utilização de ar condicionado restrita às classes de maior renda.

As condições de eventos climáticos extremos são chuvas prolongadas ou tempestades intensas associadas com fortes rajadas de vento e descargas elétricas. Essas tempestades, que em São Paulo geram 700 mil raios por ano, são justamente estimuladas nas áreas urbanizadas devido ao aquecimento local, e respondem por 80% dos danos à rede de eletricidade.

As estatísticas dos extremos climáticos nas cidades só crescem e o risco tende a ser agravado no futuro. Isso por conta do crescente aumento da população nas áreas urbanas, do aumento da probabilidade de ocorrências, e da maior vulnerabilidade da população, seja pelo seu envelhecimento ou pelo adensamento populacional crescente em regiões de baixa renda.

Cidades consideradas resilientes são pouco penalizadas pelos grandes distúrbios atmosféricos porque, ao terem clareza de seus impactos, se preparam para enfrentá-los. No Brasil, ainda não dispomos desse preparo, que depende de soluções que envolvem planejamento urbano de médio e longo prazos de caráter sustentável, como as interferências de infraestrutura verde, que possam reter mais a água em áreas verdes, sejam elas públicas, privadas ou vegetação viária.

Essas interferências associadas ao incremento e adensamento da vegetação têm efeito na redução da temperatura e, por consequência, na redução de eventos extremos.

 

A miséria da política no Brasil neoliberal, por Giovanni Alves

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Giovanni Alves – A Terra é Redonda – 14/11/2024

Trechos, selecionados pelo autor, da introdução do livro recém-lançado

A miséria da política no Brasil neoliberal

O objetivo do livro O Estado neoliberal no Brasil: Uma tragédia histórica é explicar a gênese, afirmação e consolidação do Estado capitalista neoliberal no Brasil, uma estrutura política que impede a nação de oferecer respostas efetivas à crise de civilização que a aflige. Esse modelo de Estado é incapaz de combater a desigualdade social, construir um projeto de nação livre e soberana e enfrentar de maneira eficaz os desafios das transições climática, demográfica e epidemiológica, que devem convulsionar a sociedade brasileira nas próximas décadas. Esta é uma verdade inegável.

Na Parte 1, apresento importantes conceitos da teoria política marxista que explicam a miséria política brasileira, responsável pelo colapso da Nova República e pela consolidação do poder da oligarquia financeira – a fração de classe que organiza o bloco no poder do Estado neoliberal no Brasil.

A Parte 2 trata dos sistemas que sustentam o Estado neoliberal no Brasil: o sistema da oligarquia financeira, o sistema de superexploração do trabalho e o sistema de produção da ignorância cultural no país. Por fim, elaboro uma reflexão sobre a construção da sociedade civil neoliberal, a base da hegemonia burguesa que mantém o poder dominante.

O Estado neoliberal é o Estado político do capital na fase do capitalismo global. Como país de capitalismo dependente e subalterno à mundialização do capital, o Estado neoliberal se reproduziu no Brasil com base histórica no Estado oligárquico-burguês, fortalecido e perpetuado pela ditadura civil-militar (1964-1984).

A perpetuação do Estado oligárquico-burguês é secular, refletindo historicamente o poder social das classes dominantes brasileiras: (i) o patronato agrário-industrial, financeiro-rentista parasitário e comercial; e (ii) o patriciado estatal (político-militar e tecnocrático) e civil (eminências, lideranças e celebridades). Como aliados históricos das classes dominantes, temos os setores intermédios (autônomos e dependentes). [1]

No campo da disputa ideológica e política pela sustentação da forma de Estado oligárquico-burguês neoliberal, temos as classes subalternas (operariado, assalariados de serviços e campesinato) e as classes oprimidas (os miseráveis ou a ralé). Como nunca tivemos uma revolução social no Brasil, o poder da oligarquia proprietária e das camadas patriciais se enrijeceu na estrutura material do Estado brasileiro, sendo reproduzido secularmente pelo modo politicista de fazer história no Brasil (negociação, clientelismo, conciliação).

Desde a Independência do Brasil, há 200 anos, a forma estatal oligárquico-burguesa de dominação de classe reflete a hegemonia ideopolítica e cultural do capital, tanto na “sociedade política” (o Estado propriamente dito) quanto na “sociedade civil”. A classe dominante (patronato e patriciado) é também classe dirigente, na medida em que produz e reproduz o metabolismo ideológico-mental adequado à dominação de classe.

A ideologia da classe dominante é a ideologia dominante na sociedade – eis a lei histórica. As classes subalternas e oprimidas nunca conseguiram disputar historicamente a hegemonia intelectual-moral na sociedade civil e a direção político-moral do Estado propriamente dito. As ideias, a cultura e o pensamento social brasileiros refletiram, de certo modo, os humores, idiossincrasias e a visão de mundo burguês oligárquico-senhorial da nossa formação capitalista dependente.

Isso se refletiu inclusive no pensamento da esquerda social e política, que não conseguiu efetivamente ir além das estruturas deformadas da visão liberal do mundo reproduzida pelos donos do poder. Nosso objetivo é criticar o Estado neoliberal enquanto materialidade política ampliada do capital: sociedade política e sociedade civil neoliberais. É essa materialidade política do Estado neoliberal ampliado, tal como iremos apresentar aqui, que reproduz no Brasil a dominação burguesa nas condições históricas da crise estrutural do capitalismo brasileiro.

Nesta introdução, apresentaremos as principais características que configuram a miséria política sob o capitalismo neoliberal: o politicismo, o fisiologismo, o taticismo, o pragmatismo e o burocratismo. Todos eles compõem o complexo da pequena política. Não foi o Estado neoliberal que criou a miséria da política, mas ele exacerbou, com o império da pequena política, as determinações estranhadas da politicidade alienada do capital. Na verdade, a miséria da política nas condições históricas do capitalismo periférico hipertardio e dependente, de extração colonial-escravista, faz parte historicamente da estrutura da materialidade política brasileira e do modo de dominação política da oligarquia brasileira.

No século XXI, com a crise estrutural do capital e a decadência do projeto civilizatório burguês, exacerbou-se – no centro e na periferia – a crise da democracia liberal, devido à falência histórica da esquerda social e política (o grande transformismo) e à incapacidade do centro-direita de resolver os problemas do capitalismo à deriva. Enquanto estrutura de poder, o Estado neoliberal tornou-se a expressão da tragédia histórica brasileira. O Brasil, país de capitalismo periférico dependente e subalterno à ordem mundial do capital, a partir de 1980 – com a crise da dívida externa –, afundou seu projeto de civilização construído desde a década de 1950, entregando-se de vez, a partir de 1990, à programática neoliberal.

Na verdade, esta foi a escolha política da burguesia brasileira, organicamente subordinada aos interesses do poder imperial dos EUA – a mesma burguesia que fez o Golpe de 1964 e sustentou o regime militar autocrático até sua decrepitude acelerada com a crise do capitalismo na década de 1970. Foi a mesma burguesia associada ao imperialismo que operou a transição lenta, gradual e segura para a democracia política – transição pelo alto, concertada com os militares na década de 1980.

A Constituição de 1988 foi produto da correlação de forças sociais e políticas na década de 1980 no Brasil. Ela materializou a hegemonia burguesa sob o nome de Estado democrático de direito, criando, naquela época, um sistema político que pudesse reproduzir o complexo da miséria política que iremos descrever neste capítulo. Foi a burguesia de cariz autocrático e de formação escravista-colonial que – com o medo ontogenético do povo brasileiro – produziu e apoiou o candidato que, a partir de 1990, implantaria o programa neoliberal no Brasil: Fernando Collor de Mello (PRN [2]).

Mas a Nova República, instaurada com a Constituição de 1988, durou até 2016. Com a crise profunda do capitalismo global a partir de 2008 e a longa depressão da década de 2010, a burguesia brasileira, classe dominante e dirigente do Estado neoliberal, operou – mais uma vez – um golpe de Estado – não mais na forma militar (como em 1964), mas na forma jurídico-parlamentar (lawfare [3]), visando destituir a Presidenta Dilma Rousseff (PT), obstáculo político para que a classe dominante e suas frações pudessem reestruturar o capitalismo brasileiro a seu modo, por meio do aumento da taxa de exploração e da espoliação das riquezas nacionais.

Foi assim que foi consolidado o Estado neoliberal no Brasil. Entendemos o Estado neoliberal como a materialidade política do declínio civilizatório no Brasil. Trinta anos de Estado neoliberal foram mais do que suficientes para constatarmos os resultados da política de reforço do sistema da dívida pública (austeridade neoliberal permanente), do sistema de superexploração da força de trabalho (predomínio dos baixos salários) e do sistema de produção da ignorância cultural (manipulação midiática numa intensidade nunca antes vista na história brasileira).

A década de 1990 foi marcada pelas contrarreformas neoliberais no Estado e na economia, bem como pelo fortalecimento do ethos neoliberal na sociedade civil por meio da manipulação midiática. Foi assim que se constituiu o Estado neoliberal, uma estrutura de poder reproduzida nas décadas seguintes por todos os governos – de direita ou de esquerda – da República brasileira. O PT, partido histórico da esquerda brasileira, passou por um Grande Transformismo [4] e conformou-se com a reprodução da ordem dominante.

Durante os governos do PT, sob o espírito do lulismo, afirmou-se o Estado neoliberal. O neoliberalismo eliminou a política, mas isso só ocorreu devido à eliminação do protagonismo antagônico da esquerda social e política contra a ordem burguesa [5]. Tanto quanto o neoliberalismo, o Grande Transformismo foi responsável pelo aprofundamento da miséria política na vida brasileira. Assim, a morte da política pelo neoliberalismo é a morte da esquerda social e política capaz de criticar a ordem burguesa. Isso contribuiu para consolidar o Estado neoliberal, que em 2024 completa trinta anos de domínio efetivo do capitalismo neoliberal no país – com o apoio da esquerda brasileira representada pela figura carismática de Luís Inácio Lula da Silva (PT).

A distinção metodológica entre Estado e governo

É crucial distinguir entre Estado e governo. O governo é uma parte do Estado. Os partidos eleitorais visam apenas administrar a materialidade do Estado político do capital, aspirando, portanto, ao governo para ocupar cargos e gerir o establishment, ou seja, o poder da burguesia. A diferença entre governo e Estado é, de fato, uma questão complexa que tem sido objeto de debate na ciência política por séculos.

De forma geral, pode-se afirmar que o Estado é a entidade soberana que detém o monopólio da força legítima, com o objetivo de garantir as relações de propriedade da classe dominante. Ele é produto de uma construção histórico-social das classes proprietárias, surgindo da necessidade de organizar (dominar/dirigir) a sociedade e assegurar sua ordem e segurança como pré-requisitos para a reprodução social.

O Estado é composto por um conjunto de instituições, entre elas o governo, além do exército, da polícia e do sistema judiciário. O Estado também possui um território definido, uma população e soberania, enquanto o governo é o conjunto de instituições que administra o Estado. O governo, por sua vez, é a instituição que exerce o poder político dentro do Estado, formado por um conjunto de pessoas, geralmente eleitas, responsáveis por tomar as decisões que governam a sociedade.

O governo pode ser dividido em três poderes: executivo, legislativo e judiciário. Portanto, a principal diferença entre governo e Estado é que o governo administra o Estado, ou seja, é responsável por tomar as decisões que regem a sociedade, enquanto o Estado é a materialidade política que garante a ordem e a segurança da sociedade capitalista. O Estado é uma instituição permanente, enquanto o governo é temporário, eleito por um período determinado. O monopólio da força legítima é uma característica do Estado, e não do governo. [4]

No Brasil, o Estado é uma república federativa, o que significa que está dividido em três níveis de governo: federal, estadual e municipal. Cada nível possui suas próprias atribuições e responsabilidades. O governo federal cuida de políticas nacionais, como defesa, economia e diplomacia. Os governos estaduais são responsáveis por políticas estaduais, como educação, saúde e segurança pública. Já os governos municipais tratam de políticas locais, como saneamento básico, transporte público e cultura. Todos os governos eleitos no período da Nova República no Brasil – sejam de direita ou de esquerda – apenas reproduziram e consolidaram o Estado neoliberal. Devido à pressão do bloco no poder, esses governos aceitaram os limites de sua função administrativa.

Mesmo os governos do PT, o principal partido de esquerda do país, renunciaram a uma estratégia de poder que ultrapassasse a materialidade política do Estado capitalista brasileiro, que, desde 1990, foi constituído como um Estado neoliberal. Por exemplo, a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal [6] tornou-se uma cláusula pétrea do Estado brasileiro, que todos os governos optaram por obedecer.

Caso desafiassem essa lei, sofreriam não apenas penalidades legais, mas também as impostas pelo mercado financeiro, que os obrigaria a se submeter a outra cláusula pétrea: o sistema da dívida pública ou sistema da oligarquia financeira. Os governos de esquerda, eleitos a partir de 2002, apenas procuraram operar da melhor forma a nova ordem neoliberal, implantando medidas compensatórias no âmbito social para os mais pobres, sempre respeitando os interesses da classe proprietária. Esse é o espírito de colaboração de classes que caracterizou os governos de esquerda desde então.

À medida que o Estado neoliberal se consolidava, com seus sistemas de dominação de classe, ele sobrepôs-se e subordinou a sociedade civil. Em suma, os dirigentes políticos do maior partido de esquerda no Brasil renunciaram a um projeto de poder que superasse o Estado neoliberal e, em vez disso, buscaram reforçá-lo. Quando eleitos em 2022, a esquerda política, representada pelo PT, paralisou-se diante do poder consolidado do Estado neoliberal, sendo incapaz de implantar seu programa de mudanças sociais, devido à falta de margem de manobra. Esse foi o resultado de mais de 20 anos de conciliação de classes e acomodação ao Estado neoliberal, o que, hoje, tornou inoperante a esquerda social e política.

Estado neoliberal e a tragédia da política

Além de esclarecer o que é o Estado neoliberal, nosso livro busca criticar a esquerda brasileira, que renunciou à crítica do Estado neoliberal, limitando-se a operar a ordem dominante, administrando-a e, enquanto suposta esquerda, tentando torná-la mais humana, mas sem promover um projeto (ou ação) contra-hegemônica. Essa postura política da esquerda social-liberal, representada pelo PT (Partido dos Trabalhadores), esgotou-se e hoje se encontra rendida ao Estado neoliberal.

O horizonte da luta política dessa esquerda social-liberal – como a chamaremos – resume-se à vitória eleitoral e à governabilidade dentro da ordem neoliberal. Enquanto a direita neoliberal e a extrema direita são contrarreformistas, a esquerda social-liberal administra a nova materialidade política e social resultante da nova ordem neoliberal, limitando-se a “reformas de baixa intensidade”. No fundo, ela não possui uma estratégia de contrapoder, mas se dedica a táticas de luta política focadas em eleições, reeleições e ocupação de cargos nas instituições do Estado.

A esquerda neoliberal não é uma esquerda reformista, como era a esquerda social-democrata, mas sim uma esquerda contrarreformista. Por isso, podemos afirmar que a esquerda brasileira faliu de uma vez por todas, à medida que todo seu espectro politicamente relevante – PT e PSOL – incorporou as características estruturais da política burguesa no Brasil, como descreveremos a seguir. Esta é a maior tragédia histórica do Brasil. As formas ideológicas da miséria da praxis política alienada, que têm caracterizado nosso sistema político, servem para reproduzir a ordem do capital.

Essas formas alienadas de politicidade do capital aderiram à praxis política, provocando uma distorção irremediável. Ao incorporar essas determinações da politicidade alienada do capital, a esquerda social-liberal contribuiu para a morte da política e da democracia liberal, ao se identificar com seus oponentes históricos. Embora se apresente como alternativa à direita neoliberal, a esquerda social-liberal tornou-se cada vez mais incapaz de mudar a ordem burguesa, que hoje não consegue atender às demandas civilizatórias.

A morte da política – que é também a morte da esquerda – é uma operação fundamental da ofensiva neoliberal do capital. O capital subsumiu a política de esquerda, degradando-a da mesma forma que degradou o trabalho, o consumo, a cultura e a sociedade. Isso configura o novo sociometabolismo do capital ou o sociometabolismo da barbárie no plano da praxis política. Incapaz de oferecer um projeto civilizatório, o capital produz o sociometabolismo da barbárie.

No caso de países de capitalismo dependente, hipertardio e com formação escravista-colonial, a degradação da política sempre foi uma estratégia de dominação da classe dominante. Contudo, em décadas passadas, havia movimentos de oposição de esquerda capazes de vislumbrar a grande política. Na década de 1980, quando se criou o PT, por exemplo, havia um horizonte para a grande política, apoiada em uma base organizada da classe. À medida que o capital desmantelou a classe operária, também desmantelou sua representação política. Foi isso que mudou com a ofensiva neoliberal do capital – a subsunção da política de esquerda ao capital.

A miséria da política brasileira não foi criada pelo capitalismo neoliberal. Nossa tradição política oligárquica e golpista, há séculos, degradou a atividade política das massas, esvaziando seu valor fundamental. A pequena política, com sua constelação de atributos alienados, domina a praxis política desde a Proclamação da República em 1889. Portanto, não é novidade a cultura do fisiologismo e oportunismo, prática da direita conservadora nacional, impregnada pelo taticismo.

A política foi reduzida a um jogo de interesses esvaziados de ideologia, moldado pelas conveniências do momento. A forma autocrática de dominação burguesa no Brasil contribuiu para esvaziar o valor da política como instância para a transformação social. Isso explica a despolitização ontogenética da sociedade brasileira. “Política não se discute”, diz o ditado popular. A cultura da despolitização, que impregna o imaginário popular, reforça o fisiologismo (ou metabolismo político) da dominação oligárquico-burguesa.

A tragédia do Brasil é que, após uma década de transição para a democracia política, o país se rendeu à ofensiva neoliberal, que, por natureza, é hostil à socialização da política e à democratização da sociedade. A Nova República estava condenada no ato. Assim, elevou-se a um patamar superior a miséria política brasileira, com a esquerda social-liberal incorporando-se a ela ao renunciar à transformação do Estado neoliberal, limitando-se a um projeto de governo. A era do capitalismo neoliberal é a era de decadência histórica do capital, em razão de sua crise estrutural.

Dessa forma, todos os valores caros à civilização burguesa, oriundos da Revolução Francesa, perdem sentido. A democracia liberal, esvaziada de seu significado real, diante da precarização estrutural do trabalho, entra em profunda crise, junto com o sistema político. A ascensão da extrema-direita é o atestado de óbito da democracia liberal.

Após a década neoliberal, a política entrou em uma era de indeterminação. [8] O capitalismo terminal, tornado farsesco, rebaixou a democracia política ao que ela realmente é: um significante poderoso, mas impotente diante da concentração de renda e da desigualdade social, do abismo entre ricos e pobres. A democracia burguesa perde seu valor na era neoliberal porque se torna irrelevante diante da incapacidade visceral do Estado neoliberal de resolver a questão social no século XXI.

Por não ser uma democracia substantiva e de valor universal, transforma-se em uma democracia acessória, desvalorizada pelas massas insatisfeitas, que, ao contrário, cultivam o ódio à democracia.[9]

A pequena política e praxis política alienada

A distinção entre “grande política” e “pequena política” é um conceito do marxismo de Antonio Gramsci, fundamental para caracterizar não apenas a política na era neoliberal, mas também a política historicamente dominante no Brasil desde a fundação da República. A pequena política sempre esteve presente, e o que fazia a diferença era a atuação da esquerda. A pequena política representa a miséria da prática política, em torno da qual gravitam diversos atributos alienados. Ela é uma ideologia da práxis política que a classe dominante brasileira sempre cultivou e disseminou tanto na sociedade civil quanto na sociedade política.

Os conceitos de “pequena política” e “grande política” formam um par conceitual que serve não apenas para definir traços decisivos do conceito geral de política, mas também aparece como um elemento essencial naquilo que Gramsci chama de “análise das situações” e “relações de força”. O predomínio de uma ou outra forma de ação política – seja a “pequena” ou a “grande” política – é decisivo para determinar qual classe ou grupo de classes exerce a dominação ou a hegemonia em uma situação concreta, e de que modo o faz.

Segundo Antonio Gramsci: “Grande política (alta política) e pequena política (política do dia a dia, política parlamentar, de corredor, de intrigas). A grande política abrange as questões ligadas à fundação de novos Estados, à luta pela destruição, defesa ou conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais. A pequena política abrange as questões parciais e cotidianas que surgem dentro de uma estrutura já estabelecida, decorrentes de lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma classe política”. [10]

A hegemonia ancestral da burguesia brasileira degradou historicamente a práxis política, obstruindo qualquer movimento de catarse, elemento central da práxis política segundo Gramsci. Lembrando o conceito gramsciano de “catarse”, podemos afirmar que apenas a “grande política” realiza o “momento catártico”, ou seja, a passagem do particular ao universal, do econômico-corporativo ao ético-político, da necessidade à liberdade. Gramsci nos adverte, contudo, que “é grande política tentar excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo à pequena política” [11]. Isso foi o que a burguesia brasileira fez historicamente: excluir a grande política do horizonte prático e sensível das massas.

Em outras palavras, para as classes subalternas, o predomínio da pequena política é sempre sinal de derrota. No entanto, esse predomínio pode ser – e frequentemente é – a condição para a supremacia das classes dominantes. Quando a esquerda social-liberal, a partir da década de 1990, renunciou a operar a transição do particular ao universal, do econômico-corporativo ao ético-político, e da necessidade à liberdade – ao abdicar, por exemplo, da luta pelo socialismo – consolidou a supremacia da pequena política. Essa foi a grande derrota histórica que permitiu a consolidação do Estado neoliberal.

A oposição entre “grande política” e “pequena política” também se aplica à ação dos intelectuais. O “Grande Transformismo” não se limitou à práxis política, mas também envolve a atuação intelectual. O cerne do grande transformismo foi justamente isso: o predomínio da pequena política em detrimento da grande política, no sentido do abandono da perspectiva da totalidade social e da classe social que permitiria um horizonte além do capitalismo e a elaboração de uma perspectiva socialista.

O fato de a esquerda ter sido reduzida à pequena política não impede que a burguesia seja forçada a praticar a grande política. A pequena e a grande política não se resumem a uma distinção entre reação e progresso. Na era do capitalismo neoliberal, a burguesia conduziu a grande política no sentido da reestruturação capitalista, operando contrarreformas e processos de subjetivação catárticos às avessas.

Se o “momento catártico” representa a passagem do particular ao universal, do econômico-corporativo ao ético-político, da necessidade à liberdade, o momento catártico às avessas representa a produção de subjetivações particularistas, incapazes de agir na perspectiva ético-política, resultando no sociometabolismo da barbárie. Ao imiscuir as massas proletárias e a esquerda política e social na pequena política, com a estreiteza de programas e a debilidade da consciência nacional, a burguesia demonstrou um imenso esforço para impedir qualquer mudança radical. E esse esforço imenso da burguesia é, em si, uma grande política. [12]

*Giovanni Alves é professor aposentado de sociologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Autor, entre outros livros, de Trabalho e valor: o novo (e precário) mundo do trabalho no século XXI (Projeto editorial Praxis).

Referência

Giovanni Alves. O Estado neoliberal no Brasil: Uma tragédia histórica. Marília, Projeto editorial Praxis, 2024, 302 págs.

 

[1] RIBEIRO, Darcy. Os brasileiros: 1. Teoria do Brasil. Vozes: Rio de Janeiro, p. 97.

[2] O Partido da Reconstrução Nacional (PRN) foi fundado em 1989. Surgiu de uma cisão do Partido Democrata Cristão (PDC) e teve como figura mais proeminente Fernando Collor de Mello, que seria eleito presidente do Brasil no mesmo ano em que o partido foi fundado.

[3] Lawfare é um termo que combina as palavras “law” (lei) e “warfare” (guerra) para descrever o uso estratégico da legislação e dos processos jurídicos como uma forma de guerra. Em essência, o lawfare envolve o uso (ou abuso) do sistema legal para atingir objetivos políticos, econômicos ou militares, prejudicando adversários, enfraquecendo opositores, ou desacreditando figuras públicas. Esse conceito se aplica tanto em contextos nacionais quanto internacionais.

[4] Compreendemos o “Grande Transformismo” como o processo de mudança ideológica e política experimentado pelo Partido dos Trabalhadores (PT) na década de 1990. Essa transformação resultou na conversão do partido em um administrador da ordem burguesa neoliberal, levando-o a abdicar de políticas de reformas sociais abrangentes em favor de políticas públicas focalizadas e programas de transferência de renda. Este fenômeno não se limitou ao Brasil, sendo parte de uma tendência global que afetou partidos de esquerda social-democrata e trabalhista em diversos países. Exemplos notáveis incluem o Partido Trabalhista britânico sob a liderança de Tony Blair e o Partido Social-Democrata alemão sob Gerhard Schröder. O Grande Transformismo representou, portanto, uma mudança significativa na orientação política e nas práticas desses partidos, alinhando-os mais estreitamente com políticas econômicas neoliberais e afastando-os de suas raízes ideológicas originais. Antônio Gramsci utilizou o termo “transformismo” para referir-se à cooptação gradual de elementos da oposição política pela classe dominante ou pelo grupo no poder. Gramsci desenvolveu este conceito analisando a política italiana do final do século XIX e início do XX, particularmente o período do Risorgimento (unificação italiana). O transformismo é um mecanismo pelo qual a classe dominante mantém seu poder, absorvendo e neutralizando potenciais lideranças das classes subalternas. Ao cooptar indivíduos ou grupos da oposição, o transformismo enfraquece movimentos de resistência e mudança social. O objetivo principal é preservar a ordem social existente, evitando mudanças estruturais significativas. Pode ocorrer através de concessões políticas, ofertas de cargos, ou incorporação parcial de demandas da oposição. O transformismo afeta a formação de uma vontade coletiva nacional-popular, dificultando a organização das classes subalternas, sendo uma estratégia para manter a hegemonia cultural e política da classe dominante. Gramsci via o transformismo como uma forma de evitar reformas substanciais, mantendo mudanças superficiais.

[5]  Esta morte da esquerda é o que Francisco de Oliveira denominou de “hegemonia às avessas” no livro homônimo de 2010 (OLIVEIRA, Francisco; BRAGA, Ruy; RIZEK, Cibele (Org.) Hegemonia às avessas: Economia, Política e Cultura na Era da Servidão Financeira. Boitempo editorial: São Paulo, 2010, p. 21). Neste mesmo livro, Carlos Nélson Coutinho comparece com o capítulo intitulado “A hegemonia da pequena política”.

[6] BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: Fragmentos de um dicionário político. Paz e Terra, Rio de Janeiro. p.69-84

[7] A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) é uma legislação brasileira que foi promulgada em 4 de maio de 2000, com o objetivo de estabelecer normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal dos entes federativos, ou seja, União, estados, Distrito Federal e municípios. Oficialmente conhecida como Lei Complementar nº 101/2000, a LRF tem como principal meta garantir o equilíbrio das contas públicas, promovendo uma administração mais responsável, transparente e eficiente dos recursos públicos.

[8]  Francisco de Oliveira usou o conceito de “era da indeterminação” para descrever um período histórico em que as antigas certezas e categorias analíticas tradicionais, especialmente aquelas relacionadas à política, economia e sociedade, tornaram-se insuficientes para explicar a complexidade do mundo capitalista neoliberal. Esse conceito aparece em suas reflexões sobre o capitalismo globalizado e o impacto do neoliberalismo, particularmente no contexto brasileiro e latino-americano. O livro intitulado “A era da indeterminação” publicado em 2007 foi organizado por Franscisco de Oliveira e Cibele Saliba Rizek. Na “era da indeterminação”, de acordo com Francisco de Oliveira, há uma crise nas estruturas tradicionais que antes orientavam a sociedade, como o Estado-nação, as formas de trabalho, as ideologias políticas e as instituições democráticas. A indeterminação se refere a um estado de incerteza e de transição, em que os antigos modelos não se aplicam mais plenamente, mas novos modelos ainda não foram estabelecidos de forma clara. Alguns pontos principais do conceito apresentados no livro são os seguintes incluem: (1). Colapso das Certezas Ideológicas e Políticas: Oliveira argumenta que, na era da indeterminação, as distinções tradicionais entre esquerda e direita perdem clareza, especialmente à medida que movimentos de esquerda adotam práticas neoliberais (o que ele mais tarde – em 2011 – denominou “hegemonia às avessas”). Isso gera uma crise de identidade política, onde as categorias ideológicas tradicionais não conseguem mais descrever adequadamente a realidade. (2). Subordinação da Política ao Capital: Um aspecto crucial da era da indeterminação é a subordinação crescente da política ao capital, particularmente ao capital financeiro. Oliveira via o neoliberalismo como uma força que reconfigurou a política, tornando-a cada vez mais incapaz de controlar ou moderar as forças do mercado. Isso leva a uma crise da política, onde as decisões econômicas dominam a agenda, deixando pouco espaço para projetos políticos transformadores. (3). Fragilidade das Instituições Democráticas: Na era da indeterminação, as instituições democráticas se tornam frágeis, com sua capacidade de representar e responder às demandas sociais sendo questionada. Essa fragilidade é exacerbada pela concentração de poder econômico e pela desigualdade social, que minam a legitimidade e a eficácia das democracias. A era da indeterminação é caracterizada por um sentimento generalizado de incerteza e transitoriedade. As regras e normas que antes regulavam as relações sociais e econômicas parecem cada vez mais voláteis e imprevisíveis. Isso se reflete em fenômenos como a precarização do trabalho, a volatilidade dos mercados financeiros e a instabilidade política. (4). Crise da Representação e do Trabalho: Outro ponto central na análise de Oliveira é a crise do trabalho, especialmente em sua forma tradicional. A globalização e o avanço tecnológico transformaram as relações de trabalho, criando novas formas de exploração e precariedade. Ao mesmo tempo, as estruturas de representação dos trabalhadores, como sindicatos e partidos, se mostram incapazes de lidar com essas novas realidades. No Brasil, a era da indeterminação é marcada pela adoção do neoliberalismo, o enfraquecimento dos movimentos sociais e a crise das instituições políticas tradicionais. Para Oliveira, essa era reflete a incapacidade do sistema político e econômico de oferecer respostas adequadas às demandas da sociedade, levando a uma desorientação generalizada. No plano global, a era da indeterminação reflete o colapso das velhas ordens, como o Estado de bem-estar social, e a ascensão de um capitalismo globalizado que escapa ao controle dos Estados-nação. Essa nova realidade gera incerteza e ansiedade, já que os mecanismos tradicionais de regulação e controle se mostram insuficientes para lidar com os desafios do século XXI.

[9] Rancière, Jacques. O ódio à democracia. Boitempo editorial: São Paulo, 2014.

[10] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, Volume 3, Maquiavel. Notas sobre o Estado e a Política. Civilização brasileira, 2000: p. 21

[11] GRAMSCI, Antonio. op.cit. p. 21

[12] COUTINHO, Carlos Nelson. De Rousseau a Gramsci: Ensaios de teoria política. Boitempo editorial: São Paulo. p. 124-125.

 

O que economistas têm a dizer sobre a democracia e a riqueza de países? por Claudio Ferraz

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Vencedores do Nobel construíram modelos matemáticos para incorporar política e instituições em análises da economia

Claudio Ferraz, Professor da Escola de Economia de Vancouver (Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá) e da PUC-Rio.

Folha de São Paulo, 17/11/2024

O Prêmio Nobel de Economia de 2024, concedido a Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson, coroa décadas de pesquisas voltadas a compreender como instituições criadas durante a colonização moldaram a trajetória da democracia e do desenvolvimento econômico dos países, contribuição fundamental para responder por que algumas nações prosperam e outras fracassam, uma das questões mais primordiais da disciplina.

Em 2003, eu cursava o segundo ano de doutorado na Universidade da Califórnia em Berkeley. Tinha ido para lá decidido em me especializar na área de desenvolvimento econômico e esperava aprender os modelos matemáticos de fronteira que explicavam por que alguns países se desenvolviam e outros não.

A primeira disciplina de desenvolvimento econômico focava as falhas de mercados de países pobres, a chamada microeconomia do desenvolvimento. O livro “Development Microeconomics”, de Pranab Bardhan e Christopher Udry, tinha acabado de sair, e o campo passava por um ressurgimento, com mais ênfase na microeconomia e em trabalhos empíricos.

Cheguei na segunda disciplina com a expectativa de estudar modelos de crescimento econômico e temas como educação, saúde e capital social. Logo na primeira aula, no entanto, percebi que aquele curso seria diferente. O professor não era do departamento de economia, mas de ciência política.

Em vez de enfatizar os trabalhos acadêmicos que iríamos ler, ele buscou nos convencer que, para ter boas ideias, teríamos que ler livros, algo que os economistas, infelizmente, não fazem no doutorado. A primeira leitura seria “Markets and States in Tropical Africa”, livro do cientista político Robert Bates.

Depois de distribuir a ementa, James Robinson foi para o quadro e começou a ensinar o modelo de crescimento de Solow, algo padrão naquela época, mas emendou um modelo matemático de economia e política para tentar apresentar as causas e as consequências econômicas do apartheid na África do Sul. Seu argumento era que a desigualdade que surgiu depois da colonização gerou a repressão e a exclusão de parte da população pela elite branca. Isso tinha desdobramentos não só políticos quanto econômicos.

Para mim e para grande parte do campo da economia nas universidades de ponta dos EUA, aquilo era uma novidade. No começo dos anos 2000, poucos economistas olhavam para a política usando modelos matemáticos. A exceção era um grupo de macroeconomistas, como Alberto Alesina, Torsten Persson e Guido Tabellini, que usava modelos políticos para entender déficits fiscais, ciclos políticos e decisões de estabilização.

Economia política não era lecionada em quase nenhum programa de doutorado de ponta e, no campo do desenvolvimento econômico, aspectos políticos não estavam na agenda, exceto por textos mais descritivos, como um trabalho de Albert Hirschman dos anos 1970.

O Prêmio Nobel de Economia deste ano foi concedido a Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson, que lançaram luz sobre uma das questões mais fundamentais em economia: por que algumas nações prosperam enquanto outras fracassam? Diferentemente da literatura anterior, que se concentrava nos fatores de crescimento, a contribuição dos três pesquisadores foi trazer quantitativamente aspectos políticos para a análise dos economistas.

Seus trabalhos mostraram que é impossível entender o desenvolvimento econômico dos países sem levar a sério aspectos políticos. O prêmio coroa décadas de pesquisa e celebra duas agendas complementares: uma empírica, que busca compreender as raízes institucionais do crescimento, e outra teórica, voltada a modelos matemáticos que explicam a persistência de instituições ineficientes e as causas econômicas de transições de regimes políticos.

Durante décadas, economistas tentaram explicar as desigualdades de renda entre países. Nos anos 1950, Robert Solow, Nobel de 1987, desenvolveu um modelo que atribuía essas disparidades à acumulação de capital e ao crescimento populacional dos países. Nações que poupam mais e cuja população cresce mais devagar terão renda per capita mais alta a longo prazo.

Uma predição empírica desse modelo: países mais pobres deveriam crescer mais rapidamente, convergindo para o nível de renda dos países ricos, algo que raramente se observou na prática. Em 1997, Lant Pritchett publicou um artigo em que argumentava que a convergência de renda só ocorreu entre os países ricos no século 20. Já os países de baixa renda, com poucas exceções, permaneciam presos em uma armadilha de pobreza.

Como explicar o fato de países ricos continuarem a crescer mais rapidamente que muitos países em desenvolvimento? No final dos anos 1980, economistas como Philippe Aghion, Robert Lucas e Paul Romer começaram a destacar o papel do capital humano e do investimento em inovação como fatores centrais para o crescimento econômico.

Eles mostraram que os países que investiram cedo na educação e direcionaram recursos para pesquisa e desenvolvimento cresceram mais rapidamente na segunda metade do século 20. Estudos empíricos que incluíam educação e ciência se provaram mais eficazes em explicar as diferenças de renda entre os países que modelos que consideravam apenas o capital físico.

Os economistas continuavam, porém, sem entender sistematicamente o que levou alguns países a investir em educação ou inovação tecnológica e outros não. Aspectos políticos não faziam parte da modelagem utilizada pela maioria dos economistas neoclássicos, mesmo que historiadores econômicos como Douglas North e Robert Thomas já tivessem enfatizado, nos anos 1970, a importância das instituições.

Esses autores argumentaram que as regras do jogo que regulam as interações entre pessoas, empresas e governos eram fundamentais para entender a trajetória econômica dos países. Em seus trabalhos, sugeriram que países que protegiam direitos de propriedade, por exemplo, geraram mais inovação e incentivos para o empreendedorismo e que isso acontecia quando instituições políticas restringiam o poder dos líderes.

A tese de que instituições e políticas governamentais eram importantes foi testada por Robert Hall e Charles Jones. Em 1999, eles publicaram um trabalho muito influente que mostrava que diferenças de acumulação de capital e produtividade estavam relacionadas com o que eles chamaram à época de infraestrutura social dos países —instituições e políticas governamentais que determinam o ambiente econômico em que indivíduos acumulam habilidades e firmas acumulam capital e inovam.

Os autores usaram dados de consultorias de risco político e mediram índices de lei e ordem, qualidade burocrática, corrupção e risco de confisco e expropriação. Permanecia, no entanto, a pergunta: por que alguns países tinham infraestrutura social melhor?

Nessa mesma época, o proeminente economista Jeffrey Sachs argumentava que o principal problema dos países pobres era sua geografia. Países localizados nos trópicos têm clima menos propício à agricultura e grande propensão a doenças em razão de suas florestas cheias de mosquitos e malária. Tudo isso contribuiria negativamente para o crescimento econômico e geraria diferenças de longo prazo.

Foi depois de uma palestra de Jeffrey Sachs no final dos anos 1990 que James Robinson começou a pensar no papel histórico da geografia no desenvolvimento econômico dos países. Se a geografia é tão determinista, como países que foram ricos no passado em razão da sua geografia são pobres hoje?

Ao lado de Daron Acemoglu e Simon Johnson, Robinson se debruçou sobre dados históricos. No começo dos anos 2000, os pesquisadores publicaram dois artigos seminais que contestavam a importância direta da geografia como o principal determinante da riqueza das nações. O argumento de Acemoglu, Johnson e Robinson reconhecia que a geografia importava, mas não devido à qualidade do solo ou à proliferação de doenças, como argumentava Jeffrey Sachs, mas pelo efeito que teve sobre a colonização.

Em um trabalho, eles argumentaram que, onde havia recursos abundantes e a colonização era difícil devido à alta mortalidade, os colonizadores estabeleceram uma sociedade que tinha como objetivo extrair riquezas e, em locais mais propícios à sobrevivência, criaram instituições mais inclusivas que facilitavam a sua permanência.

Testar empiricamente a relação entre boas instituições e desenvolvimento econômico não era fácil. O que era causa e o que era consequência? Boas instituições poderiam ter facilitado o acúmulo de riqueza, mas o contrário também poderia ter acontecido. Como saber o que veio primeiro?

Acemoglu, Johnson e Robinson usaram o que economistas chamam de experimento natural. Essas técnicas se disseminaram na economia no final da década de 1980 e no início dos anos 1990 como forma de avaliar o impacto de políticas sociais. A ideia básica é selecionar lugares parecidos, onde uma política foi adotada em só parte deles, e comparar o que aconteceu com cada um deles ao longo do tempo. Até então, essas metodologias não eram usadas para avaliar eventos históricos —eram utilizadas para avaliar programas educacionais ou de mercado de trabalho.

Os três pesquisadores compararam países com diferentes processos de colonização e mostraram que, naqueles onde a mortalidade foi maior no período colonial, existem hoje instituições piores e, na média, os países são mais pobres. O argumento central é que, onde a mortalidade era mais alta, foram estabelecidas instituições extrativistas, sem Estado de Direito e com direitos de propriedade fracos, e que essas instituições persistiram até hoje.

Se as instituições impostas na colonização foram realmente importantes, civilizações que eram prósperas antes de se tornarem colônias devem ser hoje mais pobres como consequência da imposição de instituições extrativistas. Esse argumento já havia sido defendido por outros cientistas sociais, como os historiadores Stanley Engerman e Kenneth Sokoloff em um trabalho sobre a reversão da riqueza nas Américas. Eles notaram que grandes proprietários fundiários e instituições extrativistas (trabalho escravo) foram favorecidos em locais onde a produção agrícola demandava grandes extensões de terra. Isso gerou desigualdade e concentrou o poder político em uma pequena elite.

Faltava, contudo, uma metodologia capaz de quantificar esses efeitos. Em um trabalho, Acemoglu, Johnson e Robinson compararam a renda per capita dos países no final do século 20 com as taxas de urbanização e densidade populacional por volta de 1500, quando os europeus começaram a colonização. Os pesquisadores descobriram que países relativamente ricos em 1500 são hoje relativamente pobres, o que sugere que a geografia não pode ser um fator determinante no crescimento das nações.

A pesquisa dos vencedores do Nobel impulsionou uma enorme literatura. Diversos pesquisadores chamaram a atenção para problemas com os dados históricos e o tratamento do processo de colonização como experimento natural. A principal crítica veio dos economistas Edward Glaeser, Rafael La Porta, Florencio López de Silanes e Andrei Shleifer, que argumentaram que os colonizadores também trouxeram capital humano, o que pode ter gerado investimentos em educação que explicariam o desenvolvimento a longo prazo.

Uma forma de testar se instituições afetam a prosperidade a longo prazo é focar um país e analisar a variação entre regiões que tiveram experiências históricas distintas.

Melissa Dell, orientada por Daron Acemoglu no MIT, analisou, em um trabalho publicado em 2010, os efeitos de longo prazo da mita, instituição de trabalho forçado em que espanhóis obrigavam aldeias indígenas a ceder parte da sua população para a mineração de prata. Dell demonstrou que locais onde a mita existiu são mais pobres até hoje.

Sara Lowes e Eduardo Montero, alunos de James Robinson em Harvard, estudaram a extração de borracha no Congo belga. Eles mostraram que locais onde houve concessões para essa atividade são hoje mais pobres, têm índices de escolaridade menores e indicadores de saúde piores.

Em relação ao Brasil, Joana Naritomi, Rodrigo Soares e Juliano Assunção publicaram um trabalho em 2012 que mostrou que locais que fizeram parte do boom de cana-de-açúcar ou do ouro no período colonial têm pior governança e pior provisão de bens públicos.

A contribuição acadêmica de Acemoglu e Robinson não se reduz a demonstrar que instituições têm um efeito causal na prosperidade dos países. Eles construíram modelos matemáticos para explicar por que instituições políticas são fundamentais para o processo de consolidação democrática e desenvolvimento econômico. Em países onde o poder político é distribuído mais igualitariamente, políticas públicas e escolhas de instituições econômicas geram mais prosperidade.

Essas ideias contrastam radicalmente com a forma como a maioria dos economistas modelavam o desenvolvimento econômico até os anos 1990, ignorando totalmente aspectos políticos.

Usar modelos em que a adoção de inovações tecnológicas dependem da aprovação do governo é uma forma de pensar a relação entre elites políticas e desenvolvimento econômico. Podemos imaginar uma sociedade agrícola em que a elite mantém seu poder político controlando os trabalhadores rurais. A modernização por meio da industrialização não só muda a atividade econômica predominante, mas leva à perda da capacidade da elite de controlar os trabalhadores. Em um caso como esse, a elite poderia frear a industrialização e atrasar a adoção de tecnologias modernas pelo país por temor de perda de poder político.

Durante os anos 2000, Acemoglu e Robinson publicaram uma série de trabalhos na área de economia política buscando responder por que países não adotam instituições que maximizam o bem-estar da sua população. Como instituições ineficientes são sustentadas ao longo do tempo? Em que contextos acontecem transições de regimes autoritários para regimes democráticos?

Os autores usaram modelos matemáticos para construir uma teoria geral do processo de democratização, consolidação democrática e reversão autoritária por meio de golpes de Estado. Suas teorias, resumidas no livro “Economic Origins of Dictatorship and Democracy “, de 2005, partem de duas premissas. Primeiro, que o povo —mesmo em sistemas autocráticos, em que não tem poder político— pode fazer uma revolução e tirar os ricos do poder. Segundo, que a elite, para evitar que isso aconteça, pode reprimir o povo usando violência ou redistribuir recursos.

Eles mostram que, para satisfazer as demandas da população mais pobre e prevenir uma revolução, a elite precisa fazer concessões, mas que essas concessões podem não ser críveis, já que as condições econômicas podem mudar ao longo do tempo. Mesmo que a elite promova uma redistribuição de renda no presente, a probabilidade de uma revolução pode ser baixa no futuro e a elite decida redistribuir menos.

A questão do compromisso crível é central nos modelos de Acemoglu e Robinson. A democratização, em seus modelos, surge como uma forma de tornar crível a promessa de redistribuição futura. Quando a população mais pobre adquire o direito ao voto, as políticas implementadas tendem a refletir os interesses do cidadão mediano em vez de atender exclusivamente aos desejos da elite. Portanto, a democratização é vista como uma concessão estratégica por parte da elite para evitar uma revolução.

Em modelos posteriores, os pesquisadores ultrapassaram a dicotomia entre ditadura e democracia e se perguntaram por que vemos transições democráticas sem a esperada redistribuição para a população mais pobre. Para explicar esses fenômenos, eles construíram um modelo que distingue as instituições entre regras “de jure” e “de facto”.

Uma coisa é que o que está escrito na Constituição, outra é o que realmente acontece na vida real. Mesmo que um país permita que seus indivíduos mais pobres passem a votar, a elite ainda pode recorrer à compra de votos, à violência ou mesmo a regras eleitorais que façam com que o voto dos mais pobres valha menos.

Um exemplo desse modelo foi testado empiricamente por Thomas Fujiwara que estudou a introdução do voto eletrônico no Brasil em 1996. O economista brasileiro mostrou que, apesar de indivíduos analfabetos terem o direito de votar desde 1985, grande parte dos seus votos eram anulados. A introdução do voto eletrônico mudou essa situação, garantiu mais representatividade “de facto” e mudou as políticas implementadas pelos políticos eleitos.

Os modelos de Acemoglu e Robinson nos ajudam a entender uma variedade de fatores que facilitam ou dificultam a consolidação democrática, como o nível de organização da sociedade civil, a desigualdade entre ricos e pobres e o impacto de crises econômicas. Ao incorporar a dinâmica política nas análises, seus estudos não apenas explicam por que algumas nações fracassam, mas oferecem dicas valiosas sobre como promover o crescimento econômico sustentável e inclusivo.

Em um momento em que a democracia enfrenta desafios globais, focar as instituições políticas é uma contribuição essencial e oportuna.

 

 

Lula na encruzilhada, por José Luis Fevereiro.

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Por trás da hesitação diante pacote proposto por Haddad, há uma guerra. A Faria Lima e a mídia chantageiam para definir de vez os rumos do governo. O presidente parece ter percebido que, se ceder, caminha para uma derrota desonrosa em 2026.

José Luis Fevereiro – OUTRAS PALAVRAS – 10/11/2024

Lula foi eleito em 2022 numa frente ampla que ia da esquerda até a parte da Faria Lima, mais exatamente a Febraban.

O mesmo acordo, “com o STF com tudo” que tirou Lula de Curitiba e anulou suas condenações fajutas, viabilizou a sua candidatura em defesa das liberdades democráticas e contra Bolsonaro.

A Democracia Liberal não é apenas um conjunto de regras para arbitrar as disputas entre classes sociais, mas também para arbitrar os conflitos intra classes sociais. Bolsonaro era disfuncional para isso e parte da burguesia brasileira decidiu se livrar dele.

O acordo com Lula, a Frente Ampla, não era apenas colocar Geraldo Alckmin na sua roupagem de simpático médico do interior como vice. Alckmin era o símbolo de um acordo.

Lula obtinha um expressivo impulso fiscal garantido pela PEC da transição que somava quase 200 bilhões de reais ao já turbinado orçamento de 2022 com a PEC eleitoral de Bolsonaro, revogava-se o teto de gastos, mas em contrapartida se aprovaria um novo arcabouço fiscal que garantiria novas amarras ao gasto público a serem usadas quando o desemprego baixasse a patamares que elevassem o poder de barganha do trabalho em relação ao Capital, viabilizando ganhos reais de renda além do crescimento da produtividade, reduzindo desta forma a participação dos lucros na renda nacional.

Parte da esquerda achou boa ideia a Frente Ampla e agora manifesta seu espanto quando a Banca cobra o cumprimento do acordado. Desde 2023 que se sabe que o arcabouço fiscal não se sustentaria sem o pleno enquadramento aos seus limites do conjunto dos gastos contidos no orçamento. A quebra dos pisos constitucionais da saúde e educação, a limitação da política de valorização do salário mínimo e os gastos previdenciários acabariam sendo colocados na mesa.

Lula tentou administrar essa situação empurrando com a barriga se possível até depois de 2026. Só que o desemprego caiu ao menor patamar desde 2013 e o trabalho recuperou condições de barganha em relação ao Capital. A burguesia cobra para já o cumprimento do pactuado.

A Faria Lima em si não tem voto, mas os aparatos mediáticos que se alinham com ela, como a Globo, por exemplo, formam opinião e foram importantíssimos na eleição de Lula. E a Faria Lima tem força para chantagear o governo pressionando o câmbio e contando com a colaboração do Banco Central.

Por outro lado, uma investida do governo Lula cortando renda dos mais pobres, tornando mais rígidos os critérios de acesso ao BPC, alterando a política de valorização do salário mínimo, e mexendo nos pisos da saúde e educação, atingirá diretamente a sua base social.

Nestas horas é importante lembrar que o Partido Democrata acaba de perder as eleições, não porque Trump tenha aumentado sua votação (perdeu mais de 1 milhão de votos em relação a 2020), mas porque mais de 10 milhões de eleitores de Biden em 2020 desistiram de votar este ano.

Lula tem dois caminhos pela frente. Manter o pacto da Frente Ampla e garantir mais tempo de trégua com seus aparatos mediáticos (nenhuma garantia de apoio em 2026, porque seguem sonhando com um candidato dos seus sem a disfuncionalidade de Bolsonaro) , pagando o enorme preço da perda de confiança e de motivação de parcela importante da base social que o elegeu com consequências eleitorais dramáticas em 2026; ou romper esse pacto, enfrentar os riscos inerentes a essa ruptura, governar os dois anos restantes sob fogo de barragem da mídia e sob a chantagem dos mercados, mas manter coesa e mobilizada a sua base social.

Em qualquer cenário, perder as eleições em 2026 será uma forte possibilidade. Mas se for para perder que seja defendendo os seus porque isso constrói melhores condições para o futuro. Melhor o risco de uma derrota eleitoral que o risco de uma derrota eleitoral com cara de derrota histórica.

 

Ainda estou aqui, por Erik Chiconelli Gomes

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Erik Chiconelli Gomes – A Terra é Redonda – 09/11/2024

Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles

Ainda estou aqui transcende a mera representação histórica para se estabelecer como um documento vivo da memória coletiva brasileira. O filme se apropria magistralmente das experiências cotidianas para construir uma narrativa que evidencia as múltiplas camadas de resistência presentes na sociedade brasileira durante o período ditatorial.

A construção narrativa proposta por Walter Salles dialoga intimamente com a ideia de que a história se manifesta através das experiências vividas por indivíduos comuns, especialmente aqueles que se encontram em situações de opressão e resistência. Neste sentido, a escolha de centralizar a narrativa em Eunice, interpretada magistralmente por Fernanda Torres, não é apenas uma decisão estética, mas também metodológica.

O filme evidencia como as estruturas de poder se materializam no cotidiano das pessoas, transformando espaços de convivência em locais de vigilância e opressão. A cena inicial, com o helicóptero sobrevoando a praia do Leblon, estabelece uma metáfora poderosa sobre a onipresença do aparelho repressivo estatal.

A transformação da protagonista de uma típica dona de casa da elite carioca em uma figura de resistência demonstra como as situações históricas podem mobilizar indivíduos para além de suas posições sociais predeterminadas. Esta mudança reflete um processo histórico mais amplo de conscientização e mobilização social.

A narrativa estabelece um diálogo profundo com as práticas de resistência cotidiana, demonstrando como as pequenas ações de enfrentamento ao regime se manifestavam nos gestos mais simples, desde a preservação da memória familiar através de filmagens em Super 8 até a manutenção da esperança em meio ao desaparecimento forçado.

O trabalho fotográfico de Adrian Tejido merece destaque especial por sua capacidade de traduzir visualmente a dialética entre opressão e resistência. O uso consciente da luz e da sombra cria uma atmosfera que reflete as contradições do período histórico retratado.

A presença da câmera na mão em determinados momentos estabelece uma conexão direta com o cinema verdade brasileiro, criando uma ponte entre a ficção e o documento histórico. Esta escolha estética reforça o compromisso do filme com a verdade histórica sem abrir mão de sua potência narrativa.

A construção narrativa do filme dialoga diretamente com as pesquisas historiográficas que evidenciam o caráter sistemático da violência estatal durante o regime militar. A cena da prisão de Rubens Paiva, retratada com uma brutalidade contida, mas impactante, ecoa os relatos documentados pela Comissão Nacional da Verdade sobre os métodos de repressão utilizados pelo Estado.

O ambiente do DOI-CODI, retratado com uma frieza calculada por Walter Salles, representa não apenas um espaço físico de tortura, mas simboliza todo um sistema institucionalizado de repressão. A interpretação de Fernanda Torres nesses momentos traduzida cinematograficamente o que os arquivos do DOPS, hoje disponíveis para pesquisa, revelam sobre o tratamento dado aos prisioneiros políticos.

A narrativa familiar de Paiva serve como microcosmo para compreender uma questão mais ampla: o desmantelamento sistemático das estruturas democráticas brasileiras. O filme evidencia como a classe média intelectualizada, inicialmente apoiadora do golpe, gradualmente também foi vitimada pelo aparelho repressivo que ajudou a legitimar.

O aspecto mais contundente da obra reside em sua capacidade de demonstração como o terrorismo de Estado operava em vários níveis. Para além da violência física, o filme expõe a violência psicológica perpetrada contra as famílias dos desaparecidos políticos. A busca incessante de Eunice por informações sobre o marido reflete uma realidade ainda presente na sociedade brasileira.

Walter Salles consegue capturar, através da transformação de Eunice, o processo de politização forçada que muitas famílias experimentaram durante o regime. O filme dialoga com estudos historiográficos que demonstram como as mulheres, especialmente as esposas e mães de desaparecidos políticos, tornaram-se importantes agentes de resistência.

A constante presença do medo, representada através de elementos sutis como olhares desconfiados e conversas sussurradas, encontra-se paralelamente nos depoimentos coletados por pesquisadores que estudaram a memória do período. O filme evidencia como o terror psicológico foi uma ferramenta deliberada de controle social.

O uso de imagens de arquivo familiar no Super 8 não serve apenas como recurso estético, mas representa uma importante fonte histórica sobre o período. Essas filmagens caseiras, comuns entre famílias de classe média da época, tornaram-se documentos importantes para compreender o cotidiano durante a ditadura.

O filme aborda também a questão da impunidade e do silenciamento institucional. A ausência de respostas sobre o destino de Rubens Paiva reflete um problema maior: a política de ocultamento e negação que persiste até hoje em setores da sociedade brasileira.

A transição entre períodos históricos é magistralmente representada pela presença de Fernanda Montenegro como a Eunice dos anos 2000. Esta escolha narrativa dialoga com estudos sobre memória e trauma coletivo, demonstrando como as feridas da ditadura permanecem abertas nas gerações subsequentes.

O filme evidencia como a estrutura familiar, tradicionalmente vista como espaço de proteção, tornou-se alvo direto da violência estatal. A desestabilização das relações familiares era parte integrante da estratégia de terror renovada pelo regime.

A representação da elite carioca e suas contradições encontra respaldo em estudos historiográficos sobre o papel das classes privilegiadas durante o regime militar. O filme expõe as fissuras dentro dessa classe social, evidenciando como o apoio inicial ao golpe se transformou em resistência quando a violência atingiu seus próprios círculos.

Walter Salles consegue, através de sua narrativa, contribuir para o que os historiadores têm chamado de “dever de memória”. O filme se estabelece não apenas como obra artística, mas como documento importante para a construção de uma memória coletiva sobre o período.

A ausência de respostas definitivas sobre o destino de Rubens Paiva, mantida no filme, dialoga com a luta permanente por verdade e justiça no Brasil. O filme evidencia como o desaparecimento foi uma política de Estado que continua reverberando no presente.

A obra se insere em um importante momento de revisão historiográfica sobre o período ditatorial, contribuindo para desconstruir narrativas que minimizam ou justificam a proteção dos direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro.

*Erik Chiconelli Gomes é pós-doutorando na Faculdade de Direito na USP.

Referência

Ainda estou aqui
Brasil, 2024, 135 minutos.
Direção: Walter Salles.
Roteiro: Murilo Hauser e Heitor Lorega.
Direção de Fotografia: Adrian Teijido.
Montagem: Affonso Gonçalves.
Direção de Arte: Carlos Conti
Música: Warren Ellis
Elenco: Fernanda Torres; Fernanda Montenegro; Selton Mello; Valentina Herszage, Luiza Kosovski, Bárbara Luz, Guilherme Silveira e Cora Ramalho, Olivia Torres, Antonio Saboia, Marjorie Estiano, Maria Manoella e Gabriela Carneiro da Cunha.

 

Bibliografia

 

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Reis Filho, Daniel Arão. Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade  Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

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Teles, Janaína de Almeida. Os Herdeiros da Memória: A Luta dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos por Verdade e Justiça no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2017.