Crescimento Econômico

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Apesar das dificuldades constantes das questões fiscais, a economia brasileira apresentou um crescimento de 0,9% no último trimestre, gerando sentimentos interessantes, uns grupos ressaltam o crescimento econômico do período de forma positiva, destacando a resiliência na estrutura produtiva nacional mesmo num ambiente marcado por grandes instabilidades e inseguranças.

De outro lado, percebemos grupos econômicos e políticos que acreditam que o crescimento econômico está diminuindo, perdendo tração, destacando a fragilização fiscal e que as perspectivas não são muito positivas, apostando que a economia nacional chegou no seu limite máximo e, se continuar crescendo, vai produzir impactos inflacionários que tendem a aparecer com maior força, levando o Banco Central a intensificar o incremento nas taxas de juros, reduzindo os investimentos produtivos, aumentando o desemprego e limitando a renda agregada, como força de reduzir os impactos sobre os preços.

Vivemos num momento de grandes incertezas, o tão sonhado crescimento econômico e a redução do desemprego, visto como muito positivo, tende a pressionar os preços relativos e a inflação cresce com maior rigor e intensidade, gerando pressões crescentes sobre o governo federal para adotar medidas mais profundas para encontrar o equilíbrio fiscal, reduzindo os repasses para os grupos mais fragilizados, esse grupo é visto como o grande responsável pelo retorno do presidente Lula ao governo numa eleição fortemente polarizada.

A economia brasileira apresentou indicadores que sinalizam um crescimento em torno de 4%, um número visto por muitos economistas ortodoxos como algo muito elevado para o potencial da economia nacional. Vivemos momentos de forte crescimento da demanda, motivado pelo consumo crescente e pelos investimentos em ascensão, que tendem a diminuir nos próximos meses, mostrando que para continuar crescendo e com redução no desemprego, precisamos aumentar os investimentos produtivos. Neste cenário, percebemos que, com as taxas de juros que temos , nosso crescimento tende a diminuir de forma acelerada, o chamado voo de galinha, que acontece com a economia nacional a muitas décadas.

 

Milei supera oposição e joga sozinho em 1º ano de governo, por Fabio Giambiagi

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 Em cenário de turbulências e oposição dividida, presidente pode ser divisor de águas na Argentina

Fabio Giambiagi, Economista especialista em finanças públicas e Previdência Social. Autor, entre outros, do livro “Tudo Sobre o Déficit Público: Um Guia Sobre o Maior Desafio do País Para a Década de 2020” (Alta Books).

Folha de São Paulo, 01/12/2024

[RESUMO] Javier Milei completa no dia 10 seu primeiro ano como presidente da Argentina, período marcado pelo início da implementação de um programa de corte de gastos e de diminuição estatal sem precedentes na história de seu país, frente a uma oposição peronista enfraquecida. Embora resultados até aqui exitosos em alguns indicadores inspirem prognósticos otimistas, ainda é cedo para dizer se a Argentina caminha mais uma vez para o desastre ou se Milei, figura folclórica cheia de bizarrices, levará o país a uma economia estável de livre mercado.

O variado conjunto de esquisitices que marcou a irrupção do presidente argentino Javier Milei na política fez com que muitas vezes fosse encarado apenas como uma figura folclórica. O objetivo deste artigo é mostrar como, a despeito de tais bizarrices, ele pode vir a se tornar um divisor de águas na história da Argentina, pela profundidade do ajuste e das reformas que vem tentando implementar.

A exemplo de Jair Bolsonaro, Milei é um personagem que desperta emoções intensas. Traçar uma avaliação isenta do seu primeiro ano de governo, portanto, é um desafio.

Tentarei, no restante deste texto, não cair nos extremos, tanto de quem diz que ele está liderando uma economia em “recuperação em forma de V”, como da postura da oposição peronista, que julga que ele está destruindo o país, esquecendo-se do que foram as últimas décadas da Argentina, cuja decadência, na verdade, começou na última Presidência de Juan Domingo Perón (1973-1974).

O ajuste

A base de toda a estratégia oficial é atingir e manter o tão almejado “déficit zero” nas contas públicas, ou seja, o equilíbrio entre receitas e despesas totais. Se o governo conseguir, seria realmente um feito notável que, mantido a longo prazo, marcaria um contraste completo em relação às décadas de desequilíbrio fiscal responsáveis pelas múltiplas crises econômicas argentinas desde o pós-guerra.

Por enquanto, esse resultado vem sendo conseguido, ao menos até outubro, graças a uma estratégia de “arrocho” da despesa —que, em quaisquer outras circunstâncias que não as da Argentina atual, teria levado os responsáveis por essa política à beira da destituição, por falta de condições para se manter no poder.

Entretanto, na Argentina de 2024, qual é o pano de fundo? Três governos anteriores fracassados (Cristina Kirchner, Maurpicio Macri e Alberto Fernandez), uma inflação em 2023 na casa de três dígitos anuais, um nível muito elevado de pobreza antes de Milei assumir, a oposição estraçalhada, e Fernandez suspeito de praticar corrupção e indiciado por agressão contra ex-primeira-dama.

Nesse contexto, Milei  reuniu absoluto em 2024 no campo da política com uma espécie de “cheque em branco” inicial da sociedade para fazer “o que fosse preciso” para cumprir a promessa de acabar com a inflação.

O seu governo então promoveu uma contração real do gasto, até outubro, de nada menos que 28%, na comparação com os mesmos meses do ano anterior, com reduções de 19% da despesa em benefícios previdenciários, de 30% em subsídios, de 68% nas transferências discricionárias para as províncias e de 78% no investimento público.

Isso levou o país não apenas a obter superávit primário nas suas contas, como inclusive a ter um pequeno superávit fiscal nominal nos primeiros dez meses do ano, mesmo incluindo os juros.

A repetição constante da expressão “no hay plata” para dizer “não” às demandas por mais despesas levou muitos analistas a admitir que o país está passando por uma “mudança de época”, uma espécie de novo zeitgeist em relação à cultura tradicionalmente estatista e gastadora da política argentina.

A dúvida, no caso, é se a sociedade suportará estoicamente esse rigor e premiará o presidente com uma vitória eleitoral nas eleições parlamentares de 2025 e na reeleição em 2027, ou se, no meio do caminho, não voltará a dar uma chance ao velho peronismo ressurgindo, mais uma vez, das cinzas.

Inflação

Em algumas entrevistas nos anos que antecederam a sua eleição, quando era presença constante em programas de televisão e de YouTube, Milei reconheceu que “a diferença entre um gênio e um louco é o sucesso”. Como ele trouxe elementos disruptivos positivos, mas, ao mesmo tempo, está longe de ser considerado uma pessoa que funciona dentro das condições normais de temperatura e pressão, a forma como passará à história argentina dependerá do que ocorrer com a inflação.

Se houver um “antes” e um “depois” da Presidência dele, como foi o caso do Plano Real aqui, será visto pelos livros como “o presidente que derrotou a inflação”, da mesma forma que FHC está associado à ideia de conquista da estabilidade.

Por outro lado, se a inflação, após uma queda temporária, voltar a subir, Milei ficará conhecido para sempre pelo título da biografia não autorizada que um jornalista lançou sobre ele em 2023, “El loco”. E o que foi que aconteceu com a inflação, até agora?

Os dados mostram uma queda muito expressiva da variação mensal dos preços depois de dezembro, quando Milei assumiu o governo. No começo de sua gestão, ele adotou uma maxidesvalorização que gerou um salto inicial da inflação, até então ligeiramente superior a 10% ao mês.

Na disputa política, o peronismo imputa os 26% de inflação de dezembro a Milei, mas é óbvio que, na guerra de narrativas, este joga a culpa no governo anterior, devido à forte expansão monetária durante a campanha eleitoral.

Depois disso, a taxa de variação mensal dos preços foi caindo seguidamente, com uma ou outra oscilação, para 21% em janeiro, 13% em fevereiro, 11% em março e assim sucessivamente, até menos de 3% em outubro.

O governo ainda se aferra ao poder de convergência relacionado com o crawling peg, minidesvalorizações diárias da taxa oficial, de 2% ao mês, que em 2025 será de apenas 1,4 %, com o que Milei aposta em obter uma inflação mensal de 1% a 1,5% ano que vem.

Para um país que parecia flertar com a hiperinflação, isso pode parecer detalhe, mas o problema é que a cada mês que a desvalorização nominal fica abaixo da inflação, a taxa de câmbio real se aprecia mais, o que inspira preocupações naturais acerca da competitividade da economia e do que poderá acontecer caso o governo deixe a taxa de câmbio flutuar livremente.

O que vai ocorrer com a inflação e com a taxa de câmbio está ainda em aberto, indo desde o otimismo do governo, que menciona chegar no futuro a uma mítica “inflação zero”, até as cassandras habituais da oposição.

Elas citam, semana sim e a outra também, com evidente frisson, os finais desastrosos de Alfonsín em 1989, De la Rua em 2001 e Macri tendo que pedir uma ajuda bilionária ao FMI para o país não quebrar em 2018.

Com essas lembranças presentes na memória do país, fazem menção ao “dia em que vai explodir tudo” —uma espécie de “tara” da política local, pouco acostumada a alternâncias tranquilas de poder. Por enquanto, porém, Milei navega de braçada, como dizendo “so far, so good” (por enquanto, tudo bem).

Recessão

É importante lembrar que em 2023 a Argentina enfrentou a pior seca dos últimos 100 anos. Portanto, em condições normais, 2024 deveria ser um ano de recuperação, nem que seja pelo retorno à normalidade do setor agropecuário, chave na economia do país.

O fato de, após a queda do PIB de 2023, o país se preparar para um novo encolhimento no ano em curso, da ordem de 3%, dá uma ideia da intensidade da crise.

Fazer história contrafactual é um exercício tão difícil quanto fútil, de modo que cada um pode imaginar o que quiser acerca do que poderia ter acontecido com os números de crescimento, se o candidato do peronismo tivesse vencido o segundo turno das eleições presidenciais em 2023.

Após o início de um declínio que, em termos dessazonalizados, já tinha começado antes de Milei assumir, a queda do nível de atividade alcançou proporções dramáticas no primeiro semestre, com o investimento chegando a cair a taxas interanuais de mais de 25% (24% no primeiro trimestre e 29% no segundo).

Chama a atenção, pela sua elevada importância relativa e pela sua intensidade, a dimensão da queda observada no consumo das famílias, com reduções interanuais de 7% no primeiro trimestre e de 10% no segundo. Há dados inequívocos, entretanto, de que o terceiro trimestre do ano marcou uma clara mudança, sendo que o governo espera que a economia cresça 5% em 2025.

As exportações estão “voando”, mas olhando para a frente, excetuando-se a recuperação do crédito em curso no rastro de uma queda da incerteza inflacionária e a possibilidade de algum “efeito rebote” do investimento após o “fundo do poço” de 2024, não está claro quais seriam os drivers do crescimento sustentado durante vários anos.

A economia operará em um ambiente onde o investimento público terá ido quase a zero; a taxa de juros real, com uma política monetária convencional, nos próximos anos, deveria aumentar em relação a 2024 em um regime de taxa de câmbio flutuante; e o grau de confiança estará longe de ter um incremento expressivo, enquanto existir a possibilidade de que um eventual novo governo em 2028 promova um giro de 180 graus em relação às políticas atuais, na ausência de acordos políticos com alguma semelhança com o famoso Pacto de Moncloa espanhol. Enfim, vale a velha expressão: “A ver”.

Pobreza

A população argentina tem passado, ao longo dos últimos 15 anos, por um calvário: cada vez que um governo acaba, o país está pior. Isso vale para diversas estatísticas. Uma delas é a da pobreza, talvez um dos indicadores mais emblemáticos da situação de um país.

Aqui a comparação com o passado distante fica prejudicada pelo “apagão” estatístico do segundo governo de Cristina Kirchner, quando o INDEC (IBGE/Argentino) passou de uma fase de “sovietização” dos dados. É razoável inferir, contudo, que no final daquele período (2012/2015) o país tinha mais pobres que no começo.

Depois, a pobreza continuou aumentando nos governos Macri e Fernández. O INDEC faz duas medições, uma por semestre, e revelou um forte crescimento também sob Milei, passando de 42% no final de 2023 (com 12% de indigência) para 53% no final do primeiro semestre de 2024 (18% de indigência), ainda que o governo atual acene com uma rápida queda no contexto de melhora do PIB no segundo semestre.

O fato é que até agora, na comparação com o começo da Presidência Macri, em 2016, a pobreza passou de 30% para 53%, e a indigência de 6% para 18%, com responsabilidades compartilhadas entre as gestões de Macri, Fernández e Milei. É muito impressionante.

Evidentemente, a economia poderá se recuperar (é razoável que haja uma boa melhora em 2025) e sempre haverá o argumento de que o ocorrido no primeiro semestre deste ano foi um efeito da necessidade de “limpar a bagunça” do caos deixado pelo kirchnerismo.

Politicamente, porém, considerando a famosa frase de Milei de que “a justiça social é um roubo”, é difícil que a oposição não explore esses números para convencer o eleitorado de que tudo decorre da insensibilidade social do presidente e de seu plano de ajuste.

O que o mercado olha?

O dólar, mais uma vez, está no epicentro do debate acerca dos rumos da economia argentina. Esta vive há anos uma situação particularmente ingrata.

Normalmente, as dívidas são roladas e, muitas vezes, aumentam. Os empréstimos do FMI são concedidos, justamente, para situações emergenciais, após as quais os países voltam aos mercados.

O problema da Argentina, porém, é sua fama, compreensível, de “caloteira serial”. Lembre-se o que, certa vez, disse David Lipton, antigo diretor do FMI: “Los argentinos son estafadores [vigaristas] simpáticos”.

A Argentina não teve, nos últimos anos, como repagar os quase US$ 45 bilhões que devia ao FMI, pois não conseguia recursos nos mercados internacionais. Tendo levado “calote” quatro vezes em quatro décadas, os investidores externos, por sua vez, ficaram escaldados com o país e só voltarão a apostar nele depois de estarem convencidos de que “dessa vez vai ser diferente”.

O que o mercado olha, então? Basicamente, cinco coisas: 1) as negociações com o FMI, para avaliar se há chances de a instituição emprestar ao país, o que requer um plano sólido de reformas e certa flexibilidade do organismo, para o qual a Argentina se converteu numa grande dor de cabeça nos últimos anos; 2) o spread entre o dólar paralelo e o oficial, como sinalizador da situação das contas externas; 3) a trajetória da inflação (continuará caindo? ficará estacionada ali pelos 3% mensais?); 4) os resultados fiscais mês a mês, para se ter certeza de que o ajuste é “pra valer”; e 5) as pesquisas sobre popularidade do governo, para medir a temperatura de até que ponto a população continuará a apoiar um presidente que fez o “maior ajuste fiscal da história”, como Milei não cansa de se gabar.

Nesse contexto, em algum momento, o governo terá que decidir o que fazer com o cepo cambial, um conjunto de restrições vigentes há 5 anos que limitam a demanda por dólares ao câmbio oficial.

O ideal para Milei seria acabar com as restrições, sem que no dia seguinte ocorra um salto da cotação cambialO outro extremo seria haver uma corrida e o dólar escalar. “Nesse caso, o governo terá acabado”, como diz Ricardo Arriazu, um dos economistas que mais apoiam a política oficial.

Por enquanto, o governo “vai levando” —nos últimos meses, inclusive, o spread chegou a diminuir expressivamente, no que a imprensa chamou de “veranito” financeiro.

“Y ahora, qué?”

Os primeiros meses de processos de transformação são incertos, pois no começo não se sabe se estamos na etapa inicial de uma nova era ou num interregno antes do retorno a algo que se imaginava ter ficado atrás.

Em 2024, sabemos que o Plano Real deu certo, mas em 1995 ainda havia muitos temores. Em 2024, sabemos que o câmbio flutuante de 1999 veio para ficar, mas as primeiras semanas do novo regime foram de pânico, com muitas dúvidas acerca do futuro.

Hoje, é difícil fazer apostas taxativas de que a Argentina esteja no limiar de uma transformação definitiva para se tornar uma economia estável e competitiva de livre mercado. Será que, no final, não assistiremos a um novo fracasso? Ninguém tem uma resposta categórica.

No cerne da questão, há um tema crucial: o que acontecerá com o país, 20 anos à frente? Há condições de serem estabelecidos entendimentos que, em caso de mudança de governo, possam ser respeitados, preservando políticas sensatas, como no Uruguai, onde as gestões se alternam sem grandes mudanças do menu econômico?

Olhando os dados fiscais e de inflação, há razões para otimismo. Já observando-se o comportamento do presidente, que com seu descontrole verbal chama de “ninho de ratos” o Congresso, enquanto os seus “trolls” qualificam como “fracassados” ou até “velhos mijões” os consultores críticos acima dos 60 anos, com campanhas de perseguição midiática de rara brutalidade, é difícil não encarar o futuro com reservas, acentuadas pelas dúvidas acerca da capacidade de conservar uma taxa de câmbio que foi se apreciando em termos reais.

“Pensei que não havia nada mais apaixonante do que uma corrida de touros, até que ouvi dois argentinos discutindo sobre política”, disse certa vez o mexicano Octavio Paz. A desunião foi sempre uma receita de fracasso no país.

Milei conseguiu fazer um ajuste impressionante sem apoio político, apenas a partir de determinação e liderança difundidas nas novas mídias. Se as pesquisas deixarem de sorrir para o governo, a lista dos inimigos dá três voltas na Casa Rosada.

Por enquanto, porém, com a inflação em queda, o dólar parado, a oposição dividida e o peronismo capitaneado pela figura fantasmagórica de Cristina Kirchner, Milei “les pasa por arriba” (esmaga) a todos.

 

Estamos vivendo numa democracia? por Oded Grajew

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Que modelo é este que produz terríveis desigualdades?; mudanças no IR são justas, mas pobres continuarão a ser penalizados

Oded Grajew, Presidente emérito do Instituto Ethos, conselheiro do Instituto Cidades Sustentáveis e membro do Pacto Nacional pelo Combate às Desigualdades

Folha de São Paulo, 02/12/2024

A democracia poderia ser definida como um regime político em que o poder é exercido de forma participativa pelos cidadãos, diretamente ou por meio dos seus representantes. Sendo assim, na democracia exercida em sua plenitude, as políticas públicas deveriam beneficiar de forma equitativa o conjunto da sociedade, resultando num país com poucas desigualdades.

Vejamos o quadro no Brasil: somos o sétimo país mais desigual do mundo, apesar de sermos a oitava maior economia. De acordo com o Observatório Brasileiro das Desigualdades, idealizado pelo Pacto Nacional Pelo Combate às Desigualdades, as nossas desigualdades econômicas, sociais, ambientais, regionais, de gênero e raça são enormes. Por exemplo: 1% da população detém 63% da riqueza do Brasil; os 10% mais ricos obtêm um rendimento médio mensal per capita 14,4 vezes maior que os 40% mais pobres; cerca de 7,6 milhões de brasileiros vivem com uma renda domiciliar per capita mensal menor do que R$ 150; a mulher negra ganha em média 42% do que recebe o homem não negro; as pessoas negras representam 76,9% das vítimas de mortes violentas intencionais e são 83,1% das mortes decorrentes de intervenções policiais; a taxa de mortalidade infantil é 59% maior na região Norte do que na região Sul.

Todos que têm o mínimo de conhecimento de como funciona o nosso sistema político sabem da enorme influência do poder econômico nas eleições e sobre os tomadores de decisões, nas várias instâncias de poder das nossas instituições públicas. Como resultado direto temos políticas e decisões políticas que beneficiam a minoria mais rica e consequentemente sustentam e alimentam as desigualdades brasileiras.

O nosso sistema tributário é um dos mais regressivos do mundo; o Brasil é um dos poucos países que não taxam lucros e dividendos e instituímos diversos mecanismos que fazem com que, atualmente, mais de 70% da renda dos super-ricos não seja tributada. As mudanças no Imposto de Renda anunciadas na semana passada são justas, mas os pobres continuarão a pagar proporcionalmente mais tributos que os ricos porque ainda taxamos muito o consumo e pouco a renda e o patrimônio.

Tudo isso apesar de a Constituição brasileira declarar que “constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. O que significa que o nosso sistema tributário deveria ser considerado inconstitucional!

O nosso terrível e vergonhoso quadro de desigualdades não foi construído por acaso, é resultado de decisões políticas. Alimenta a descrença na política e na democracia e reforça os movimentos políticos extremos e autoritários (vale lembrar que os Estados Unidos são o país mais desigual entre as nações mais desenvolvidas).

Se quisermos valorizar e defender a democracia e barrar seus detratores precisamos nos empenhar para que as políticas públicas se liberem da influência excessiva do poder econômico, respondam às necessidades de toda a população e não apenas aos interesses de uma minoria —e estejam dedicadas, como manda a Constituição, à redução das desigualdades. Caso contrário, poderemos estar sempre nos perguntando: Estamos vivendo numa democracia? Que democracia é esta que produz tantas e terríveis desigualdades?

O que há por trás dos boicotes, por Ana Paula Vescovi

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Reações acirradas de grupos franceses ao acordo UE-Mercosul demonstram o quão estratégico ele se tornou

Ana Paula Vescovi, Economista-chefe do Santander Brasil.

Folha de São Paulo, 10/12/2024

Uma carta aberta de uma das maiores redes varejistas francesas iniciou boicote quase despretensioso sobre a compra de carnes do Brasil; a resposta brasileira, vinda do setor produtivo, traz à tona o potencial destrutivo da guerra comercial.

Os produtores sujeitos às restrições impostas pela França reagiram deixando de vender carnes para a rede europeia no Brasil. O movimento foi tão forte que levou a empresa francesa a uma retratação.

O principal prejudicado? O consumidor, sempre.

A proximidade da reunião de presidentes do Mercosul, no Uruguai, na primeira semana de dezembro atraiu o furor de produtores rurais franceses. A diplomacia dos dois blocos —União Europeia e Mercosul— trabalha para pautar e votar pela aprovação do acordo birregional.

O Brasil tem demonstrado com ênfase o seu interesse na aproximação. Do lado europeu, os mais enfáticos são os alemães, os espanhóis e os portugueses. Além da França, Polônia, Áustria e Itália apresentaram algum nível de resistência.

O que está em jogo é uma frente de redução de tarifas, com definição de quotas em alguns casos, para intensificar a corrente de comércio e serviços entre as duas regiões.

Os ganhos de comércio são há muito tempo conhecidos na literatura. São um verdadeiro ganha-ganha. Os países podem se especializar na produção de bens e serviços em que são mais eficientes, levando ao aumento da produtividade geral, do nível de renda e da produção e revelando vantagens comparativas.

Ademais, o comércio internacional promove a concorrência e a contestação de mercados, o que contribui para preços mais baixos, melhor qualidade e práticas de produção e maior inovação. O acesso a mercados maiores permite que as empresas produzam em maior escala, reduzindo potencialmente os custos por unidade e que os consumidores tenham acesso a uma gama maior de produtos e serviços de diferentes países.

Pode facilitar a troca de conhecimento e tecnologia entre países, promovendo inovação e maior crescimento potencial, além de fomentar os investimentos estrangeiros.

Embora alguns empregos possam ser deslocados entre setores e regiões, o comércio internacional cria oportunidades de trabalho em setores exportadores e nas indústrias de apoio. E não apenas empresas grandes exportam.

Os consumidores, por sua vez, podem obter preços mais baixos e maior poder de compra. E os países, por fim, podem se beneficiar com a promoção de laços diplomáticos e a paz entre as nações por meio de uma saudável interdependência econômica.

Além da teoria, a realidade demonstrou isso. Após a entrada da China na OMC (Organização Mundial do Comércio), em 2001, e economia mundial vivenciou anos de crescimento robusto com inflação controlada e juros baixos. O aumento de renda ampliou a classe média global, movimento que foi mais forte nos países em desenvolvimento. Estimativas apontam crescimento de 50% na América Latina. O que deu errado tem sido objeto de muitos estudos, mas a crise financeira global de 2008/2009 foi uma inflexão, entre outros fatores.

O concreto é que tudo mudou desde então e, nos últimos anos, as guerras comerciais têm prevalecido. As recentes eleições presidenciais nos Estados Unidos sancionaram mais aumentos de tarifas e mais disputas comerciais, o que tende a escalar no próximo ano. Esse é um fator importante por trás da reação dos franceses. A integração comercial entre Mercosul e União Europeia ficou ainda mais estratégica, para os dois lados, depois da eleição dos Estados Unidos.

De um lado, uma região que produz automação industrial de excelência, capaz de impulsionar a modernização do parque industrial na América do Sul. De outro lado, uma região capaz de alavancar os objetivos da transição (e da segurança) energética na Europa. O Brasil produz o crédito de carbono com o menor custo do planeta.

No meio, estão os produtores de alimentos na França e em algumas outras localidades. São acostumados a pesados subsídios e a uma regulação ambiental severa, com estrutura fundiária diferente da nossa (menos concentrada).

A acidez e o tom ofensivo das manifestações na França revelam nada mais do que o tamanho da briga para manter o status quo. Simplesmente negligenciam os anos de avanços tecnológicos e na vigilância sanitária que tivemos. No Brasil, iniciativas no próprio setor privado têm assegurado políticas rigorosas de desmatamento ilegal zero com 100% de rastreabilidade nos seus negócios de exportação. E não somente para a Europa. O uso de satélites de rastreamento e da inteligência artificial já é uma realidade no monitoramento de fazendas exportadoras.

Mas toda crise traz aprendizados. O primeiro deles seria assegurar um caminho consistente de “acreditação” para os nossos exportadores, com avanços consistentes no desmatamento ilegal zero e melhora na aplicação e fiscalização do Código Florestal. E muita disposição para explicar os progressos. O Brasil já se estabeleceu como uma potência pecuária, temos uma das agriculturas mais modernas do planeta, com muitos avanços por vir na área da agroenergia.

Com efeito, há muito o que avançar. E as vantagens do comércio podem trazer fortes incentivos para compromissos de preservação ambiental. Se a Europa está fidedignamente engajada no desmatamento ilegal zero, então não há melhor política do que aprofundar a (saudável) interdependência comercial com os países da região amazônica.

O que vimos com os boicotes foi uma demonstração pedagógica dos efeitos do protecionismo, caminho errado a seguir.

 

 

A Europa prepara-se para a guerra, por Flávio Aguiar

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Flávio Aguiar – A Terra é Redonda – 27/11/2024

 Sempre que a Europa preparou-se para guerra, ela acabou acontecendo, com as consequências trágicas que conhecemos

Um autêntico calafrio percorreu toda a Europa na semana passada. Noticiou-se com destaque que os governos da Suécia e da Finlândia divulgaram para seus cidadãos manuais sobre como proceder no caso de uma guerra contra terceiros.

O governo sueco distribuiu pelo correio uma brochura de 32 páginas. O finlandês disponibilizou uma publicação online.

Embora o nome não aparecesse, era óbvio que se tratava de uma guerra com a Rússia. A Suécia não tem uma fronteira terrestre com a Rússia. Há uma fronteira marítima entre ela e o enclave russo de Kaliningrado, espremido entre o Mar Báltico, a Lituânia e a Polônia. A Finlândia tem uma fronteira terrestre com a Rússia de 1.343 km.

Ambas mensagens abordam outras crises, como a ocorrência de pandemias, desastres naturais e ataques terroristas. Mas o destaque no noticiário foi para a guerra, graças à existência do conflito direto entre a Rússia e a Ucrânia, que tem o apoio da OTAN, de que não faz muito Suécia e Finlândia passaram a integrar.

Tanto na Suécia como na Finlândia as instruções envolvem a manutenção de estoques de alimentos, água, remédios e dinheiro, a guarda de cartões de crédito, conselhos sobre como se manter informado através do rádio, a busca de abrigos coletivos no caso de ataques aéreos ou nucleares, como neles se comportar ou onde se proteger caso seja impossível chegar até eles.

Logo no começo das instruções suecas, encontra-se a seguinte exortação patriótica: “Se a Suécia for atacada, nós nunca nos renderemos. Qualquer sugestão em contrário é falsa”.

Aos poucos surgiram informações complementares. Em ambos os casos, tratava-se de uma atualização de instruções anteriores. Também noticiou-se que outros governos, como os da Dinamarca e da Noruega distribuíam instruções semelhantes. Nada disto atenuou o impacto midiático do clima de preparação para uma guerra.

Para engrossar o caldo, a Alemanha entrou na dança. A mídia do país noticiou a existência de um documento do Exército até então secreto, com mil páginas sobre a possibilidade e os desdobramentos de uma guerra com a Rússia. Entre outras coisas o documento prevê que a Alemanha se transformaria num imenso corredor por onde passariam centenas de milhares de tropas da OTAN – norte-americanas e outras. O país se transformaria no grande organizador logístico do fluxo de tropas, suprimentos e armas de variada espécie para o conflito.

Outras informações vieram à tona. O Exército está disponibilizando instruções específicas para empresários sobre como adequar suas empresas à circunstância de uma guerra, com destaque para a questão dos transportes.

Para compreender o impacto destas informações, deve-se levar em conta a moldura em que surgiram e alguns antecedentes.

Concomitante a elas noticiava-se uma escalada de fato ou retórica em torno da guerra na Ucrânia e agora também em território russo, com a invasão da região de Kursk por tropas ucranianas.

Noticiou-se a presença de tropas norte-coreanas em território russo, em apoio a Moscou. O governo de Joe Biden autorizou a utilização pela Ucrânia de mísseis de longo alcance contra território russo, e o fornecimento de minas terrestres contra veículos e pessoas para o governo de Kiev. Este anunciou que a Rússia lançara um míssil de longo alcance, capaz de levar uma ogiva nuclear, contra seu território.

Moscou relaxou as normas para utilização se armas nucleares em caso de conflito, sobretudo se atacada por um país que tivesse o apoio de uma potência nuclear. França, Alemanha e Polônia anunciaram estarem aumentando significativamente seus orçamentos militares. O exemplo pode ser seguido por outros países. Os Estados Unidos anunciaram o restabelecimento de mísseis em território europeu.

A TV russa divulgou uma reportagem comentando quais cidades europeias poderiam ser alvo de ataques por mísseis de longo alcance. Não faz muito o governo de Joe Biden aumentou em 20% a presença de pessoal militar e conexo norte-americano no continente europeu, contingente que hoje passa de 120 mil, maior do que, por exemplo, todo o Exército do Reino Unido. Autoridades civis e militares alemãs já falaram abertamente que é possível haver uma guerra com a Rússia em cinco ou seis anos. Em suma, a Europa se prepara para a possibilidade da guerra.

Políticos que admitem o risco usam com frequência o dito popularizado em latim, “si vis pacem para bellum”, “se queres a paz, prepara-te para a guerra”. Entretanto lembremos que o currículo europeu na matéria não é bom. Sempre que a Europa preparou-se para guerra, ela acabou acontecendo, com as consequências trágicas que conhecemos.

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).

 

Parceria Estratégica

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Com o retorno de Donald Trump ao comando da sociedade norte-americana encontramos muitas inquietações e incertezas nas políticas econômica e comercial, alguns analistas acreditam que o novo governo vai retomar os confrontos com a China, limitando a entrada de imigrantes e deportando milhares de ilegais, outros especialistas apostam no retorno de uma visão mais unilateral, nos moldes do conhecido América primeiro…. que podem levar as nações ao incremento de políticas protecionistas como forma de defender sua estrutura produtiva e seu emprego interno, mesmo sabendo que essa proteção pode gerar impactos preocupantes sobre a economia mundial.

Neste cenário, percebemos que os governos nacionais estão buscando instrumentos para defender seus sistemas econômico e produtivo, evitando a perda de espaço no mercado global, cujos impactos são negativos para as economias nacionais, podendo gerar graves constrangimentos sociais, com incremento do desemprego, queda maciça da renda agregada e desajustes macroeconômicos.

Vivemos numa economia altamente integrada, as estruturas produtivas estão totalmente interligadas e interdependentes, as políticas protecionistas adotadas em uma nação podem gerar represálias comerciais, levando ao aumento dos custos de produção, incrementando os preços e impactando sobre a inflação dos países, levando as Autoridades Monetárias a adotarem políticas mais restritivas, reduzindo a quantidade de moeda em circulação e elevando as taxas de juros, com impactos generalizados sobre o investimento produtivo e, posteriormente, reduzindo a geração de emprego e da renda agregada.

O Brasil, neste cenário, caminha para momentos de grandes decisões estratégicas, que podem impactar fortemente sobre a sociedade brasileira, abrindo novos espaços e novos horizontes de comércio internacional, criando novos laços afetivos e se integrando com novos polos comerciais, produtivos e culturais, mas precisa compreender que as escolhas podem trazer novos constrangimentos políticos e econômicos, além do afastamento de investimentos estrangeiros fundamentais. As decisões exigem maturidade política para fazer as escolhas corretas e precisas, além de ampla capacidade de compreender os inúmeros desafios contemporâneos e das fragilidades internas, que podem limitar nossa capacidade de reposicionarmos na economia mundial.

Neste momento, o governo federal adota políticas efetivas para a reconstrução da indústria nacional, setor estratégico e fundamental para todas as nações e, internamente, perdeu espaço desde os anos 1990, combalida pela desastrada abertura econômica e pela adoção do câmbio como instrumento de estabilização de preços. Atualmente, as relações comerciais com os países asiáticos podem trazer grandes investimentos e novos horizontes econômicos, mas precisamos salvaguardar a estrutura produtiva, entrar numa concorrência com a indústria asiática pode ser vista como o desaparecimento por completo da indústria nacional.

Estamos num momento imprescindível para adotarmos políticas mais agressivas e ambiciosas, somos detentores de grande potencial energético, temos capacidade alimentar que poucas nações possuem e somos vistos como detentores de grande potencial produtivo e cultural. Precisamos ter a maturidade política para exigir, nos fóruns internacionais, transferências de tecnologias, sociedade com atores nacionais e atração de tecnologias para movimentarmos nosso potencial econômico e transformar nossas potencialidades para melhorarmos as condições de vida da nossa população e reduzir as desigualdades que caminham com nossa história nacional, uma trajetória de pilhagem, exploração, concentração e escravização.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.  

 

Os CEOs da terra falida, por Giovana Madalosso.

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Tem criança que sabe falar dois idiomas mas não sabe arrumar a cama

Giovana Madalosso, Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

Folha de São Paulo, 25/11/2024

É final de ano e a cidade está cheia de anúncios de escolas chamando para matrículas. Umas oferecem educação com ênfase no amanhã. Outras sugerem desenvolver no aluno o espírito de liderança. Pelo jeito, desistimos de formar cidadãos para formar CEOs. Não é só culpa das escolas: é uma demanda dos pais, preocupados em garantir um futuro de estabilidade profissional e financeira para os filhos.

Só que a vida não é uma empresa. A sociedade não cabe em um organograma. E tampouco estamos sozinhos. Aqui nesta Terra, um sonho se sonha com oito bilhões de pessoas. E uma infinidade de outros seres vivos.

A festa do Cada Um Por Si já se mostrou um fracasso. Não há pulseira VIP que nos impeça de ver a dança mórbida do capitalismo tardio, com uma minoria se refestelando com a maior parte da riqueza.

Se a propaganda da escola fosse honesta, o globo terrestre exibido na mão do aluno sorridente estaria pegando fogo. A lupa não estaria apontada para uma florzinha e sim para uma amostra de microplástico ou de corais mortos pelo calor.

Fora do muro dessas escolas, há aproximadamente oito milhões de brasileiros passando fome. Duzentas mil pessoas em situação de rua. Uma floresta prestes a virar savana. Rios sendo contaminados com mercúrio. Novos poços de petróleo sendo abertos quando mais de duzentos milhões de pessoas já se deslocam pelo mundo por causa de desastres climáticos.

O futuro brilhante vendido pela propaganda tem grande chance de ser uma distopia. E, mesmo com essa perspectiva, há quem não se importe, pensando que, como sempre, o dinheiro irá safar os seus da desgraça coletiva.

E eu só me pergunto: que altura de portão nossos filhos terão que construir para se esconder de tanta tristeza? Haja bônus e pró-labore para tanto tijolo e para tanta cerca farpada. Haja catraca e cancela para se proteger de tamanha desigualdade. Haja dique para se resguardar de uma natureza em fúria. Haja espumante para se entorpecer de tudo e tanto.

Antes nossos heróis corporativos estivessem morrendo de overdose. Estão morrendo de estresse, depressão, ansiedade, pânico, solidão, anorexia. E, mesmo assim, continuamos mirando nesses exemplos. Desviando a luneta dos nossos filhos das Três Marias para mirar nessas cadeiras. Ou numa chair bem longe daqui.

Tem criança que sabe falar dois idiomas mas não sabe arrumar a cama. Antes de qualquer coisa, deveriam aprender a limpar a casa e a escola, a observar quanto lixo cada pessoa produz, a fazer a própria comida. A não depender do outro para realizar a tarefa mais primordial que existe: cuidar de si mesmo.

Só assim mais uma geração de brasileiros não passará pelo constrangimento de estudar em uma sala de aula que só tem crianças brancas, em uma escola que só tem crianças brancas, aspirando a cargos que só são ocupados por brancos, em um país onde a maioria da população é negra e, infelizmente, em parte ainda limpa e cozinha para os outros.

É desanimador mas, por outro lado, não é. Um mundo em crise é um mundo gritando para ser refeito. Um caminho repleto de possibilidades de se agir diferente. Tenho certeza de que essa geração irá encontrar ótimas saídas, desde que tenha a chance de olhar mais para os lados, e não só para o topo.

 

BPC: Caçada aos direitos dos vulneráveis, por Ion de Andrade.

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Governo aventa corte em benefício para idosos e pessoas com deficiência na miséria – única fonte de renda para muitos. E gerará “efeito rebote” no comércio local e geração de impostos que a proteção social estimula. Vale tudo para manter o arcabouço fiscal?

Ion de Andrade – OUTRAS PALAVRAS – 28/10/2024

Recentemente a mídia repercutiu medidas do Ministério da Fazenda dando conta de um plano de cortes que penaliza brutalmente, dentre outros direitos, o BPC.

Mas o que é o BPC? O site do próprio Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome explica:

O Benefício de Prestação Continuada – BPC, previsto na Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, é a garantia de um salário mínimo por mês ao idoso com idade igual ou superior a 65 anos ou à pessoa com deficiência de qualquer idade. No caso da pessoa com deficiência, esta condição tem de ser capaz de lhe causar impedimentos de natureza física, mental, intelectual ou sensorial de longo prazo (com efeitos por pelo menos 2 anos), que a impossibilite de participar de forma plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas. O BPC não é aposentadoria. Para ter direito a ele, não é preciso ter contribuído para o INSS. Diferente dos benefícios previdenciários, o BPC não paga 13º salário e não deixa pensão por morte. Para ter direito ao BPC, é necessário que a renda por pessoa do grupo familiar seja igual ou menor que 1/4 do salário-mínimo.1

Noutras palavras o BPC é o benefício de R$1.412,00 pago a (a) idosos que, sempre subempregados e egressos da miséria, nunca contribuíram para a previdência e (b) portadores de deficiência que sejam pobres.

Esses brasileiros serão alvo do pente fino do Ministério da Fazenda para economizar parte dos 25,9 bilhões de reais previstos.

Vale ressaltar que há pessoas sem receber o BPC, mesmo fazendo jus a ele; por condições de não cidadania e de precariedades imensas nesse contingente populacional, incontáveis brasileiros e brasileiras, idosos miseráveis e portadores de deficiência, por vezes inclusive em situação de rua que estão invisibilizados.

Muitos dos que o recebem, reforçando essa ideia da exclusão social desses beneficiários, foram ajudados por terceiros de boa vontade, preocupados com a miserabilidade extrema daquele ser humano singular, no entanto elegível para receber o BPC.

Ora, se for subtraído do benefício dificilmente, muitos dos que o recebem atualmente reunirão novamente as condições para reivindicar a revisão da decisão negativa, pois precisarão atender a uma burocracia estatal perante a qual estão antecipadamente derrotados.

Recebendo o BPC está portanto, é bom que se diga, a federação dos excluídos e dos miseráveis, gente com distúrbios mentais, idosos que nunca contribuíram, gente que não sabe ler, pessoas simples e vulneráveis de todos os matizes, razão porque muitos dos que têm direito legal não o recebem.

A prova da existência desses invisíveis é o que nos informa o elogioso artigo da Folha de São Paulo em relação às medidas do governo, intitulado “Corte de R$ 25,9 bi prometido por Haddad prevê fim de brechas legais que impulsionaram benefícios” que foi publicado em 5 de julho de 2024, alusivo à iniciativa de cortes do governo. Diz a Folha:

“O gasto com o BPC é um dos que mais preocupam a equipe econômica. O programa tem hoje quase 6 milhões de beneficiários — dos quais 1 milhão foi incluído nos últimos dois anos. A despesa com o programa está prevista em R$ 105,1 bilhões neste ano e poderá crescer mais R$ 10 bilhões no ano que vem se nada for feito. As concessões do benefício tiveram uma aceleração considerável a partir do segundo semestre de 2022. Até então, o público do programa oscilava entre 4,6 milhões e 4,7 milhões, com pequenas variações mensais. Em julho daquele ano, o governo habilitou 93 mil novos beneficiários. No mês seguinte, mais 90 mil. Desde então, as concessões têm se mantido superiores a 50 mil por mês.”2

Ou seja, a aceleração das concessões provavelmente se deve ao fato de que o governo Lula vem identificando, através do MDS mais situações de pessoas não atendidas do que o governo Bolsonaro. A que senhor o Ministério da Fazenda serve?

Carta Capital em 20 de agosto de 2024, nos traz o que pensa o ministro responsável pela pasta sobre o assunto, arrematando o que segue:

“Não podemos correr o risco de tirar do mercado quem pode trabalhar, por uma distorção de um programa mal gerenciado.” Rever as condições do BPC é parte significativa do pacote anunciado por Haddad para cortar 25,9 bilhões de reais em gastos do governo em 2025.3

Ora, com o valor de R$1.412,00 por BPC, cada bilhão de reais amealhados por ano pelo Ministério da Fazenda implicará no corte de, segue a fórmula, (1.000.000.000/1.412,00 = 708.000 benefícios)/12 meses ou 708 mil/12 meses perfazendo 59 mil beneficiários excluídos do benefício por ano.

Isso tem implicações econômicas óbvias: o BPC, quer as famílias tenham ou não os seus dados cadastrais atualizados, conforme estabelece a lei, serve essencialmente para cobrir despesas de sobrevivência indo para a economia assim que é recebido, utilizado que é em compras de comida, medicamentos e gêneros de primeira necessidade…

Isso significa que parte das despesas do governo com o pagamento do BPC volta imediatamente aos cofres públicos, sob a forma de impostos, barateando, portanto e muito o próprio BPC.

Esse BPC barateado, volta para o governo, no entanto, não sem antes ter dado vitalidade à combalida pequena economia local do entorno da moradia dos beneficiários, pois, é a isso que servem. De fato, os beneficiários do BPC não poupam os recursos recebidos, nem o enviam como parte dos lucros ao exterior.

Ao fim do ano fiscal, portanto, aqueles R$1.412,00 investidos no consumo dos pobres e na economia local, terão sido deduzidos fiscalmente de muito do que custaram ao governo, pois terão gerado a arrecadação que está atrelada ao consumo, gerado empregos e renda, configurando um multiplicador keynesiano.

Isso significa que além dos idosos pobres e dos portadores de deficiência pobres os cortes também atingirão a padaria e o mercadinho das favelas e periferias do Brasil, produzindo desemprego e insolvência. Um golaço! Só que contra.

Por que isso está sendo feito?

Como tudo tem que ter um mínimo de legitimidade para ser levado adiante e produzir o devido consenso, o BPC tem algumas atualizações a serem feitas, sobretudo no que se refere aos benefícios pagos por ocasião da covid que talvez pudessem ser suspensos. Diz a Folha:

Um dos casos mais emblemáticos é uma portaria da época da pandemia de covid-19 que permite a concessão do BPC (Benefício de Prestação Continuada) a pessoas que não estão no Cadastro Único ou não comprovam o enquadramento no limite de renda para acessar o benefício.

A medida foi adotada no momento em que o isolamento social era necessário para conter uma doença para a qual ainda não havia vacina. Mais de um ano após a declaração do fim da emergência de saúde pública, o texto segue em vigor.

Mais adiante o artigo arremata, com a verdadeira justificativa que explica tudo:

O governo articula incluir as propostas no projeto de lei que trata da desoneração da folha de 17 setores empresariais e dos municípios de até 156 mil habitantes. O texto tem o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), como relator. Parte da economia de despesas pode inclusive ajudar a compensar o impacto das renúncias fiscais.2

Ou seja, por ser responsável do ponto de vista fiscal, e é, parabéns, o governo tem, para assegurar a sustentabilidade das renúncias fiscais com as quais está plenamente comprometido, que tirar, quanto mais melhor (por isso o pente fino cadastral) o dinheiro minguado das compras famélicas dos mais pobres dos pobres, esgarçando o já frágil tecido econômico das periferias.

Sim pois:

“O plano do governo é, no primeiro momento, convocar para atualização cadastral 900 mil beneficiários do BPC que estão há mais de quatro anos sem passar por reavaliação, bem como aqueles que estão fora do CadÚnico, acima do limite de renda ou tiveram o benefício concedido pela via judicial.”2

Vamos observar aqui que a concessão do benefício por via judicial é tomada pelo Ministério da Fazenda como graciosa, quando esse tipo de situação decorre muitas vezes da costumeira negativa do Poder Constituído de honrar benefícios para evitar os gastos públicos (em cima dos mais pobres, claro). A justiça só pode atuar a bem de assegurar um benefício garantido pela lei…

Entretanto, é claro que o controle do gasto público deve imperativamente ser feito pelo governo, não com o propósito de cortar para reduzir, mas de, sendo o caso, de cortar para garantir que os que realmente fazem jus (e como vimos, nem todos ainda foram cobertos) não sejam em qualquer circunstância prejudicados.

Portanto, se há gente recebendo e que não deveria receber, corte-se o benefício, por dever de ofício e não para ajudar a pagar as renúncias fiscais do próprio governo.

Essa auditoria prevista dos 900 mil, uma blitzkrieg, se dará portanto, para essa gente excluída de tudo, sob a espada da perda do que para muitos deles é a sua única fonte de renda!

Considerando que o propósito não é o da gestão dos direitos do programa para a garantia do que a lei estabelece, mas a da garantia dos benefícios a outro projeto social do governo (a renúncia fiscal dos ricos), estaríamos diante do constrangimento ilegal de centenas de milhares de beneficiários?

O lógico, obviamente, deveria ser o oposto, ou seja:

(a) para assegurar a continuidade do BPC e

(b) a inclusão dos novos contingentes, que fazem jus ao mesmo, mas estavam até aqui invisibilizados pela miséria e adversidade, o governo Lula fará:

(c) uma revisão dos benefícios eventualmente injustificáveis como os da COVID ou de quem recebe e tem renda mais alta e

(d) complementarmente fará também uma blitz krieg em cima das renúncias fiscais dos tais 17 setores da economia beneficiados.

Ora, além desse aparente desvio de finalidade (enxugar para beneficiar terceiros) a caça da renda de sobrevivência dessa gente, é uma grande jogada, porque se quando os orçamentos do SUS foram ameaçados os movimentos da Saúde, pintados de guerra, visitaram o Ministério da Fazenda para dizer um “vem que tem”, desse contingente o Brasil só terá notícia no cruzamento das grandes cidades onde provavelmente haverá mais idosos mendicantes, além de portadores de deficiência em cadeiras de roda implorando a caridade pública.

O pacote ainda inclui uma revisão da multa do FGTS para os demitidos sem justa causa, restrições ao Seguro Desemprego e, escrito com bom humor, também pretende limitar os super salários do funcionalismo público, o que inclui os do Judiciário.

A esquerda não foi bem nas eleições municipais, mas parece não precisar de oposição.

Notas:

1 BRASIL, MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO E ASSISTÊNCIA SOCIAL, FAMÍLIA E COMBATE À FOME, disponível em (https://www.mds.gov.br/webarquivos/assistencia_social/bpc/Perguntas%20Frequentes%20BPC.pdf)

2 Folha de São Paulo, Corte de R$ 25,9 bi prometido por Haddad prevê fim de brechas legais que impulsionaram benefícios” que foi publicado em 05 de julho de 2024 disponível em (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/07/corte-de-r-259-bi-prometido-por-haddad-preve-fim-de-brechas-legais-que-impulsionaram-beneficios.shtml)

3 Carta Capital Haddad defende rever ‘distorções’ no BPC e diz não se tratar de corte em gasto social, disponível em (https://www.cartacapital.com.br/economia/haddad-defende-rever-pagamentos-do-bpc-e-diz-nao-se-tratar-de-corte-em-gasto-social/)

 

A finalidade do trabalho, por Silvane Ortiz

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Silvane Ortiz – A Terra é Redonda – 24/11/2024

O impacto do neoliberalismo na subjetividade do trabalhador, sob a lente de Ken Loach

“Tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são finalmente forçados a encarar sem ilusões a sua posição social e suas relações com os outros homens.” (Marx e Engels. Manifesto do partido comunista).

As condições das relações de trabalho, mediadas e formalizadas pelo direito, sendo ele o organizador e possibilitador da manutenção das relações de produção vigentes em determinada formação social, são índices importantes acerca da conjuntura econômico-política. É possível se depreender muito do espírito de um tempo, quando analisamos as condições das relações laborais daquele período.

No filme Sorry We Missed You (2019) de Ken Loach, conhecido diretor de obras que aprofundam questões sociais candentes, tem-se retratado o panorama do avanço do neoliberalismo (pós-fordismo) em paulatina implantação no Reino Unido desde a década de 1980, com especial atenção aos efeitos deste quanto à degeneração das políticas de bem-estar social, surgidas no período pós-Segunda Guerra Mundial. A social-democracia do período, com seus laivos humanistas, também foi uma forma de contraponto ocidental ao socialismo em desenvolvimento, sobretudo na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Sendo, então, mais uma frente na disputa ideológica crescente, que veio a deflagrar os desdobramentos do período da guerra fria.

Na obra do cineasta britânico, temos um quadro do asselvajamento do atual modo de produção neoliberal. Jogando luz no que por vezes não percebemos, por se dar de forma contínua e gradual, o filme choca ao enfocar o contexto de degradação de uma família, colapsada em seus afetos, pela materialidade de sua condição econômica.

A verossimilhança ali presente causa desconforto por conta do reconhecimento que gera em quem acaba por se reconhecer nos abusos constantes perpetrados sob a tutela dos direitos, na reprodução da sociabilidade. Fazer com que essa relação seja estabelecida e que o encoberto pelo automatismo de sua reprodução seja visto às claras, pode ser um papel da arte, quando firmemente calcada na crítica social.

A crítica ao sujeito de direito, como organizador máximo das relações sociais sob o capitalismo, remonta ao fenômeno de contratualização liberal, onde funda-se a ideia de existência de uma igualdade subjetiva entre os sujeitos, baseada na liberdade contratual. Contudo, seu garantismo formal nunca conseguiu atrelar um conteúdo de igualdade material a essa subjetividade liberal.

Mesmo em momentos de estabilidade econômica, pressuposto crasso para manutenção da estabilidade político-social sob o capitalismo, a discrepância das condições econômico-sociais enfrentadas entre quem detém ou não capital é patente. E a balança jurídico-legal, por seu construto estrutural, é tencionada a pender na maioria das vezes para o mesmo lado.

Nessa formação social, onde granjeiam campo as relações sócio-produtivas do capitalismo neoliberal, há um enfraquecimento das políticas públicas e, por extensão, do próprio Estado. E em seu lugar, nesse movimento reacionário-liberal – dicotomia na abordagem de pautas de costumes e das relacionadas à economia – o mercado é alçado a mediador máximo destas relações. E, uma vez que a legislação protetiva encontra-se rebaixada, a dignidade tende a passar ao largo de todas as relações sociais.

A estrutura da sociedade capitalista é montada para a irrefreável produção de valor. E a relação que entrega esse almejado produto é aquela derivada da venda da mercadoria que todos dispõe, de forma inata, para participar do mercado perante a lei. A força de trabalho é a mercadoria que produz, de forma germinal, o (mais) valor. Assim sendo, com a decadência do balizamento estatal para a proteção da parte mais fraca – pois descapitalizada – dessa relação de produção, a exploração máxima e descomprometida é a concretude que vigora.

Afinal, sob o estágio neoliberal do capitalismo, o trabalhador é um livre prestador de serviço, que contrata em pé de igualdade com pequenas empresas ou megacorporações transnacionais.

No contexto brasileiro isso não é diferente. As constantes reformas que deformam a legislação trabalhista, em contraponto à imutabilidade dos instrumentos que codificam as relações civis, são sinais claros da deterioração das atuais condições sociais dos trabalhadores. Institutos como a Lei 13.874/19, da liberdade econômica e, sobretudo, a lei 13.467/2017, da reforma trabalhista, são pensados e implantados para fomentar o chamado empreendedorismo – quase sempre de si, desregulamentado as relações de trabalho.

Contudo, poucas são as discussões levadas a cabo para a garantia de condições dignas aos trabalhadores e, menos ainda, àqueles que se encontram à margem da proteção conferida pela CLT. A defesa de sua normatividade é, inclusive, tida por anacrônica por alguns analistas, por sua implantação ter se dado no auge do projeto de industrialização da Era Vargas, ainda amalgamado ao ideal de bem-estar social então vicejante.

Essa desconstituição paulatina dos direitos trabalhistas ganhou um novo capítulo com a recente apresentação do Projeto de Lei Complementar nº 12/24, para a regulação das atividades de motoristas por aplicativos. No PL apresentado pelo governo, tem-se replicado o conteúdo proposto pelos representantes das plataformas. O que, portanto, acaba por conferir chancela legal à precarização das condições destes trabalhadores, que ficam, assim, de pronto, reconhecidos como trabalhadores autônomos, abrindo margem para a crescente plataformização do trabalho.

Pois, uma vez reconhecida a inexistência de vínculo trabalhista entre motorista e plataforma, o que passa a subsistir é uma relação de intermediação, o que não guarda lastro na concretude da subordinação do trabalhador à plataforma. E isso configura mais um passo no caminho que vem sendo pavimentado para o esvaziamento da Justiça do Trabalho. Essa desfaçatez do caráter trabalhista de tais relações acabam por retirar de seu foro, lides de cunho evidentemente trabalhista.

Não à toa, com a insegurança gerada por relações de trabalho a cada dia mais instáveis e asselvajadas, as doenças emocionais são o mal que assola o nosso tempo – tempo esse absolutamente líquido, com jornadas sem início ou fim. Esse sujeito acelerado, progressivamente individualizado, quase convertido em pleno autômato, deixa de ver sentido nos laços que o conformam como ser social. E sem horizonte de mudança, não repara na absurdez de ter a vida centrada em relações sociais mediadas pela forma mercadoria (fôrma matriz) e suas derivações.

Estas relações tornam-se, então, assimiladas e são reproduzidas como a realidade da vida, o que acaba realizando o estulto mantra neoliberal de que a sociedade trata de uma ficção. O que passa a existir, concretamente, é o indivíduo e este sofre os sintomas de uma sociedade fantasmagórica.

O que se pode depreender dessa análise é que a real ficção resta na crença de que o ser humano, historicamente entendido como animal que somente prosperou como espécie por sua natureza social e mutualista, pode viver – vida aqui conceituada por um fazer-existir balizado para muito além de uma concepção de utilidade – em um sistema que tem por premissa estruturante a concorrência predatória entre os homens e sua predação concorrente sobre a natureza.

*Silvane Ortiz é graduanda na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Referências

ANTUNES, Ricardo. O Privilégio da Servidão. São Paulo: Boitempo, 2018.

ANTUNES, Ricardo. Uberização, Trabalho Digital e Indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020.

FAUSTINO, Deivison. LIPPOLD, Walter. Colonialismo Digital. São Paulo: Boitempo, 2023.

FISHER, Mark. Realismo Capitalista. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

KRENAK, Ailton. A Vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

MARX, Karl. O Capital: crítica da Economia Política. Livro 1. São Paulo: Boitempo, 2013.

SORRY we missed you. Direção: Ken Loach. Produção: Sixteen Films, France 2, Canal +, Le Films du Fleuve. Reino Unido. Le Pacte, Entertainment One. 2019. Amazon Prime.

 

Para onde caminha a humanidade? por Márcia Castro

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Janela de oportunidade para a virada da chave climática ainda está aberta

Márcia Castro, Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard.

Folha de São Paulo, 23/11/2024

Nas últimas duas semanas, dois fóruns multilaterais, o G20 e a Conferência do Clima (COP 29), pautaram agendas sobre mudanças climáticas. No centro das discussões estava o apoio financeiro para que países em desenvolvimento implementem medidas de adaptação.

Um relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, publicado neste mês, mostra uma lacuna no atual financiamento concedido por países desenvolvidos para implementação de ações de adaptação em países em desenvolvimento.

A estimativa feita por um grupo de 130 países em desenvolvimento é que é necessário US$ 1,3 trilhão. A Declaração de Líderes de Rio de Janeiro ressalta a necessidade de aumentar o financiamento climático de bilhões para trilhões.

Entretanto, as negociações na COP29 não parecem chegar a um consenso, já que números propostos pelos países desenvolvidos giram em torno de US$ 200 a 300 bilhões.

A contradição entre documentos de dois fóruns multilaterais que ocorreram concomitantemente questiona o real compromisso ou capacidade de líderes em cumprir aquilo que assinam. Basta ver o Acordo de Paris.

Um relatório publicado neste mês mostra que, sem mudanças nas atuais metas climáticas, podemos chegar a um aumento de 2,7°C (em relação aos níveis pré-industriais) até 2100. Para que a meta de 1,5°C do Acordo de Paris seja alcançada, o Brasil precisa reduzir suas emissões em cerca de 85% abaixo dos níveis de 2005 até 2035.

Essa redução seria de 25% se não houvesse emissões associadas ao uso da terra e incêndios florestais. Fica nítida a importância da preservação ambiental.

A meta climática divulgada pelo governo brasileiro na COP29, entretanto, está abaixo do necessário. O governo propôs reduzir emissões entre 59% e 67% abaixo dos níveis de 2005 até 2035.

Além de metas climáticas abaixo do esperado, mudanças de liderança em nações podem reverter compromissos previamente assumidos. Não deveriam, afinal são questões que afetam toda a humanidade.

Por exemplo, com a eleição de Donald Trump nos EUA, participação na COP, mobilização em torno de metas climáticas e muito mais serão deixadas de lado. Essa postura não afetará apenas os Estados Unidos, mas todo o planeta, e pode levar outras nações a desacelerarem suas metas climáticas.

Em um cenário em que os EUA se ausentem das discussões (apesar de ser o segundo maior emissor de gases de efeito estufa do mundo), União Europeia, China e Brasil precisam se unir e assumir a liderança.

A COP30 será em Belém, capital do Pará. Ainda não se sabe quem presidirá o evento.

Paira a dúvida de como Belém vai acomodar o número esperado de participantes (de 50 a 80 mil). Atualmente, a capacidade hoteleira da cidade é de pouco mais de 12 mil leitos.

Além disso, o Pará é o campeão de desmatamento e garimpo ilegal na Amazônia. E, em breve, Belém abrigará a maior refinaria de ouro do país, a North Star, cujos grandes acionistas são acusados ou já foram condenados por comércio ilegal de ouro, segundo reportagem do site Pará Terra Boa.

Incoerências gigantescas.

De nada adiantará mais um evento com “belos” discursos e acordos não cumpridos.

A janela de oportunidade para a virada da chave climática ainda está aberta. Mas o vento para fechá-la não para de soprar.