Dominação e desigualdade, por Fernando Rugitsky

0

 Fernando Rugitsky – A terra é Redonda – Introdução à reedição do livro de Paul Singer 16/10/2024

Paul Paul Singer, a desigualdade e o subproletariado

O livro Dominação e desigualdade tem lugar de honra entre os clássicos do pensamento crítico brasileiro. Publicado originalmente em 1981, é um dos grandes marcos da revisão crítica do desenvolvimentismo deflagrada pela ruptura histórica de 1964. Ao mesmo tempo, o livro inaugurou uma tradição de interpretação que ainda pode dar muitos frutos. Combinando uma meticulosa análise crítica das estatísticas socioeconômicas brasileiras com um esforço de renovar a interpretação marxista sobre as transformações do capitalismo no Brasil, Paul Singer produziu uma obra que merece ser amplamente lida e discutida. A presente reedição vem, assim, a calhar.

Para situar Dominação e desigualdade convém recuar um pouco no tempo e reconstituir, ainda que brevemente, o que estava em jogo quando Paul Singer foi convidado, em meados dos anos 1970, a contribuir com um capítulo para a célebre coletânea A controvérsia sobre distribuição de renda e desenvolvimento, organizada por Ricardo Tolipan e Arthur Carlos Tinelli. O capítulo lançou o autor em um percurso intelectual que o ocuparia por mais de uma década e resultaria em dois livros, reunidos na presente edição: Dominação e desigualdade, já mencionado, e Repartição de renda, publicado pela primeira vez em 1985.

Assim, estão reunidas aqui algumas das respostas de Paul Singer aos desafios ao pensamento crítico nacional colocados pela década de 1970: compreender a derrota de 1964 e a o “milagre econômico” que o sucedeu. Respostas que ainda podem, quase meio século depois, nos guiar no enfrentamento de novos problemas e velhos dilemas.

A controvérsia sobre a distribuição de renda

Na década de 1950, o desenvolvimento econômico consolidou-se como uma das subdisciplinas do campo da economia.2 Os debates na época, oscilando entre conceitos abstratos e análises detalhadas de experiências concretas, foram marcados por uma difusa confiança de que a superação do subdesenvolvimento estava no horizonte. O entusiasmo que permeava o campo era baseado na “ideia implícita de que [a subdisciplina] poderia matar virtualmente sozinha o dragão do atraso”.

A América Latina foi, sem dúvida, uma das regiões que assumiu protagonismo nessas discussões. As teorias formuladas na Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) ocupavam lugar de destaque no debate.4 Mesmo economistas do desenvolvimento de fora da região faziam questão de visitá-la para apresentar suas ideias e discutir com seus pares latino-americanos.

Nesse período, a fronteira entre o debate acadêmico e a formulação das políticas econômicas era pouco definida e as teorias eram transformadas pelos governos em projetos de país. No Brasil, caso exemplar de um fenômeno mais geral, o principal economista do desenvolvimento, Celso Furtado, egresso da Cepal, foi convocado para contribuir com o plano de desenvolvimento do governo Juscelino Kubitschek e, alguns anos depois, foi alçado à posição de Ministro do Planejamento no governo João Goulart. A transformação econômica acelerada, estimulada pelo governo, era acompanhada da urbanização vertiginosa da sociedade, ebulição cultural e organização crescente das classes trabalhadoras, no campo e nas cidades.

Contudo, em abril de 1964, o golpe civil-militar representou uma inflexão, desconectando o avanço da acumulação capitalista no Brasil dos sonhos modernos dos desenvolvimentistas. Não se podia mais identificar o crescimento econômico acelerado com a superação do subdesenvolvimento. Nesse sentido, Maria da Conceição Tavares e José Serra afirmaram em 1970 que “enquanto o capitalismo brasileiro desenvolve-se de maneira satisfatória, a nação, a maioria da população, permanece em condições de grande privação econômica”. O próprio Furtado formularia um argumento similar: “taxas mais elevadas de crescimento, longe de reduzir o subdesenvolvimento, tendem a agravá-lo, uma vez que ensejam desigualdades sociais crescentes”.

O golpe no Brasil foi parte de uma série de golpes militares que instauraram ditaduras violentas na América Latina, desde o início dos anos 1960 até meados dos anos 1970, em geral com apoio dos Estados Unidos no contexto da Guerra Fria. Hirschman argumenta que tais “desastres políticos” marcaram o início do declínio do pensamento sobre desenvolvimento econômico que passaria, a partir de então, por um intenso processo de autorreflexão. “Ganhou-se em maturidade o que se perdeu em entusiasmo.”

Um dos principais debates que mobilizou os economistas brasileiros durante esse período tratou da questão da desigualdade. Com a publicação dos dados do Censo de 1970, Rodolfo Hoffmann e João Carlos Duarte mostraram que, entre 1960 e 1970, a desigualdade havia aumentado no Brasil. A pujança então em curso, do tal “milagre econômico”, estava sendo distribuída de forma muito desigual. O argumento poderia ter passado despercebido se não fosse pela publicação pelo economista norte-americano Albert Fishlow, no mesmo ano, de estimativa similar que chamou a atenção de Robert McNamara, então presidente do Banco Mundial.

Em um discurso na UNCTAD (United Nations Conference on Trade and Development), em 1972, McNamara destacou o caso brasileiro como motivo de preocupação e mencionou os dados de Fishlow: “[e]m termos de pnb [produto nacional bruto], o país foi bem. Os muito ricos foram muito bem. Mas, ao longo da década, os 40 por cento mais pobres beneficiaram-se apenas marginalmente.”

O governo brasileiro, em especial os economistas palacianos (Antônio Delfim Netto, Roberto Campos e Mário Henrique Simonsen), reagiram prontamente, denunciando o que se apressaram em qualificar como fragilidade dos dados e espúrias motivações por trás das estimativas. Seu incômodo era evidente, e as razões por trás dele, também. O caso brasileiro ocupava as páginas das revistas econômicas internacionais, em um debate que realçava a natureza política das decisões econômicas. Segundo Fishlow, o aumento da desigualdade “indicava precisamente as prioridades [do governo Castello Branco]: a destruição do proletariado urbano enquanto ameaça política e o restabelecimento de uma ordem econômica orientada para a acumulação privada de capital.”

Como resposta, o então Ministro da Fazendo, Delfim Netto, encomendou oficialmente um estudo sobre o assunto a ser realizado por Carlos Langoni, egresso da Universidade de Chicago. Assessorado por funcionários do governo federal, Carlos Langoni publicou em 1973 o livro Distribuição de renda e desenvolvimento econômico no Brasil. Por trás de um aparato estatístico elaborado e uma profusão de tabelas, o livro buscou interpretar o aumento da desigualdade recorrendo à teoria neoclássica do capital humano.

A mensagem principal servia aos interesses do governo: “Numa economia como a brasileira, com altas taxas de crescimento, principalmente no setor industrial, é razoável antecipar-se a existência de desequilíbrios no mercado de trabalho, pois a expansão da demanda tende a beneficiar justamente as categorias mais qualificadas cuja oferta é relativamente mais inelástica a médio prazo. Assim é natural encontrar-se várias categorias profissionais percebendo salários acima do valor de sua produtividade marginal. Nesse sentido pode-se dizer que o grau de desigualdade da distribuição atual é maior do que o grau esperado a longo prazo, quando será possível eliminar-se esses ganhos extras através da expansão apropriada da oferta”.

O aumento da desigualdade seria assim “razoável” e “natural”, um efeito incontornável do crescimento acelerado, ao invés de um resultado das políticas adotadas. Seria, ainda, transitório, uma vez que o próprio mercado cuidaria de corrigi-lo no “longo prazo”. Carlos Langoni deu um passo a mais e colocou em questão a própria relação de causalidade entre distribuição de renda e bem-estar, sugerindo que talvez o objetivo principal deveria ser a eliminação da pobreza, sem que fosse necessário tratar de reduzir a desigualdade.

A resposta não tardou. O trabalho de Langoni foi objeto de análise minuciosa acompanhada de crítica contundente por parte de inúmeros economistas brasileiros. Uma das primeiras reações apareceu em uma resenha do livro escrita por Pedro Malan e John Wells, ainda em 1973. No mesmo ano, o primeiro encontro da Anpec (Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Economia) incluiu uma sessão sobre distribuição de renda, em que foram apresentados outros textos críticos ao trabalho de Langoni. O esforço de responder à defesa “oficial” do regime uniria Edmar Bacha, Luiz Gonzaga Belluzzo, Maria da Conceição Tavares, além de Fishlow, Hoffmann, Duarte, Malan, Wells e Paul Singer.

O debate foi travado em diversas frentes. Alguns, como Wells, buscaram utilizar dados anuais para argumentar que o aumento da desigualdade teria ocorrido sobretudo nos anos de ajuste contracionista, isto é, entre 1964 e 1966, e não no período de crescimento, de modo que o mecanismo sugerido por Langoni não seria plausível. Outros priorizaram criticar a própria base teórica adotada por Langoni, a teoria do capital humano. Houve ainda tentativas de reforçar as evidências que conectavam o aumento da desigualdade às políticas de repressão salarial e à redução do salário-mínimo.

O debate promoveu um florescimento de arcabouços conceituais e esforços empíricos que resultaram em uma leitura complexa e abrangente das transformações em curso no capitalismo brasileiro e suas repercussões sobre a distribuição de renda. Foi sem dúvida um dos pontos altos da história do debate econômico nacional. O livro organizado por Tolipan e Tinelli, que reuniria em 1975 os economistas citados acima, incluindo Paul Singer, ainda é um marco.

Entra Paul Singer

A crítica direta de Paul Singer a Langoni conta com dois elementos principais: (i) o argumento de que a teoria marginalista da repartição de renda, adotada por Carlos Langoni, é baseada em um pressuposto falso segundo o qual é possível identificar produtividades marginais individuais e (ii) o questionamento do significado da correlação entre nível de renda e grau de escolaridade (evidência principal utilizada por Carlos Langoni para sustentar sua interpretação). Em relação ao primeiro ponto, Paul Singer argumentou que a renda apropriada pelos distintos grupos sociais não é um mero resultado das características técnicas do processo produtivo, mas é influenciada por determinantes políticos e sociais. Em contraste, a teoria marginalista (que permanece dominante no pensamento econômico nos dias atuais) assume que as remunerações são determinadas pelas produtividades marginais dos diferentes fatores de produção, o que “[se] baseia, por sua vez, na suposição da infinita divisibilidade dos fatores de produção, ou seja, que é possível determinar a produtividade na margem de cada indivíduo que trabalha na empresa. Ora, essa suposição é falsa. A divisão do trabalho em qualquer empresa moderna acarreta uma estreita interdependência de todos os integrantes de amplas equipes de produção. Não tem sentido, portanto, considerar a produtividade de um engenheiro ou de um operário isoladamente. A produtividade do engenheiro é nula se ele não puder contar com a colaboração de outros especialistas e de numerosos operários”.

Trata-se, é verdade, de um debate recorrente, opondo defensores e críticos dos níveis observados de desigualdade em diferentes sociedades e em diferentes períodos. Mais recentemente, o economista francês Thomas Piketty utilizou-se de um argumento análogo ao de Paul Singer para rejeitar a visão segundo a qual a explosão observada nas últimas décadas dos salários dos executivos das grandes corporações deveu-se ao extraordinário crescimento de sua produtividade.

Voltando ao caso brasileiro, Paul Singer complementa a crítica à teoria marginalista da repartição com uma interpretação alternativa à principal evidência utilizada por Carlos Langoni. Segundo ele, “a correlação entre escolaridade e renda não indica uma simples relação de causa e efeito”, mas, “[n]a verdade, a pirâmide educacional reflete, com poucas distorções, a pirâmide de estratificação social e econômica.” Ao contrário do que argumentava Carlos Langoni, a crescente disparidade de salários entre trabalhadores com diferentes graus de escolaridade não era um resultado inevitável de desequilíbrios temporários entre a oferta e a demanda por trabalhadores com diferentes níveis de qualificação.

Na realidade, tratava-se de uma disparidade instituída politicamente, uma vez que as remunerações observadas não seguiam critérios “econômicos”, mas resultavam das políticas governamentais (em especial, a determinação do salário-mínimo e as regras de reajustamento salarial) e suas repercussões na estrutura social brasileira.

Restava, então, investigar essa estrutura e sua transformação desde os anos 1960. Como revela Paul Singer no prefácio de Dominação e desigualdade, aqui estaria sua principal contribuição à controvérsia sobre a desigualdade: “Como já não tinha sentido meramente reafirmar as denúncias da política do regime, propus-me então desenvolver uma interpretação histórica da repartição da renda no Brasil, procurando mostrar como as transformações estruturais, ocasionadas pelo processo de desenvolvimento, produziam mudanças na repartição da renda. Essa postura metodológica obrigava-me, obviamente, a encarar a questão das classes sociais”.

A controvérsia sobre a desigualdade convergia, dessa maneira, com outro desenvolvimento intelectual em curso no Brasil, também crucial para a revisão crítica do desenvolvimentismo: a reinterpretação do nosso percurso histórico com base em uma leitura crítica do marxismo. O aparato crítico herdado de Marx oferecia instrumentos para examinar as ilusões do desenvolvimentismo e interpretar a derrota havida em 1964. Ao eleger a estrutura de classes como foco da sua investigação, Paul Singer mobilizou a retomada em curso do pensamento marxista para intervir no debate em torno do livro de Carlos Langoni.

Junto com José Arthur Giannotti, Fernando Henrique Cardoso, Ruth Cardoso e Fernando Novais, Paul Singer havia feito parte do núcleo original de intelectuais que decidiram se debruçar de modo crítico e interdisciplinar sobre O capital, nos célebres seminários realizados na Universidade de São Paulo (USP), que duraram do final dos anos 1950 até meados dos anos 1960. Tendo tomado contato com a obra de Marx ainda na juventude, quando era operário e dirigente sindical, Paul Singer retomou a leitura do pensador alemão já na sua trajetória acadêmica, combinando múltiplas experiências que lhe permitiram assumir um papel não apenas central como único nos debates intelectuais que se seguiram ao golpe de 1964.

A minifundiarização e o subproletariado

Na ocasião, um dos alvos da retomada do marxismo na periferia era examinar a natureza do processo de proletarização e das transformações das relações sociais de produção no Sul Global. Buscava-se aprofundar o diagnóstico da transição que o desenvolvimentismo descrevia como uma mera realocação da força de trabalho, do setor de subsistência para o setor capitalista, trazendo à tona suas implicações para a acumulação de capital e para o conflito de classes. Em outras palavras, críticos marxistas repensavam o dualismo difundido principalmente pelos trabalhos do economista caribenho Arthur Lewis.

No caso brasileiro, a formulação de Franscisco de Oliveira, em Crítica à razão dualista, sem dúvida trouxe para o primeiro plano a discussão sobre a especificidade do capitalismo periférico e a natureza da acumulação primitiva no Brasil, oferecendo uma série de hipóteses instigantes. Mas foi Paul Singer, em Dominação e desigualdade, quem propôs a análise mais sistemática e de fôlego do processo de proletarização brasileiro.

O livro contém uma investigação inédita da estrutura de classes brasileira e de sua transformação em meados do século XX, com base em um exame rigoroso de uma série de fontes estatísticas, em especial os Censos, os Censos Agropecuários e as Pesquisas Nacionais por Amostras de Domicílio (PNAD). Paul Singer nos traz um diagnóstico sofisticado da especificidade da experiência histórica brasileira, e situa com enorme precisão os contornos estruturais dos conflitos de classe.

No debate clássico sobre a transição do feudalismo para o capitalismo na Europa, a chave para a compreensão do processo de proletarização foi encontrada na transformação da agricultura. Para desvendar o caso brasileiro, Paul Singer opta pela mesma estratégia Afinal, mais da metade da população econômica ativa (PEA) brasileira estava ocupada nas atividades agrícolas até ao menos 1970. 26 Desde os anos 1930, com a crise da produção agrícola voltada à exportação (especialmente a cafeicultura) e a aceleração da urbanização e da industrialização, a demanda por alimentos e outros produtos agrícolas nos centros urbanos brasileiros aumenta substancialmente.

Esse aumento, por sua vez, resulta em uma expansão da agricultura comercial voltada ao mercado interno. No entanto, essa parte da produção agrícola ainda se sustenta, em larga medida, em trabalho familiar, e não em trabalho assalariado.

A situação mudaria apenas na segunda metade da década de 1950, quando, segundo Paul Singer, “a expansão do capitalismo, acelerada pelo influxo de capital estrangeiro, ultrapassa o limite das atividades urbanas e começa a penetrar na agricultura”. Ainda que a maior parte da expansão da força de trabalho no campo, entre 1950 e 1960, tenha ficado à margem das relações sociais capitalistas, o número de trabalhadores assalariados nas atividades agrícolas cresce, de cerca de 5 para 5,8 milhões de pessoas. Contudo, a despeito desse crescimento absoluto, os empregados agrícolas representam uma parcela em declínio da força de trabalho total.

Entre 1960 e 1970, no entanto, observa-se uma notável inflexão: o número de assalariados nas atividades agrícolas cai para menos de 3,5 milhões (pouco mais de dez por cento da PEA), ao mesmo tempo que há um aumento do número de pessoas ocupadas na agricultura. O percentual de trabalhadores assalariados na força de trabalho rural brasileira é reduzido quase à metade em dez anos, de 37% para 20%. A penetração do capitalismo na agricultura não generaliza o assalariamento, mas sim o campesinato.

O paradoxo é apenas aparente, contudo. Assim como ocorrera em tantas outras experiências anteriores de avanço do capitalismo sobre o campo, o capital repeliu o trabalho com uma intensidade muito maior do que o atraiu. Ao longo dos anos 1960, a agricultura capitalista expandiu seu domínio sobre a produção agrícola brasileira, recorrendo a intensa mecanização e expulsando a força de trabalho. As páginas dedicadas por Paul Singer à análise do papel crescente desempenhado pelos tratores são especialmente interessantes.

O resultado foi um processo intenso de minifundiarização. Entre 1960 e 1970, a população ocupada nos menores estabelecimentos rurais (com até 10 hectares) aumentou vertiginosamente. Sua participação na PEA agrícola total saltou de 31% para 41%. Ademais, esse enorme contingente populacional não apenas se via aprisionado em áreas de dimensão reduzida, mas também havia sido deslocado para regiões mais distantes dos mercados urbanos pela concentração das terras sob domínio da agricultura capitalista. Sua capacidade de garantir a própria subsistência era cada vez mais limitada.

A minifundiarização foi decisiva para criar as bases da proletarização em grande escala, ao constituir um enorme “exército agrícola de reserva” disponível para o capital: “a grande maioria dos trabalhadores agrícolas vive em tal pobreza que, em relação ao capital, ela forma uma única classe de expropriados, cuja força de trabalho está disponível para ser adquirida pelo custo mínimo legal e socialmente estabelecido”.

A minifundiarização não apenas reserva um estoque de mão de obra potencial como também, ao pressionar as condições de subsistência da população minifundiária, acelera o êxodo rural. Em outra passagem, Paul Singer refere-se à “‘urbanização’ forçada dos trabalhadores agrícolas” para descrever esse processo. Na década de 1960, observou-se ao mesmo tempo o crescimento da população ocupada nos minifúndios e a redução da população rural, de 55% para 44,1%.

Acentuando a especificidade do caso brasileiro, Paul Singer notou que esse vasto exército industrial de reserva tornou dispensável “uma fase de acumulação primitiva”, no sentido de que o acesso à terra era limitado já há muito tempo no Brasil. Ou seja, o período decisivo para a proletarização não foi marcado predominantemente por expropriação de terras, como no caso clássico inglês, mas pela acentuação do desequilíbrio estrutural entre os restritos meios de produção à disposição dos produtores e os requisitos de subsistência.

A minifundiarização consistiu no pressuposto da proletarização por ter sido indissociável da formação de uma enorme superpopulação relativa, tomando emprestado a expressão de Marx. No mapeamento da estrutura de classes brasileira (tanto a urbana quanto a rural), Paul Singer optou por dividir as classes trabalhadoras em dois grupos, o proletariado e o subproletariado. O segundo grupo, que o autor vinculou explicitamente ao conceito de exército de reserva, é composto por aqueles “que de fato ou potencialmente oferecem sua força de trabalho no mercado sem encontrar quem esteja disposto a adquiri-la por um preço que assegure sua reprodução em condições normais”.

A partir da interpretação histórica das transformações das relações sociais de produção, Paul Singer ofereceu uma explicação original para o fenômeno que vinha desafiando os observadores do desenvolvimento periférico: a urbanização acelerada sem a contrapartida da criação de empregos urbanos, com a resultante “marginalização em massa” dos subproletários: “[a] origem desse subproletariado se liga à dissolução, pelo capitalismo, de partes da economia de subsistência, sem que a acumulação de capital gere uma demanda por força de trabalho suficiente para absorver – nas condições normais – a mão de obra assim liberada”.

Leitor atento de O capital, Paul Singer sabia que o processo clássico de proletarização na Europa tampouco foi capaz de absorver a população expulsa do campo.42 Seria, então, o caso de dizer que o Brasil repetia, com mais de um século de atraso, os passos trilhados por outros países? Não haveria, então, algo específico ao capitalismo periférico?

Paul Singer enfrentou essas questões de forma explícita, ressaltando duas diferenças entre o desenvolvimento brasileiro e o caso clássico europeu:

(i) tendo-se iniciado muito mais tarde, o nosso processo de desenvolvimento é contemporâneo de economias capitalistas maduras, que nele intervêm pesadamente, dando-lhe características próprias; (ii) dada a grande extensão territorial do país, o excedente de população criado pela expansão capitalista, em vez de ser exportado (como ocorreu na Europa do século XIX), tende a reproduzir, no interior do país, as formas pré-capitalistas que estão sendo aniquiladas nos centros mais dinâmicos da economia.43

O primeiro ponto sem dúvida merece análise que não cabe nessas linhas, mas aqui quero destacar que a segunda diferença apontada é um dos achados críticos decisivos de Dominação e desigualdade. Ao interpretar a origem do subproletariado brasileiro e quantificá-lo, Paul Singer ofereceu uma das principais pistas para entender as especificidades dos conflitos de classe no Brasil.

E aqui retomo meu ponto de partida: quais lições Dominação e desigualdade ofereceu para a controvérsia sobre a desigualdade?

Ao jogar luz sobre a imbricação entre a minifundiarização e a frmação de um enorme subproletariado, em especial ao longo da década de 1960, Paul Singer explicitou como os mecanismos que reproduziam a concentração de renda e levavam a um aumento da desigualdade poderiam ser identificados na estrutura de classes brasileira e na dinâmica de transformação das relações sociais de produção. Em outras palavras, o crescimento excludente do milagre econômico, marcado por taxas extraordinariamente altas de crescimento do pib e por estagnação salarial, não teria sido possível sem a formação prévia da enorme superpopulação relativa. O braço violento das políticas repressoras do governo militar combinava-se assim com o também violento processo de minifundiarização, e de urbanização forçada das populações rurais, engendrado pelo capital em expansão.

Ao incorporar dados posteriores, Paul Singer mostrou ainda que era possível identificar a partir desse momento ciclos de absorção e reconstituição do exército industrial de reserva no Brasil, ainda que com características específicas e temporalidade própria. Valeu-se do capítulo de Marx sobre a “lei geral da acumulação capitalista” para elucidar, em certa medida, os ciclos distributivos brasileiros.

Concretamente, a expansão acelerada ocorrida durante o milagre econômico, a despeito das políticas de repressão salarial, levou a uma notável redução do subproletariado com correspondente crescimento do proletariado e da pequena burguesia. Certas teorias do desenvolvimento, enredadas em seus esquemas lineares, poderiam identificar em tal transição um passo na superação do subdesenvolvimento.

Mas Paul Singer não perdia de vista a natureza cíclica da dinâmica capitalista. Como ele nota, em A formação da classe operária, “[e]ntre 1980 e 1983, a produção caiu no campo e nas cidades, o desemprego se agigantou e parcelas significativas tanto da pequena burguesia quanto do proletariado foram lançadas no subproletariado”. Lançadas de volta às fileiras do subproletariado, ouso acrescentar.

Retomar o fio da meada

Há muito mais nas páginas a seguir do que pode sugerir esse breve sobrevoo. Mas o exame dos argumentos mencionados permite que se apontem alguns preciosos legados das investigações de Paul Singer sobre a estrutura de classes brasileira. O debate sobre a distribuição de renda no Brasil, que ofereceu o impulso inicial para os trabalhos de Paul Singer reunidos nesta edição, foi retomado no Brasil em meados dos anos 2000. Buscou-se, nos esforços recentes, compreender a queda então em curso na desigualdade salarial. No entanto, a ambição teórica da controvérsia dos anos 1970 foi, em grande medida, deixada de lado e substituída por métodos estatísticos sofisticados. O que se ganhou em precisão, contudo, foi perdido em capacidade interpretativa.

A maior parte dos esforços recentes para estudar a trajetória da desigualdade resigna-se a descrever o movimento, sem ousar interpretá-lo. Ricardo Paes de Barros, que além de ser protagonista do debate econômico brasileiro sobre desigualdade ocupou cargos de alto escalão no governo federal no período do lulismo, “declarou ter encontrado o método que buscava para analisar com rigor a desigualdade brasileira ao se deparar, já na segunda metade dos anos 1980, com o livro que Carlos Langoni publicara em 1973”.

A retomada da perspectiva adotada por Carlos Langoni é, na realidade, um fenômeno mais geral, isto é, não apenas restrito ao debate brasileiro. Segundo argumenta Pedro Ferreira de Souza, nas décadas que se seguiram à controvérsia dos anos 1970, “a abordagem de Carlos Langoni tornou-se dominante” no Brasil e em outros países.47 É preciso, porém, que recuperemos a potência e a percuciência de seus críticos para compreender por que a redução recente da desigualdade salarial acentuou conflitos políticos e dinâmicas estruturais que acabaram levando à sua reversão.

Retomar apenas um lado da controvérsia dos anos 1970 tornou o debate recente deficiente e incompleto, na medida em que se furtou em pautar de forma explícita os limites da queda da desigualdade salarial. Como aprendemos com Paul Singer e seus contemporâneos, tais limites não são dados pela própria trajetória da desigualdade, mas por sua conexão com a dinâmica estrutural da economia e as mudanças da estrutura de classes, temas que precisam urgentemente retomar centralidade.

Os poucos trabalhos que se debruçaram sobre as relações entre a dinâmica estrutural da economia e a distribuição de renda trazem uma constatação inconveniente: a redução das desigualdades se alimentou da regressão da estrutura produtiva, aumentando a vulnerabilidade externa da economia brasileira e criando barreiras ao seu prosseguimento..

A perspectiva sugerida por Paul Singer em Dominação e desigualdade é mais frutífera para elucidar a trajetória recente da distribuição de renda no Brasil. Isso porque as crises econômica, política e social que se combinaram de forma devastadora no Brasil, a partir de 2014, têm sua origem no agravamento dos conflitos de classe. Lembremo-nos de que foram detonadas antes que a vulnerabilidade externa freasse a economia brasileira e, portanto, não podem ser creditadas a restrições de balanço de pagamentos. Mas qual é o vínculo entre a redução das desigualdades e o agravamento dos conflitos de classe? A resposta passa pela retomada do estudo do subproletariado brasileiro, inaugurado por Paul Singer.

Esforços recentes de mapear a estrutura de classes brasileira, quando interpretados à luz dos conceitos de Paul Singer, sugerem que o período do lulismo foi caracterizado por um novo processo de ampliação do proletariado com correspondente redução do subproletariado. Ou, para usar os termos de Marx, de absorção do exército industrial de reserva. A despeito da inclinação conciliatória dos governos Lula, que justamente implantaram um programa focado no subproletariado, evitando o confronto com o capital, as classes antagônicas reorganizaram-se para disputar os contornos da exploração.

A razão de fundo é que as políticas lulistas, combinadas à bonança externa na forma do boom de commodities, reduziram substancialmente a superpopulação relativa, pressionando – à revelia do governo – as condições estruturais para a reprodução ampliada do capital.

Tais tensões de fundo vêm à tona nos anos 2010 com uma onda grevista que não se via desde a emergência do novo sindicalismo no final dos anos 1970. Não é coincidência que a onda anterior também tenha ocorrido após um ciclo de redução da superpopulação relativa. No período recente, ocorreu também um expressivo achatamento cíclico dos lucros, associado à agitação sindical. Esses dois elementos, combinados, contribuem para explicar o acirramento da luta de classes visível no período, que desembocou em uma violenta regressão política e econômica.

Não será fácil para a sociedade brasileira recuperar-se do retrocesso ocorrido. Mas seria ainda mais difícil se não dispusesse de instrumentos que lhe permitissem compreender o que se passou. Uma parte importante desses instrumentos, teóricos e empíricos, foram forjados por Paul Singer nos debates dos anos 1970, nos textos que podem ser lidos nas páginas de seus dois livros que acabaram de ser republicados conjuntamente, Dominação e desigualdade e Repartição de renda. Cabe à geração atual apropriar-se deles e levar adiante o legado de seu autor.

*Fernando Rugitsky é professor de economia na University of the West of England, em Bristol, e co-diretor do Bristol Research in Economics.

Referência

Paul Singer. Dominação e desigualdade. Estudos sobre a desigualdade da Renda. Organização: André Singer, Helena Singer e Suzana Singer. São Paulo, Unesp/Fundação Perseu Abramo, 2024, 304 págs.

O prêmio Nobel de economia, por Michael Roberts

0

Michael Roberts – A Terra é Redonda – 16/10/2024

É preciso dizer que as teorias que avançam para a “recuperação do atraso” são vagas e, como tais, pouco convincentes

Daron Acemoglu, Simon Johnson e James A. Robinson receberam, agora em 2024, o prêmio Nobel (que, na verdade, é o prêmio Riksbank) de Economia “por seus estudos sobre a formação das instituições e sobre como elas afetam a prosperidade”. Daron Acemoglu e Simon Johnson são professores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts. James Robinson é professor da Universidade de Chicago, também nos Estados Unidos.

Eis o que os árbitros do Nobel dizem sobre o motivo da premiação: “Hoje, 20% dos países considerados mais ricos são cerca de 30 vezes mais ricos do que os 20% tomados como os mais pobres. As disparidades de renda entre os países têm sido fortemente persistentes nos últimos 75 anos. Os dados disponíveis também mostram que as disparidades de renda entre os países cresceram nos últimos 200 anos. Por que as diferenças de renda entre os países são tão grandes e por que elas são tão persistentes?”

“Os laureados deste ano foram pioneiros em uma nova abordagem que se mostrou capaz de fornecer respostas quantitativas e confiáveis para essa questão, que é obviamente importante para a humanidade. Eles examinaram empiricamente o impacto e a persistência das estratégias de desenvolvimento econômico adotadas por muitos países de baixa renda após a libertação do colonialismo. Verificaram, desse modo, que muitos deles criaram ambientes institucionais que classificaram de extrativistas. A ênfase no uso de dados históricos para apreender os experimentos institucionais, deu início a uma nova tradição de pesquisa que continua a ajudar a descobrir os impulsionadores históricos da prosperidade – ou de sua falta”.

“As pesquisas desses economistas se concentram na ideia de que as instituições políticas moldam de modo fundamental as condições que permitem a geração da riqueza das nações. Mas o que molda essas instituições? Empregando o saber existente no campo da ciência política sobre a reforma democrática, largamente baseado na teoria dos jogos, Acemoglu e Robinson desenvolveram um modelo dinâmico no qual a elite dominante toma decisões estratégicas sobre instituições políticas – particularmente sobre os processos eleitorais – em resposta às ameaças emergentes periodicamente. Essa estrutura teórica agora é padrão para analisar a reforma institucional política. E ela tem impactado significativamente no desenvolvimento da pesquisa nesse campo. Ora, as evidências estão aumentando em apoio a uma das principais implicações do modelo: governos mais inclusivos promovem o desenvolvimento econômico”.

Ora, o que eu mesmo descobri examinando os ganhadores anteriores é que o vencedor ou a vencedora (mais raramente) – qualquer que seja a qualidade de seu trabalho – recebeu o prêmio não pelo melhor, mas geralmente pela pior parte de sua pesquisa. Eis que os trabalhos ganhadores sempre confirmavam a visão dominante sobre o mundo econômico atualmente existente, mesmo se não ia muito longe na compreensão das suas contradições inerentes.

Acho que essa conclusão se aplica aos últimos vencedores acima referidos. O trabalho pelo qual eles receberam o prêmio de um milhão de dólares consiste em pesquisas cujo sentido foi mostrar que os países que alcançaram a prosperidade e acabaram com a pobreza são aqueles que adotaram a “democracia”. Por democracia, entenda-se a democracia liberal de estilo ocidental, onde as pessoas podem falar (principalmente), podem votar em políticos profissionais, esperando que as leis protejam as suas vidas e propriedades (isso é bem esperado).

Nessa perspectiva, as sociedades que são controladas por elites que não tem qualquer responsabilidade democrática, que promovem a mera extração de recursos, que não respeitam a propriedade e o valor gerado na passagem do tempo, não prosperam. Os ganhadores do Nobel provaram essa tese por meio de uma série de artigos em que são apresentadas análises empíricas, as quais mostram a existência de correlação entre democracia (conforme definida) com os níveis de prosperidade.

De fato, os ganhadores do Nobel argumentam que a colonização do Sul Global nos séculos XVIII e XIX poderia ter sido “inclusiva”. Os países da América do Norte, por terem sido “inclusivos” se transformaram em nações prósperas (nessa prosperidade deve ser excluída, obviamente, a população indígena). Já os países do Sul, por terem sido “extrativistas”, permaneceram na pobreza (América Central e do Sul) ou mesmo na extrema pobreza (África). Para eles, tudo depende das instituições assim classificadas. Essa é a teoria que defendem.

Esse tipo de análise econômica é dito institucionalista. Ela prega que não são as forças cegas do mercado e da acumulação de capital que impulsionam o crescimento (e as desigualdades), mas as decisões e as superestruturas construídas pelos atores sociais. Com apoio nesse tipo de modelo, os atuais vencedores afirmam que as revoluções precedem as mudanças econômicas; para eles, não são as mudanças econômicas (ou a falta delas antes que um novo ambiente econômico seja criado) que precedem as revoluções.

Dois pontos decorrem dessa análise. Eis o primeiro deles: se o crescimento e a prosperidade andam de mãos dadas com a “democracia”, como explicar o sucesso de países como a União Soviética, China e Vietnã se eles têm supostamente elites “extrativistas” e/ou antidemocráticas? Como esses nobres ganhadores de prêmios Nobel explicam tais desempenhos econômicos indubitáveis?

Aparentemente, eles o explicam pelo fato de que saíram de uma condição de extrema pobreza copiando tecnologia dos países mais desenvolvidos; contudo, após os primeiros saltos, o caráter extrativista de seus governos passa a fazer com que percam força? Bom, talvez acreditem que o hipercrescimento da China vai perder força logo. Talvez, isso esteja ocorrendo agora!

Em segundo lugar, é correto dizer que revoluções ou reformas políticas são necessárias para colocar as coisas no caminho da prosperidade? Bem, pode haver alguma verdade nisso: a Rússia do início do século XX chegaria aonde está hoje sem a revolução de 1917; a China, explorada pelo imperialismo britânico, chegaria ao ponto em que chegou, agora em 2024, sem a revolução de 1949. Ora, esses nobres ganhadores de prêmios Nobel não se referem a tais exemplos: eles preferem a Grã-Bretanha e os Estados Unidos como exemplos de países vencedores.

Contudo, o estado da economia, a forma como funciona, o investimento e a produtividade da força de trabalho também têm um efeito no progresso das nações. O capitalismo e a revolução industrial na Grã-Bretanha precederam a mudança em direção sufrágio universal, que só veio depois, após muita luta. A Guerra Civil Inglesa da década de 1640 lançou as bases políticas para a hegemonia da classe capitalista na Grã-Bretanha, mas foi a expansão do comércio (inclusive de escravos) e a colonização no século seguinte que produziram a prosperidade econômica.

A ironia deste prêmio é que o melhor trabalho de Acemoglu e Johnson veio somente mais recentemente. Mas os avaliadores do prêmio se concentraram em trabalhos mais antigos desses pesquisadores. Apenas no ano passado, os autores publicaram o livro Poder e progresso (Objetiva) (Power and Progress), no qual apresentam a contradição presente nas economias modernas entre a tecnologia que aumenta a produtividade do trabalho, mas também tende a elevar a desigualdade e a pobreza. É claro que as soluções políticas que propõem não tocam na questão da mudança nas relações de propriedade, mesmo se recomendam que precisa haver um maior equilíbrio distributivo entre o capital e o trabalho.

A favor dos vencedores deste ano vem o fato de que as suas pesquisas tentam entender o mundo econômico e o seu modo de desenvolvimento, ao invés de estabelecer algum teorema misterioso de equilíbrio, tal como já ocorreu. Muitos vencedores anteriores foram homenageados por tal tipo de contribuição esotérica. Contudo, é preciso dizer que as teorias que avançam para a “recuperação do atraso” são vagas (ou “contingentes” como eles próprios se referem) e, como tais, pouco convincentes.

Acho que há explicação muito melhor e bem mais persuasiva sobre o processo de recuperação do atraso econômico (ou do fracasso em obtê-lo) no recente livro dos economistas marxistas brasileiros Adalmir Antônio Marquetti, Alessandro Miebach e Henrique Morrone. Eis que eles produziram um livro importante e muito perspicaz sobre o desenvolvimento capitalista global. Criaram inclusive uma maneira inovadora de medir o progresso da maioria da humanidade no chamado Sul Global que almeja, sem poder, “recuperar o atraso” em relação aos padrões de vida em vigor no “Norte Global”.

O livro deles, Desenvolvimento desigual e capitalismo – Alçando ou ficando para trás na economia global (Unequal Development and Capitalism – Catching Up and Falling Behind in the Global Economy, Routledge), lida com várias variáveis que os atuais ganhadores do Nobel ignoram, ou seja, produtividade do trabalho e do capital, taxa de acumulação, troca desigual, taxa de exploração – bem como com o fator institucional mais importante, isto é, aquele que define quem controla o excedente, se esse controlador é de dentro ou de fora.

*Michael Roberts é economista. Autor, entre outros livros, de The great recession: a marxist view (Lulu Press)

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

 

Carta aberta ao Conselho Monetário Nacional, por Vários autores.

0

Meta de inflação excessivamente baixa coloca pressão adicional sobre setores cujos preços não apresentam essa rigidez; propomos mudar de 3% para 4%

Folha de São Paulo, 16/10/2024

VÁRIOS AUTORES (nomes ao final do texto)

Nos anos de 2021 e 2022 a inflação anual atingiu, respectivamente, 10% e 5,8%, fazendo com que, em 2023, no início de um novo governo, houvesse grande cautela quanto à revisão da meta de inflação. O descontrole dos preços produz distorções econômicas e sociais.

Passados quase dois anos, porém, a meta de 3% está se mostrando disfuncional. Há no mundo um consenso de que o objetivo econômico de estabilidade de preços não corresponde a uma inflação zero, mas, sim, a uma inflação suficientemente baixa. A reflexão sobre qual número representa esse conceito deve ser encarada com naturalidade.

O saudável funcionamento de uma economia de mercado requer que exista flexibilidade para a variação de preços relativos. Entretanto diferentes países carregam diferentes legados de rigidez e indexação. Na economia brasileira ainda há muitos resquícios de indexação formais e informais, como no caso conhecido de aluguéis residenciais.

Em uma economia na qual os conjuntos de preços rígidos para baixo ou indexados à inflação passada correspondam a uma parcela importante dos índices de preços, uma meta de inflação excessivamente baixa coloca uma pressão adicional sobre os setores cujos preços não apresentem essa rigidez. Mais especificamente, para a inflação de serviços e preços monitorados cair de forma mais significativa, seria necessária uma economia mais desindexada.

A dificuldade em levar a inflação a 3% no Brasil consiste em que, mesmo com as taxas de juros reais elevadíssimas —atualmente entre 6% e 7%—, o consenso de mercado aponta que a inflação será de 4% em 2025, 3,6% em 2026 e 3,5% em 2027. Ou seja, não se trata de uma postura leniente do Banco Central, mas sim de uma resistência objetiva do sistema de preços do país.

Desde o início do regime de metas de inflação, em 1999, são raríssimos os períodos em que a inflação situou-se abaixo de 3%; em geral, isso só ocorreu quando o desemprego era bastante elevado. Soma-se a isso os efeitos da crise climática, com impactos sobre energia e alimentos, dificultando ainda mais a redução da inflação para este patamar.

A meta de inflação de 3% mostra-se assim excessivamente baixa para uma economia com as características da brasileira. Persistir com a atual meta requereria uma taxa de desemprego desnecessariamente elevada e manutenção de juros altos por tempo excessivo, com efeitos negativos sobre os indicadores sociais, o endividamento das famílias, a taxa de investimento e o crescimento econômico de longo prazo.

Assim, propomos que a meta de inflação passe de 3% para 4%, de modo a permitir um crescimento mais equilibrado da economia brasileira —sem abrir mão, todavia, do objetivo da estabilidade de preços.

As discussões sobre política monetária podem envolver diferenças teóricas e em relação a arcabouços de gestão monetária e mesmo quanto a prioridades dos objetivos de tal política. Esta carta não trata disso, mas propõe apenas um ajuste técnico dentro do arcabouço vigente; um ajuste pequeno e viável, mas necessário e de grande importância.

Luiz Gonzaga Belluzzo
IE/Unicamp

Carmem Feijó
UFF

Demian Fiocca
FEA/USP

Fernando Ferrari Filho
FCE/UFRGS

Gilberto Tadeu Lima
FEA/USP

Leda Paulani
FEA/USP

Lena Lavinas
IE/UFRJ

Luiz Fernando de Paula
IE/UFRJ

Nelson Marconi
Eaesp/FGV

 

O avesso da pele, de Jeferson Tenório

0

 Por Marcos Rolim – Extra Classe – 15/03/2022

O Avesso da Pele permite compreender como é ser negro no Brasil, de uma forma como poucas vezes se conseguiu fazer. Nesse particular, talvez não estejamos apenas diante de um ótimo romance, mas de uma obra de importância histórica”

Desde o seu lançamento pela Companhia das Letras, em 2020, o livro O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, já recebeu várias resenhas elogiosas, além do reconhecimento nos meios literários brasileiros, tendo sido o grande vencedor do Prêmio Jabuti de 2021. Por que, então, retomar essa obra? Bem, os motivos são vários, mas o mais importante deles é que o tema do livro constitui um dos desafios centrais da civilização brasileira e, nesse sentido, podemos e devemos voltar a ele muitas vezes, para que mais pessoas descubram a prosa contundente e terna de Tenório, para que mais leitores possam ter o mesmo impacto de olhar o mundo pela perspectiva daqueles que são permanentemente deslocados do direito e do reconhecimento.

Avesso da Pele permite compreender como é ser negro no Brasil, de uma forma como poucas vezes se conseguiu fazer. Nesse particular, talvez não estejamos apenas diante de um ótimo romance, mas de uma obra de importância histórica, notadamente se tivermos presente a realidade cultural do Rio Grande do Sul, em que as contribuições das culturas de matriz africana têm sido sistematicamente desconsideradas, quando não apagadas pelo discurso oficial.

O romance reconstitui a trajetória de uma família negra, até a morte de Henrique, professor universitário, em uma estúpida ação policial. Nesse percurso, além das dificuldades vividas pelos personagens, temos o desvendamento de diferentes manifestações do racismo em situações do cotidiano, desde passagens que mostram o preconceito na linguagem, até a violência aberta, o que nos oferece um espelho dolorido onde é impossível não nos vermos. Nós, os leitores brancos, estamos ali o tempo todo; em cada comentário racista que já presenciamos e calamos; em cada ausência de pessoas negras que não nos perturbou; em cada surpresa diante de uma pessoa negra ocupando uma posição de destaque; em cada sentimento de medo diante dos riscos reais ou imaginários nas ruas; em cada desconhecimento sobre ações afirmativas e em cada idiotice repetida sobre “racismo reverso” e outros mitos que transitam pelos labirintos da irreflexão.

O racismo, ao contrário do que se consolidou no senso comum, não pode ser compreendido como a expressão de ações ou valores assumidos por “pessoas racistas”. Muito além do mal que, eventualmente, pessoas racistas podem produzir, o racismo é uma estrutura da sociedade brasileira, tão operante quanto outras como a desigualdade social, por exemplo. No centro do racismo estrutural, há a noção de “outridade”, como utilizada por Grada Kilomba, como materialização dos significados reprimidos da sociedade branca. Nesse processo, a pessoa negra é percebida como “a diferente”, como “a outra”, o que lhe assegura imediatamente o espaço da intrusa, como alguém “fora do lugar”. O negro/a negra são o outro da branquitude, sendo, na verdade, definidos por ela, porque as pessoas só se percebem negras quando nomeadas como tal, o que pressupõe relações sociais em que há o poder dessa designação. Chimamanda Ngozi Adichie, em Americanah, traduz essa noção pela protagonista do romance que só passou a se conceber como negra quando foi morar nos Estados Unidos. Antes disso, vivendo na Nigéria, era apenas uma pessoa como todas as demais. Nós, os brancos, não nos concebemos como brancos, porque vivemos em uma sociedade em que nossa cor nos assegura privilégios, e esse é um processo que dispensa pessoas racistas, porque se nutre de uma estrutura social racista.

Jeferson Tenório constrói seu enredo com uma linguagem cristalina, com a qual vai mostrando a saga de pessoas negras sempre em movimento e que, mesmo sendo parte do universo da inclusão social, como integrantes das classes médias, seguem expostas ao preconceito e às possibilidades trágicas da violência. O “avesso” diz respeito àquilo que o pai, Henrique, possui de substancialmente humano e, por extensão, àquilo que todas as pessoas negras – no lado inverso das características racializadas – são como pessoas.

Além da história, como ocorre com as grandes obras, o texto de Tenório agrega um potencial reflexivo autônomo a partir de determinadas “janelas”. Assim, por exemplo, na página 85, o narrador assinala: “Quando uma pessoa branca nos elogia, nunca saberemos se aquilo é sincero, ou apenas uma espécie de piedade, ou para não se sentir culpada, ou mesmo para não ser acusada de racismo. Não sabemos avaliar nosso fracasso. Porque é tentador atribuir todas as nossas fraquezas e nossas falhas ao racismo”. Para, logo adiante, concluir: “E essa é a perversidade do racismo. Porque ele simplesmente te impede de visitar os próprios infernos”. Há outros momentos luminosos como esse, em que a história respira para que o autor possa trançar suas próprias ferramentas teóricas.

No momento em que o Brasil testemunha a reiteração da brutalidade racial e a naturalização do assassinato de corpos negros e indígenas, resultados cada vez mais decorrentes de uma necropolítica, o livro de Tenório adquire um significado ainda maior, como arte transformadora, expressão do casamento da beleza com a promessa emancipatória.

Marcos Rolim é jornalista, doutor em Sociologia. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.

 

Equívocos da crítica à financeirização, por Fernando Nogueira da Costa

0

 A Terra é Redonda – 14/10/2024

Uma crítica mais bem fundamentada requereria considerar não apenas aspectos negativos, mas também benefícios potenciais da dita “financeirização”

A literatura de denúncia crítica à “financeirização” — o processo pelo qual os mercados, as instituições e as motivações financeiras se tornariam predominantes na economia — questiona os efeitos do crescimento do classificado por ela como “setor” financeiro (e não um sistema econômico-financeiro emergente de interações entre todos os agentes econômicos) sobre a produção, distribuição de renda e desigualdade. Alguns equívocos ou simplificações são frequentes nas abordagens críticas à financeirização e merecem, por sua vez, ser criticados.

Um erro comum é supor a financeirização se referir simplesmente ao aumento do tamanho do setor (sic) financeiro em relação à economia real, isto é, o setor produtivo para os denunciantes. A crítica, demonstrando preconceito moralista ou religioso medieval (antes da Teologia da Prosperidade), trata qualquer crescimento nas atividades financeiras como inerentemente negativo.

Ora, desde quando foi emergindo o sistema capitalista, a partir de fundações de bancos para financiar o comércio – a Casa di San Giorgio, fundada em 1406 na cidade de Gênova, na Itália, um importante centro comercial no início da Renascença, é considerada a primeira instituição financeira dessa história ocidental –, houve a interpenetração do capital financeiro em outras atividades econômicas, incluindo empresas não financeiras, famílias, governos e o “exterior”.

O crescimento dos mercados financeiros e o recurso aos instrumentos financeiros não são, por si só, problemáticos. Eles produzem bons resultados econômicos ao permitir maior liquidez, diversificação e proteção (por exemplo, via hedge cambial) de riscos, além de financiamento para alavancagem financeira de investimentos produtivos. A soma de recursos de terceiros aos recursos próprios resulta em maior economia de escala. O novo lucro operacional, superando as despesas financeiras, propicia maior rentabilidade patrimonial sobre o capital próprio.

No entanto, os críticos contumazes acham a financeirização favorecer a acumulação de capital financeiro às custas da produção real. Essa visão subestima o papel crucial do sistema financeiro na intermediação de recursos entre poupadores e investidores. Ao mobilizar a poupança aplicada em investimentos financeiros (fontes de funding) em direção a crédito para empreendimentos produtivos, o sistema financeiro é fundamental para o crescimento econômico.

A financeirização, analisada em sua dimensão positiva, permite a mais segura alocação de capital, com a avaliação de riscos ao financiar inovações e o desenvolvimento de novas tecnologias. É necessário diferenciar entre a negociação de ativos existentes (estoque de patrimônios privados) e a criação de ativos novos, geradores de empregos e fluxos de renda. Ambos acontecem de maneira cíclica.

Quando o valor de mercado não bem fundamentado cai abaixo do custo de produzir novos ativos, o crescimento estanca, em depressão, devido a esse custo de oportunidade. Quando o valor de mercado de ativos existentes volta a superar o custo de produção de ativos novos, a economia retoma o crescimento. Atos voluntários de todos os agentes resultam nesse ciclo econômico.

Muitas análises críticas da financeirização tratam o fenômeno como algo autônomo, ignorando sua relação com o processo de globalização econômica. Na realidade, a financeirização está profundamente interligada com a globalização, por esta ter ampliado os fluxos de capital entre fronteiras e facilitado a participação acionária de estrangeiros, destacadamente investidores institucionais como fundos de pensão de trabalhadores ou fundos de investimentos de famílias.

Desconsiderar essa relação global resulta em uma visão limitada das causas e efeitos da financeirização na economia contemporânea. Parte dela é uma resposta à necessidade de gestão de riscos, em um ambiente globalizado, onde empresas e governos enfrentam pressões para se proteger diante flutuações cambiais, crises de crédito e volatilidade de mercados internacionais.

Um problema monetário difícil de superar é a dupla assimetria cambial: moeda nacional apreciada (barateadora de importação) diante outra moeda nacional depreciada (favorável à exportação) como a da China. Evita a inflação importada no Brasil, mas as indústrias transnacionais aqui instaladas não conseguem gerar aumentos de produtividade capazes de superar as vantagens de preço conferidas por altos diferenciais de câmbio entre as moedas dos países.

Outro equívoco recorrente é achar todas as empresas não financeiras adotarem a financeirização de maneira homogênea, supostamente priorizando a maximização de valor para os acionistas em detrimento de investimentos produtivos. Essa dinâmica varia amplamente entre setores produtivos e tipos de empresas, por exemplo, familiares fechadas ou sociedades abertas.

Empresas multinacionais utilizam estratégias financeiras avançadas como hedge cambial ou gestão de fluxo de caixa sem comprometer investimentos produtivos. Portanto, reduzir a financeirização corporativa à simples priorização de dividendos ou recompra de ações ignora as necessidades de complexas interações entre estratégias financeiras e decisões produtivas na economia globalizada como onde é vantajoso produzir máquinas e equipamentos e onde importá-los.

É comum a crítica atribuir à financeirização a um avanço no aumento da desigualdade socioeconômica. A pobreza (carência de fluxo de renda) é superável, mas a desigualdade em termos de acumulação de estoque de riqueza não é.

Esta desigualdade é resultado de múltiplos fatores, por exemplo, desigualdade educacional, mudanças tecnológicas, fases de vida com tempo de acumulação de juros compostos, heranças etc. A financeirização contribui para a concentração de riqueza entre os detentores de capital, mas é resultante do incentivo ao trabalho, em sociedade capitalista, ser o acúmulo de reservas financeiras para a aposentadoria e o pagamento de cuidadores da demência sofrida na velhice.

Além disso, a financeirização permite o acesso ao crédito para famílias adquirir moradias e veículos e/ou empreender em pequenas empresas. Oferece oportunidades de mobilidade social e desenvolvimento humano.

Muitas abordagens críticas focam apenas nos bancos e nas empresas, negligenciando o fato de a financeirização envolver famílias e consumidores como participantes ativos, especialmente, por meio do crédito ao consumo, financiamento imobiliário e investimentos pessoais. A conquista da cidadania financeira aumentou o acesso das famílias a crédito, gestão do dinheiro com produtos financeiros e sistemas de pagamentos, ampliando o bem-estar social.

A crítica muitas vezes simplifica o conceito de financeirização, associando-o exclusivamente à especulação e à criação de bolhas de ativos. Embora esses fenômenos ocorram, a financeirização também inclui a criação de mecanismos de gestão de risco, como derivativos, para estabilização dos fluxos de capital.

Focar apenas no aspecto especulativo ignora os avanços positivos em termos de inovação financeira para melhorar a capacidade de gestão de risco das empresas e governos. A visão puramente negativa da financeirização obscurece a razão.

As críticas à financeirização tratam o sistema financeiro como uma entidade monolítica. No entanto, ele é composto por uma variedade de instituições (bancos comerciais, bancos de investimento, fundos de pensão, seguradoras, fintechs etc.), cada qual operando de formas distintas e com diferentes incentivos. Essa diversidade é ignorada ao tratar tudo como fosse um único fenômeno.

Além disso, o comportamento financeiro varia de acordo com as estruturas regulatórias e culturais de diferentes países. Países com sistemas financeiros mais regulados, como Alemanha ou Japão, apresentam uma relação diferente entre o setor financeiro e a economia real, em comparação com economias mais liberalizadas, como a da economia de mercado de capitais dos Estados Unidos.

A crítica à financeirização fica perplexa diante os efeitos potencialmente desestabilizadores ou cíclicos de um sistema econômico-financeiro, especialmente quanto à especulação descolada de fundamentos, crises de inadimplência no crédito e aumento da desigualdade com enriquecimento financeiro.

Há vários equívocos recorrentes ao simplificar a complexidade do fenômeno, como confundir financeirização com a simples expansão do sistema financeiro, subestimar o papel positivo da intermediação financeira, e ignorar a diversidade de comportamentos entre empresas, famílias, governos, instituições financeiras e economia globalizada.

Uma crítica mais bem fundamentada requereria considerar não apenas aspectos negativos, mas também benefícios potenciais da dita “financeirização”, especialmente quando adequadamente regulada e supervisionada pelo Banco Central. Em economia capitalista, não é possível encontrar um equilíbrio contínuo entre inovação financeira e estabilidade econômica, mitigando os riscos sistêmicos, ao restringir o papel positivo dos instrumentos financeiros na economia. A vida financeira é cíclica e difícil. É necessário saber lidar com ela…

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP).

 

Dia dos professores!

0

Nesta data comemoramos o Dia dos Professores.

Neste momento recebemos inúmeras homenagens pelas redes sociais, mensagens que mostram a importância e a centralidade da profissão dos professores na sociedade contemporânea.

Sabemos da relevância do profissional da educação e do conhecimento, vivemos numa sociedade que muitos especialistas descrevem como a Era do Conhecimento, onde a educação é fundamental para o desenvolvimento do ser humano, mas neste cenário, percebemos que entre o discurso e a prática encontramos um grande hiato.

As grandes descobertas do conhecimento pavimentaram espaços sagrados do desenvolvimento da tecnologia, novos produtos, mercadorias e bens estão circulando na sociedade mundial, com avanços da logística internacional, dos novos modelos de negócios e dos novos materiais que estão revolucionando as sociedades e as comunidades locais e regionais.

Vivemos numa sociedade em que poucos querem aprender, poucos querem encarar o desafio do conhecimento, poucos querem fazer esforços continuados para alçar novos espaços profissionais, na maioria os cidadãos querem colher sem esforço, querem uma boa condição financeira sem se debruçar na busca do conhecimento humano, da ciência e das reflexões críticas.

Invejamos os chamados empreendedores dotados de grande mérito e resiliência, que seus casos circulam todos os dias nos meios de comunicação, sendo estudo de caso de sucesso e de perseverança, mas nos esquecemos dos milhares de indivíduos que se esforçam cotidianamente e não conseguem acesso aos espaços do enriquecimento, de fama e de projeção social. Diante disso, para onde estamos caminhando com essas escolhas cotidianas….

Todas as nações que conseguiram alçar espaços de desenvolvimento econômico fizeram, antes de mais nada com fortes investimentos em educação e formação de mão-de-obra qualificada e altamente capacitada, neste momento que percebemos a relevância do professor, como educador, como exemplo e como instrumento de capacitação da sociedade, garantindo condições dignas e decentes para os cidadãos e novas formas perspectivas para um futuro imediato, marcado por incertezas crescentes e grandes instabilidades.

Algumas nações, infelizmente, não conseguiram compreender o papel central da educação e do professor neste cenário, como forma de construir cidadãos, adotando políticas de degradação dos salários dos profissionais da educação, afugentando profissionais altamente qualificados para outras atividades, criando bônus inatingíveis, cargas horárias de trabalhos escorchantes, situações inóspitas de trabalhos e condições indignas, com isso, a educação perde sua relevância social e contribuem ativamente para a perpetuação das desigualdades sociais.

Neste momento, embora recebamos inúmeras mensagens de estímulos e valorização, os professores se encontram num momento inóspito para a categoria, nosso sindicato perde relevância todos os momentos, o poder do capital destrói os instrumentos de solidariedade, transformando trabalhadores que brigam uns com os outros, deixando rastros de desesperança, de rancores e ressentimentos… Triste as nações que perdem as capacidades de construir sonhos e desenvolver esperanças, estamos caminhando a passos largos a degradações morais. A educação tem condição de melhorar o ambiente e criar novos espaços de desenvolvimento civilizacional, nunca esqueçamos disso!

Ary Ramos da Silva Júnior, Doutor em Sociologia e professor universitário a vinte sete anos.

 

 

 

 

Riqueza é distribuída pelo mérito ou pelo privilégio? por Michael França

0

Parte considerável da alocação dos recursos pouco tem a ver com o trabalho duro

Michael França, Ciclista, vencedor do Prêmio Jabuti Acadêmico, economista pela USP e pesquisador do Insper. Foi visiting scholar nas universidades de Columbia e Stanford

Folha de São Paulo, 15/10/2024

A vida não é apenas o que você faz, mas também de onde você começou. Imagine um jovem que cresceu em um bairro rico, com escolas de qualidade, desfrutando de bons contatos e amplo apoio financeiro.

Agora pense em outro que nasceu em uma família pobre, frequentou escolas ruins e está imerso em um ambiente que pouco contribui para seu desenvolvimento pessoal. Esses dois jovens podem ter os mesmos sonhos e a mesma capacidade, mas as probabilidades estão fundamentalmente a favor de um deles.

A questão é que esse tipo de vantagem não é conquistada, ela é herdada. Isso não significa que muitos daqueles que estão em uma posição favorecida não se esforçaram. No entanto, significa que eles tiveram um empurrãozinho a mais. E, enquanto chamarmos essa vantagem de “meritocracia”, estaremos negligenciando as verdadeiras forças das desigualdades que moldam nossas vidas.

Grande parte dos recursos não é distribuída com base no esforço individual. Ela é distribuída por um sistema que, por décadas e gerações, favoreceu alguns em detrimento de outros. A isso chamamos de privilégio.

Mas não me entendam mal. O mérito é importante. A ética do trabalho é importante. Contudo precisamos reconhecer que as portas do progresso nunca foram realmente abertas para os brasileiros que perderam na loteria do nascimento. Precisamos admitir que essas portas não dependem de o quão forte você bate, mas de quem segurava as chaves desde o começo.

Apesar disso, algumas vezes ouvimos histórias sobre pessoas que conseguiram superar adversidades e realizar grandes feitos. E não há dúvidas de que essas pessoas são admiráveis. Elas nos inspiram, mostrando o poder da resiliência e do esforço. No entanto, precisamos ser honestos e encarar a realidade.

A realidade é que, para cada história de sucesso que ouvimos, existem milhares que não tiveram a mesma sorte. Há milhares que deram o melhor de si e trabalharam duro, mas enfrentaram dificuldades que os deixaram pelo caminho.

Quando alguém consegue avançar, devemos celebrar. Porém também precisamos lembrar que essas pessoas são a exceção, não a regra. Quando olhamos apenas para as exceções, estamos nos enganando. E um país que se engana nunca conseguirá progredir.

Se focarmos apenas nas poucas histórias de sucesso, correremos o risco de ignorar os muitos que ficaram para trás. Estamos falando aqui de milhares de mulheres e homens talentosos, jovens cheios de sonhos, que não conseguiram alcançar seu potencial. E não foi por falta de vontade.

O verdadeiro desafio de uma nação não é produzir alguns exemplos para dizer que o sistema funciona. O desafio é reformar o sistema para que ele funcione para todos. Para que não precisemos mais nos contentar com as poucas histórias de exceção, mas possamos nos orgulhar da construção de um país onde qualquer um, independentemente do local de nascimento, tenha as mesmas chances de sucesso em suas escolhas.

 

China – qual socialismo? por Elias Jabbour

0

 A Terra é Redonda – 20/07/2021

Considerações sobre a natureza da formação econômico-social chinesa.

A natureza do processo de desenvolvimento chinês por si é motivo de imensas e apaixonadas polêmicas, sendo a principal delas a que se refere à natureza de sua formação econômico-social. Socialismo ou capitalismo. Não seria demais advertir que a colocação da questão nestes termos não tem sentido marxista, pois se remete mais ao “princípio da identidade” de Kant do que à “correlação múltipla dos fenômenos”.

Uma realidade não é capitalista ou socialista à priori. Ela é fruto da combinação de diferentes modos de produção coetâneos, mas não contemporâneos dando forma e conteúdo a formações sociais específicas. O socialismo de mercado chinês, a nós, seria uma tipologia nova de formações econômico-sociais.

Tomar a realidade partindo deste nível de abstração demanda visão de processo histórico como antídoto aos famosos “check-lists” positivistas que encerram a velha mania da ciência social ocidental (incluindo os influenciados por Marx) de buscar classificar e organizar critérios para todo fenômeno diante de si. O contrário seria o correto: o conceito se realiza no movimento real. Neste sentido não seria nenhum exagero afirmar que a China, e o movimento que seu processo de desenvolvimento encerra, acumula material suficiente para voltarmos a problematizar o socialismo em termos dialéticos, por dentro do real e não como um ideal abstrato.

No fundo a questão não é refazer o que Marx (não) fez quando o assunto é socialismo. O problema é encontrarmos a forma histórica presente mais próxima daquilo que ele definiu um dia como socialismo (superação da divisão social do trabalho, abolição das classes e da propriedade privada). O preço a se pagar politicamente por se fixar em arquétipos é muito alto.

É o preço de se esquivar diante da realidade que devemos transformar. O que na verdade os comunistas chineses estão conseguindo com muita capacidade. De país mais pobre do mundo em 1949 ao fim da pobreza extrema em um país com as peculiaridades geográficas e diferenciais regionais de produtividade não é algo qualquer. Talvez seja o maior feito da história humana em séculos. Fruto de uma força política chamada Partido Comunista e que reivindica a si o comando de um processo que eles dão o nome de socialismo.

Voltando à questão da natureza da formação econômico-social chinesa. O critério primário para isso é o poder político. Encontrar alguma formação econômico-social onde o poder político está comprometido e dispõe dos elementos essenciais para alcançar determinados objetivos. Poder político não se exprime em “novas relações sociais de produção”. Poder político se exprime em novas relações de propriedade. O banimento de Hegel no ocidente levou a uma apropriação utopista do marxismo feita por acadêmicos e marxistas ocidentais. Ao colocar o pensamento à frente da matéria, percebe-se que uma nova sociedade já nasce sob bases próprias, ou relações sociais avançadas na primeira hora. Quando na verdade a grande questão é a base material que serve de suporte ao poder político.

Trata-se de uma forma sútil de negar a política e se refugiar no “ardil do conceito” hegeliano. Novas relações sociais não surgem fora dos marcos da propriedade pública e essa propriedade deve ter um grau de produtividade do trabalho maior que a propriedade privada. O próprio Marx nos adverte sobre o fato de novas relações sociais não surgirem sem antes as forças produtivas que a sustentam não terem se esgotado. Do ponto de vista político impor relações sociais novas em forças produtivas inexistentes abre campo à reação e ao fascismo. Mas esse é um outro ponto, do qual poderemos nos concentrar em outro momento tamanha a sua importância.

Muitos dos problemas do socialismo decorrem desta forma equivocada, tomando a nuvem por Juno. O papel do poder político de novo tipo é elevar o grau das forças produtivas, montar uma muralha de aço para sua autodefesa. As relações de produção têm relação de efeito a este movimento. Trata-se de pontos interessantes para começar a pensar a China como uma gigantesca experiência socialista.

Por exemplo, por que não pensar na grande empresa ou corporação empresarial estatal mediada e voltada para grandes tarefas postas pelo Partido Comunista como uma interessante forma histórica de propriedade? E como caracterizar uma formação econômico-social onde o núcleo da economia é este tipo de propriedade (no caso chinês, 96 conglomerados empresariais estatais)?

E onde é este tipo de propriedade a geradora dos ciclos de acumulação na economia em oposição às formações econômico-sociais de tipo capitalista onde o Estado induz, mas é o setor privado o gerador destes ciclos? As possibilidades abertas por um poder exercido pelo Partido Comunista baseado na grande produção e finanças estatais não seria uma forma histórica orientada a superação de antigas formas, baseadas na grande propriedade privada? Ou nos refugiaremos no “super-trunfo” para quem os problemas do socialismo se resolvem, à priori (nada positivista…) com “poder operário” e “democracia”?

Nos últimos 20 anos a China construiu cerca de 40 mil quilômetros de trens de alta velocidade. Ao lado disso tecnologias disruptivas (plataforma 5G, Big Data e Inteligência Artificial) surgidas no seio dos grandes conglomerados empresariais estatais elevaram em demasia a capacidade de planificação do Estado chinês. Em outras palavras: elevou-se a capacidade humana de intervir na natureza, o que significa mudança qualitativa no modo de produção dominante àquela formação econômico-social com o surgimento de novas regularidades a serem decifradas pela ciência social moderna. A China, literalmente, arrasta para frente a fronteira das ciências humanas e sociais.

Pensar em termos científicos a formação econômico-social chinesa passa necessariamente pela apreensão do fato de diferentes modos de produção coabitarem em uma verdadeira unidade de contrários. O socialismo enquanto forma histórica que se realiza na grande propriedade pública e na planificação em nível superior não está alheios às contradições de ordem capitalista que por ali coexistem. Fetiche da mercadoria, consumismo, surgimento de bilionários e precarização do trabalho são fenômenos reais, não imaginários.

Talvez são estas contradições que servem de motor ao surgimento de novas soluções políticas e econômicas a determinadas questões. A elevação da regulação estatal sobre as fintechs e a aceleração de compras de ativos de empresas privada pelo Estado não demonstra somente ação política. Em movimento significa o próprio surgimento de novas formas históricas de propriedade não previstas em nenhum manual.

Finalizando esta breve discussão, fica uma questão e uma breve resposta. Qual a forma histórica correspondente ao socialismo em nosso tempo apontada pela experiência chinesa? Não tenho dúvidas que a elevação da capacidade de planificar a economia e basear a planificação no sentido de elaborar e executar grandes projetos pode ser a chave que nos encaminhe para um socialismo que tem na razão uma forma histórica em oposição à irracionalidade capitalista. Não estaríamos ressuscitando o velho Ignacio Rangel e observando na China o surgimento de uma “Nova Economia do Projetamento”? O projeto de uma ponte, viaduto ou milhares de linhas de trens de alta velocidade não passam de uma operação contábil ou em sua essência não estaria a realização do socialismo enquanto transformação da razão em instrumento de governo?

O socialismo é uma ciência. E como ciência devemos encará-lo. Ou não?

*Elias Jabbour é professor dos Programas de pós-graduação em Ciências Econômicas e em Relações Internacionais da UERJ. Autor, entre outros livros, de China Hoje – Projeto Nacional Desenvolvimento e Socialismo de Mercado (Anita Garibaldi).

 

O mito do desenvolvimento econômico, por Luiz Carlos Bresser-Pereira

0

A Terra é Redonda – 13/10/2024

Considerações sobre o livro de Celso Furtado.

Em 1974, quando Celso Furtado publicou O mito do desenvolvimento econômico, ele estava preocupado com o problema dos recursos naturais não-renováveis que estabeleciam um limite para o crescimento da renda e do consumo no mundo – preocupação que se apoiava no livro recém-publicado, The limits of growth, preparado por um grupo interdisciplinar do M.I.T. para o Clube de Roma.[i]

No primeiro ensaio, que é também o mais importante do livro, o autor discute as mudanças que vêm ocorrendo no capitalismo e, em particular, o papel das grandes empresas, as corporações, nesse capitalismo. Mas esta discussão tem como objetivo mostrar como o caminho do desenvolvimento capitalista estava se transformando em um mito.

Logo no início do livro, Celso Furtado cita mitos como o do bon sauvage de Rousseau, a ideia do desaparecimento do Estado de Marx, a concepção walrasiana do equilíbrio geral, e afirma que “os mitos operam como faróis que iluminam o campo de percepção do cientista social, permitindo-lhe ter uma visão clara de certos problemas e nada ver de outros, ao mesmo tempo que lhes proporciona conforto, pois as discriminações valorativas que realiza surgem ao seu espírito como um reflexo da realidade objetiva” (p. 15).

A questão que Celso Furtado se põe é o que acontecerá para e economia mundial se o desenvolvimento econômico, que desde a Segunda Guerra Mundial se tornou o objetivo para o qual se voltam todos os povos, vier a ser bem-sucedido e lograr estabelecer um padrão de vida semelhante ao existente no mundo rico para todos. E sua resposta é clara: “se tal acontecesse a pressão sobre os recursos não-renováveis e a poluição do meio ambiente seriam de tal ordem que o sistema econômico mundial entraria necessariamente em colapso” (p. 19). Bastaria substituir ‘poluição’ por ‘aquecimento global’ e o problema se agravaria muito.

Para ele, seria ingênuo acreditar que o progresso tecnológico resolveria o problema. Sua aceleração está antes o agravando do que o resolvendo.

Para Celso Furtado, o capitalismo que surgiu depois da Segunda Guerra Mundial caracterizou-se pela unificação do centro, sob o comando dos Estados Unidos. Já se esboçava então, pela ação persistente do GATT, o processo de liberalização comercial que ganharia força total com a virada neoliberal de 1980. Ele observa que “não pode se afirmar que as transformações estruturais que então aconteciam hajam sido desejadas e muito menos planejadas pelos centros econômicos e políticos dos Estados Unidos” (p. 36). Foram antes pensadas, acrescentaria eu, por economistas neoclássicos e da escola austríaca que haviam ficado fora do mainstream acadêmico em 1930, ansiavam pela volta ao poder nas universidades. Eles encontraram um espaço favorável criado pela crise dos anos 1970.

Celso Furtado dá grande importância ao surgimento das grandes empresas internacionais e suas novas relações com a periferia. Ele afirma que “a evolução do sistema capitalista, no último quarto de século, caracterizou-se pela homogeneização e integração do centro, um distanciamento crescente entre o centro e a periferia e uma ampliação considerável do fosso que, dentro da periferia, separa uma minoria privilegiada e as grandes massas da população” (p. 46).

O pós-guerra foi um período de crescimento no centro e na periferia. “A intensidade do crescimento no centro condiciona a orientação da industrialização na periferia, pois as minorias privilegiadas desta última procuram reproduzir o estilo de vida do centro” (p. 46). Esta é uma afirmação que Celso Furtado repetirá muitas vezes em toda a sua obra. Para conquistar e manter esse privilégio, estas minorias passarem a se associar antes com a maioria privilegiada do centro do que com seus concidadãos. Dessa maneira, perdido o apoio da classe média e mesmo dos empresários industriais, o nacionalismo econômico ou desenvolvimentismo, que caracterizara o Brasil desde os anos 1930, começava a ser ameaçado.

Mas Celso Furtado está então mais preocupado com a pressão que o desenvolvimento no centro e na periferia estava fazendo sobre os recursos não-renováveis. Esta pressão decorre principalmente do consumo crescente de toda a população. Ele faz, então, uma série de cálculos sobre o montante desse consumo nos anos 1970 – nos quais ele estava.

Preocupa-se com a tendência da minoria privilegiada na periferia que representava 5% da população de mudar para 10%, e preocupa-se muito mais com a hipótese da homogeneização do consumo para todo o mundo. “A hipótese de generalização, no conjunto do sistema capitalista, das formas de consumo hoje prevalescentes nos países cêntricos não tem cabimento dentro das possibilidades evolutivas aparentes desse sistema… O custo, em termos de depredação do mundo físico, desse estilo de vida é de tal forma elevado que toda tentativa de o generalizar levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização” (p. 75).

É a partir daí que Celso Furtado conclui que o desenvolvimento econômico é um mito. “Sabemos agora de forma irrefutável que as economias da periferia nunca serão desenvolvidas, no sentido de similares às economias que ia o atual centro do regime capitalista. Cabe, portanto, afirmar que a ideia do desenvolvimento econômico é um simples mito” (p. 75).

Note-se que o mito não é o próprio desenvolvimento econômico, mas a “ideia” de que o desenvolvimento incluindo o alcançamento possível para os países da periferia do capitalismo. Esta ideia é uma parte importante da ideologia neoliberal que o centro transfere para a periferia. Se o Sul Global adotar o liberalismo econômico e rejeitar o desenvolvimentismo, ele estaria no caminho do melhor dos mundos possíveis do Dr. Pangloss.

Não estaria Celso Furtado sendo pessimista nessa matéria? Creio que sim. Para chegar à sua conclusão, ele se baseou em uma hipótese que não está se realizando e não terá condições de se realizar. Um grande número de países não está realizando o alcançamento (o catching up) aos níveis de desenvolvimento do centro. Desta maneira, a ideia de que todos os países se desenvolveriam e alcançariam o nível dos mais desenvolvidos, que é a base do seu argumento sobre o mito, jamais se realizarão.

Não importa aqui discutir as causas desse fracasso; afirmo apenas que elas incluem o imperialismo do Norte Global e sua determinação de impedir que os países periféricos se industrializem e realizem o alcançamento. Além disso, é preciso considerar que, passados 50 anos, os recursos naturais reprodutivos não deram sinal de esgotamento não obstante os abusos a que foram submetidos.

O desenvolvimento econômico não é, portanto, um mito, mas uma ideia força que orienta os povos e os governos. Ele continua a ser possível – ou continuava na época em que Celso Furtado escreveu. Depois disso, porém, surgiu um novo e muito grave problema que talvez confirme o limite ao crescimento: o aquecimento global, que representa uma ameaça à sobrevivência da humanidade. Este problema surgiu do aumento da produção global por habitante – do desenvolvimento econômico, portanto.

E levou certo número de intelectuais a defender o decrescimento. Mas essa tese não encontrou nenhuma repercussão no mundo político. Porque mesmo nos países ricos há ainda muito pobres. E também por uma razão objetiva; para lutar contra o aquecimento global os indivíduos precisam mudar seus hábitos de consumo (comer menos carne, viajar menos, cultivar sobriedade no consumo), que não exigem investimentos.

Já os países precisam fazer grandes investimentos na transição energética na mudança das máquinas, equipamentos e imóveis para que consumam menos energia. O desenvolvimento econômico torna-se, assim, o instrumento para o problema – o aquecimento global – que ele próprio criou.

Celso Furtado foi o maior dos economistas brasileiros, ainda que suas ideias tenham deixado de coincidir com a política econômica que passou a ser praticada no Brasil a partir de 1990, no governo Collor, quando este promoveu a abertura econômica e a financeira. Seu protesto surgiu cedo, com seu livro de 1992, A construção interrompida.

Dez anos depois, para explicar como o desenvolvimento econômico foi então interrompido, eu e um grupo de economistas brasileiros começamos a definir o “novo desenvolvimentismo”, uma nova teoria econômica e economia política baseada no desenvolvimentismo estruturalista de Celso Furtado e na teoria econômica pós-keynesiana. Para nós o desenvolvimento econômico não é um mito; é algo que pode ser alcançado. Já a ideia do desenvolvimento é um mito porque o alcançamento que o mito propõe estar acontecendo não está na verdade se realizando, exceto em alguns países do Leste, Sudeste e Sul da Ásia.

*Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor Emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). Autor, entre outros livros, de Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil (Ed. FGV)

 

Tributos, uma questão política.

0

Neste momento, o governo brasileiro está preparando um projeto de lei para taxas os milionários, com alíquotas entre 12% a 15% que vai impactar fortemente no bolso dos detentores de grandes fortunas, algo em torno de 250 mil pessoas que conseguiram esta isenção tributária, isenção esta que contribuiu e contribui fortemente para aumentar seus ganhos e suas fortunas e, ao mesmo tempo, evitando que o governo nacional aumente sua arrecadação.

Especialistas em tributação calculam que mais de R$ 1,6 trilhão de pessoas físicas isentas de pagamentos de impostos, garantindo a poucos brasileiros esse benefício que não existe em nações civilizadas e que contribuem ativamente para que o sistema tributário nacional fosse regressivo, beneficiando poucos cidadãos em detrimento de uma grande massa da população do país.

O Brasil criou um instrumento legal, pouco original e imoral para garantir isenções tributárias que degradam o sistema tributário nacional, este benefício foi oficializado pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, gerando ganhos substanciais, garantindo aplausos dos donos do poder, que contribuiu ativamente para concentrar a renda e aumentar os índices de desigualdades sociais.

Embora, entendamos que esta medida é urgente e deveria ser tomada com urgência, acreditamos que o governo deveria ser mais ousado na defesa desta tese, usando toda sua força política para garantir que este projeto se transforme em realidade, angariando grandes somas monetárias e financeiras para investir num conjunto de medidas que melhorem as condições de vida dos grupos mais pauperizados, que infelizmente cresce de forma acelerada.

Vale destacar, que muito menos uma Presidenta da República, eleita e reeleita legitimamente foi impedida de governar, neste cenário, percebemos que se faz necessário conscientizar a população para proteger estas medidas tributárias que visam dar mais progressividade ao sistema tributário nacional e garantir melhoras substanciais para os desfavorecidos.