Vantagem do atraso

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Autor: César Benjamin – Folha de São Paulo

O SISTEMA produtivo dos países ricos ocupa a ponta tecnológica e é relativamente homogêneo. Neles, o aumento da produtividade depende, principalmente, da invenção de técnicas novas, um processo caro, lento e difícil. Nos grandes países intermediários, porém, como a China e o Brasil, convivem setores que apresentam níveis de produtividade muito desiguais. Essa desvantagem nos confere uma vantagem dinâmica: deslocando trabalhadores dos setores mais atrasados para os mais modernos ou modernizando setores atrasados, eleva-se a produtividade média da economia pela simples difusão de técnicas já conhecidas, um processo, em geral, muito mais fácil.
Um dos segredos do crescimento chinês é, justamente, a capacidade de usar essa vantagem do atraso. São imensos os ganhos de eficiência que nossa economia pode ter dessa maneira. Um exemplo extremo é o da matriz de transportes. No Brasil, a modalidade rodoviária -a mais cara- realiza a quase totalidade dos transportes de passageiros e a grande maioria dos de carga, com cerca de 40 mil empresas e mais de 300 mil transportadores autônomos. Os custos de operação dessa rede se aproximam de 20% do PIB, mais do dobro do percentual que se verifica nos Estados Unidos.
Um estudo da CNT e da Coppe (UFRJ), realizado em 2002, estimou que as empresas brasileiras mantinham US$ 118 bilhões parados, em excesso de estoque, por causa da inconfiabilidade do sistema de transportes. Não podiam operar “just in time”. Isso mostra a importância da infraestrutura: ela transmite eficiência (ou ineficiência) ao conjunto da economia.
O Brasil deveria aproximar a sua matriz de transportes daquela que prevalece nos EUA: 20% em rodovias, 40% em ferrovias, 40% em hidrovias e cabotagem. Não só estamos muito longe disso (a cabotagem, por exemplo, tornou-se residual, apesar de termos sete regiões metropolitanas no litoral) como tendemos a nos distanciar desse objetivo: os investimentos em transportes, além de insignificantes (em média, 0,2% do PIB na última década), concentram-se justamente em rodovias.
Estamos em um círculo vicioso: o transporte rodoviário apresenta baixas barreiras à entrada (basicamente, a habilitação e o caminhão), o que gera um permanente aumento da oferta, que tende a reduzir o preço dos fretes. Resulta daí uma elevada barreira à saída, pois as dívidas dos caminhoneiros se estendem no tempo. As barreiras à entrada em ferrovias e hidrovias, ao contrário, são muito elevadas.
Deixando o setor entregue a decisões atomizadas, o modo rodoviário tende a se expandir. A soma de comportamentos racionais em termos microeconômicos aprofunda a irracionalidade macroeconômica. Para sair dessa armadilha, é preciso planejar, uma função típica de Estado, demonizada aqui há mais de 20 anos. O último Plano Viário Nacional foi elaborado ainda durante o regime militar.
Sucessivos governos dizem que não têm 2% do PIB para investir em transportes, quantia mínima necessária durante, ao menos, dez anos. São os mesmos governos que pagam mais de 8% do PIB em juros, desnecessariamente, há muito mais tempo. A alteração da matriz de transportes não exige que inventemos nada.
Mas, se realizada, teria em nossa economia o mesmo efeito de uma revolução tecnológica. Estaríamos aproveitando uma vantagem do atraso. Para isso, porém, o nosso sistema político deveria ser capaz de identificar grandes objetivos nacionais e sustentar decisões de longa maturação. Nunca estivemos tão distanciados disso. Em anos eleitorais, faremos novas operações tapa-buracos.

CESAR BENJAMIN, 53, editor da Editora Contraponto e doutor honoris causa da Universidade Bicentenária de Aragua (Venezuela), é autor de “Bom Combate” (Contraponto, 2006).

Redistribuir o tempo de trabalho

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Folha de São Paulo – 20/08/2009
Autor: Márcio Pochmann

“O tempo não para. Eu vejo o futuro repetir o passado”
(Cazuza)

A VANÇOS técnico-científicos deste começo de século criam nas sociedades modernas condições superiores para a reorganização econômica e trabalhista. De um lado, o aparecimento de novas fontes de geração de riqueza, cada vez mais deslocadas do trabalho material, impõe saltos significativos de produtividade. Isso porque o trabalho imaterial liberta-se da existência prévia de um local apropriado para o seu desenvolvimento, conforme tradicionalmente ocorre em fazendas, indústrias, canteiros de obras, escritórios e supermercados, entre tantas outras formas de organização econômica assentadas no trabalho material.

Com a possibilidade de realização do trabalho imaterial em praticamente qualquer local ou horário, as jornadas laborais aumentam rapidamente, pois não há, ainda, controles para além do próprio local de trabalho. Quanto mais se transita para o trabalho imaterial sem regulação (legal ou negociada), maior tende a ser o curso das novas formas de riqueza que permanecem -até agora- praticamente pouco contabilizadas e quase nada repartidas entre trabalhadores, consumidores e contribuintes tributários.
Juntas, as jornadas de trabalho material e imaterial resultam em carga horária anual próxima daquelas exercidas no século 19 (4.000 horas). Em muitos casos, começa a haver quase equivalência entre o tempo de trabalho desenvolvido no local e o realizado fora dele. Com o computador, a internet, o celular, entre outros instrumentos que derivam dos avanços técnico-científicos, o trabalho volta a assumir maior parcela no tempo de vida do ser humano.

De outro lado, a concentração das ocupações no setor terciário das economias. No Brasil, 70% das novas ocupações abertas são nesse setor. Para esse tipo de trabalho, o ingresso deveria ser acima dos 24 anos de idade, após a conclusão do ensino superior, bem como acompanhado simultaneamente pela educação para toda a vida.
Com isso, distancia-se da educação tradicional, voltada para o trabalho material, cujo estudo atendia sobretudo crianças, adolescentes e alguns jovens. Tão logo concluído o sistema escolar básico ou médio, iniciava-se imediatamente a vida laboral sem mais precisar abrir um livro ou voltar a frequentar a escola novamente.
Para que os próximos anos possam representar uma perspectiva superior à que se tem hoje, torna-se necessário mudar o curso originado no passado. Ou seja, o desequilíbrio secular da gangorra social. Enquanto na ponta alta da gangorra estão os 10% mais ricos dos brasileiros, que concentram três quartos de toda a riqueza contabilizada (“Os Ricos no Brasil”, Cortez, 2003), há apenas 6% da população que responde pela propriedade dos principais meios de produção da renda nacional (“Proprietários: Concentração e Continuidade”, Cortez, 2009).

Em contrapartida, a ponta baixa da gangorra acumula o universo de excluídos (“Atlas da Exclusão Social no Brasil”, Cortez, 2004), que se mantêm historicamente prisioneiros de brutal tributação a onerar fundamentalmente a base da pirâmide social. No mercado nacional de trabalho também residem mecanismos de profundas desigualdades, como no caso da divisão do tempo de trabalho entre a mão de obra.
Em 2007, por exemplo, a cada 10 trabalhadores brasileiros, havia 1 com jornada zero de trabalho (desempregado) e quase 5 com jornadas de trabalho superiores à jornada oficial (hora extra). Além disso, 4 em cada grupo de 10 trabalhadores tinham jornadas de trabalho entre 20 e 44 horas semanais, e 1 tinha tempo de trabalho inferior a 20 horas por semana.

O pleno emprego da mão de obra poderia ser alcançado no Brasil a partir de uma nova divisão das jornadas de trabalho, desde que mantido o nível geral de produção. A ocupação de mais trabalhadores e a ampliação do tempo de trabalho dos subocupados poderia ocorrer simultaneamente à diminuição da jornada oficial de trabalho e do tempo trabalhado acima da legislação oficial (hora extra).

Com redistribuição do tempo de trabalho o reequilíbrio da gangorra social, torna-se possível.

MARCIO POCHMANN, 47, economista, é presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp.
Foi secretário do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura de São Paulo (gestão Marta Suplicy).

Petróleo pode ser uma maldição – Valor Econômico

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Autor: Moisés Naím

Um país petrolífero autoritário tem menos probabilidade de se mover na direção da democracia que uma autocracia sem recursos
O petróleo é uma maldição. Gás natural, cobre e diamantes também são nocivos para a saúde de um país. Daí decorre uma constatação que é tão poderosa quanto anti-intuitiva: países pobres, mas ricos em recursos, tendem a ser subdesenvolvidos não apesar das suas riquezas minerais e em hidrocarbonetos, mas em virtude da sua riqueza de recursos. De uma forma ou de outra, o petróleo – ou ouro, ou zinco – torna o país pobre. Esse fato é difícil de acreditar e exceções, como Noruega e EUA, são geralmente usadas para argumentar que petróleo e prosperidade para todos podem de fato caminhar juntos.
A raridade dessas exceções, no entanto, não só confirma a regra como também mostra o que é preciso fazer: democracia, transparência e instituições públicas eficientes. Essas são precondições importantes para aspectos mais técnicos da receita, incluindo a necessidade de manter a estabilidade macroeconômica, gerenciar as finanças públicas prudentemente, investir parte dos lucros inesperados no exterior, estabelecer “fundos para dias chuvosos”, diversificar a economia e assegurar que a moeda local não alcance uma cotação elevada demais.
Tudo isso parece simples, e com Brasil, Gana e outros países provavelmente em vias de se tornarem grandes protagonistas do petróleo, podemos ter a expectativa de testemunhar alguns raros casos de teste dessas recomendações.
Infelizmente, para a maioria dos países subdesenvolvidos, as defesas sugeridas são tão utópicas quanto a meta mais ampla que elas ajudariam a alcançar. Países que já possuem essas vantagens institucionais não precisam se preocupar com a maldição dos recursos. Para os demais, a exemplo de uma doença auto-imune, a maldição mina a capacidade dos governos de construir defesas contra ela. Poder concentrado, corrupção e o dom dos governos de ignorar as necessidades das suas populações tornam a maldição algo difícil de se resistir.
Juan Pablo Pérez Alfonzo, ministro do Petróleo da Venezuela no começo da década de 1960 e um dos fundadores da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), foi o primeiro a chamar a atenção para o problema. O petróleo, ele disse, não é ouro negro: é o excremento do diabo.
Desde então, a constatação de Pérez Alfonzo tem sido rigorosamente testada – e confirmada – por economistas e cientistas políticos. Eles documentaram, por exemplo que, desde 1975, as economias de países subdesenvolvidos ricos em recursos naturais cresceram em ritmo mais lento que as dos países que não podiam depender da exportação de minérios e matérias primas. Mesmo quando ocorre crescimento alimentado por aqueles recursos, ele raramente gera os costumeiros benefícios sociais plenos do crescimento.
Uma característica comum dessas economias é que elas tendem a ter taxas de câmbio que estimulam importações e inibem a exportação de quase tudo exceto sua principal commodity. Não que seus líderes não percebam a necessidade de diversificar. Os países ricos em petróleo investiram em outros setores mas poucos desses investimentos tiveram êxito, pois a taxa de câmbio retarda o crescimento da agricultura, da produção fabril, do turismo e demais setores.
Depois, há a intensa volatilidade das commodities exportadas. Nos últimos 24 meses, por exemplo, o preço do petróleo disparou, subindo de menos de US$ 80 por barril para US$ 147, depois caiu para US$ 30, e mais uma vez se deslocou para cima, para US$ 60, em meados de 2009. Esses ciclos têm efeitos devastadores. A expansão provoca excesso de investimento, assunção de risco temerária e endividamento demasiado. A recessão leva a crises bancárias e cortes orçamentários draconianos que prejudicam os pobres, que dependem de programas governamentais. Ademais, o crescimento impulsionado pelo petróleo não gera empregos em volumes proporcionais à sua participação na economia. Em muitos desses países, o petróleo e o gás natural respondem por mais de 80% das receitas governamentais, ao passo que esses setores geralmente empregam menos de 10% da força de trabalho. Isso aumenta a desigualdade econômica.
Talvez de forma ainda mais significativa, a maldição do petróleo gera políticas perversas. Considerando que os governos desses países não precisam tributar a população para acumular receitas fiscais gigantescas, seus líderes podem se dar o luxo de ser insensíveis e de se esquivar de prestar contas aos contribuintes, que por sua vez mantêm vínculos tênues e não raro parasitários com o Estado. Esses governos, com sua capacidade de dispor de imensos recursos financeiros praticamente de acordo com a sua vontade, inevitavelmente se tornam corruptos.
Assim que assumem o poder, esses governos ricos em petróleo são difíceis de desalojar, gastando vastos recursos públicos para comprar ou reprimir adversários políticos. Estatisticamente, um país petrolífero autoritário tem muito menos probabilidade de se mover na direção da democracia que uma autocracia carente de recursos. Governos ricos em petróleo nos países em desenvolvimento gastam duas a dez vezes mais com suas forças armadas que países pobres ou de renda mediana e são mais propensos a declarar guerra. A maioria dos países exportadores de petróleo que não possuem sólidas instituições democráticas antes de começarem a exportar petróleo cria uma atmosfera inóspita para a democracia.
Isso explica porque fundos soberanos, fundos de estabilização do petróleo e outras soluções tentadas pelos países ricos em petróleo para evitar os efeitos da volatilidade, excesso fiscal, endividamento, taxas de câmbio inibidoras de exportação e outros efeitos nocivos, raramente funcionam. Eles são atacados antes dos dias chuvosos ou são desperdiçados em investimentos medíocres.
Assim, estarão perdidas todas as esperanças para países pobres com ricos recursos naturais? Não necessariamente. Chile e Botsuana se destacam como casos de sucesso em continentes onde a maldição dos recursos provocou destruição. Como eles conseguiram se proteger ainda é um mistério. Desvendar o segredo do seu escape da maldição dos recursos poderá salvar milhões do excremento do diabo. Mas ninguém fez isto até agora.
Moisés Naím é editor-chefe da revista “Foreign Policy”, onde uma versão deste artigo será publicada em breve.

Reduzir a meta de inflação: uma boa ideia?

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Autor: José Luis Oreiro e Luiz Fernando de Paula – Valor Econômico – 18/08/2009

Existem poucas evidências em favor da tese de que a taxa de inflação deve ser a mesma para todos.
Alguns economistas ortodoxos estão lançando a ideia de que o Conselho Monetário Nacional (CMN) deve reduzir a meta de inflação a partir de 2011. O argumento fundamental é que a crise econômica mundial, ao atuar no sentido de reduzir as pressões inflacionárias latentes na economia brasileira em 2008, abre uma janela de oportunidade para que a taxa de inflação brasileira possa, no pós-crise, convergir para a média internacional. Sustenta-se que a convergência da taxa de inflação para a média mundial seja um objetivo desejável, cujos benefícios de longo prazo superariam em muito o custo que toda a desinflação (decorrente da requerida elevação, ainda que temporária, da taxa de juros) gera em termos de perda de produto e de emprego, pelo menos no curto prazo.
Os problemas causados pela inflação são claros quando a taxa de inflação é alta (superior a dois dígitos, por exemplo), pois recursos escassos da economia são alocados de forma ineficiente para o mercado financeiro, ocorre uma variação excessiva nos preços relativos, impõe-se um imposto inflacionário que recai majoritariamente sobre os mais pobres e, normalmente, inicia-se um processo cumulativo que pode levar à hiperinflação. No entanto, os custos da inflação não são tão claros quando a inflação é baixa, ou seja, para uma taxa de inflação de um dígito por ano. Com efeito, os estudos empíricos sobre os efeitos da inflação sobre o bem-estar não são conclusivos e, em alguns casos, apontam para a existência de uma relação positiva entre inflação e crescimento no longo prazo.
Os potenciais benefícios de uma inflação baixa incluem a facilitação dos ajustamentos no mercado de trabalho, pois, na medida em que os salários nominais são rígidos para baixo, a inflação permite que uma redução no salário real seja empreendida sem que haja cortes no nível de emprego. Alguma inflação também é importante para manter a economia distante de um problema ainda maior, a deflação, cujos efeitos nocivos sobre o sistema econômico foram mais do que comprovados pela Grande Depressão de 1929.
Deve-se mencionar que existem poucas evidências empíricas para suportar a tese de que países em desenvolvimento devam ter a mesma taxa de inflação que países desenvolvidos. A relação entre inflação e crescimento foi analisada a nível empírico por M. Sarel em “Nonlinear effects of inflation on economic growth” (IMF Staff Papers 43, 1996). Segundo esse autor, tomando-se uma amostra de países desenvolvidos e em desenvolvimento até 1990, pode-se mostrar a existência de uma relação não-linear entre inflação e crescimento, de tal forma que haveria uma relação positiva entre ambas as variáveis para níveis de inflação abaixo de 8% ao ano e uma relação fortemente negativa entre ambas a partir desse valor.
A metodologia de Sarel foi replicada por Padilha (2007) em sua dissertação de mestrado desenvolvida na Universidade Federal do Paraná. Tomando uma amostra de 55 países desenvolvidos e em desenvolvimento com dados até 2004, o trabalho em consideração tinha por objetivo reavaliar a relação entre inflação e crescimento do artigo de Sarel e discutir as diferenças entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Os resultados apontam que, para o conjunto dos países em desenvolvimento, a taxa de quebra na relação entre crescimento e inflação é de 5,1%, ao passo que para os países desenvolvidos a relação de quebra se reduz apenas 2,1%. Os resultados são estatisticamente significativos e apontam uma diferença de cerca de três pontos percentuais entre a inflação “ótima” para países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Deve-se ressaltar que os resultados de Sarel, atualizados por Padilha, não justificam o inflacionismo, ou seja, o aumento deliberado e contínuo da taxa de inflação com vistas a se explorar o trade-off de curto prazo entre inflação e desemprego (via curva de Phillips). O que os resultados desses trabalhos parecem apontar é para a possibilidade de que a curva de Phillips de longo prazo seja negativamente inclinada abaixo de um certo nível crítico de inflação, tal como racionalizado recentemente em Thomas Palley (“The economics of inflation targeting: negatively sloped, vertical, and backward-bending Philips curves”, 2006). Acima desse nível crítico de inflação, a curva de Phillips seria vertical, em consonância com boa parte da literatura teórica e empírica convencional sobre o tema. Dessa forma, bancos centrais devem ter um cuidado especial, principalmente nos países que adotam o regime de metas de inflação, com a fixação da meta de inflação de longo prazo, para não escolher o “trecho errado” da curva de Phillips de longo prazo.
Em função dessas considerações, acreditamos que a revisão da meta de inflação de 2011 para baixo de 4,5% ao ano não seja uma boa ideia. O regime de metas de inflação brasileiro precisa de uma série de reformas – substituição do índice cheio pelo core inflation, aumento do prazo de convergência da inflação para além do ano-calendário, adoção de cláusulas de escape, desindexação dos preços administrados, e extinção das LFT’s para aumentar a eficácia da política monetária -, mas a redução da meta numérica de inflação não é uma delas.
Essas questões são examinadas no livro “Política Monetária, Bancos Centrais e Metas de Inflação: teoria e experiência brasileira”, organizado por nós em conjunto com Rogério Sobreira (EBAPE/FGV) e publicado recentemente pela Editora da Fundação Getúlio Vargas. Nesse livro foram reunidos trabalhos acadêmicos de 23 economistas de diversas linhas teóricas e de diferentes centros de pesquisa e ensino de economia do país. A abordagem teórica adotada é eclética e plural, o que proporciona ao leitor um amplo panorama dos temas tratados por professores e pesquisadores brasileiros de diferentes instituições de ensino superior e de pesquisa do Brasil.

José Luis Oreiro é professor do Departamento de Economia da UnB e Membro da Associação Keynesiana Brasileira. E-mail: jlcoreiro@terra.com.br.

Luiz Fernando de Paula é professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Uerj e Vice-Presidente da Associação Keynesiana Brasileira. E-mail: luizfpaula@terra.com.br.

Indústria já se preocupa com o pós-Copenhague

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Autor: Sérgio Leo

Grandes empresários, especialmente nos setores de aço e cimento concluíram que a movimentação para a próxima conferência do clima e meio ambiente, em Copenhague, em dezembro, tem grande potencial de interferência em seus negócios futuros. Estão preocupados. Decidiram influir nas posições do governo brasileiro. A Federação da Indústria do Estado de São Paulo (Fiesp) deve, em breve, divulgar posição comum à indústria paulista. Cresce, no setor privado, o temor de retaliações a pretexto do combate ao aquecimento global.

O sistema multilateral, que tem na Organização Mundial de Comércio (OMC) um xerife contra o protecionismo, está enfraquecido e sem prestígio com alguns dos maiores atores globais, como os Estados Unidos. O setor privado teme que, nessas condições, sejam facilitados eventuais abusos protecionistas embarcados em legítimas medidas de proteção do meio ambiente.

Esse receio deve se materializar nos documentos que a indústria prepara para influenciar na posição do governo brasileiro para a reunião de Copenhague. A conferência na capital dinamarquesa ambiciona arrancar dos países maiores compromissos com metas para controle de emissões de gases causadores do efeito estufa. Mesmo que fracasse, deve ser seguida de medidas nacionais, na Europa e Estados Unidos, por exemplo. Empresas como as de cimento e de aço teriam dificuldades para adaptar-se sem grande esforço e perda de investimentos recentes, analisam executivos desses setores.

Não há uma posição fechada da indústria. Ainda que seja geral a cobrança por maior agilidade dos órgãos de licenciamento ambiental, há, entre os empresários brasileiros, os que defendem maior compromisso com a redução da emissão de gases-estufa. O Brasil não pode mais alinhar-se automaticamente com países emergentes como Índia e China na defesa de padrões antiquados de eficiência energética e produtiva. A posição defensiva tradicional na discussão sobre meio ambiente não tem mais acolhida nem na Fiesp, o que torna mais interessante acompanhar essa discussão e ver que sugestões resultarão das reuniões entre os empresários.

Os Estados Unidos já criam injustificadas barreiras ao aço brasileiro, para proteger a ineficiente indústria local. Com argumentos ecológicos, poderão levantar mais obstáculos, especialmente num governo do Partido Democrata, tradicionalmente mais sensível às pressões protecionistas. O setor privado já constatou que Copenhague não é um convescote de ONGs ambientalistas, mas um marco a partir do qual novos desafios – e ameaças, segundo alguns – surgirão para as empresas brasileiras que não estiverem preparadas para um mundo menos tolerante com as causas do aquecimento global.

Os ambientalistas e especialistas que se queixavam da timidez do Itamaraty na discussão sobre meio ambiente que se preparem. Por mais progressista que venha a ser a posição dos industriais, deverá haver recomendações para maior cautela no governo, ao assumir compromissos de redução de emissões e ajustamento da matriz produtiva às metas que sairão de Copenhague.

Nacionalismo de ocasião
Depois de firmado o acordo sobre Itaipu com o Brasil, o Paraguai regularizou, discretamente, a situação dos brasilguaios e ainda há críticos da política externa que, sem notar continuaram cobrando ação do governo brasileiro nesse tema. Na Bolívia, o Brasil discute ampliação de vendas e negócios, enquanto a Petrobras lucra com a compra do gás do país andino – até reduziu a demanda.
Esses exemplos mostram que se deve ter cuidado nas análises apressadas – muitas vezes de inspiração eleitoral – sobre a “excessiva generosidade” do governo em relação aos países vizinhos. Novo foco de exploração política será a “invasão” de leite importado do Uruguai. Depois de meses retendo as vendas do vizinho, que representam um quarto das importações de leite no Brasil, Brasília liberou a entrada de leite uruguaio, mas, agora, produtores brasileiros querem barrar o produto, em prejuízo dos consumidores.
Outro foco de equívocos deve ser, em breve, a ação do governo boliviano para remover famílias de brasileiros que atravessaram a fronteira e, ilegalmente, instalaram propriedades na zona fronteiriça. Por questões de segurança nacional, raros países autorizam a posse de terras na fronteira por estrangeiros, especialmente dos países vizinhos.

O governo de Morales, sempre em consultas com o governo brasileiro, ofereceu condições e indenização para que os brasileiros deixem as terras onde estão. Mas, sem querer deixar aos bolivianos sua posses, brasileiros ameaçam resistir com violência. Vão querer transformar seus interesses em causa nacional. Sempre haverá quem queira aproveitar isso politicamente.

Sergio Leo é repórter especial do Jornal Valor Econômico.

O perigo da utopia

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Autor: José Luís Fiori

“…a geopolítica do equilíbrio de poderes e a prática do imperialismo explícito deixaram de fazer sentido devido a uma série de novos fatos históricos […] esta abordagem das relações internacionais não tem mais espaço no mundo em que vivemos, do pós-colonialismo, da globalização, do sistema político global, e da democracia […] com a globalização, todos os mercados estão abertos e é inimaginável que um país recuse vender a outro, por exemplo, petróleo a preço de mercado […] Resulta ainda daqueles fatos que a guerra entre grandes países também não faz mais sentido […] No Século XX, as guerras entre as grandes potências não faziam sentido porque todas as fronteiras já estavam definidas.” – Luiz Carlos Bresser-Pereira, em “O mundo menos sombrio”, Jornal de Resenhas, nº 1, 2009, USP, p. 7

Na segunda metade do Século XX, em particular depois de 1968, tornou-se lugar comum a crítica dos “novos filósofos” europeus, que associavam a utopia socialista ao totalitarismo. Mas não se ouviu o mesmo tipo de reflexão, depois da década de 80, quando a utopia liberal se tornou hegemônica e suas ideias tomaram conta do mundo acadêmico e político. Logo depois da Guerra Fria, Francis Fukuyama popularizou a utopia do “fim da história” e da vitória da “democracia, do mercado e da paz”. E apesar dos acontecimentos que seguiram, suas ideias continuam influenciando intelectuais e governantes, sobretudo na periferia do sistema mundial. Basta ver a confusão causada pelo anúncio recente da decisão americana de ampliar sua presença militar na América do Sul. Com a instalação ou ampliação de sete bases militares no território colombiano, que deverão servir de “ponto de apoio para transporte de cargas e soldados no continente e fora dele” (FSP, 05/08/09).
O governo americano justificou sua decisão com objetivos “de caráter humanitário e de combate ao narcotráfico”. A mesma explicação que foi dada pelo governo americano, por ocasião da reativação da sua IV Frota Naval, na zona da América do Sul, no ano de 2008 : “Uma decisão administrativa, tomada com objetivos pacíficos, humanitários e ecológicos” (FSP, 09/07/08). Uma das funções dos diplomatas é participar deste jogo retórico que às vezes soa até um pouco divertido. E cabe aos jornalistas o acompanhamento destes debates sobre distâncias, raio de ação dos aviões, ameaça das drogas etc. Todavia, os intelectuais têm a obrigação de transcender este mundo da retórica e dos números imediatos e também o mundo das fantasias utópicas, o que às vezes não acontece, e não se trata – evidentemente – de um problema de ignorância.
Pense-se, por exemplo, na utopia liberal do “fim das guerras”, que já não fariam mais sentido entre os grandes países, e contraponha-se este tese com a história passada e a história dos Séculos XX e XXI. Segundo a pesquisa e os dados do historiador e sociólogo americano, Charles Tilly, “de 1480 a 1800, a cada dois ou três anos iniciou-se em algum lugar um novo conflito internacional expressivo; de 1800 a 1944, a cada um ou dois anos; a partir da Segunda Guerra Mundial, mais ou menos, a cada 14 meses. A era nuclear não diminuiu a tendência dos séculos antigos a guerras mais frequentes e mais mortíferas [aliás], desde 1900, o mundo assistiu a 237 novas guerras, civis e internacionais [enquanto] o sangrento Século XIX contou 205 guerras” (Charles Tilly, Coerção, capital e Estados europeus , Edusp, 1996, p. 123 e 131).
Mesmo na década de 1990, durante os oito anos da administração Clinton, que foi transformado na figura emblemática da vitória da democracia, do mercado e da paz, os EUA mantiveram um ativismo militar muito grande. E, ao contrário da impressão generalizada, “os Estados Unidos se envolveram em 48 intervenções militares, muito mais do que em toda a Guerra Fria, período em que ocorreram 16 intervenções militares” (Bacevich, 2002: p:143). E mais recentemente, os “fracassos” militares dos EUA, no Iraque e no Afeganistão – ao contrário do que dizem – aumentaram a presença militar dos EUA na Ásia Central e o cerco da Rússia e da China, envolvendo, portanto, preparação para a guerra entre três grandes potências. Em tudo isto, fica clara a dificuldade intelectual dos liberais conviverem de forma inteligente com o fato de que as guerras são uma dimensão essencial e co-constitutiva do sistema mundial em que vivemos, e que portanto não é sensato pensar que desaparecerão. Ao contrário do que pensam os liberais, a associação entre a “geopolítica do equilíbrio de poderes” e as guerras não se restringe ao Século XIX – já havia sido identificada na Grécia – e o sonho do “governo mundial” das grandes potências existe pelo menos desde o Congresso de Viena, em 1815, sem que isto tenha impedido o aumento do número dos Estados e das guerras nacionais.
Neste tipo de sistema mundial, por outro lado, é muito difícil acreditar na possibilidade do “fim do imperialismo”, e ainda menos neste início do Século XXI, em que as grandes potências – velhas e novas – se lançam sobre a África e sobre a América Latina disputando palmo a palmo o controle monopólico dos seus mercados e das fontes de energia e matérias-primas estratégicas. E soa quase ingênua a crença liberal nos “mercados abertos”, num mundo em que todas as grandes potências impedem o acesso às tecnologias de ponta, não aceitam a venda de suas empresas estratégicas e protegem de forma cada vez mais sofisticada seus produtores industriais e seus mercados agrícolas. Neste ponto, chama atenção a facilidade com que os economistas liberais confundem os mercados de petróleo, armas e moedas, por exemplo, com os mercados de chuchu, queijos e vinhos.
Em tudo isto, o importante é que a utopia liberal também pode ter consequências nefastas, sobretudo para os países que não estão situados nos primeiros escalões da hierarquia de poder do sistema mundial. Se as utopias de esquerda levaram – em muitos casos – ao totalitarismo, a utopia liberal e sua permanente negação do papel poder e da preparação para a guerra, na história do capitalismo e das relações internacionais, leva, com frequência, os intelectuais e dirigentes destes países mais fracos à uma posição de servilismo internacional.

José Luís Fiori é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ e autor do livro “O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações” (Editora Boitempo, 2007). Escreve mensalmente às quartas-feiras.

A América do Sul na política externa brasileira

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Autor: Marcelo Coutinho

O debate sobre política externa deve enxergar o longo prazo, ajustando-se às condições da nova década
A política externa brasileira passou por dois grandes paradigmas e alguns interstícios mais ambíguos, como na Era Vargas. Essas referências respeitaram evoluções internacionais e domésticas que fizeram variar a maneira como definíamos nossa identidade, interesses nacionais e recursos que nos capacitavam a alcançá-los. Embora os enfoques mudassem significativamente, a América do Sul sempre foi objeto de atenção especial da nossa diplomacia. Hoje, a difusão do poder internacional e a modernização dos padrões de cooperação recomendam alianças flexíveis e multifacetadas. No entanto, para evitar dispersões contraproducentes, convém não esquecer que, se a geometria é variável, a geografia continua permanente.

A primeira referência paradigmática da política exterior brasileira foi a do Barão do Rio Branco, cujo legado predominou durante toda a República Velha e caracterizou-se pelo alinhamento com os EUA e o arbitramento internacional que tornou nossas fronteiras inquestionáveis. Ainda caudatária das fortes desconfianças entre o Império brasileiro e as novas repúblicas hispano-americanas no Século XIX, a região era vista com suspeição até depois da Primeira Guerra Mundial, pois temíamos uma frente sul-americana antibrasileira e essa preocupação nos levou a uma aliança preferencial com os EUA, com o apoio do Chile.

A segunda referência foi a política externa independente de Afonso Arinos, San Tiago Dantas e Araújo Castro do início dos anos 1960, cuja definição é autoexplicativa e foi posteriormente recuperada pelo pragmatismo responsável de Azeredo da Silveira na segunda metade dos anos 1970, mas cujos rudimentos já estavam presentes no segundo governo Vargas e no governo Kubitschek. Nesses períodos abandonamos dogmas elitistas e passamos a diversificar nossas relações, mais orientados agora pela maximização dos interesses genuinamente nacionais. Criamos, por exemplo, a Alalc (1960) e a Aladi (1980). Até que os objetivos brasileiros na América Latina deixassem de refletir claramente a visão de Washington, passamos por algumas recaídas ideológicas de subordinação e realinhamento automático com a grande potência, que acabou por nos distanciar da região ou estabelecer com ela um quase “imperialismo por procuração”, nos termos do “key-country” (“para onde for o Brasil também irá a América Latina”, Nixon, 1971).
Cada vez mais consciente da sua condição de país latino-americano a partir do pós-guerra, o país elaborou a duras penas, ao passar das décadas, um consenso entre as elites nacionais de que a região é o aspecto mais importante das nossas relações internacionais, não sendo ela excludente com as ambições universalistas.
A latino-americanização ou sul-americanização da política externa ocorreu não como fórmula defensiva de evitar coalizões antibrasileiras na vizinhança ou mesmo fora dela, mas como forma positiva de nos desenvolvermos, ao mesmo tempo em que constituíamos uma plataforma regional para nossas demandas e inserção globalizada.

O crescimento do Brasil no cenário internacional e as mudanças políticas na região fizeram com que este consenso com respeito à integração regional estivesse ameaçado, pela primeira vez desde o último grande retrocesso, observado no governo Castelo Branco. Tendo em vista que o centro gravitacional do mundo está se pulverizando em múltiplos polos de poder para além dos EUA, começaram a aparecer defensores de um descolamento brasileiro da América Latina. A tese de menos Mercosul segue por esta linha. No entanto, tal contestação da centralidade política e econômica da América do Sul para o país entra em forte contradição com a crescente relevância que as regiões assumem no mundo, seja no comércio ou em questões de segurança e meio ambiente.

O Brasil conseguiu agregar valor às suas exportações graças à América Latina. O regionalismo estrutural está para a indústria brasileira hoje como o nacional-desenvolvimentismo esteve para os anos dourados. Em um contexto de maior imprevisibilidade, assegurar um ambiente de paz e cooperação no espaço onde vivemos e no âmbito de democracias com apelo social, pode ser ingrediente do sucesso. Assim sendo, o debate sobre política externa deve enxergar o longo prazo, ajustando-se às condições da nova década, mas sem nos descarrilar da história. Não obstante as diferenças, estamos ocupando o lugar deixado pelos Estados Unidos na região, que outrora foi da Inglaterra e, antes dela, da Espanha. Como “uma potência doce”, o Brasil faz isso sem ser violento ou imperialista. A pergunta é se devemos continuar com o espírito de comunidade, “socio y no patrón”, ou concorrermos com a voracidade chinesa, a grande potência emergente no Século XXI.

O aumento das expectativas com relação ao Brasil e a reierarquização mundial, que nos colocará algumas posições à frente, têm estimulado progressivamente o país a assumir novos compromissos e a abrir múltiplas frentes de trabalho. É positiva a forma como adotamos relações internacionais variáveis de acordo com os interesses em questão, formando inúmeros grupos e parcerias. Isso não chega a ser uma novidade.

Mas a diferença de agora é que podemos de fato consolidar os avanços acumulados nas últimas décadas desde que não se abra mão dos princípios clássicos da política externa brasileira como o de não intervenção e respeito aos direitos humanos e a democracia. Nenhum tipo de pragmatismo pode ser mais importante do que esses princípios, que em nada se confundem com o viés ideológico ocidentalista do período oligárquico ou da Belle Époque, quando alguns imaginavam ser superiores aos vizinhos.

O mundo não se move pela lógica Norte-Sul ou Sul-Sul. O mundo se globaliza. No entanto, a maleabilidade requerida pelo jogo complexo montado pela evolução do sistema internacional contemporâneo ainda respeita algumas leis básicas da geografia, das distâncias, fronteiras, culturas e territorialidades. As regiões são cada vez mais centrais nesse tabuleiro e em qualquer outro que venha a ser montado porque elas são permanentes. Podem adotar novas configurações, mas são constantes em inúmeros aspectos práticos. Mesmo que alguém considerasse desejável, não há como mudar de vizinhança nesse caso. Aliás, uma boa vizinhança, diga-se de passagem. Sem guerras e mais cooperativa do que muitas outras no mundo. Portanto, antes de sermos Brics ou G-20 financeiro seremos sempre latino-americanos.
Marcelo Coutinho é fundador e coordenador do Observatório Político Sul-Americano (OPSA), do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e professor de Relações Internacionais da UnB.

Para pensador francês, globalização gerou “desapropriação democrática”.

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A CRISE ECONÔMICA mostra que os dirigentes políticos sofreram nos últimos anos uma “desapropriação democrática” gerada pela globalização, e por isso estão hoje relegados à condição de “impotência pública”.
A opinião é de um dos maiores pensadores europeus, o filósofo e intelectual francês Luc Ferry, que fala com a autoridade de quem atuou tanto na esfera acadêmica como no setor privado e no governo.
Antes de chefiar um grupo de reflexão socioeconômica no governo do presidente Nicolas Sarkozy, deu aulas na prestigiosa École Normale Supérieure, foi consultor de multinacional e ministro da Educação entre 2002 e 2004, no governo Jacques Chirac.

SAMY ADGHIRNI
DA REPORTAGEM LOCAL

Em entrevista à Folha por e-mail, Luc Ferry previu um fortalecimento das instâncias de governo e traçou semelhanças entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seu colega francês, Nicolas Sarkozy, e o primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi. O filósofo também rebateu críticas de que teria se alienado ao vestir a camisa de um governo.

FOLHA – O sr. crê que a globalização mudou a maneira de governar e de fazer política?
LUC FERRY – Sim. No universo globalizado em que estamos mergulhados, as ferramentas tradicionais das políticas nacionais se tornam cada dia menos relevantes. O maior fenômeno desta virada de século é a impotência pública, o fato de nossos políticos terem perdido praticamente todo o poder diante de um desenvolvimento globalizado que lhes escapa por toda parte. É o grande problema da política moderna: a questão hoje não é mais somente o que fazer, mas principalmente como recuperar o controle, como recuperar um pouco de poder e de margem de manobra. É o que eu chamo de desapropriação democrática. Há 50 anos essas interrogações não existiam, e as políticas funcionavam num plano essencialmente nacional.

FOLHA – O sr. acredita que as instâncias de governo sairão fortalecidas da atual crise econômica global?
FERRY – Sim, claro. Isso será necessário para resolver o problema duplo levantado pela crise. Primeiro: como reatar com um crescimento acarretado pela riqueza verdadeira, e não pelo endividamento. Segundo: como recuperar o controle sobre um mundo globalizado que nos escapa por todos os lados, tanto no plano econômico como no ecológico. É esse o grande desafio do G20 [grupo das 20 maiores economias do mundo], e é por isso que o grupo tem um longo caminho pela frente.

FOLHA – A crise revelou alguma falha estrutural no funcionamento das sociedades modernas?
FERRY – Antes de mais nada, é preciso refletir sobre a natureza da crise, pois há muita besteira sendo contada por aí. Ao contrário do que se diz, não se trata de uma crise financeira, mas de uma crise econômica no sentido tradicional. A visão ingênua pela qual existem uma “boa economia”, a economia “real” e uma economia “ruim”, a economia especulativa, não resiste à análise. Os países ocidentais mais industrializados, os Estados Unidos particularmente, conheceram nos anos 90 uma forte bipolarização do mundo do trabalho. Nessa época, criou-se um cenário onde havia, de um lado, trabalhadores altamente qualificados e bem-remunerados e, do outro, uma massa de trabalhadores mal paga por ser menos qualificada. Ou seja, a globalização fez as classes médias minguarem. O problema é que eram elas que geravam o crescimento e que mais consumiam. Foi nesse cenário que surgiu nos EUA o recurso ao endividamento maciço dos lares mais populosos e menos ricos, os famosos “subprimes”. A partir daí não foram mais os salários das classes médias que geraram crescimento, mas o endividamento dos pobres. Em outras palavras, a riqueza passou a ser aumentada não mais a partir da riqueza em si, mas a partir de dívidas! E assim multiplicaram-se nos EUA, nos últimos 15 anos, sistemas de empréstimo de alto risco. Foi no contexto dessa nova lógica econômica que a crise financeira veio se inserir. Demorou até os créditos de risco serem transformados em títulos que acabaram espalhados por bancos do mundo todo e viraram, com o apoio das agências de classificação de risco, produtos financeiros de difícil leitura. É evidente que esse processo só aconteceu graças à cumplicidade de banqueiros, incluindo o banco central americano, que sabia muito bem o que estava acontecendo. Mas o importante é que o mundo financeiro, por mais culpado seja, não está na raiz da crise, que é antes de mais nada uma crise da economia real. O que é evidentemente bem mais grave…

FOLHA – Como o sr. explica o fato de Lula, mesmo após dois mandatos repletos de denúncias contra seu partido e seus aliados, ainda ter popularidade tão alta?
FERRY – Pode se dizer a mesma coisa de [Silvio] Berlusconi na Itália ou de [Nicolas] Sarkozy na França. Boa parte da imprensa os vive criticando, e mesmo assim ganham eleições. De onde vem essa defasagem entre a população e a imprensa? A mídia, na sua essência, precisa ser crítica. Como se diz na França, não se pode escrever uma boa matéria para falar dos trens que chegam na hora. Esse é, de fato, o papel da mídia, mas isso pode acabar a distanciando do povo. A população não tem a obrigação de sempre criticar e, paradoxalmente, às vezes entende melhor que os observadores profissionais a dificuldade de ser político.

FOLHA – O que o sr. acha dos presidentes Sarkozy e Barack Obama, que divulgam abertamente sua vida privada?
FERRY – É antes de mais nada um bom tema de reflexão para os jornalistas. Afinal de contas, são eles que correm atrás dos furos relacionados à vida privada dos políticos. O público adora e dá audiência, só isso.

FOLHA – Como o sr. avalia a onda de esperança global gerada pela chegada ao poder de Obama?
FERRY – Há 50 anos, Obama nem sequer teria sido aceito em uma universidade em seu país. E hoje ele é presidente. É normal que essa mudança absoluta exerça um fascínio, não? A esperança é formidável, éramos milhões a contar os dias para a saída de [George W.] Bush. Afinal, Obama vem de uma família de muçulmanos, o que significa que ele pode melhor do que ninguém ajudar a evitar o famoso conflito de civilizações, principal ameaça que pesa sobre o século 21.

FOLHA – O debate sobre a burca [véu muçulmano que cobre inteiramente o corpo da mulher] na França traz à tona a questão do relativismo cultural: impor um modo de pensar como sendo melhor que outro não contribui para acirrar o choque de civilizações previsto por Samuel Huntington?
FERRY – Muita gente atribui um monte de besteiras a Samuel Huntington sem ter lido seu livro (“O Choque das Civilizações e a Recomposição da Nova Ordem Mundial”), que na verdade é ótimo. Em primeiro lugar, ele nunca estimulou o choque de civilizações, muito pelo contrário. Ele sempre recomendou que o governo americano praticasse o diálogo e a moderação diante do islã. Huntington inclusive se opôs à Guerra do Iraque. Mas é fato que existe, sim, um verdadeiro choque com o islã radical, e a burca, ao contrário de uma opinião comum totalmente errada, não tem nada de símbolo religioso. Ela não consta em lugar nenhum na lista das obrigações determinadas pela religião muçulmana às mulheres. A burca é um sinal de vínculo ao fundamentalismo. Ela significa que as mulheres não devem ter lugar na esfera pública e que elas devem ficar em casa. Se saírem, elas têm de se dissimular. Devemos aceitar essa concepção do lugar da mulher? Respondo tranquilamente não, cem vezes não. E eu não digo isso porque defendo uma tradição cultural ocidental, mas porque penso que as mulheres simplesmente fazem parte da humanidade. Nesse tema, o relativismo é sempre cúmplice dos totalitarismos.

FOLHA – Um filósofo que, como o senhor, se associa a um governo não acaba perdendo sua liberdade de pensar e falar?
FERRY – Enquanto se é membro de um governo, é preciso ater-se ao princípio de solidariedade, o que obviamente ofusca a liberdade de expressão. Mas ninguém é obrigado a entrar num governo, nem a ficar nele. Nada impede de ir embora, mas quando se decide permanecer, é preciso ser coerente com seu compromisso.
Muitos pensadores franceses, inclusive alguns dos maiores, como [Alexis de] Tocqueville, [André] Malraux e Victor Hugo encararam esse desafio inerente à vida política. Por quê? Simplesmente porque aquele que não se compromete pode se gabar de ter mãos puras, mas na verdade ele não tem mãos. Tenho paixão por filosofia, é sem sombra de dúvida a vocação da minha vida.
Mas eu não poderia ter passado a vida inteira como professor de universidade sem ter a curiosidade de observar de perto a realidade histórica e sem participar, ainda que modestamente, da construção da história. É apaixonante, e aprende-se muito sobre a realidade, da qual o filósofo jamais deve se afastar.

Economia global pode entrar na Terceira Grande Depressão

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Historiador da Universidade Harvard prevê estagnação não tão profunda quanto a da década de 1930, mas longa, com um período de baixo crescimento dos EUA e deflação em vários países
Para o historiador, a decisão de permitir a continuidade de instituições “grandes demais para quebrar” vai contra um dos benefícios das crises financeiras: o fim de modelos que não funcionam e a criação e transformação de novos caminhos, bem-sucedidos. O professor de Harvard afirma que a crise pode levar a uma aceleração de um processo, que já vem acontecendo, de declínio dos Estados Unidos e ascensão da China como nova potência. “Seria perfeitamente familiar, do ponto de vista histórico”, diz. Em uma ou duas décadas, os PIBs dos dois serão
equivalentes, aposta. O livro, que figurou na lista de mais vendidos do “New York Times”, será lançado no Brasil nesta semana. Leia abaixo a entrevista concedida por Ferguson à Folha, por telefone.

FOLHA – Em uma palestra sobre seu livro, o senhor disse que acabou a “era da alavancagem”. Em que era estamos entrando agora?
NIALL FERGUSON – Temo cada vez mais que estejamos entrando na Terceira Depressão, não tão severa quanto a de 1929-33, mas provavelmente tão longa quanto a de 1873-1878. Temos pela frente um período de crescimento baixo na maior economia do mundo, os EUA, e também um ou dois anos de deflação em muitas economias.

FOLHA – Olhando historicamente, existe alguma diferença entre essa Terceira Grande Depressão e as anteriores, para a população?
NIALL FERGUSON – Uma das grandes diferenças é que os atuais sistemas de bem-estar social e de apoio aos desempregados são muito melhores que os anteriores. Os governos tiveram um papel muito mais ativo na condução da economia, então vimos ações extraordinárias dos bancos centrais para injetar liquidez no sistema -e também enormes déficits dos governos enquanto tentam impulsionar a economia. Isso vai ser diferente e é por isso que não estamos vendo um colapso severo como o dos anos 30. Mas não dá para conseguir tudo. Estamos começando a ver os limites das respostas monetárias e keynesianas a esta crise.

FOLHA – O senhor fala em “destruição criativa”. Da quebra dessas empresas, vamos ter um novo tipo de economia. Que nova economia vai emergir dessa depressão?
FERGUSON – Há duas coisas diferentes. Primeiro, vai ser uma economia mundial em que países como China, Índia e, claro, o Brasil terão um papel muito maior, com os EUA, a Europa e o Japão menos dominantes. O segundo ponto importante é que as economias desenvolvidas, particularmente os EUA, não serão capazes de reavivar o antigo modelo de securitização [em que dívidas são aglutinadas, transformadas em títulos e vendidas como investimento], de bancos de investimento e de crédito ao consumidor. O que vamos ver nos EUA e também na Europa é um retorno a um modelo financeiro mais antiquado. Digo isso com alguma hesitação, porque neste momento os governos desses países estão falando em novas regulações que parecem mirar em reviver esses dinossauros e mantê-los vivos. Em outras palavras, medidas estão sendo tomadas para impulsionar instituições que eram vistas como “grandes demais para quebrar”. E eu concordo com os que dizem que, se algo é grande demais para quebrar, é grande demais mesmo, e provavelmente não deveria existir. Mas a tendência da nova regulação é a de manter esses dinossauros vivos, o que vai criar mais problemas. O que mais precisamos neste momento é um retorno a instituições financeiras menores e menos vulneráveis, mas o que vamos pegar é um tipo de megassuperbanco nacionalizado.

FOLHA – Então, nesse caso, o curso natural da história não está sendo respeitado e pode ser a semente de uma nova crise mais para a frente?
FERGUSON – O perigo de intervir desse modo é acabar com um tipo de “década perdida”, no estilo japonês, em escala global. Minha esperança é que serão tomadas medidas para quebrar esses gigantes perigosos, como o Citigroup e o Bank of America. Se essas instituições forem divididas e houver novas instituições, aí pode haver razões para otimismo. Senão, as perspectivas são bastante ruins.

FOLHA – Seu livro vai até a origem do dinheiro. Sempre é feita a comparação da economia de agora com a da década de 30, mas, sob um ponto de vista mais amplo, com que outros pontos da história a atual era pode ser comparada?
FERGUSON – Há muitos paralelos. Parte do objetivo do livro é mostrar como a história financeira explica a geopolítica. Pense no declínio dos impérios português e espanhol, que nos 1600 pareciam os protagonistas da economia global. O declínio da Espanha foi claramente financeiro, porque a disponibilidade de prata do Novo Mundo teve o efeito de minar a saúde institucional do império espanhol e abrir o caminho para novas potências financeiras. Primeiro a Holanda, e depois, claro, a Inglaterra. A França era um império poderoso no século 18, mas, financeiramente, um império fraco, que em última análise caiu exatamente por isso -a Marinha britânica era muito maior, porque os franceses não tinham um mercado de “bonds”, não tinham a capacidade de se financiar naquela escala. No século 20, é o Reino Unido que está em problemas, como consequência de dívida e baixo crescimento, especialmente depois de 1945. Então seria perfeitamente familiar, de um ponto de vista histórico, se essa crise financeira levasse a uma aceleração da mudança dos Estados Unidos para a China. Nós já vimos nos últimos dez anos que a liderança parece estar mudando em direção à China. Embora isso leve tempo e seja imprevisível -já que a China pode sempre entrar em dificuldades-, é razoável dizer que em 10 ou 20 anos os PIBs da China e dos EUA não serão diferentes.

FOLHA – O senhor cria a “Chimérica” no seu livro, o que é isso?
FERGUSON – Meu argumento é que, para entender a economia mundial, é necessário entender a relação entre a China e a América [EUA]. A China exportadora, a América importadora. A China poupadora, a América gastadora. Essa relação esteve no centro da economia global nos últimos dez anos, e o interessante é perguntar se a crise levará ao fim da “Chimérica”. A China tem reclamado cada vez mais do modo como os EUA lidam com a crise.

FOLHA – A China tem falado constantemente numa alternativa ao dólar.
FERGUSON – Isso tem se tornado tão frequente de Pequim que parece que eles realmente querem dizer isso. Eles têm US$ 1,5 trilhão em títulos em dólar e ficam muito nervosos com os EUA tomando medidas que podem enfraquecer o dólar e, assim, suas reservas. Isso pode parecer o fim desse casamento. Quando cunhei essa expressão, pensei na palavra quimera, uma criatura mítica. Não acho que seja uma relação estável.

FOLHA – É possível ver uma trajetória linear na evolução econômica do mundo ou é algo errático? Estamos indo em alguma direção ou não?
FERGUSON – O paralelo que eu traçaria é um que me bateu quando eu estava na Bolívia, observando os Andes. Olhando as linhas das montanhas, dei-me conta de que estava olhando algo parecido com os índices do mercado financeiro, os picos, as quedas bruscas, os pontos agudos. E acho que essa analogia é válida. Na economia, as coisas quebram, no sentido de seleção natural, existe a sobrevivência, inovações ou mutações acontecem, novas instituições são criadas. São as bem-sucedidas que sobrevivem e se multiplicam. A diferença é que, ao contrário do mundo natural, temos intervenção de reguladores e legisladores, o que previne o processo natural de acontecer. Uma das maiores diferenças entre evolução natural e evolução financeira é que essa pode ser interrompida, os dinossauros podem ser salvos da extinção, e os mamíferos, impedidos de herdar a Terra. É um pouco isso o que está acontecendo, com instituições que deveriam ter quebrado, mas interviemos para mantê-las vivas.

FOLHA – Mas um dos argumentos é que, se quebrassem, o sofrimento para a população seria enorme, como nos anos 30. Não faz sentido?
FERGUSON – Isso é correto, e o Fed [banco central dos EUA] fez um bom trabalho em evitar a catástrofe. Se os bancos tivessem quebrado em setembro passado, estaríamos numa situação muito pior. Mas existem diferenças entre medidas temporárias e reformas de longo prazo. As medidas iniciais foram tomadas para prevenir o pânico. Mas, uma vez que isso foi feito, temos de dizer: depois do que você fez, não há a menor possibilidade de continuar como antes. Quando vimos o Goldman Sachs, que recebeu todo tipo de benefício, voltando aos negócios como sempre, os bancos sobreviventes simplesmente voltando ao que eram antes, tudo isso é muito frustrante. O Goldman vai ter em 2009 o mesmo lucro de 2007, ou maior. É difícil acreditar que os contribuintes colocaram seus recursos para prevenir uma depressão, não para que os bancos tivessem um ótimo ano de 2009.

FOLHA – Isso pode levar a reações mais agressivas da população?
FERGUSON – Isso é parte da dificuldade do público de distinguir entre milhares e milhões. Quando você tenta explicar para as pessoas o que está acontecendo, é complicado, porque, para elas, é difícil distinguir 1 milhão de 1 bilhão. Um dos objetivos do meu livro é encorajar o “alfabetismo financeiro”, para que o leitor comum não se sinta intimidado quando ler palavras como derivativos, trilhão. A ideia de que os mestres do universo de Wall Street precisam nos explicar o que está acontecendo é absurda. Está muito claro que a crise financeira foi causada por um grosseiro erro de cálculo e de administração pelas pessoas que geriam os bancos. E o fato de que muitos deles continuam a comandar os bancos é profundamente irritante.

Jornal Folha de São Paulo – 13/07/2009

Crescimento contínuo das despesas correntes é ‘assustador’

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O ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga está preocupado com o forte aumento das despesas correntes do governo. Pelo que observa “do crescimento quase que contínuo que se vê nos gastos públicos”, com alta expressiva do dispêndio com pessoal, aposentadorias e custeio da máquina, Arminio diz que é “obrigado a concluir” que há sinais de descontrole da situação fiscal do país.
“Não é um descontrole explosivo ano a ano, mas, como é via de mão única para cima, o que se vê com o passar dos anos é assustador. Tem que parar”, afirma ele, que é sócio da Gávea Investimentos. A alta dos gastos correntes tira espaço do investimento e empurra para cima os juros, explica.
Para Arminio, o ideal é que o Brasil mantenha superávits primários mais próximos de 4% do Produto Interno Bruto (PIB) ainda “por uns anos”. A questão é que a dívida bruta ainda é elevada como proporção do PIB, “especialmente quando se leva em conta o alto nível dos juros”, diz. Em maio, a dívida bruta estava em 61,9% do PIB. Países com classificação de risco semelhante à do Brasil tem o indicador na casa de 34%, segundo números da Standard & Poor’s (S&P).
“Vejo muitas vantagens em se manter por mais alguns anos um superavit primário capaz de reduzir a relação dívida/PIB, e assim reduzir o prêmio de risco Brasil e alavancar o crescimento.” Se promover uma economia mais forte para pagar os juros da dívida por alguns anos, o país terá uma folga que permitirá reduzir o superávit em anos de recessão como o atual, avalia. Ao mesmo tempo, completa Arminio, isso requer um esforço fiscal maior quando a economia cresce acima da média.
Depois de atingir 4,1% do PIB em 2008, o superávit primário deve ficar neste ano em 2,2% do PIB, segundo os analistas ouvidos pelo BC. Para 2010, a previsão é de um esforço fiscal de 3% do PIB. Mas há vários economistas que preveem superávits inferiores a esses, dada a tendência de crescimento acelerado das despesas correntes e da incerteza quanto ao ritmo de retomada da expansão das receitas.
A seguir, os principais trechos da entrevista, concedida por e-mail de Nova York, quando Arminio voltava da China. Segundo a “Dow Jones”, ele foi nomeado um dos 14 integrantes do recém-estabelecido conselho consultivo internacional do fundo soberano chinês China Investment Corporation, que tem US$ 200 bilhões. Os membros vão aconselhar o fundo sobre o ambiente econômico internacional, governança corporativa, estratégia de desenvolvimento e política de investimento.
Valor: O superávit primário neste ano será bem menor que em 2008. O resultado é conjuntural ou aponta para uma deterioração estrutural das contas públicas?
Arminio Fraga: Em parte é conjuntural, mas a Receita Federal acaba de anunciar mais um ano de aumento na carga tributária, que está em torno de 36% do PIB. O lado da despesa é que assusta mais, e muito, e não de hoje.
Valor: As despesas correntes do governo central aumentaram muito de janeiro a maio. Os gastos com pessoal cresceram 22,63%, ou R$ 11,432 bilhões em termos absolutos. Como o sr. avalia essa trajetória de gastos correntes?
Arminio: Aí está realmente um problema sério, que precisa ser abordado com certa urgência, de forma transparente e detalhada. Não dá para a relação gasto corrente /PIB continuar crescendo indefinidamente, pois isso come espaço do investimento e pressiona as taxas de juros para cima.
Valor: O investimento federal cresceu 25% no período, mas para apenas R$ 9,276 bilhões – menos que o aumento com os gastos de pessoal. Por que a União ainda investe tão pouco, mesmo com o PAC?
Arminio: Porque o gasto corrente ocupa o espaço.
Valor: Qual o impacto da política fiscal atual sobre as perspectivas futuras de crescimento do país?
Arminio: Vejo dois problemas. O primeiro eu já mencionei: o “crowding out” do investimento prejudica crescimento. O segundo, pouco discutido, diz respeito à eficiência do setor público, que me parece uma questão igualmente grave.
Valor: Hoje, o superávit primário necessário para estabilizar a relação dívida/PIB é bem menor do que no fim dos anos 90 e começo da atual década. Isso indica que o problema de solvência está fora do radar dos investidores?
Arminio: A questão da solvência de longo prazo requer uma visão mais estrutural das coisas. Penso que nossa dívida bruta ainda é alta como proporção do PIB, especialmente quando se leva em conta o alto nível dos juros. Vejo muitas vantagens em se manter por mais alguns anos um superavit primário capaz de reduzir a relação dívida/PIB, e assim reduzir o prêmio de risco Brasil e alavancar o crescimento. Isso leva a uma recomendação prática muito clara: temos que ter um superávit primário mais para 4% do PIB por uns anos. Essa folga permite uma queda em anos de recessão, como o atual, e requer um superavit maior quando se cresce acima da média.
Valor: O governo definiu um mecanismo de reajuste do salário mínimo que leva em conta a inflação nos últimos 12 meses e o PIB de dois anos anteriores. Isso pode levar a mais um reajuste superior a dois dígitos em 2010. Como o sr. vê esse mecanismo de correção?

Arminio: Preliminarmente, esta conta seria menos problemática sem o vínculo com os cálculos da Previdência, tema relacionado ao início da nossa conversa. Como não é assim, me parece que por ora seria razoável apenas proteger o salário mínimo contra perdas reais e no máximo dar aumentos equivalentes ao crescimento do PIB per capita.
Valor: O sr. vê sinais de descontrole da situação fiscal no país?
Arminio: Do que foi dito até aqui, e da observação do crescimento quase que contínuo que se vê nos gastos públicos, sou obrigado a concluir que sim. Não é um descontrole explosivo ano a ano, mas como é via de mão única para cima, o que se vê com o passar dos anos é assustador. Tem que parar.
Valor: Os princípios da lei de responsabilidade fiscal estão de algum modo ameaçados?
Arminio: A LRF foi um marco fundamental – sem ela, o país provavelmente já teria quebrado. Mas ainda vejo muita despesa permanente sendo criada sem real fonte de receita equivalente. E falta um mecanismo mais global de limitar a relação dívida/PIB.

Valor: A herança fiscal que o próximo governo vai receber será um peso muito grande?
Arminio: Sem a menor sombra de dúvida – para não falar de uma certa politização do Estado, que não sei bem medir, mas que parece real.