País dos privilégios, por Hélio Schwartsmam

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Livro tenta atualizar clássico de Raymundo Faoro que mostrou como certos grupos extraem para si benefícios da sociedade

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”.
Folha de São Paulo, 04/08/2024

Sou fã de Bruno Carazza desde os tempos em que ele mantinha um blog no qual tentava introduzir medidas objetivas para analisar questões de direito. É com satisfação, portanto, que o vejo agora envolvido no ambicioso projeto de escrever uma trilogia que atualiza “Os Donos do Poder” o clássico de Raymundo Faoro”, que mostrou como alguns estamentos sociais conseguem sequestrar o poder do Estado brasileiro para beneficiá-los. O título da obra de Bruno é “O País dos Privilégios”, da qual acaba de sair o primeiro volume.

Neste tomo inicial, Bruno se debruça sobre o funcionalismo público. Esse livro teria potencial de ser um dos mais aborrecidos do mundo. O que Bruno faz essencialmente é comparar tabelas com rendimentos de servidores e outros dados que não despertam entusiasmo. Mas ele consegue transformar isso numa leitura interessante. Eu exageraria se afirmasse que a obra se lê como um Agatha Christie, romance de mas o texto é agradável e prende a atenção. Até desperta algumas emoções no leitor, quando descreve as formas criativas pelas quais certos estamentos extraem benefícios da sociedade.

O número de funcionários públicos no Brasil não é exagerado –12%, bem menos que o registrado em algumas economias avançadas–, mas empenhamos em suas remunerações a formidável fatia de 13% o PIB, padrão só verificado nos países nórdicos. A distribuição é, como tudo no Brasil, desigual.

Enquanto funcionários municipais ganham em média menos que trabalhadores da iniciativa privada em funções semelhantes, grupos de elite do funcionalismo federal ganham bem mais, além de gozar de outros privilégios. Estamos falando de juízes, membros do Ministério Público, fiscais de renda etc.

O livro não é uma diatribe contra servidores públicos. Bruno é muito cuidadoso ao lembrar que eles desempenham um papel importantíssimo na administração, que justifica alguns (mas não todos) os privilégios.

Reconstruindo as capacidades estatais, por André Roncaglia

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Transparência ajuda a qualificar debate sobre o papel das empresas públicas no século 21

André Roncaghia, Professor da Unifesp, pesquisador associado do Ibre-FGV e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 08/08/2024

A Sest (Secretaria de Coordenação e Governança das Estatais) do MGI (Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos) apresentou, há alguns dias, o “Relatório Agregado das Empresas Estatais Federais”, um mapa do sistema de empresas estatais federais.

O relatório oferece uma descrição de cada uma das 44 empresas sob controle direto da União e permite uma análise mais adequada dos resultados das estatais ajustados aos seus objetivos.

A imprensa costuma repercutir uma análise superficial, tipicamente financista, de lucro ou prejuízo. A extrema direita se gaba de o governo Bolsonaro ter melhorado a gestão das estatais, mas os números mostram o desmonte a granel do sistema, por meio de cortes de investimento e da venda lesa-pátria da Eletrobrás.

Os objetivos das empresas estatais transcendem a mera busca de resultados financeiros de curto prazo. Sua governança considera aspectos ligados ao interesse público, como a geração de empregos de qualidade, o abastecimento e a segurança alimentar, a inovação tecnológica e a gestão focada em resultados.

Em 2023, o sistema de empresas estatais federais contribuiu com cerca de 6% do PIB em valor adicionado bruto e mais 6% na compra de insumos, ativando cadeias produtivas nacionais. Os ativos somaram cerca de R$ 6 trilhões (60% do PIB), e o lucro líquido foi de R$ 197,9 bilhões: dois terços desse resultado vieram da Petrobrás (R$ 125,2 bilhões), seguida pelo Banco do Brasil (R$ 33,8 bilhões), pelo BNDES (R$ 21,9 bilhões) e pela Caixa Econômica Federal (R$ 11,7 bilhões). A queda de 28% nos lucros relativos a 2022 se deveu à redução nos preços do petróleo e ao aumento de 30% dos investimentos das empresas.

Em termos de emprego, o sistema detém mais de 436 mil postos, com atuação em todo o território nacional, e vem melhorando a baixa representatividade das mulheres (ainda em 38% do total), mas que já detém 49% dos empregos gerados nos últimos dez anos.

Ao longo do ano de 2023, foram distribuídos R$ 128,1 bilhões em dividendos e juros sobre o capital próprio, dos quais a União recebeu R$ 49,4 bilhões. Cerca de R$ 222 bilhões foram pagos na forma de impostos, taxas e contribuições para municípios, estados e a União. Os lucros retidos no total de R$ 101 bilhões podem reforçar os investimentos ligados ao Novo PAC.

A Ebserh, que controla 41 dos 45 hospitais universitários federais (responsáveis por mais 8 milhões de cirurgias em 2023), e a Embrapa (tecnologia agropecuária) receberam, cada uma, cerca de R$ 4 bilhões do Tesouro. E os Correios receberam R$ 532 milhões para universalizar o acesso à distribuição postal.

No mundo inteiro, as empresas estatais retomam sua centralidade em setores estratégicos, como os de rede (ferrovias, portos, eletricidade, saneamento, telecomunicações etc.) e na produção e na prestação de serviços (saúde, financeiros, manufatura, indústria aeroespacial etc.). Um estudo do Roosevelt Institute —”Industrial Policy 2025: Bringing the State Back In (Again)”—mostra que, das 10 maiores empresas do mundo, 4 são estatais. A França, por exemplo, tem mais empresas estatais que a ex-soviética Rússia. O Brasil tem menos cobertura estatal do que Suíça, Alemanha e Argentina.

Ao operar uma agenda intensiva em inovações para o setor público, o MGI visa construir as capacidades estatais para lidar com os desafios da transição ecológica e da digitalização da economia. É uma estrada longa e repleta de obstáculos. Por isso, a maior transparência ajuda a qualificar o debate público sobre o papel das empresas estatais no século 21.

Desigualdades sociais

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Nos últimos anos estamos percebendo o incremento das desigualdades sociais na sociedade internacional, anteriormente ao falar sobre esse assunto percebíamos que essa desigualdade acontecia fortemente nas economias subdesenvolvidas ou em desenvolvimento, na contemporaneidade esse assunto se apresenta em todas as nações do globo, tanto as ricas e desenvolvidas como as nações pobres e atrasadas economicamente, gerando novos desafios para os gestores públicos, as elites empresarial e financeira, além da academia e para todos os integrantes da sociedade civil.

Desde os anos 1990, com o incremento da globalização, da abertura econômica e do aumento das tecnologias que culminaram numa sociedade digital e centrada no conhecimento, percebemos uma grande transformação na estrutura econômica e produtiva, alguns países conseguiram se adaptar melhor e mais rapidamente neste novo cenário, enquanto outras nações tiveram grandes dificuldades no mundo globalizado, gerando concorrências crescentes em todos os setores, impactando sobre os trabalhadores e os setores produtivos, impulsionando uma competição que tende a fragilizar muitas empresas e sistemas econômicos.

A desigualdade social sempre caracterizou a sociedade brasileira, somos vistos como uma das nações mais desiguais do mundo, que contrasta com as riquezas que caracterizam a sociedade nacional, afinal somos um país dotado de grandes recursos minerais, clima agradável, grandes reservas de água doce, além de florestas e vegetações em abundância que nos coloca no centro de uma das nações mais ricas de recursos naturais.

Mesmo assim, as desigualdades sociais existentes na contemporaneidade brasileira estão diretamente ligadas a história degradante da escravidão que perdurou mais de trezentos anos, uma colonização caracterizada por uma exploração gigantesca, além de privilégios de poucos grupos econômicos e financeiros, um Estado capturado por elites predadoras e imediatistas, além de um sistema educacional fracassado e ultrapassado para os grupos mais fragilizados economicamente da sociedade, que contribuem para a perpetuação de uma pobreza estrutural que nos afasta imensamente da cidadania e da conscientização política e social.

Além destas características que contribuem maciçamente para o incremento das desigualdades sociais, destacamos salários degradantes que pouco auxiliam na sobrevivência dos trabalhadores e estimulam a construção de um sistema de proteção social para garantir a sobrevivência dos indivíduos, sem estes a degradação social tende a aumentar e gerar graves constrangimentos políticos e sociais.

Nesta sociedade, que se compraz com as desigualdades variadas que vivenciam no Brasil, encontramos grupos altamente privilegiados, que garantem sua reprodução através de ganhos escorchantes de taxas de juros obscenas, dominando as Autoridades Monetárias sem produzir efetivamente nada, sem geração de emprego e de renda, sem pudor, sem caráter e sem capacidade de compreender que seus benesses e imediatismos contribuem diretamente para a manutenção deste quadro de degradação social, além de um exército de cidadãos bem remunerados, bem formados e que se vendem para garantir seu enriquecimento pessoal e suas férias em terras estrangeiras em prol de uma sociedade deficiente e centrada nas desigualdades sociais.

As desigualdades sociais crescem de forma acelerada em todas as regiões do mundo, gerando um quadro obsceno e degradante, precisamos construir uma maturidade que ataque as raízes desta desigualdade, deixando de lado medidas cosméticas e ineficientes que apenas postergam os conflitos sociais e as crises econômicas que crescem todos os dias.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

O Império do Mal? por Elizabeth Schmidt

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Elizabeth Schmidt – A Terra é Redonda – 27/07/2024

A presença da China na África vem desde meados do século passado, inicialmente por simpatia política, hoje mais ligada a perspectivas econômicas

A crescente presença da China na África chamou a atenção global. À medida que seus acordos comerciais e investimentos eclipsaram os do Ocidente, políticos dos EUA e da União Europeia deram o alarme: Pequim, dizem eles, está explorando os recursos do continente, ameaçando seus empregos e apoiando os seus ditadores; ademais, está deixando de lado as considerações políticas ou ambientais.

As organizações da sociedade civil africana fazem muitas das mesmas críticas, ao mesmo tempo em que apontam que os países ocidentais há muito se envolvem em práticas semelhantes. Na mídia anglófona, a maioria das avaliações das perspectivas da China é obscurecida pela retórica da Nova Guerra Fria, que enquadra Xi Jinping como um sujeito que visa dominar o mundo. Pede-se, assim, às forças da civilização que o detenham. Ora, como se poderia fazer uma análise mais sóbria? Como se deve entender o papel da África nessa matriz geopolítica hostil?

Os interesses chineses na África – assim como as preocupações ocidentais sobre a influência de Pequim – não são novidade. Compreender o impasse atual exige que a sua história do imperialismo na África seja rastreada. Em abril de 1955, representantes de 29 nações e territórios asiáticos e africanos se reuniram para uma conferência histórica em Bandung, na Indonésia. Eles resolveram arrancar a própria autonomia do núcleo capitalista, promovendo a cooperação econômica e cultural, bem como a descolonização e a libertação nacional, em todo o Sul Global.

Nesse sentido, o envolvimento chinês com a África foi guiado inicialmente por esse espírito de solidariedade. Do início dos anos 1960 a meados dos anos 1970, a China ofereceu doações e empréstimos a juros baixos para projetos de desenvolvimento na Argélia, Egito, Gana, Guiné, Mali, Tanzânia e Zâmbia. Também enviou dezenas de milhares de “médicos descalços”, técnicos agrícolas e brigadas de solidariedade trabalhadora para países africanos que rejeitaram o neocolonialismo e, por isso, haviam sido rejeitados pelo Ocidente.

Na África Austral, onde o domínio da minoria branca persistiu em certas colônias, Portugal resistiu às demandas de independência, Pequim forneceu aos movimentos de libertação em Moçambique e na Rodésia treinamento militar, conselheiros e armas. Quando os países ocidentais ignoraram os apelos da Zâmbia para isolar efetivamente os regimes renegados, a China criou em empresa ferroviária na Tanzânia e Zâmbia, que construiu uma ferrovia que permitiu à Zâmbia exportar seu cobre através da Tanzânia, em vez da Rodésia e da África do Sul, governadas por brancos. Ao longo desse período, as políticas chinesas foram determinadas principalmente por imperativos políticos, pois o país buscava aliados em uma conjuntura global moldada pela Guerra Fria.

Após o colapso da URSS, porém, as suas prioridades mudaram. A China respondeu ao advento da unipolaridade americana embarcando em um programa maciço de industrialização e liberalização, na esperança de evitar o destino de outros projetos estatais comunistas. Com essa mudança, a África não era mais vista como um campo para iniciativas com teor ideológico, mas como uma fonte de matérias-primas e um mercado para produtos chineses, que vão de roupas a eletrônicos. A simpatia política deu lugar à perspectiva da utilidade econômica. As nações africanas foram valorizadas de acordo com seu significado material e estratégico para os planos de desenvolvimento do Partido Comunista Chinês.

Na primeira década do século XXI, a China ultrapassou os EUA como o maior parceiro comercial da África e recentemente se tornou a quarta maior fonte de investimento estrangeiro direto do continente. Em troca de acesso garantido a recursos energéticos, terras agrícolas e materiais para dispositivos eletrônicos e veículos elétricos, a China gastou bilhões de dólares em infraestrutura nesse continente: construção e reforma de estradas, ferrovias, barragens, pontes, portos, oleodutos e refinarias, usinas de energia, sistemas de água e redes de telecomunicações.

As empresas chinesas também construíram hospitais e escolas e investiram nas indústrias de vestuário e processamento de alimentos, juntamente com agricultura, pesca, imóveis comerciais, varejo e turismo. Os investimentos mais recentes se concentraram em tecnologia de comunicação e energia renovável.

Ao contrário das potências ocidentais e das instituições financeiras internacionais, Pequim não fez da reestruturação política e econômica uma condição para seus empréstimos, investimentos, ajuda ou comércio. Eles não estão também condicionados a proteções trabalhistas e ambientais.

Embora essas políticas sejam populares entre os governantes africanos, elas são frequentemente contestadas por organizações da sociedade civil, que observam que as empresas chinesas expulsaram empresas de propriedade africana do mercado e empregaram trabalhadores chineses em vez de trabalhadores locais.

Quando contratam mão de obra africana, as empresas chinesas muitas vezes os forçam a trabalhar em condições perigosas por salários miseráveis. Os projetos de infraestrutura da China também resultaram em dívidas maciças que aprofundaram a dependência africana. No entanto, os países africanos ainda devam muito mais ao Ocidente.

O mais danoso é que Pequim garantiu seu acesso irrestrito a mercados e recursos apoiando elites corruptas, fortalecendo regimes que roubam a riqueza de seus países, reprimem a dissidência política e travam guerras contra estados vizinhos. Os governantes africanos, por sua vez, deram à China o apoio diplomático muito necessário nas Nações Unidas e em outras organizações internacionais.

Durante décadas, a China se opôs à interferência política e militar nos assuntos internos de outras nações. No entanto, à medida que os interesses econômicos de Pequim na África cresceram, ela adotou uma abordagem mais intervencionista, envolvendo operações de socorro em desastres, antipirataria e contraterrorismo.

No início dos anos 2000, a China aderiu aos programas de manutenção da paz da ONU em países e regiões onde tinha interesses econômicos. Em 2006, a China pressionou o Sudão, um importante parceiro petrolífero, a aceitar a presença da União Africana e da ONU em Darfur. Em 2013, aderiu
à missão de manutenção da paz da ONU no Mali, motivada pelos seus interesses no petróleo e no urânio dos países vizinhos. Em 2015, trabalhou com potências ocidentais e organizações sub-regionais da África Oriental para mediar as negociações de paz no Sudão do Sul.

Durante este período, a China inicialmente se absteve de se envolver militarmente em áreas dominadas por conflitos, preferindo contribuir com trabalhadores médicos e engenheiros. Mas isso não durou muito. Houve uma notável presença militar chinesa nas missões de paz da ONU no Burundi e na República Centro-Africana.

A missão da ONU no Mali marcou a primeira vez que as forças de combate chinesas se juntaram a uma operação desse tipo, ao lado de cerca de 400 engenheiros, pessoal médico e policial. Pequim também enviou um batalhão de infantaria composto por 700 soldados armados para o Sudão do Sul em 2015. No ano seguinte, estava contribuindo com mais militares para as operações de manutenção da paz da ONU do que qualquer outro membro permanente do Conselho de Segurança.

A tendência de maior envolvimento político e militar na África culminou em 2017, quando a China se juntou à França, EUA, Itália e Japão no estabelecimento de uma instalação militar em Djibuti: assim nasceu a primeira base militar chinesa permanente fora das fronteiras do país.

Estrategicamente localizada no Golfo de Aden, perto da foz do Mar Vermelho, a instalação tem vista para uma das rotas marítimas mais lucrativas do mundo.

Isso permitiu que Pequim reabastecesse embarcações chinesas envolvidas em operações antipirataria da ONU e protegesse os cidadãos chineses que vivem na região. Também permitiu o monitoramento do tráfego comercial ao longo da Rota da Seda Marítima do Século XXI da China, que liga países da Oceania ao Mediterrâneo em uma vasta rede de produção e comércio. Isso ajudará a China a proteger seu suprimento de petróleo, metade do qual se origina no Oriente Médio e transita pelo Mar Vermelho e pelo Estreito de Bab el-Mandeb até o Golfo de Aden. A maioria das exportações da China para a Europa segue a mesma rota.

Embora Washington condene o que chama de imperialismo chinês, sua própria pegada militar na África é muito mais profunda e dolorosa, consistindo em 29 bases em áreas ricas em recursos. Os EUA prometem afastar os “impérios do mal” enquanto ostentam mais de 750 bases em pelo menos 80 países, em comparação com as três da China. Lutou em pelo menos 15 guerras estrangeiras desde 1980 – a China aderiu a apenas uma – e os regimes fiscais que impôs às nações africanas, baseados na privatização, desregulamentação e restrições de gastos, foram ruinosos.

O establishment de segurança dos EUA agora visa conter a ascensão da China, reforçando alianças militares, especialmente com regimes que receberam investimentos chineses. No entanto, um número crescente de estados africanos, cientes desse histórico desastroso, está se recusando a tomar partido na Nova Guerra Fria e, em vez disso, está tentando jogar seus combatentes uns contra os outros.

A verdade é, porém, que enquanto a África for tratada como um meio para as potências rivais expandirem seus mercados ou influência, em colaboração com as elites locais, o povo do continente não exercerá a verdadeira soberania. Hoje, os legados de Bandung são escassos.

*Elizabeth Schmidt é professora de história na Loyola University Maryland.

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Para ‘despiorar’ o socorro aos estados, por Marcos Mendes

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Fundo garantidor bancado pelos estados reduziria comportamento predatório

Marcos Mendes, Pesquisador associado do Insper, é organizador do livro ‘Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil’

Folha de São Paulo, 27/07/2024

Nos anos 1980 e 1990, a desordem fiscal nos estados era grande. Governadores contavam com a inflação para corroer a folha de salários e aumentar as receitas dos bancos estaduais, que financiavam diretamente os seus controladores.

O Banco Central, então responsável por autorizar operações de endividamento subnacionais (a partir de regras fixadas pelo Senado), era chamado à mesa de negociação toda vez que havia necessidade de socorro. A execução era feita via bancos federais, flexibilizando exigências prudenciais a bancos estaduais ou “emprestando” títulos de sua emissão para os estados captarem dinheiro em mercado.

O Plano Real desmontou o financiamento inflacionário dos bancos e dos tesouros estaduais, revelando o desequilíbrio que a inflação escondia. Foi necessário um programa de saneamento e privatização dos bancos, bem como a federalização das dívidas estaduais.

Esses socorros embutiram subsídio aos estados e custaram muito aos contribuintes. Em
contrapartida, exigiu-se um programa de ajuste fiscal e aprovou-se a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal).

O Banco Central foi retirado do processo de autorização de endividamento, afastando o risco de ser dragado para nova operação de socorro. A tarefa foi transferida ao Tesouro, que cumpriu bem a função, empoderado pela LRF e pelos instrumentos que garantiam o cumprimento do ajuste pelos estados, como a possibilidade de confiscar depósitos daqueles que não honrassem a dívida.

Os estados deixaram de ser um problema fiscal e melhoraram a qualidade e eficiência na prestação de serviços públicos.

A partir de 2008, esse arranjo institucional começou a ruir. Primeiro, porque o governo federal afrouxou os limites de endividamento. Segundo, porque os estados aprenderam a explorar brechas nos limites da LRF.

Em 2014, o desequilíbrio fiscal estadual já havia voltado a ser problema de primeira ordem. E o jogo político mudou. Os estados amealharam forte apoio no Congresso, onde cada parlamentar tem interesse em beneficiar o seu estado e jogar a conta para os contribuintes do resto do país.

Governadores conseguiram obter vitórias sobre a União no STF, mesmo em causas sem fundamento jurídico ou econômico, geralmente sob o argumento de que o atendimento da população não poderia ser prejudicado.

Rompeu-se a principal cláusula da LRF: a proibição de novos socorros fiscais. Todos os governos, desde Dilma, foram forçados a renegociar a dívida. O Tesouro, que antes tinha poder para exigir ajuste aos estados, ficou acuado, sob pressão de governadores, Congresso e STF.

Há incentivo a comportamento fiscal irresponsável, dada a alta probabilidade de repassar a conta para a União.

Tornou-se comum um estado tomar empréstimo no mercado com garantia da União, não pagar, e forçar a União a saldar o débito. Quando esta tenta executar a contragarantia, o estado consegue uma liminar do STF bloqueando a execução.

A coação ao Tesouro evoluiu ao ponto de os estados que estão no Regime de Recuperação Fiscal passarem a ter, por lei, o direito de não honrar as garantias e refinanciar o valor em 30 anos.

Desde 2016, a União já honrou R$ 70 bilhões e executou apenas R$ 6 bilhões em contragarantias.

Esse comportamento predatório só mudará se a vulnerabilidade do Tesouro for reduzida. Exatamente como se fez no passado com o Banco Central, ao isolá-lo da negociação política com os estados.

No caso do Tesouro, não será possível tirá-lo completamente das negociações, mas pode-se reduzir a sua exposição. Uma forma de fazê-lo, sugerida em estudo do FMI de 2019, seria a criação de um fundo garantidor de empréstimos dos estados custeado pelos próprios estados, sem participação financeira ou gerencial da União.

O Tesouro ficaria proibido de dar novas garantias. Somente este fundo poderia fazê-lo. Se um estado desse calote, o custo recairia sobre os demais estados, e não sobre a União.

A negociação de socorro fiscal que ora se desenrola no Senado prevê que parte dos juros pagos pelos estados, em vez de ir para a União, irá para um fundo, que financiará despesas de todos os estados. Em vez de financiar despesas, este fundo poderia garantir empréstimos. Capitalizações adicionais do fundo, somente com dinheiro dos estados.

Em troca das benesses que o projeto está dando aos estados, teríamos pelo menos uma mudança institucional para induzir um pouco de responsabilidade fiscal.

Trinta anos depois do Plano Real por Biderman, Cozac & Rego

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Ciro Biderman, Luis Felipe Cozac e José Márcio Rego – A Terra é Redonda – 20/06/2024

Menos de 20 anos depois do Plano Real, o governo voltou a tentar controlar a inflação segurando tarifas públicas de energia e combustíveis

Quando começamos a pensar nesse projeto que virou o livro Conversas com economistas brasileiros (Ed. 34), há cerca de 30 anos, acreditávamos estar no início de uma nova fase no Brasil. Parecia que teríamos um novo modelo econômico depois de décadas de um modelo esgotado. A inflação crônica estava em seu ato final e uma nova e saudável visão da política pública parecia se firmar. Podemos dizer que os 15 anos que se seguiram ao Plano Real confirmaram nossa percepção.

Os governos FHC 1 e 2, bem como os governos Lula 1 e 2, trouxeram nova perspectiva ao país. O Plano Real, que de fato resolve a inflação inercial no país, partiu de um mecanismo teórico que se verificou bem-sucedido na prática – a ancoragem dos preços em uma moeda indexada e virtual. A famosa proposta “Larida”, termo cunhado por Dornbusch em alusão aos seus dois criadores (André Lara Resende e Pérsio Arida) partia de princípios teórico-econômicos estabelecidos aplicados ao mundo real.

Mas há outra contribuição teórica original e pouco intuitiva, que cumpriu um papel relevante na compreensão do contexto econômico do período inflacionário: a ideia de que, no Brasil, o aumento da inflação faria diminuir, e não aumentar, o déficit do setor público. Seria um “efeito Tanzi às avessas”, ou seja, no Brasil a alta da inflação faria diminuir o déficit, visto que as despesas estavam menos protegidas que as receitas, indexadas pela correção monetária desde a sexagenária ditadura militar.

Este efeito ficou conhecido por “Efeito Bacha”, uma vez que foi disseminado por um dos pais do Plano Real, Edmar Bacha, e embasou a Emenda Constitucional que criou o Fundo Social de Emergência, e promoveu uma desvinculação de cerca de 20% das despesas, conferindo maior liberdade orçamentária e possibilitando gestão fiscal, o que foi crucial para controlar a inflação. O próprio Edmar Bacha dá os créditos da ideia original, sustentando que o nome justo seria “Efeito Guardia”, em alusão ao saudoso ex-Ministro da Fazenda Eduardo Guardia.

Importante é lembrar que voltamos a uma posição de aperto fiscal, onde a desvinculação de parte dos gastos é de novo necessária. Hoje, estamos no caminho oposto: da parca parcela “discricionária” dos gastos, cerca de um quarto está vinculada às emendas parlamentares (era apenas 7% em 2018).

Com otimismo juvenil, pensamos que não veríamos mais o uso de preços controlados para segurar a inflação. Essa estratégia, sistematicamente utilizada pelos governos anteriores ao Plano Real, apenas postergava o problema, gerando distorções de preços relativos que tornavam o problema ainda maior no futuro. Menos de 20 anos depois do Plano Real, o governo voltou a tentar controlar a inflação segurando tarifas públicas de energia e combustíveis. Novamente, o mesmo fantasma nos espreita hoje – e os resultados são conhecidos.

Uma variação dessa estratégia pseudo anti-inflacionária é segurar o aumento do salário-mínimo com o mesmo objetivo. Esse expediente foi utilizado inúmeras vezes pelos governos antes de 1994. Mas, a partir do Plano Real, os aumentos consistentes do salário-mínimo com seus efeitos distributivos foram a marca desses 15 anos de boa política econômica que assistimos. Para nossa surpresa, o aumento do salário mínimo e dos salários do funcionalismo público abaixo da inflação (juntamente com a ausência de concursos públicos) foi recentemente utilizado como estratégia de controle do déficit primário, no governo anterior.

Hoje assistimos a grupos autodenominados de esquerda novamente aplaudindo os movimentos deficitários e as reduções de juros sem fundamentos econômicos, sem se preocupar com a qualidade do gasto e seu financiamento. Assistimos aos grupos conservadores aplaudindo o controle do déficit às custas do salário-mínimo e do funcionalismo, sem se preocupar com a insustentabilidade e o “curto prazismo” dessa e de outras estratégias.

Assim seguimos, esquecendo o que aprendemos, cada grupo com sua irracionalidade para aplaudir. O debate técnico construtivo é asfixiado e se perde a boa gestão da política pública e do orçamento. A Reforma Tributária, que deve ser regulamentada neste ano, nos dá alguma esperança de que a racionalidade possa voltar a reinar.

Seguindo a tradição de esquecer a cada 15 anos o que ocorreu nos 15 anos anteriores, o que mais assusta é não lembrarmos sequer do valor da democracia. Desde a luta das “Diretas Já” há 40 anos, nunca imaginamos que a democracia seria questionada. Assistimos com tristeza a existência de grupos desprezando esse valor básico. Sabemos que é mais fácil fazer política econômica com ditadura, assim como é mais fácil ser veterinário do que médico (pois neste caso o paciente reclama!).

Mas havia o aparente consenso de que essa vantagem não compensava todos os males de uma ditadura. Ainda acreditamos que a democracia é o pior sistema fora todos os outros, como disse Churchill. Só que parte da população brasileira se esqueceu disso também.

*Ciro Biderman é professor nos cursos de Administração pública e de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP).
*Luis Felipe Cozac é doutor em Economia de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas – SP.
*José Marcio Rego é professor da Fundação Getulio Vargas – SP e professor titular aposentado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Hegemonias

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A ascensão da China na economia internacional está gerando grandes alterações na lógica do poder mundial, transformando a geopolítica global, movimentando parcerias estratégicas entre nações, construindo novos cenários externos, além de conflitos comerciais, protecionismos variados e medidas emergenciais para defender seus setores econômicos e produtivos nacionais.

Desde os anos 1990, com a desintegração da União Soviética, os Estados Unidos da América se tornaram a grande economia mundial, detentora da hegemonia global e responsável pelos rumos da sociedade internacional, suas empresas ganharam novos espaços nos setores produtivos mundiais, estimulando a concorrência no cenário global, além de fomentar grandes conflitos militares, alterando regiões inteiras, agitando culturas milenares e transformando as geopolíticas regional e global.

Nestas últimas décadas encontramos situações interessantes e diferenciadas na busca pela hegemonia internacional, onde os Estados Unidos competiram com uma nação forte militarmente, União Soviética, mas frágil e degradada do ponto de vista econômico e produtivo. Posteriormente, seu próximo rival, o Japão, era visto como uma potência econômica, dotada de grande tecnologia e organizações estruturadas, mas frágil do ponto de vista militar. Atualmente, percebemos que a busca pela hegemonia global nos traz grandes desafios para os Estados Unidos, na verdade, nos parece o grande desafio norte-americano do século XXI, afinal, seu competidor, a China, se caracteriza por grande força econômica e produtiva, dotada de grande potencial tecnológico e de inovação, além de grande força militar.

Estamos vislumbrando um conflito demorado pela hegemonia internacional, onde as estratégias são imprescindíveis para o sucesso das próximas décadas, exigindo de todos os contendores, grandes investimentos em capital humano, além de grande potencial de inovação para competir neste cenário marcado por grandes concorrências, incertezas e instabilidades crescentes.

Nesta busca pela hegemonia mundial, seus governos estão usando seus poderes políticos e financeiros para alavancar seus setores econômicos e produtivos, proibindo a entrada de produtos de seu concorrente direto, além de proibir que empresas locais transfiram tecnologias aos grandes competidores, além de pressionar seus parceiros comerciais para que se alinhem diretamente neste conflito global que tende a se estender por muitas décadas, gerando constrangimentos e preocupações de uma guerra militar em todas as regiões do mundo.

Países como o Brasil estão sendo cobrados internacionalmente para escolher um lado deste conflito entre hegemonias, diante disso, é importante construirmos consensos internos para compreender os cenários que estão sendo abertos neste conflito global, deixando de lado visões ideológicas e buscando os interesses nacionais, garantindo que a economia nacional se consolide, cresça e ganhe espaços no cenário internacional, consolidando uma neoindustrialização, fortalecendo setores vinculados as energias alternativas, reconstruindo e fortalecendo o setor da economia da saúde, fomentando a capacidade tecnológica para agregar valores aos produtos agrícolas produzidos internamente e melhorando os termos de troca da agricultura nacional, desta forma, garantindo recursos adicionais para melhorar os salários dos trabalhadores e fortalecendo um mercado de consumo de massa e contribuindo para alavancar o crescimento da economia nacional, deixando de lado décadas de estagnação econômica e arrocho salarial de grande parte dos trabalhadores nacionais.

Estamos num momento de escolhas difíceis e estratégicas, exigindo maturidade e sabedoria, além de liderança e ousadia, as escolhas repercutirão durante décadas e é fundamental compreendermos que não existe almoço grátis, como lembrou o economista norte-americano Milton Friedman.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

A militarização das escolas, por Erik Chiconelli Gomes.

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Erik Chiconelli Gomes – A Terra é Redonda – 12/06/2024

A implementação das escolas cívico-militares está inserida em um contexto político específico, marcado por uma agenda conservadora que busca reforçar valores tradicionais e hierárquicos

Como historiador, não posso deixar de refletir sobre as implicações históricas e sociais das escolas cívico-militares no Brasil, especialmente em um contexto de crescente militarização da educação.

A história da militarização na educação brasileira não é um fenômeno recente. Desde a Ditadura militar (1964-1985), temos visto tentativas de inserir valores militares na formação educacional dos jovens. A Constituição de 1988, em seu espírito democrático, não menciona a atuação dos militares na política educacional, uma escolha deliberada para afastar resquícios autoritários.

No entanto, as recentes movimentações políticas buscam reviver práticas que deveriam estar relegadas ao passado.

O Plano Nacional de Educação e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que são marcos da educação democrática no Brasil, também não contemplam essa abordagem militar. Isso evidencia que a inclusão das escolas cívico-militares é uma anomalia, uma tentativa de inserir um modelo ultrapassado e autoritário em um sistema que deveria prezar pela liberdade e pelo pensamento crítico.

Custos elevados e ineficiência

As escolas cívico-militares têm um custo por aluno três vezes maior do que as escolas públicas convencionais. Para embasar a afirmação de que as escolas cívico-militares têm um custo por aluno significativamente maior do que as escolas públicas convencionais, podemos citar algumas fontes oficiais.

Segundo informações apresentadas pelo Ministério da Educação (MEC), o custo das escolas cívico-militares é, de fato, elevado. O programa que institui essas escolas, chamado Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), foi detalhado em diversos documentos e reportagens. Por exemplo, a reportagem da Agência Brasília destaca que o investimento necessário para manter essas escolas é consideravelmente maior devido à necessidade de pagar pelos serviços adicionais dos militares da reserva, além dos custos comuns das escolas regulares.

Além disso, o levantamento realizado pela Secretaria de Educação do Distrito Federal mostra que o modelo cívico-militar envolve custos adicionais com a infraestrutura necessária para acomodar as atividades militares e o pagamento de gratificações aos militares que atuam nessas instituições.

Em um país com enormes desigualdades sociais e educacionais, essa escolha parece mais um desperdício de recursos do que um investimento efetivo na educação. Segundo a deputada Andrea Werner (PSOL), “A escola cívico militar custa o dobro por aluno que as escolas regulares e não entrega o dobro de resultados positivos”.

Além do custo, a eficiência dessas escolas é questionável. O modelo de ensino militar não é necessariamente adequado para a formação integral dos estudantes. A disciplina rígida e o enfoque na obediência podem sufocar a criatividade e o pensamento crítico, habilidades essenciais para o desenvolvimento pessoal e profissional dos jovens em uma sociedade democrática.

Ideologização do ensino

A expansão das escolas cívico-militares é também um movimento ideológico. O governo de Jair Bolsonaro, ao instituir o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares, promoveu uma visão de mundo que privilegia a ordem e a disciplina militares em detrimento da diversidade e da liberdade de pensamento. Esse movimento pode ser interpretado como uma tentativa de doutrinação, buscando formar cidadãos que aceitem passivamente a autoridade e não questionem as estruturas de poder.

Historicamente, regimes autoritários sempre buscaram controlar a educação para moldar as mentes das futuras gerações. As escolas cívico-militares representam um retrocesso nesse sentido, indo contra os princípios democráticos que deveriam nortear a educação pública no Brasil.

O impacto na qualidade da educação

A análise da qualidade da educação em diferentes países revela disparidades significativas no investimento e nos resultados educacionais. Países como Luxemburgo, Suíça e Noruega, que ocupam posições de destaque no cenário educacional global, possuem sistemas educacionais robustos e inclusivos. Nesses países, o foco está no desenvolvimento integral do aluno, promovendo um ambiente que valoriza a diversidade, a criatividade e o pensamento crítico.

Esses investimentos são direcionados para a capacitação contínua dos professores, a melhoria das infraestruturas escolares e a elaboração de currículos que fomentam a inclusão e a inovação pedagógica.

Em Luxemburgo, o investimento por aluno na educação básica ultrapassa os 26.370 dólares, enquanto na Suíça e na Noruega os valores são de 17.333 e 16.008 dólares, respectivamente. Esses investimentos resultam em sistemas educacionais que priorizam o desenvolvimento holístico do estudante, abordando não apenas o desempenho acadêmico, mas também o bem-estar emocional e social dos alunos.

Países como Finlândia, Canadá e Nova Zelândia são exemplos notáveis de sistemas educacionais inclusivos que priorizam o bem-estar dos alunos e o desenvolvimento integral. Na Finlândia, o sistema educacional é amplamente reconhecido por sua abordagem centrada no aluno, onde o foco está na personalização da aprendizagem e no apoio individualizado. Professores altamente qualificados e continuamente capacitados são a pedra angular desse sistema, que também valoriza a igualdade de oportunidades e a inclusão de todos os estudantes.

No Canadá, a diversidade cultural é celebrada dentro das salas de aula, e o currículo é desenhado para refletir as várias comunidades que compõem o país. A inclusão de tecnologias educacionais é uma prática comum, permitindo que os alunos desenvolvam habilidades para o século XXI. Além disso, a participação ativa da comunidade escolar é incentivada, criando um ambiente colaborativo que apoia o crescimento acadêmico e pessoal dos estudantes.

A Nova Zelândia também se destaca pela sua abordagem inclusiva. O sistema educacional neozelandês é conhecido por seu compromisso com a equidade e a justiça social, proporcionando suporte adicional a estudantes de grupos minoritários e com necessidades especiais. A educação na Nova Zelândia promove a participação ativa dos estudantes na tomada de decisões sobre sua própria aprendizagem, fomentando um senso de responsabilidade e autonomia.

A escolha por um modelo militarizado agrava as desigualdades no sistema educacional brasileiro.

Em vez de promover a igualdade de oportunidades, esse modelo tende a criar uma educação dual, onde os recursos são desviados para um segmento específico, deixando a grande maioria das escolas públicas em situação de vulnerabilidade. A falta de investimentos adequados em capacitação de professores, infraestrutura e currículos inclusivos impede que o sistema educacional brasileiro avance em direção a um modelo mais equitativo e de qualidade.

Desafios da política de militarização

A implementação das escolas cívico-militares está inserida em um contexto político específico, marcado por uma agenda conservadora que busca reforçar valores tradicionais e hierárquicos. No entanto, essa abordagem confronta-se com os princípios democráticos estabelecidos pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e pela própria Constituição Federal de 1988, que promovem uma educação voltada para a cidadania, a pluralidade e o respeito aos direitos humanos.

Historicamente, os regimes autoritários têm utilizado a educação como ferramenta de controle social e doutrinação. A militarização das escolas, além de aumentar os custos, representa uma tentativa de moldar o pensamento das novas gerações conforme uma ideologia específica, que privilegia a obediência cega e a conformidade em detrimento da autonomia e do pensamento crítico. Este movimento é preocupante, pois pode resultar na formação de cidadãos menos preparados para lidar com as complexidades de uma sociedade plural e democrática.

Enquanto países bem-sucedidos adotam práticas que promovem a inclusão, a diversidade e o pensamento crítico, o Brasil parece retroceder ao implementar um modelo que enfatiza a disciplina rígida e a obediência.

A resistência a esse modelo não vem apenas de setores progressistas da sociedade civil, mas também de especialistas em educação, que defendem a valorização dos profissionais da educação e a adoção de políticas públicas que fortaleçam a educação inclusiva e de qualidade. A exclusão dos militares da educação, defendida por diversos pesquisadores e entidades, baseia-se no entendimento de que a formação cidadã deve ser pautada pela liberdade, pela diversidade e pelo respeito aos direitos humanos.

As experiências internacionais demonstram que os sistemas educacionais mais bem-sucedidos são aqueles que investem na formação contínua dos professores, na inclusão de tecnologias educacionais e na participação ativa da comunidade escolar na gestão das instituições. Portanto, a adoção de um modelo militarizado no Brasil vai na contramão das melhores práticas educacionais observadas ao redor do mundo.

Educadoras como Sueli Carneiro e Bell Hooks têm postulado a importância de uma educação inclusiva que valorize a diversidade e a equidade. Sueli Carneiro, uma renomada intelectual e ativista brasileira, destaca a necessidade de uma educação antirracista e inclusiva que reconheça e valorize as diferenças. Ela argumenta que a educação deve ser um espaço de emancipação e transformação social, onde todos os estudantes, independentemente de sua origem, têm a oportunidade de alcançar seu pleno potencial.

Bell Hooks, por sua vez, enfatiza a pedagogia do amor e da inclusão, defendendo que a educação deve ser uma prática de liberdade que capacite os estudantes a pensar criticamente e a questionar as estruturas opressivas. Para Bell Hooks, a educação deve ser um processo participativo e democrático, onde a voz de cada aluno é ouvida e respeitada.

Estas perspectivas são fundamentais para entender os desafios e as oportunidades do sistema educacional brasileiro. A militarização das escolas não só ignora esses princípios, mas também perpetua um modelo autoritário que sufoca a criatividade e o pensamento crítico. Para avançar, o Brasil precisa adotar políticas educacionais que promovam a inclusão, a diversidade e a igualdade, seguindo os exemplos bem-sucedidos de outros países e as lições de educadoras visionárias.

Conclusão

Diante dos fatos apresentados, é imperativo questionar a real necessidade e eficácia das escolas cívico-militares. Este modelo não só onera os cofres públicos, mas também ameaça os princípios democráticos que devem nortear a educação brasileira. Como historiador, reitero a importância de uma educação que promova a liberdade de pensamento e prepare os cidadãos para participarem ativamente de uma sociedade democrática e plural. A história nos mostra que a educação é um poderoso instrumento de transformação social, e devemos garantir que ela seja utilizada para promover a inclusão, a igualdade e a justiça social.

A militarização da educação brasileira representa um retorno a práticas autoritárias que contrariam os avanços democráticos conquistados nas últimas décadas. Ao observar exemplos internacionais de sucesso, como os sistemas educacionais da Finlândia, Canadá e Nova Zelândia, percebemos que a qualidade da educação está intrinsecamente ligada à promoção de ambientes inclusivos e ao investimento contínuo na formação de professores. Esses países demonstram que a educação de qualidade é alcançada através da valorização da diversidade e da implantação de políticas educacionais que atendem às necessidades de todos os estudantes, independentemente de sua origem socioeconômica.

Além disso, é crucial considerar a perspectiva de educadoras como Sueli Carneiro e Bell Hooks, que defendem uma educação antirracista e inclusiva. Sueli Carneiro ressalta a importância de uma educação que reconheça e valorize a diversidade cultural e étnica do Brasil, promovendo a equidade e combatendo as desigualdades estruturais. Bell Hooks, por sua vez, enfatiza a pedagogia do amor e da inclusão, propondo uma educação que capacite os estudantes a pensar criticamente e a se engajar ativamente na construção de uma sociedade mais justa. Essas visões são fundamentais para redefinir a educação no Brasil, afastando-se de modelos autoritários e adotando práticas que promovam a liberdade, a criatividade e a igualdade.

Portanto, a adoção de um modelo educativo que valorize a inclusão, a diversidade e o pensamento crítico é essencial para o desenvolvimento de uma educação de qualidade no Brasil. Ao direcionar recursos para a capacitação de professores, a melhoria das infraestruturas escolares e o desenvolvimento de currículos inclusivos, o Brasil pode avançar em direção a um sistema educacional que verdadeiramente prepare seus estudantes para enfrentar os desafios de uma sociedade democrática e plural.

Erik Chiconelli Gomes é pós-doutorando na Faculdade de Direito na USP.

Isenções fiscais: Assim o “mercado” drena o Brasil, por José Alvaro de Lima Cardoso

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Especuladores “exigem” cortes na Seguridade e Educação, mas ocultam a conta dos impostos que o Estado não cobra. Quais são eles? Como chegarão a R$ 790 bilhões, sempre beneficiando as elites?

Como somam-se aos juros da dívida para capturar a riqueza social?

José Álvaro de Lima Cardoso- A terra é Redonda – 22/07/2024

Pelas regras da política de benefícios fiscais vigentes no Brasil alguns setores ficam isentos, ou pagam menos impostos, por determinado período, normalmente assumindo em termos genéricos, contrapartidas, como a realização de investimentos. Estes devem produzir benefícios para a região escolhida, gerando empregos, tecnologia, atraindo outros investimentos etc., gerando assim um círculo virtuoso. Ou seja, a ideia da renúncia fiscal é atrair um volume de benefícios socioeconômicos para determinada região, de magnitude superior à perda de arrecadação do ente estatal em função da isenção. A rigor qualquer renúncia fiscal autorizada deveria ser precedida por um estudo econômico que indicasse os seus prováveis efeitos socioeconômicos na região impactada. Mas muitas vezes não é isso que acontece.

Segundo levantamento da Unafisco (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil), que em junho último publicou uma atualização do seu estudo sobre a questão, a renúncia fiscal da União em 2024 chegará a quase R$ 790 bilhões. No estudo esse valor inclui renúncias instituídas ao longo das últimas décadas, além de impostos que, apesar de previstos, não foram regulamentados. Conforme o levantamento, o valor de renúncia fiscal para este ano aumentou 46,9% em relação ao valor das isenções de 2023 (R$ 537,5 bilhões). O total considerado pela Unafisco inclui todas as isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia, conforme os dados do Demonstrativo dos Gastos Tributários (DGT) da União.

No estudo, a entidade qualifica como privilégios tributários, as renúncias fiscais concedidas sem contrapartida adequada e comprovada para o desenvolvimento econômico sustentável ou a redução das desigualdades sociais. Segundo a Unafisco, os principais privilégios tributários no país seriam:

1.Isenção dos Lucros e Dividendos Distribuídos por Pessoa Jurídica. Total renunciado: R$ 160,1 bilhões;

2.Não Instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF). Total renunciado: R$ 76,46 bilhões;

3.Benefícios da Zona Franca de Manaus. Total renunciado: R$ 30,99 bilhões;

4. Programas de Parcelamentos Especiais (Refis). Total renunciado: R$ 29,37 bilhões;

5.Simples Nacional. Total renunciado: R$ 125,36 bilhões. Segundo a Unafisco, embora este valor esteja sendo considerado parcialmente um privilégio, é um incentivo relevante para micros e pequenas empresas. A crítica aqui é a de que algumas empresas com faturamento alto, que não geram empregos, pegam carona no Simples;

6.Desoneração da Cesta Básica. Total renunciado: R$ 38,99 bilhões (parcialmente considerado privilégio). Segundo o estudo, a desoneração da cesta básica é também considerada privilégio, em parte, pois beneficia empresas com maior capacidade contributiva, que se aproveitam da brecha fiscal;

7.Benefícios para Entidades Filantrópicas. Total renunciado: R$ 19,75 bilhões;

8.Benefícios concedidos à SUDENE e SUDAM. Total renunciado: R$ 23,58 bilhões (SUDENE) e R$ 15,42 bilhões (SUDAM). Para a Unafisco, esses benefícios são enquadrados como privilégios porque não existe a comprovação devida de geração de empregos nas localidades atingidas;

9.Benefícios para Produtos Químicos e Farmacêuticos. Total renunciado: R$ 10,80 bilhões. Aqui também, os benefícios fiscais concedidos são tidos como privilégios por falta de comprovação de contrapartidas socioeconômicas adequadas.

Segundo o estudo, entre janeiro de 2012 e dezembro de 2023, as isenções cresceram 212,44%. Como, no que se refere a orçamento público, não existe milagres, o crescimento das isenções tem como contrapartida a redução de investimentos federais em outras áreas chaves. Por exemplo, o investimento do governo federal em “Gestão de Risco e Desastres” reduziu 5,44% no mesmo período apontado, entre 2012 e 2023.

Um dos problemas centrais dessa política de isenções crescentes e pouco debatidas pela sociedade, é que uma boa parte das renúncias corresponde a impostos que financiam a Previdência Social. Informações do Tribunal de Contas da União (TCU) dão conta que em 2023, as isenções subtraíram da previdência nada menos que R$ 274 bilhões em receitas. O TCU observa que, considerando PIS/Cofins e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), a renúncia fiscal chegou a R$ 274 bilhões no ano passado. Esses tributos, mais as contribuições de empresas e trabalhadores ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), são as fontes de receita mais significativas para a Seguridade Social. Essa política representa uma verdadeira brincadeira na beira do abismo, em função da centralidade e da importância da Seguridade Social no Brasil.

A Seguridade Social brasileira acaba impactando a vida de cerca de 150 milhões de brasileiros, ou mais, direta ou indiretamente. Seguridade Social não é só Previdência, mas abrange Saúde e Assistência Social, áreas vitais para a sobrevivência da população, especialmente a mais pobre.

O sistema previdenciário brasileiro paga todo mês cerca de 39,5 milhões de benefícios e representa uma injeção de mais de R$ 70 bilhões mensais na economia do país, o que é fundamental para o mercado consumidor interno. Quase 70% dos municípios brasileiros tem como principal renda, os benefícios pagos pelo INSS.

Essas informações são muito importantes porque já está se falando em realizar nova “reforma” da previdência dentro de dois ou três anos, supostamente para “garantir a sustentabilidade” do sistema. Ou seja, ao mesmo tempo em que quase não se fala da escalada absurda das isenções fiscais no país nos últimos anos, vai se intensificando uma campanha contra o “déficit” da previdência social (com diagnóstico falacioso) e aos gastos sociais em geral. Como já ocorreu em outros períodos, algumas matérias na mídia corporativa comparam a previdência social a uma “bomba relógio”, em função dos benefícios e aposentadorias concedidas. Porém, essa discussão nem menciona o impacto das isenções fiscais sobre a arrecadação da Seguridade Social. Outras análises propõem o fim dos atuais pisos de gastos para a Saúde e a Educação.

Alguns críticos estão questionando inclusive a vinculação do reajuste do salário-mínimo com benefícios como BPC (Benefício de Prestação Continuada), abono salarial e seguro-desemprego, direitos históricos da população brasileira. O debate é realizado fora de contexto e sem levar em conta a importância desses gastos para atenuar a extrema concentração de renda, e para a própria alimentação do mercado consumidor interno, essencial para qualquer país. Uma comprovação de que essa discussão sobre o déficit da previdência, que é realizada de forma superficial e enganosa, tem objetivos inconfessáveis, é que não se menciona o problema dos gastos bilionários a cada ano, com a dívida pública. A “crise fiscal”, que uma parte da grande imprensa tanto alardeia, claramente, está sendo fabricada com objetivos políticos, em um ano em que a previsão de déficit primário, por parte de todos os especialistas, é zero.

A associação dos gastos com saúde, educação e bolsa família, ao déficit público, exerce ainda uma outra função fundamental, que é encobrir o problema central das contas nacionais: os gastos com a dívida pública. A Lei Orçamentária (LOA) de 2024 prevê despesas de R$ 5,5 trilhões. No entanto, a parte do leão é para o refinanciamento da dívida pública. Com esta rubrica, a previsão da LOA é que sejam gastos com a rolagem da dívida R$ 2,4 trilhões neste ano.

Enquanto com a previdência social, segundo maior gasto do governo federal, deverão ser investidos R$ 935 bilhões neste ano, com a rolagem da dívida serão comprometidos nada menos que 44% do orçamento federal. O gasto com juros previsto na LOA é de R$ 436 bilhões (está subestimado), mas a chamada rolagem da dívida, isto é o seu refinanciamento, irá alcançar 44% do orçamento federal. Na rolagem da dívida, o governo emite novos títulos, paga os juros e resgates com o dinheiro captado e assume uma nova dívida com novos prazos e condições. O total dos títulos que continuam em aberto, ou seja, que ainda não foram resgatados, compõem o “estoque” da dívida, formado pelo conjunto de obrigações assumidos ao longo do tempo, inclusive, por governos anteriores.

Os juros nominais do setor público consolidado, no acumulado em doze meses até maio, chegaram a R$781,6 bilhões (7,04% do PIB). Fala-se em pagamento de juros e amortizações, mas, apesar da fábula de dinheiro que é paga todo ano, a dívida só cresce. Ou seja, amortização da dívida não passa de um sonho. A Dívida Bruta – que abrange Governo Federal, INSS e governos estaduais e municipais – atingiu 76,8% do PIB, e equivalente a R$8,5 trilhões.

Os credores preservam esse estoque de dívida porque eles representam uma verdadeira galinha dos ovos de ouro. Não lhes interessa que a dívida seja paga. Os gastos com juros da dívida em 12 meses descritos acima equivalem a mais de 83% dos gastos previstos com a previdência para 2024.

Com uma diferença crucial: os gastos com a previdência social são fundamentais para cerca de 150 milhões de brasileiros (direta e indiretamente); os gastos com a dívida pública é dinheiro jogado fora: vai para o bolso de especuladores que não agregam nada à geração de valor no país.

Com o detalhe nada banal de que boa parte da dívida é ilegal, o seu pagamento é completamente irregular, conforme comprovam os estudos da Auditoria da Dívida Pública.

A dívida pública é um sistema de drenagem de recursos públicos do Brasil, legalizado e com total cobertura da grande imprensa. Uma breve análise do problema evidencia que esse é o nó das contas públicas no país. Super ricos, com bilhões de reais no mercado financeiro, e que se privilegiam da segunda maior taxa de juros reais do planeta (em torno de 8%), são os mesmos que estão propondo o fim da política de reajuste do salário-mínimo vinculado à evolução do PIB. O discurso hipócrita de todos os conservadores da política e da economia é o mesmo: estão muito “preocupados com a situação fiscal do país”.

Economia neoclássica versus keynesiana, por Marcos de Queiroz Grillo.

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Marcos de Queiroz Grillo – A Terra é Redonda- 22/07/2024

Os neoclássicos, no seu intento de desenvolvimento de uma análise precisa, rejeitaram a realidade e verdades óbvias universais, agarrando-se na ficção
Introdução

A ciência econômica anda décadas a reboque da história. Muitos economistas, que se descrevem como cientistas, não conseguem chegar a acordos básicos sobre quase nada em relação às políticas econômicas. Sem uma teoria correta não se consegue uma prática assertiva. Não havendo consenso sobre a teoria econômica, como se poderá levar a cabo políticas econômicas eficazes?

Da economia clássica derivaram, para um lado, a teoria econômica marxista ricardiana e, para outro, a teoria econômica neoclássica. Esta última, dominou completamente o debate econômico até a publicação, em 1936, da Teoria Geral, de John Maynard Keynes.

Os pais da teoria neoclássica foram os economistas clássicos do século XVIII, David Ricardo e Adam Smith. Eles criaram as bases para a rationale do laissez-faire, da não intervenção governamental na economia, da economia de livre mercado, de “pleno emprego” e de “preços de equilíbrio”, propiciado pelo conceito da mão invisível do mercado, com todos os agentes econômicos agindo racionalmente com base nos seus próprios interesses.

A teoria keynesiana questionou o conceito do laissez-faire com base no entendimento de que o mundo não é governado de cima, de forma que os interesses privado e social sempre sejam coincidentes. Segundo John Maynard Keynes, o conceito do laissez-faire teria contribuído para o advento da recessão de 1929, pois o conceito de equilíbrio do emprego e dos preços no longo prazo, propugnado pelo laissez-faire, não era somente enganoso, mas também, muito perigoso.

A crise tinha causais na gestão econômica, não tendo ocorrido por acidente; e a inação diante dos fatos correntes poderia ser desastrosa, já que o longo prazo é um guia enganoso para a realidade concreta dos negócios correntes. No final do século XX perfilavam os monetaristas, os keynesianos neoclássicos e os Pós Keynesianos, num debate interminável sobre os grandes problemas da economia: emprego, inflação e dinheiro.

São descritas aqui as diferenças/similaridades filosóficas e axiomáticas entre as diversas escolas, enfatizada a importância da teoria na prática do dia a dia da política econômica e levantados alertas do perigo, para a sociedade, de conceituações teóricas equivocadas que permeiam a aplicação de políticas econômicas enganosas.

Teoria neoclássica x teoria keynesiana

John Maynard Keynes publicou sua Teoria Geral em 1936. A Europa, diferentemente dos EUA, experimentou de 1922 a 1936 uma taxa de desemprego superior a 10% ao ano. Nos EUA o mesmo não acontecia, sendo que no próprio ano de 1929 o desemprego foi de apenas 3%. Contudo, do final de 1929 a 1933 a economia americana despencou, com uma queda no PIB per capita de 52% no período.

Em 1933 o desemprego foi da ordem de 25%. Tudo isso parecia indicar o completo fracasso do sonho americano e da própria teoria neoclássica de equilíbrio.

Ainda assim, com todas essas evidências, os economistas neoclássicos argumentavam tratar-se de uma aberração temporária numa economia de livre mercado e que o elevado desemprego não poderia persistir no longo prazo, sendo certa a tendência do mercado ao reequilíbrio de preços e ao pleno emprego. Segundo eles, para se governar bem, deve se governar menos. Intervenções econômicas só deteriorariam a situação momentânea de desequilíbrio.

No entendimento de Adam Smith, no livro A Riqueza das Nações, “cada indivíduo está continuamente buscando descobrir o mais vantajoso emprego do seu capital, vantagem para si e não para a sociedade. Ele visa somente seu próprio ganho, mas ele é conduzido por uma mão invisível que promove um fim que não era a intenção do indivíduo. Ele, na busca do seu interesse individual, termina promovendo o interesse da sociedade como um todo, de forma mais eficaz do que se ele quisesse conscientemente fazê-lo”.

A crença neoclássica de que a economia de livre mercado inevitavelmente geraria pleno emprego e prosperidade tem por base um “axioma” criado pelo economista francês Jean Baptiste Say de que “produtos são sempre trocados por produtos”. Este conceito foi refraseado pelo economista inglês James Mill como “a oferta cria a sua própria demanda”, que passou a ser conhecida como a Lei de Say. No fundo, produz-se coisas (oferta) que são colocadas no mercado para auferir-se renda para comprar outros produtos no mercado (demanda).

Nesse sentido, nunca haveria uma depressão pelo fato de a produção criar suficiente renda para comprar tudo o que é produzido. Igualmente, nunca poderia existir desemprego já que os empresários, visando lucro, sempre seriam capazes de encontrar demanda suficiente para a venda dos produtos produzidos pelos trabalhadores. Nesta visão, bens são trocados por bens. O dinheiro seria só um meio de troca para facilitar as transações. Mudanças na oferta de dinheiro não afetariam variáveis macroeconômicas como o nível de emprego e o produto agregado, já que o dinheiro nada mais seria do que um véu atrás do qual funcionaria a economia real.

Posteriormente, esta questão foi reconceituada, enfatizando o axioma técnico de neutralidade do dinheiro, ao não afetar o emprego e a produção dos bens e serviços. Nesse sentido, o aumento da quantidade de dinheiro na economia afetaria somente os preços, causando inflação, já que haveria muito dinheiro tentando comprar poucos bens e serviços.

John Maynard Keynes pensava diferente. Em sua obra, rejeitou o conceito de neutralidade do dinheiro e a Lei de Say, conceitos vigentes sem qualquer questionamento por mais de um século.

Segundo ele, um sistema onde o dinheiro não teria nenhuma outra interferência que não a de apenas meio de troca, teoricamente, seria uma economia real de troca que, na prática, não existe, já que o dinheiro tem implicações próprias na economia, afetando motivações e decisões de curto e de longo prazo, o que caracteriza uma economia monetária, na qual são peculiares os picos e os vales, onde a influência do dinheiro não seria neutra, mas, ao contrário, poderia afetar a produção.

John Maynard Keynes e a crise de 1929

Durante os quatro anos da administração Hoover nos EUA (1929-33) a economia americana sofreu uma significativa deterioração, apesar da “certeza” dos economistas neoclássicos que o aconselhavam de que um sistema de livre mercado, sem interferência governamental, voltaria sozinho ao equilíbrio. Os produtores descobriram que qualquer coisa que produzissem e colocassem no mercado sofreria deflação de preços causando-lhes prejuízos.

Enquanto as pessoas das cidades passavam fome, os fazendeiros das cercanias destinavam sua produção para alimentar os porcos. O desemprego aumentou e a produção continuou em queda. Mesmo assim, o presidente Hoover continuou seguindo seus assessores neoclássicos, acreditando que a melhor solução seria de não intervenção na economia que, no longo prazo, se ajustaria sozinha.

Nas eleições de 1932, predominava o receio da revolução socialista, do anarquismo. O povo começou a se manifestar, exigindo medidas urgentes. Acampados perto do Rio Potomac, em Washington, os hoovervilles, como eram conhecidos, muitos dos quais veteranos da 1ª. Guerra Mundial, foram reprimidos violentamente pelo General Douglas MacArthur, que os dispersou a força.

Em 1933, com a eleição de Franklin Delano Roosevelt Jr., instaurou-se o “New Deal”, que nada mais era do que um conjunto de medidas legislativas de políticas compensatórias. Ele sabia que se não tomasse medidas urgentes, o próprio sistema capitalista americano estaria em risco. Roosevelt descartou os neoclássicos e convocou jovens que ele definiu como o seu “Brain Trust”, dentre os quais, o economista Rexford Tugwell e o advogado Adolf A.Berle, que implantaram algumas ideias keynesianas de estímulo à economia.

O emprego foi estimulado visando a criação de renda. Saiu de 39 milhões em 1933 para 51 milhões em 1941. A renda per capita cresceu 70% neste período. Roosevelt foi reeleito com sobras, em 1940, para um inusitado terceiro mandato. O povo americano estava convencido do sucesso do New Deal e da nova economia política keynesiana.

A principal medida foi o aumento da renda dos trabalhadores (conhecido como “pump-priming”), o que encorajaria o retorno à produção por parte dos empresários, retroalimentando a criação de novos empregos. Tratava-se, portanto, de priorizar o bombeamento do coração da economia através da criação de empregos, o que deu certo.

Os pós-keynesianos e os keynesianos neoclássicos

A lógica pós-keynesiana continuou negando a mais importante assertiva neoclássica de neutralidade do dinheiro e, como consequência, a falsa conclusão de que uma economia de livre mercado, no longo prazo, sempre asseguraria pleno emprego daqueles que querem trabalhar.

Mesmo assim, a economia neoclássica ficou de pé. Isto porque jovens economistas americanos, ganhadores de Prêmios Nobel, como Paul Samuelson, do MIT, James Tobin, da Yale University, além de outros como Hicks, Debreu e Arrow, com domínio da teoria neoclássica e muito afiados no formalismo e rigor dos modelos matemáticos, se desvencilharam da ortodoxia dos economistas neoclássicos tradicionais (Wilfredo Pareto, Leon Walras, James Mill, entre outros), e buscaram amalgamar a análise teórica neoclássica com as políticas keynesianas de incentivo governamental ao emprego, ao investimento agregado e tratamento dos níveis de preços da economia, desenvolvendo uma estrutura analítica, fortemente pautada em complexo simbolismo matemático, que eles denominaram de Síntese neoclássica do keynesianismo.

No fundo, eles reduziram a teoria keynesiana a um manual de cura para os desequilíbrios de curto prazo do sistema econômico que, no longo prazo, continuaria se autorregulando. Segundo eles, as políticas de curto prazo se faziam necessárias somente pela demora na correção dos desequilíbrios pelo próprio mercado, sendo necessárias pequenas doses dos remédios keynesianos.

Assim, no pós-guerra, o keynesianismo ficou voltado para os agregados macroeconômicos e os princípios neoclássicos continuaram dominando a microeconomia dos agentes econômicos. Contudo, na década de 1970, as fundações teóricas da economia neoclássica ampliaram seus domínios, expandindo-se da teoria microeconômica (teoria do comportamento de consumidores e produtores) para a macroeconomia (o estudo do comportamento dos sistemas econômicos). Isto foi possível em função do firme propósito de muitos dos consagrados economistas neoclássicos de transformar a economia em ciência exata, buscando diferenciá-la da sociologia e da ciência política.

O modelo neoclássico ganhou nova roupagem com o artigo do economista inglês John Hicks, de 1937, denominado “Mr.Keynes and the Classics” que consistiu numa tentativa de síntese neoclássica do keynesianismo, com seu famoso Sistema IS-LM, pretendendo sumarizar os quatro pilares básicos da teoria keynesiana: I para Investimento, S para a poupança, L para a demanda pela liquidez e M para a oferta de moeda. Segundo Hicks seu Sistema IS-LM de equações simultâneas fornecia o arcabouço matemático para a integração da teoria keynesiana como a modelagem matemática da economia neoclássica, conhecida como a Teoria Geral do Equilíbrio, ou também, Análise Walrasiana do Equilíbrio, já que foi o economista francês Leon Walras (1834-1910) que desenvolveu a primeira versão matemática da teoria neoclássica. Sir Hicks, posteriormente, foi ganhador do prêmio Nobel de 1972.

O sistema IS-LM passou a ser uma “verdade universal” para a maioria dos economistas americanos, levando o professor Martin Bronfenbrenner, da Duke University, a batizá-la como a religião ISLAMic dos economistas. As Universidades incorporaram na sua literatura os escritos dos keynesianos neoclássicos, desaconselhando a seus estudantes a leitura pesada e tediosa da Teoria Geral de Keynes. Em seu lugar, deviam se aprofundar no sistema Hickisiano IS-LM, que continha todas as ideias importantes de Keynes.

O próprio Hicks, posteriormente, reconverteu-se ao keynesianismo, ao afirmar que não estava satisfeito com as premissas de seu modelo, pois ele violentava a ordem que os eventos ocorriam no mundo real.

O economista neoclássico James Tobin, Prêmio Nobel em Economia, comenta: “na versão moderna da teoria neoclássica, onde ficaria a Mão Invisível?” Segundo ele, a boa notícia é que a intuição de Adam Smith e seus seguidores pode ser rigorosamente formulada e comprovada matematicamente; a má noticia, é que o teorema depende de condições e premissas especiais, dificilmente comprováveis nos dias de hoje.

Já quanto ao princípio de neutralidade do dinheiro, James Tobin o reconhece como falacioso, bastando apenas atentar para a política monetária de expansão ou enxugamento da oferta de dinheiro, tão correntemente aplicada na economia dos dias de hoje.Mas, como ele mesmo diz, a teoria do equilíbrio geral tem sido o maior desafio para os profissionais mais preparados em economia. Elegante, rigorosa, poderosa matematicamente, a teoria vai longe, diferenciando-se das outras ciências sociais e encantando a todos, muito mais pelos desafios do que propriamente pela sua capacidade de equacionar quebra cabeças e problemas do mundo real. E conclui: por isso, “o reconhecido irrealismo das suas premissas não vem ao caso”.

Por seu lado, os Keynesianos ingleses, dentre eles Sir Roy Harrod, da Oxford University, Joan Robinson, Lord Richard Kahn e Lord Nicholas Kaldor, de Cambridge, observaram que a revolução keynesiana alcançava tanto o plano teórico como as políticas econômicas. Alertaram que a Teoria Geral de Keynes mostrava a importância das instituições monetárias e financeiras no funcionamento da economia real, onde o dinheiro é um aspecto necessário de uma economia na qual o futuro é incerto.

Estes e outros muitos ensinamentos keynesianos foram esquecidos, com a volta da predominância da ortodoxia econômica. Nesse sentido, Joan Robinson acusou o Sistema IS-LM de keynesianismo bastardo, já que teriam distorcido os ensinamentos de Keynes ao aceitarem políticas de governo só para intervenções pontuais para aliviar desequilíbrios de curto prazo no emprego e na renda.

Posteriormente, o verdadeiro keynesianismo foi revivido nos EUA pelo economista Sidney Weintraub da Universidade da Pensilvânia e por seu aluno Paul Davidson.

Contudo, a vasta maioria dos economistas abraçaram a economia neoclássica, especialmente em períodos de performance econômica satisfatória. Somente em períodos de crises econômicas é que alguns poucos economistas voltavam a frequentar os princípios keynesianos. Com o advento da inflação na década de 1960 e depois com sua aceleração na década de 1970, houve a caracterização de três linhas de pensamento: a pós- keynesiana, a keynesiana neoclássica e o pensamento neoclássico mais puro e menos híbrido, conhecido como monetarismo, capitaneada pelo contemporâneo de Keynes, Frederick Von Hayek e seu sucessor Milton Friedman.

Nos dias de hoje, o debate ainda continua, com idas e vindas nas políticas econômicas públicas.

Na economia real, o equilíbrio macroeconômico continua sendo vulnerável a muitos tipos de fatores. A estagflação, que ainda continua sem uma explicação adequada, trouxe ao cenário os monetaristas.

Mas uma coisa é certa. Os salários e preços não dispõem da flexibilidade requerida pelos modelos matemáticos neoclássicos. A preferência pela liquidez, ocorrida na crise de 1930, foi e é um fato relevante, e os estímulos monetários e fiscais, no velho estilo keynesiano, estão na ordem do dia em todo o mundo. E isso para não falar da comprovação cabal do fracasso da teoria quantitativa da moeda, após a crise de 2008.

Futuro previsível ou incerto?

A maioria dos economistas reconhece que todas as teorias são abstrações e, portanto, simplificações da realidade. A finalidade das teorias é buscar tornar o mundo real compreensível, e não substituir o mundo real por um mundo ideal e simplificado, somente para poder tratá-lo matematicamente. Milton Friedman, autor da Metodologia da Economia Positiva parece não concordar com isso. Segundo ele, a questão relevante a ser perguntada sobre as premissas de uma teoria não é se elas são realistas, porque elas nunca são; mas, ao contrário, é se elas são aproximações suficientemente boas do objeto em questão.

Esta pergunta só pode ser respondida ao se comprovar se a teoria funciona, ao produzir previsões suficientemente acuradas do futuro. Para Friedman e seus seguidores, a aceitação, sem questionamentos, dos axiomas e simplificações é condição básica para a construção de qualquer teoria econômica de utilidade. O único teste é se o modelo apresenta boas previsões sobre os eventos futuros. E, ainda, segundo ele, os estudos realizados sobre mudanças nas quantidades de dinheiro, no longo prazo, teriam efeito desprezível na renda; portanto, somente as variáveis não monetárias teriam importância para a renda real, o que comprovaria a hipótese da neutralidade do dinheiro sobre o produto.

Milton Friedman não definiu e mensurou o que viria a ser longo prazo no seu modelo, deixando obscuro o volume de evidências que teria de ser coletado para a comprovação da hipótese da neutralidade do dinheiro na economia.

Os economistas neoclássicos argumentam que, se a economia é uma ciência comparável à astronomia (ou à física), ela também deve estar sujeita a regras ou leis imutáveis e, portanto, sua posição futura poderá ser prevista. A pressuposição básica é de que o futuro da economia já estaria predeterminado pela condição existente no primeiro momento. É como se existisse na economia o princípio determinístico do Big Bang de criação da existência, onde a posição do instante inicial é determinante da posição de qualquer estrela ou planeta no futuro. Por analogia, tendo em conta as expectativas racionais das pessoas, também seria possível antecipar o futuro da economia.

O matemático inglês Alan Turing, demonstrou que se a natureza sempre se comporta segundo regras e leis matemáticas imutáveis, então, o futuro pode ser previsto lançando mão da máquina de TURING, um aparato hipotético que funciona para qualquer cálculo matemático em premissas e condições fixas. Os neoclássicos argumentam que descobriram e desenvolveram um conjunto completo de leis econômicas exclusivas e imutáveis e que, portanto, a pesquisa econômica pode e deve se dedicar a análises e previsões à la Turing.

Desenvolveram-se diversas teorias, todas baseadas nos mesmos princípios básicos, como o da neutralidade do dinheiro, entre outros: equilíbrio geral Walrasiano, Sistemas Arrow-Debrew, teoria das expectativas racionais, síntese neoclássica do keynesianismo, monetarismo ou teoria do caos. Como definem Robert Lucas e Thomas Sargent, a teoria neoclássica lida com modelos que constroem inferências estatísticas sobre o comportamento futuro baseadas em séries temporais passadas. A crença na possibilidade de uma economia empírica não experimental fornece as bases para tais inferências, que permitem a construção de um modelo decisório que pode ser confrontado com vários cenários e produzir respostas para cada um.

Esta conceituação pode ser entendida como darwiniana, onde só aqueles que, dispondo de intuições corretas, teriam construído seus modelos decisórios baseados em expectativas racionais. Aqui os empresários tomariam decisões como robôs lançando mão de modelos matemáticos baseados em premissas comportamentais e séries históricas passadas.

Para Keynes, ao contrário, a economia é essencialmente uma ciência social e não uma ciência natural. A crença na possibilidade de se prever condições econômicas futuras como em leis estatísticas de probabilidade, subestima o papel e a importância do erro humano e da ignorância sobre o futuro. Na verdade, o que deve ser enfatizado é a evolução institucional e histórica do desenvolvimento econômico.

Para os keynesianos não existem relações e correlações quantitativas imutáveis que permitam previsões acuradas sobre o futuro. O lapso de tempo entre a decisão e o resultado é um fato de fundamental importância. O lapso de tempo entre a decisão de produzir e a efetiva disponibilidade do produto pode ser de semanas, meses ou até anos. O tempo transcorrido entre a aquisição de um bem de capital ou de consumo durável e seu efeito posterior produzindo lucro ou satisfação é comumente medido em anos, para não dizer décadas.

Os eventos econômicos são assimétricos; a verificação de eventos passados não pode assegurar sua repetição no futuro, que é criado pela ação humana não sendo determinado por qualquer lei econômica imutável e muito menos sendo passível de ser calculada por qualquer máquina TURING.

Aqui, os empresários vivem um cenário econômico de incertezas sobre o futuro, não dispondo de
modelos confiáveis para determinação dos riscos de sucesso ou fracasso dos empreendimentos.

Projetos de investimento criam emprego e, em consequência, renda, ou demanda, para aquisição dos produtos da própria e de outras indústrias. Segundo Keynes, o espírito empresarial, que se caracteriza pela decisão de investir em longo prazo em ambiente de incerteza, é a condição indispensável para a prosperidade numa economia monetária.

Quando o investimento declina, a economia se deteriora, trabalhadores perdem empregos, negócios são fechados, e a produção decresce. Assim, para Keynes, a compreensão dos ciclos econômicos de crescimento e depressão está intimamente ligada aos fatores que levam os empresários a investir ou, alternativamente, postergar suas decisões de investimento, preferindo a liquidez, o que tem a ver com o otimismo ou o pessimismo dos empresários. Segundo Keynes, a postura mais ou menos arrojada dos empresários deriva da emoção e cultura empresarial, denominadas por ele como “espírito animal”, e não de modelagens matemáticas baseadas em medias ponderadas de resultados multiplicadas pelas respectivas probabilidades quantitativas de ocorrência.

Receios de perdas e expectativas de lucro podem se alternar, não existindo nenhuma base real para sua mitigação através de cálculos matemáticos. Portanto, investidores não são máquinas TURING. As decisões de investimento são tomadas com base no espírito animal, sabendo-se que não existem fórmulas para mitigação das incertezas sobre resultados que só ocorrerão no futuro. As expectativas dos investidores são dadas em ambiente de incerteza futura. Nesse contexto, elas podem ser cautelosas, de espera, com clara preferência pela liquidez; ou arrojadas, seguindo suas intuições, de escolha dos investimentos produtivos, ambas não necessariamente plenamente racionais.

John Hicks, já na sua fase final de reconhecimento da teoria keynesiana, diz que a economia se diferencia das ciências naturais já que, em economia, diferentemente daquelas, não se pode estar seguro de que um evento ou uma correlação existente no passado permanecerá no futuro. Segundo ele, a economia está nas fronteiras da ciência e da história.

Este entendimento reforça a necessidade do estudo da evolução ao longo do tempo das instituições e processos econômicos para o efetivo estabelecimento das políticas.

Os neoclássicos keynesianos tentaram pacificar o impasse conceitual entre os neoclássicos e os keynesianos, ao aceitarem as críticas keynesianas ao modelo de equilíbrio reconhecendo a possibilidade de desequilíbrios no curto prazo, com a volta autoajustável da economia ao equilíbrio no longo prazo. Mas isto está longe de ser aceitável para os keynesianos.

De fato, para os neoclássicos, a teoria keynesiana não substitui a teoria neoclássica. Para os keynesianos a teoria neoclássica se baseia em axiomas inaplicáveis, não sendo capaz de poder resolver problemas do mundo real. Mas continua valendo a máxima imbatível keynesiana de que não adianta ficar esperando que a mão invisível traga de volta a economia ao equilíbrio no longo prazo, pois, até lá, “todos já estaremos mortos”.

Que fique bem claro que os neoclássicos, no seu intento de desenvolvimento de uma análise precisa, rejeitaram a realidade e verdades óbvias universais, agarrando-se na ficção, pela fraqueza das premissas utilizadas, torturando os modelos matemáticos para se “alcançar” os resultados por eles desejados.

Marcos de Queiroz Grillo é economista e mestre em administração pela UFRJ.