Os grandes abutres do século XXI, por Sérgio Ferrari

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Um olhar sobre a indústria global de armamentos. Em 2023, faturamento chegou a US$ 632 bi — mais do que o necessário para erradicar a fome no mundo. Cinco maiores empresas, são norte-americanas. E a OTAN prepara-se para encomendar muito mais…

Sérgio Ferrari – OUTRAS PALAVRAS – 11/12/2024

Com uns vinte conflitos militares devastadores em todo o mundo, como o entre Rússia-Ucrânia ou o entre Israel-Palestina e Líbano, para citar os dois mais midiatizados, a questão-chave é: quem realmente se beneficia com a guerra?

Acima das especificidades, benefícios e repercussões geopolíticas de qualquer confronto militar, a grande indústria de guerra do mundo continua a ser a principal beneficiária. As receitas obtidas, em 2023, com a venda de armas e serviços militares das 100 maiores empresas do setor aumentaram em média 4,2% em relação a 2022, atingindo 632 bilhões de dólares – um valor muito superior ao que seria necessário para erradicar a fome no mundo. Três em cada quatro dessas empresas ampliaram suas receitas, uma recuperação significativa após o declínio médio que experimentaram em 2022.

Esse aumento foi registado tendencialmente em todo o mundo, embora tenha contabilizado números particularmente suculentos às empresas da Rússia e do Oriente Médio, como foi revelado, na primeira semana de dezembro, pelo Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Stockholm International Peace Research Institute – SIPRI). Essa entidade internacional independente, com sede na capital sueca, dedica-se à pesquisa sobre conflitos, armamentos, controle de armas e desarmamento. Fundado em 1966, o SIPRI desde então fornece dados com base em informações públicas, análises e recomendações e continua sendo uma fonte de referência sobre o tema da guerra e da paz.

De acordo com Lorenzo Scarazzato, pesquisador do Programa de Gasto Militar e Produção de Armas do SIPRI, “2023 registrou um aumento significativo nas receitas de armas, e, provavelmente, essa tendência continuará em 2024”. Ainda assim, Scarazzato ressalta que essas “receitas das 100 maiores empresas de armas ainda não refletem totalmente a magnitude [real] da demanda, e muitas empresas iniciaram campanhas de contratação, sugerindo que estão otimistas sobre suas vendas futuras”.

Guerras mediatizadas e conflitos “ignorados”

O Relatório Alerta 2024!, publicado pela Escola de Cultura de Pau (Escola de Cultura da Paz), em Barcelona, contabilizou dezessete conflitos armados de alta intensidade em todo o mundo em 2023 (de um total de trinta e seis situações de conflito). Estes são definidos por seus altos níveis de letalidade (mais de mil mortes por ano), graves impactos na população, deslocamentos forçados maciços e graves consequências no território.

Essa organização, dedicada a analisar os confrontos bélicos, os direitos humanos e a construção da paz, bem como os conflitos Rússia-Ucrânia e Israel-Palestina, identifica confrontos militares de alta intensidade na Etiópia (em Amhara e em Oromia), em Mali, região do Lago de Chade (Boko Haram), no Sahel Ocidental, República Democrática do Congo (região oriental, com dois picos principais), na Somália, no Sudão, no Sudão do Sul, em Mianmar, no Paquistão, no Iraque, na Síria e no Iêmen. Em 2023, em quase metade dos casos registou-se um agravamento da situação. A grande maioria dessas trinta e seis situações de conflito está concentrada na África (18), na Ásia e no Pacífico (9).

Com nome e sobrenome

Quarenta e uma das 100 maiores empresas de produção e comercialização de armamentos estão localizadas nos Estados Unidos e, em 2023, declararam receitas de 317 bilhões de dólares, 2,5% a mais que em 2022. Desde 2018, as cinco empresas no topo do ranking mundial elaborado pelo SIPRI estão sediadas nesse país: Lockheed Martin, RTX, Northrop Grumman, Boeing e General Dynamics.

De acordo com o Instituto, a indústria europeia de armamento está “atrasada”. As receitas de armas das vinte e sete empresas sediadas no Velho Mundo (excluindo a Rússia) tiveram um faturamento de 133 bilhões de dólares em 2023, o que representa um aumento de apenas 0,2% em relação a 2022, o menor do mundo. A BAE Systems da Grã-Bretanha (sexta em importância); a transeuropeia Airbus (12), a francesa Thales (16), a inglesa Rolls-Royce (22) e a alemã Rheinmetall (26) estão entre as trinta primeiras. Mas Scarazzato argumenta que esse crescimento relativamente baixo não se deve à menor demanda, mas porque “os sistemas de armas complexos têm prazos de produção mais longos… [e, consequentemente] as empresas que os produzem reagem mais lentamente às mudanças na demanda”.

No entanto, vários produtores europeus registraram crescimento substancial em suas receitas, especialmente para munições, artilharia e sistemas de defesa aérea e terrestre, impulsionado pela demanda ligada à guerra Rússia-Ucrânia. Empresas da Alemanha, da Suécia, da Ucrânia, da Polônia, da Noruega e da República Tcheca, em particular, aproveitaram essa demanda. Por exemplo, a Rheinmetall, da Alemanha, aumentou sua capacidade de produção de munição de 155 milímetros e de seus tanques Leopard. Grande parte desses ganhos se deve a transações por meio de programas de intercâmbio circular, sob os quais os países que fornecem equipamentos militares à Ucrânia podem receber equipamentos de reposição de seus aliados.

O outro lado da moeda da guerra no Leste Europeu: as duas empresas russas incluídas no ranking das 100 maiores, a Rostec, empresa estatal que controla vários produtores de armas, em sétimo lugar, e a United Shipbuilding, no 41º lugar, aumentaram suas receitas em 40%, chegando a 25,5 bilhões de dólares. A maioria dos analistas, de acordo com o relatório do SIPRI, concorda que a produção russa de novos armamentos militares aumentou substancialmente em 2023, enquanto o arsenal existente passou por uma extensa renovação e modernização. Especificamente, mais caças, helicópteros, drones, tanques, munições e mísseis.

Os produtores de armas no Oriente Médio também experimentaram um crescimento de receita ligado aos conflitos em Gaza e na Ucrânia. Seis das empresas do ranking das cem mais importantes estão localizadas naquela região. Sua receita combinada cresceu 18%, para US$ 19,6 bilhões. Desde o início da guerra em Gaza, as três empresas israelenses no ranking ganharam US$ 13,6 bilhões, um recorde histórico para elas. Por sua vez, as três grandes empresas da Turquia registraram um aumento de 24%, crescimento impulsionado pelas exportações para a guerra na Ucrânia, bem como a determinação do governo turco em alcançar sua própria autossuficiência em armamentos.

Quando se trata da Ásia, as quatro empresas sediadas na Coreia do Sul (e que entram no ranking das 100 mais importantes) aumentaram suas receitas combinadas em 39%. Enquanto isso, as cinco principais empresas sediadas no Japão cresceram 35%. A NCSIST, única empresa taiwanesa no ranking, faturou 27% a mais que no ano anterior. As três empresas indianas no ranking aumentaram 5,8%. Quanto à China, as nove empresas que fazem parte do top 100 cresceram apenas 0,7%, seu menor aumento percentual anual desde 2019, devido à atual desaceleração econômica daquele país

As vítimas

Várias organizações internacionais estimam que até 2030 quase 600 milhões de pessoas ainda sofrerão com a fome em todo o planeta. Um estudo de novembro realizado por duas agências da ONU estima que acabar com a fome até essa data custaria cerca de US$ 540 bilhões. Ou seja, muito menos do que as receitas auferidas em 2023 pelas cem empresas mais importantes do setor de produção e comercialização de armas.

Uma grande parte das vítimas da fome vive em regiões dominadas por conflitos armados cruéis: da Palestina ao Sudão, passando pela República Democrática do Congo e Mali. Um relatório de outubro da Organização Não-Governamental Oxfam argumenta que a fome causada por conflitos armados ceifa até 21 mil vidas por dia em todo o mundo. Esse documento, intitulado Food Wars (Guerras Alimentares), analisou 54 países afetados por conflitos armados e constatou que eles concentram quase todas as 281 milhões de pessoas que atualmente sofrem de fome aguda. Da mesma forma, essa realidade de guerra tem sido uma das principais causas de deslocamento forçado, com um número recorde mundial de mais de 117 milhões de pessoas atualmente.

Armas matam. Somente em 2023, foram mais de 160 mil vítimas diretas em zonas de guerra. Além disso, as guerras causam fome e miséria extrema, que adicionam suas próprias cifras trágicas ao obituário global. Apesar desse drama, a corrida armamentista não para. E os benefícios disso são distribuídos, essencialmente, entre uma centena de grandes empresas de países que incentivam ou participam dessa fúria bélica: as grandes beneficiárias dos tiroteios planetários.

 

O tamanho do corte, por Otaviano Helene

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Otaviano Helene – A Terra é Redonda – 12/12/2024

O corte promovido na educação pelo governo paulista é a garantia do atraso futuro, de regressão para o setor e para o desenvolvimento do estado

O governo paulista promoveu uma mudança na Constituição Estadual que reduz as despesas mínimas com manutenção e desenvolvimento do ensino de 30% para 25% da receita de impostos e transferências, um corte de quase 17% nos valores destinados ao setor. Isso corresponde a mais do que R$ 10 bilhões a cada ano (valor, evidentemente, crescente com o tempo, seja por causa da inflação, seja por causa do crescimento econômico). O que isso significa para a educação básica e as universidades?

O investimento mensal por aluno da rede estadual de educação básica, correspondente à remuneração de professores e demais trabalhadores e todas as demais despesas de investimento e custeio, é inferior a R$ 700 por mês. Se fossem excluídas as despesas da Secretaria da Educação não diretamente voltadas aos estudantes da rede estadual, os valores seriam ainda menores. Se as condições de trabalho e estudo nas escolas estaduais não são ainda mais limitadas é graças à eficiência do setor público: o mesmo investimento por estudante feito por meio de instituições privadas jamais conseguiria o mesmo resultado.

Um critério adequado para comparar aqueles R$ 700 por mês com o investimento em diversos países e termos uma ideia de quanto estamos longe de uma situação aceitável, é usar o PIB per capita como referência. Tal critério permite relativizar os valores considerando tanto a capacidade econômica de países, pobres ou ricos, como os custos locais. A comparação com o PIB per capita indica o esforço que cada país dedica à escolarização de suas crianças e seus jovens hoje e de sua população adulta no futuro.

Usando esse critério como regra, vemos que países pobres ou ricos que mantêm bons sistemas escolares investem cerca de 25% ou mais de suas rendas per capita por estudante. Aqueles menos do que R$ 700 por mês correspondem a cerca de 15% da renda per capita estadual paulista. Ou seja, para se aproximar de uma situação mais adequada seria necessário aumentar tais investimentos. É impossível construir um bom sistema educacional com tão parcos recursos; é por isso que não o temos.

Ainda não foi definido como a redução ocorrerá, havendo algumas pontas soltas que devem ser completadas por propostas orçamentárias ou legislação complementar. Entretanto, caso a redução ocorra em todos os segmentos educacionais nas mesmas proporções de seus orçamentos atuais, o Estado de São Paulo passará a investir por aluno a cada ano alguma coisa perto de 12% ou 13% do seu PIB per capita. Caso as universidades sejam poupadas desse corte e ele caia exclusivamente na educação básica, o investimento por estudante será reduzido para valores inferiores a 10% da renda per capita ao ano.

Caso as universidades vejam seus recursos cortados em 17%, sofreremos uma combinação de fatores que incluem reduções salariais, redução do número de docentes e de funcionários técnico- administrativos, redução da pesquisa, redução do número de estudantes, sobrecarga de docentes e redução dos serviços prestados à sociedade (como manutenção de hospitais, museus, rádios, teatros, orquestras, editoras, cinemas e centros culturais, oferecimento de cursos e outras atividades de extensão, colaboração na produção de medicamentos etc.); 17% da USP corresponde, em números aproximados, a R$ 1,3 bilhão ao ano, perto de 900 docentes e cerca de 2 mil funcionários não docentes, mais do que 10 mil estudantes de graduação e pós-graduação, perto de 40 leitos hospitalares. É isso que o governador pretende cortar?

Qualquer que seja a forma como o corte será distribuído, teremos um processo de disputa entre os diversos segmentos do setor educacional e mesmo entre as universidades.

A justificativa encaminhada pelo governador à Assembleia Legislativa para o corte é estranha. Ela não argumenta, em nenhum local, que há espaços para redução dos investimentos em educação, pois, claro, não podia fazê-lo. A justificativa dada no encaminhamento da proposta de emenda à Constituição faz referência ao uso desses recursos cortados da educação no setor de saúde. Para tal, reconhece a falta de recursos para esse setor.

Esse tipo de raciocínio parece não ser muito bom do ponto de vista lógico: o reconhecimento de falta de recursos para um setor, saúde, ser usado como argumento para reduzir os recursos de outro setor também carente, a educação. Essa forma estranha de raciocínio foi aceita pela base legislativa do governador na Assembleia Legislativa.

Um bom sistema educacional é necessário para o desenvolvimento social e cultural e para o crescimento econômico. Um mau sistema educacional é suficiente para inviabilizar tal avanço. O que está sendo feito hoje no Estado de São Paulo é a garantia do atraso futuro.

*Otaviano Helene é professor sênior do Instituto de Física da USP.

 

O social sob ataque em nome do déficit zero, por Rosa Maria Marques

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Rosa Maria Marques – A Terra é Redonda – 11/12/2024

A economia brasileira registra excelentes resultados nos indicadores comumente utilizados para avaliar o desempenho econômico. O crescimento esperado do PIB para 2024 é de 3,5%; ao final de outubro, o nível do desemprego foi o segundo menor desde 2012 (6,4%); a renda média dos ocupados aumentou e o mesmo aconteceu com o investimento produtivo, embora este esteja muito aquém do desejável.

Ainda no rol dos indicadores positivos, a inflação está dentro da meta e a pobreza diminuiu significativamente. Lula sempre declarou que seu objetivo primeiro era o combate à pobreza. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a população abaixo da linha de pobreza adotada pelo Banco Mundial (US$ 6,85 PPC por dia ou R$ 665 por mês) caiu de 31,6% (2022) para 27,4% (2023). Essa proporção foi a menor registrada desde 2012. Já a população em situação de extrema pobreza (US$ 2,15 PPC por dia ou R$ 209 por mês) recuou de 5,9% para 4,4%. Além desse percentual ser o menor desde 2012, é a primeira vez que ficou abaixo dos 5,0%.

Contrasta com esses indicadores, a taxa básica de juros (a taxa básica da economia e a taxa média de juros praticada nas operações compromissadas com títulos públicos federais) que está nas alturas (11,25%). Ao lado disso, o dólar ultrapassou, pela primeira vez, a barreira dos R$ 6,00 sem que as autoridades monetárias tomassem qualquer medida para conter a forte e rápida desvalorização da moeda nacional.

Tanto a taxa básica de juros como o câmbio são resultado da orientação do Banco Central (BC). Este, embora se diga independente, atua em concordância com as posições do chamado “mercado”, nome assumido pelas finanças. Para esse segmento – e por decorrência o Banco Central – tudo é motivo para aumentar a taxa de juros: se há pressão inflacionária, não importando se de oferta e não de demanda, cabe elevar os juros; se o PIB cresce alguma coisa acima do esperado pelo mercado, há que elevar os juros e, finalmente, é preciso aumentar os juros porque a dívida pública é elevada e o “mercado” considera que sua trajetória de expansão está mantida e mesmo aprofundada.

O imperativo do ajuste fiscal

O processo pelo qual o pensamento neoliberal passou a determinar a política fiscal e monetária no Brasil abarca décadas. Começou com a abertura da Bolsa ao capital estrangeiro, prosseguiu com a venda dos ativos públicos (as privatizações dos anos 1990), continuou com o estabelecimento de regras para a ampliação do gasto (somente possível com a definição de novos recursos) e pela proibição dos gastos correntes serem financiados com títulos públicos, e prosseguiu com a realização de reformas da aposentadoria tanto dos trabalhadores do setor privado como do público.

Essas primeiras medidas ocorreram particularmente durante o governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), mas tanto Lula como Dilma Rousseff não as reverteram, mesmo que parcialmente, quando assumiram o governo. Ao contrário, no primeiro governo, Lula teve sucesso em aprovar mudança na aposentadoria, exatamente nos aspectos que FHC não tinha sido exitoso.

O segundo grande momento do avanço do neoliberalismo sobre a definição da política fiscal ocorreu em dezembro de 2016, no governo de Michel Temer, aquele que assumiu a presidência da República quando do impeachment de Dilma Rousseff. A partir desse momento, e inscrito na Constituição, o gasto público foi congelado por vinte anos. Ao contrário de outros países, o serviço da dívida pública não foi incluído nesse congelamento e os gastos sociais o foram.

Esse mecanismo ficou conhecido como “Teto do Gasto”. Teve como consequência desorganizar o aparelho do Estado e, entre os setores mais afetados, destacaram-se a Educação e a Saúde públicas. No âmbito da educação se congelaram os salários, não se realizaram concursos de ingresso, foram cortadas bolsas e deixadas à mingua a manutenção, afetando a limpeza, água e eletricidade. Na saúde, atividades de todos os tipos foram comprometidas, obstaculizando a realização de suas ações e serviços.

O ajuste fiscal no início do terceiro governo Lula

Em 2023, Lula aprovou um novo regime fiscal, o “Novo Arcabouço Fiscal”. A rigor, como se pode ver em seus parâmetros, houve flexibilização com relação ao Teto do Gasto, mas a primazia do seu controle foi mantida e aprofundada.

Parâmetros

  1. resultado primário
  2. definição da meta para 2023 e para os três anos seguintes (-0,5%; 0,0%; 0,5% e 1,0%, respectivamente).
    2. adoção de intervalos de tolerância nas metas, de modo que o resultado primário possa estar 0,25 pontos porcentuais do PIB acima ou abaixo da meta definida.
  3. evolução do gasto
  4. Crescimento do gasto real limitado a 70% da variação real dos recursos primários acumulados em 12 meses.
    2. Crescimento real do gasto primário limitado ao intervalo 0,6% a 2,5% anual, isto é, não pode crescer acima de 2,5% e não menos que 0,6%.
    3. Ficam excluídos dessas normas o Fundo Constitucional do Distrito Federal e o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica.

III. Sansão no caso de descumprimento das normas

  1. O crescimento real dos gastos primários deverá se reduzir em 50% no ano seguinte.
    IV. Investimento Públicos
    2. Estabelecimento de um piso orçamentário, não necessariamente exigível.
    3. No caso de o resultado primário superar a meta, é permitida a utilização de parte dos recursos excedentes para investimentos.

Para tentar atingir o déficit zero previsto para 2024, o governo fez um restrito controle das despesas, adiando ao máximo inclusive aquelas de caráter social e dirigidas aos mais pobres. Ao final de novembro, finalmente, apresentou um conjunto de medidas com o objetivo de reduzir o gasto em R$ 70 bilhões nos próximos dois anos, com o objetivo de garantir as metas de resultados primários previstas no Arcabouço. Desse conjunto de propostas, destaco três que afetam diretamente a população mais pobre.

Mudança na política de valorização da salário mínimo

Em 2023 Lula retomou essa política, pois essa havia sido interrompida por Bolsonaro. Consistia em aumentar o salário mínimo considerando a inflação e o crescimento real do PIB dos dois últimos anos. Em seus primeiros governos, todos os estudos mostraram que essa política foi o principal instrumento para diminuir a desigualdade entre os ocupados e para aumentar a renda dos mais pobres (dado que a ele corresponde o piso dos benefícios sociais e que seu valor afeta positivamente a base da pirâmide salarial). A proposta é manter a regra do crescimento real pelo PIB, mas a variação estará dentro do marco fiscal, de um máximo de 2,5%.

Abono salarial

Hoje é pago anualmente aos trabalhadores do mercado formal que ganham até dois salários mínimos. A proposta é diminuir, ao longo do tempo, esse critério de acesso para 1,5 salário mínimo.

Benefício de Prestação Continuada

Pago a pessoas de 65 anos ou mais e a deficientes com renda per capita familiar igual ou inferior a 25% do salário mínimo. A proposta é incluir, no cálculo da renda per capita, a renda dos cônjuges e companheiros não conviventes e a renda dos irmãos, filhos e enteados conviventes (não só os solteiros).

Com essas e outras propostas, a adesão à ideia da primazia do déficit zero e de superávits se apresenta, agora, em outro nível, afetando diretamente políticas dirigidas aos mais pobres, e que haviam sido consideradas marca dos governos anteriores do PT. Em outras palavras, a adesão à tese da austeridade revela-se em sua totalidade.

A exigência do cumprimento das metas não poupa sequer as políticas sociais dos que mais necessitam. Uma escolha foi feita. E torna-se impossível se continuar dizendo que tudo isso decorre da desfavorável correlação de forças. Há coisas que não se propõe; há limites que não se transpõe.

*Rosa Maria Marques é professora do Departamento de Economia da PUC-SP. Ex-presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP).

 

O pobre de direita, por Everaldo Fernandez

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 Everaldo Fernandez – A Terra é Redonda – 05/12/2024

Comentário sobre o livro recém lançado de Jessé Souza.

“Torcei, virai, mas eis a lei da vida: primeiro, o pão, depois, a moral” (Bertolt Brecht, Ópera dos três vinténs)

O pobre de direita é sem dúvida um fenômeno mundial, basta pensar no segundo mandato alcançado por Donald Trump. E, mais, não se trata somente da Argentina governada por Javier Milei ou do Brasil que elegeu Jair Bolsonaro.

O conceito ou noção de pobre de direita surge da suposição ou premissa segundo a qual o ideário conservador e individualista (da direita) não corresponde aos interesses materiais das camadas pobres ou empobrecidas. Posta assim, essa hipótese certamente não explica a ascensão de uma nova direita protofascista, ou ultraliberal, nesses tempos recentes.

Nos Estados Unidos há algum tempo estudos investigam por que as pessoas votariam contra seus interesses materiais. Uma hipótese bastante ventilada é que a modernização fez os valores das elites e estratos superiores mais cosmopolita e universalista, o que por sua vez teria afastado os eleitores da classe trabalhadora e engendrado uma contrarrevolução de valores.

Uma variante põe o foco no conflito moral ou cultural entre diferentes setores da elite. Este conflito entre as elites induziria uma polarização eleitoral e partidária que então se propaga e alcança o comportamento eleitoral entre os pobres. Parte desse esforço explicativo também considera o fato de na Europa a convergência entre os principais partidos políticos, em especial na Alemanha, produza um desencanto entre várias camadas da sociedade e a ascensão de uma direita abertamente racista e xenófoba,

No Brasil entre os esforços de análise veio à luz recentemente o trabalho produzido por Jessé Souza. Ele já é hoje um velho conhecido dos debates nacionais com suas várias obras sobre a ralé, as elites, e a classe média brasileira. Revelando sólida bagagem intelectual, o livro tem o mérito primeiro de ousar analisar um fenômeno a quente, enquanto ele acontece, e enquanto sua essência ainda não está totalmente constituída ou claramente perceptível.

No trabalho são configuradas e eleitas para reflexão, na medida em que tem papel emblemático, a figura do branco pobre e do negro evangélico. Historicamente ele situa o papel desses “personagens” no processo que levou Jair Bolsonaro ao poder em 2018 e o processo que se seguiu.

A análise desse assim chamado paradoxo do pobre de direita é então efetuada a partir de duas chaves interpretativas centrais: a rejeição do economicismo e a “culturalização” do racismo.

A rejeição do economicismo. Na contramão do liberalismo, e também de certos marxismos, a premissa abraçada é de que a racionalidade econômica não é o critério ou móvel central do comportamento em sociedade. O ganho econômico, afirma, não é o elemento determinante na sociedade moderna. Com propriedade ele descarta o utilitarismo, onde o único que importa é o cálculo linear entre perder e ganhar, ter maior ou menor vantagem, como se a noção qualitativa, de conteúdo, de ganho inexistisse. E isso porque a própria economia também não é um território pacificado.

Não existe a suposta neutralidade da economia, nem pode ela ser considerada a régua universal dos comportamentos sociais. É aqui que o texto nos brinda sua primeira premissa central: “o núcleo de qualquer produção e distribuição econômica é, […], uma questão e uma escolha moral.” Todo modelo econômico tem, então, embutida uma concepção de justiça, e um critério de distribuição da riqueza. Ou seja, por detrás da economia estão os valores e as escolhas morais.

A produção e repartição das riquezas, continua ele, está assentada em uma escolha moral. Chega-se então a uma das várias observações que não se conformam com o senso comum: “as pessoas pobres votaram em Jair Bolsonaro [por] causas morais, e não econômicas”.

Se se diz isto, nada mais é para imediatamente efetuar um segundo giro na compreensão: o conteúdo dessas motivações não-econômicas não são o conservadorismo moral e a pauta de costumes.

O conservadorismo seria então decorrência de algo mais profundo: o desprestígio e a humilhação cotidiana a que essas camadas são submetidas na sociedade brasileira. Dizer, portanto, que Jair Bolsonaro foi eleito porque os pobres são religiosos e conservadores é apontar mais um efeito do que uma causa, sem indagar a causa que leva os pobres a serem conservadores.

Para ganhar em compreensão a questão deveria ser formulada como segue: por que os pobres abraçam a religião e o conservadorismo?

Entra em cena então o segundo elemento do par de argumentos empregados na obra: o racismo brasileiro, e mais especificamente o racismo culturalizado do século XX. Esse racismo teria uma característica muito própria, sendo um racismo territorializado ou regionalizado, e opondo um branco europeu imigrante ao sul, e um negro e mestiço ao norte. Esse fenômeno é, na narrativa da obra, epitomizado na figura do branco pobre e do negro evangélico. Na parte empírica do trabalho essa caracterização é sustentada através da descrição e análise de 12 entrevistas realizadas com seis representantes de cada um desses agregados sociais.

Ao caracterizar o pobre recorre-se a uma estratégia aparentemente ambígua, entretanto. Embora inicialmente se rejeite a explicação do voto na direita a partir da pouca inteligência do pobre, logo em seguida se afirma que são eles quem “menos compreendem como o mundo social funciona”, ainda que vítimas primeiras do preconceito a serviço da opressão. O fato, assim, é que o pobre está submetido a uma situação de precariedade, que é não só material como também simbólica (e cognitiva).

Vencidas essas em nada desimportantes premissas teóricas o argumento seguinte é mobilizar os Estados Unidos como fator que serve para caracterizar a ordem mundial da atualidade, e também para afastar totalmente qualquer ilusão de que o Bolsonarismo seja uma jabuticaba, uma singularidade brasileira. Assim, diferente dos imperialismos conhecidos até então, o imperialismo americano combinaria de modo único hard e soft power. Essa produção de consentimento pela propaganda ganhou impulso inédito com o advento das big techs e dos novos gurus como Steve Bannon.

Entender a ascensão do extrema direita entre nós é o próximo desafio enfrentado. Parte-se da constatação que Jair Bolsonaro não criou, mas despertou um racismo pré-existente e adormecido na sociedade brasileira. O giro efetuado é compreensível na medida em que trata das modificações que a “instituição” do racismo no Brasil sofreu, em especial, no século passado. Uma dessas transformações centrais foi paulatinamente opor uma região sul européia a um norte mestiço, e por simetria e associação um polo civilizado, moderno, eficiente a um outro atrasado, impuro, mestiço e corrupto.

Essa culturalização do racismo opondo cultura do sul e cultura do norte é um processo que se opera gradativamente a partir da década de 1930 quando é reconstruído o imaginário do homem brasileiro, resultando no homem cordial e na nação do samba e futebol.

Há, ademais, dois capítulos específicos que analisam as figuras, tal como propostas pelo autor, do branco pobre do sul expandido e o negro evangélico. As entrevistas realizadas são material de leitura que se justificam por si só e não podem ser dispensadas.

Jessé Souza nos últimos anos tem brindado o Brasil com uma série de análises corajosas, inconformistas, marcadas por originalidade, que esboçam um retrato do Brasil neste século e sua estrutura social.

Há um aspecto que merece especial atenção nas abordagens elaboradas por ele, não só pela sua dimensão teórica, mas principalmente pelos desdobramentos políticos relativamente imediatos que pode ensejar.

As classes sociais, objeto central de suas indagações teóricas, seriam constituídas não a partir de determinantes econômicas, mas de determinantes morais, e subjetivas. Essa compreensão permitiria então explicar por que o pobre vota no rico, e – ainda mais surpreendentemente, porque alguns ricos votariam no pobre, ou na defesa dos interesses dos pobres.

Nessa concepção a autoestima e o reconhecimento social é que são a medida dessa determinante moral. De um só golpe se recusa a classificação das classes conforme a renda e tudo que isso tem de análogo com a economia como determinante das decisões individuais, como se adota paralelamente um critério de autoidentificação e consciência na conformação das classes sociais. O pobre que não quer ser humilhado teria encontrado essa valorização e dignificação na igreja, entre outros lugares.

Sua caracterização de classe parece bastante clara e simples para quem está usando a estrutura social como ponto de partida para entender a política e a história.

Os sujeitos são então os pobres, ou classes populares, a classe média, e por fim, a elite. Esses grupos são medidos como percentual da população. Se de um lado, a elite e a classe média são quantitativamente minoritárias, por outro, elas são material e simbolicamente hegemônicas.

Se a elite é material, economicamente, dominante, traço típico da classe média é o monopólio do conhecimento legítimo. Por exclusão, as classes populares são definidas por essa dupla carência, material e simbólica, falta-lhe não só dinheiro como também dignidade.

Manejando a noção de capital cultural o que constata é que esse capital (o conhecimento legítimo) no Brasil é historicamente controlado por uma classe média branca de origem europeia. A ideia de capital cultural que está longe de ser novidade apareceu para as ciências sociais na década de 1960 combinando elementos do estruturalismo marxista francês com noções da sociologia norte-americana. O fundamental nessa visão é que ao fim e ao cabo todas as classes são detentoras em maior ou menor de medida de algum capital, seja ele simbólico ou material, e as distinções entre as classes, por decorrência, são quantitativas.

A consequência é que o trabalho como elemento de análise em sua oposição intrínseca ao capital é escamoteado ou simplesmente perde relevância. A mesma condição secundária ou de pouca relevância também é reservada ao fenômeno da exploração. A dinâmica social é vista como uma luta por distribuição e apropriação de capital nas suas distintas formas.

Há, ainda, outro elemento nessa definição de classe. Derivada da legitima crítica a um reducionismo economicista, a noção de classe social é deslocada para o eixo das escolhas morais: “as pessoas têm como razão última de sua ação social a dimensão moral, ou seja, a luta por reconhecimento social que garante autoestima e autoconfiança para cada um de nós.” Uma vez que o reconhecimento pelo outro passa a determinar a conformação das classes e dos sujeitos sociais, abre-se a porta para um subjetivismo do discurso acarretador de graves consequências.

Quando se adota um critério homogeneizador, vale dizer, o capital material ou simbólico em suas várias formas, a consequência primeira é que o conflito, se não desaparece totalmente, deixa de ser elemento definidor e constitutivo das classes e das relações de classe, para ser um elemento secundário e eventual. De outro lado, o campo das decisões, da racionalidade é circunscrito a um ciclo autorreferente onde o reconhecimento social não tem substrato, mas mera reflexividade, reflexividade circular e vazia.

A combinação destes dois e únicos critérios, ou seja, a mobilização do capital simbólico contra a humilhação e a busca por reconhecimento, produz subjetivismo, o reino onde discurso impera.

Parece claro que a rejeição do economicismo não impõe nem autoriza que se ignore dimensão material e objetiva da vida em favor de um mundo guiado simplesmente pela busca de reconhecimento que conforma mentalidades. Sem a dimensão do trabalho, sem a perspectiva de como se produzem os objetos que se irão repartir e distribuir na sociedade despencamos no abismo do relativismo e do voluntarismo. A luta contra a exploração e opressão fica para trás e o lema do reconhecimento social assume o palco.

O desdobramento perceptível desse enfoque teórico é a caracterização da questão social brasileira como um desafio para superar mentalidades arcaicas estranhas a nosso tempo.

“Essa divisão (a divisão regional entre os brancos do Sul e de São Paulo e o resto do Brasil) já está na cabeça das pessoas, seja do algoz, seja da vítima. E ela é arcaica e recalcada: um mero disfarce para o atávico racismo “racial””. Emblematicamente essa é a frase que fecha o livro de Jessé Souza.

Então de certo modo o que se sugere é que a chaga que aflige o Brasil é o racismo, agora culturalizado e territorializado. Arcaico, portanto, obstáculo para a modernidade (ainda que injusta e capitalista), e instalado na cabeça das pessoas. Custa acreditar que a violência, a miséria, o preconceito, o machismo, o patrimonialismo, possam ser o resultado simplesmente do que está na cabeça das pessoas, produto de mentalidades.

As mentalidades não se conformam por si mesmas. Há uma política que se alimenta do ódio, mas o ódio não brota do nada. Ele é alimentado pela fome, pela brutalidade policial, pela violência contra a mulher, pelo trabalho precário. Nada nasce do nada. Como uma sombra o ódio acompanha um monstro.

Parece, entretanto, razoável supor que fosse a questão social um assunto essencialmente de mentalidades, boa vontade e inteligência seriam potencialmente capazes de resolvê-la. A persistência do capitalismo e sua natureza intrinsicamente injusta certamente se deve a fatores mais efetivos que simplesmente mentalidades. Ele se sustenta em condições materiais de carência e abuso. A precarização do trabalho, a escassez induzida, a fragmentação da vida social, a alienação, antes de ser uma percepção e uma compreensão é uma condição material intencional e sistematicamente reproduzida. E são essas condições materiais que devem ser modificadas.

Se não for assim estaremos repetidamente nos culpando porque nos falta eficiência na comunicação e uso eficaz das mídias sociais, ou, ainda, de modo mais genérico, continuaremos lamentando a falta de educação política, a falta de conscientização. Como esse modelo de análise centrado nas mentalidades abraçamos uma espécie de voluntarismo masoquista, como vítima que se pune pelos abusos do agressor. Esquece-se assim que fazer educa, que fatos falam, O racismo, a opressão, a exploração não são simplesmente discursos, percepções, consciência, que se determinem a si mesmos.

Porque quando há quase dois séculos se disse que a realidade determina a consciência, o propósito não era fazer crer que a consciência não fosse relevante, mas sim que ela não é independente da realidade. Então não nos serve falar em fim do racismo sem pôr um fim ao sistema policial que mais mata no mundo, vitimando majoritariamente negros e jovens. Não nos serve “pôr” na cabeça das pessoas que o Sus é ótimo quando elas têm que pagar preços exorbitantes por planos de saúde, ou que o ensino deve ser público quando a maioria tem que financiar seu curso universitário e se endividar.

Fatos falam. Se a esquerda não usa o poder para alterar a realidade material então não irá convencer. Se a esquerda não discute e enfrenta a causa e origem da opressão racista e sua relação funcional e intrínseca com a exploração capitalista continuaremos discutindo questões secundárias, e nos escondendo atrás de desculpas como “não utilizamos a tecnologia”, não nos comunicamos bem, não falamos a “linguagem do povo”.

*Everaldo Fernandez é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

 

Aperto monetário

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Ontem o Banco Central do Brasil (BCB) elevou as taxas de juros para a economia brasileira de 11,25% para 12, 25%, um crescimento de 1 ponto percentual, com impactos imediatos para a economia nacional, impactando os investimentos e a geração de emprego e de renda.

Segundo o Banco Central, o crescimento da taxa de juros brasileira está diretamente ligado aos riscos fiscais que estão crescendo de forma acelerada, levando a Autoridade Monetária a adotar políticas imediatas para evitar o estouro das metas inflacionárias.

Nas últimas semanas percebemos que os valores do dólar aumentaram substancialmente, gerando pressões sobre os preços internos e impactando sobre a inflação, movimentando as especulações e os ganhos dos agentes econômicos.

Importante destacar, que os movimentos cambiais estão ligados às movimentações do mercado norte-americano, perspectivas de elevação dos juros nos Estados Unidos que absorvem grande parte do dólar no mercado global e impacta sobre todas as regiões, internamente somos muito prejudicados em decorrência, segundo o “mercado”, dos desequilíbrios fiscais da sociedade brasileira.

Essa discussão está marcada por fortes politizações da economia brasileira, muitos grupos usam seus instrumentos econômicos e políticos para pressionar o governo para aumentar as taxas de juros, destacando que os riscos fiscais são elevados e o governo precisa rever suas estruturas de gasto, reduzindo seus empenhos e organizando as finanças públicas, sob pena de ver os juros futuros em amplo crescimento e inviabilizando a política econômica.

Para equilibrar o orçamento o governo precisa de uma força tarefa para controlar os gastos governamentais, um auxílio do Congresso Nacional e setores representativos da Justiça nacional, mas infelizmente, como o governo federal não dispõe de apoio necessário para organizar as contas e, os setores citados acima, usam seus poderes para prejudicar o controle das contas públicas, evitando a redução de seus gastos e chantageando o governo nacional, mantendo seus ganhos e aumentando-os sorrateiramente,  transferindo para o governo federal o ônus da piora das contas fiscais.

De outro lado, encontramos grupos de economistas e analistas, que acreditam que a situação é ruim para a economia nacional, com taxa de crescimento econômico interno baixa e postergando a recuperação dos setores produtivos, situação que permitiria o aumento da geração de emprego e a melhora substancial da renda agregada. Na situação atual, com taxas de juros mais elevadas, percebemos uma retração dos investimentos produtivos e postergando a recuperação da economia brasileira.

Estes grupos acreditam que o movimento do mercado tem o intuito fragilizar a política econômica e inviabilizar a melhora da economia nacional nos próximos anos do governo Lula, evitando uma reeleição ou, até mesmo, inviabilizando um candidato defendido pelo atual Presidente da República.

Quando falamos de corte de gastos estamos entrando numa seara espinhosa, o chamado mercado defende a redução dos dispêndios sociais, com cortes do Benefício de Prestação Continuada (BPC), o Abono salarial, as multas do FGTS, dentre outros dispêndios sociais. Nesta conta, o chamado mercado não coloca uma progressividade dos impostos, se esquece da tributação dos lucros e dividendos, uma excrescência que existem em apenas três nações do mundo, e servem para garantir os altos rendimentos do andar de cima.

Deixando de lado as discussões econômicas, as taxas elevadas tendem a reduzir os investimentos e esfriar a economia nacional no próximo ano, postergando novos investimentos internos e elevando os ganhos das aplicações financeiras, gerando ganhos substanciais para poucos grupos econômicos, os chamados rentistas ou os financistas.

As taxas de juros cobradas no Brasil se colocam entre as mais altas do mundo, algo ruim para a economia nacional, neste momento, somos detentores da maior taxa de juros do mundo, estimulando gastos substanciais do orçamento público em prol do rentismo, além de contribuírem negativamente para os indicadores degradantes que vivemos na sociedade brasileira, piora social e dificuldades crescentes de recursos das políticas públicas.

Num momento de recuperação econômica, onde os agentes econômicos que mantinham recursos em caixa estudavam aumentar os investimentos produtivos para aumentar a capacidade de suas empresas, com taxas de juros elevadas os empresários repensam suas estratégias de gestão, pois sabem que juros elevados geram incertezas na produção e leva os agentes a colocarem seus recursos econômicos e financeiros em títulos públicos, cujos retornos rendimentos são muito elevados e evitam perdas dos setores produtivos.

Destacamos ainda, que cada ponto percentual de aumento nas taxas de juros da Selic, definidas pelo Banco Central, correspondem a mais de 30/40 bilhões de reais de gastos do governo federal, recursos que pioram as contas governamentais e postergam a recuperação e o crescimento da economia nacional.

Mais uma vez, estamos vendo, o Brasil perdendo oportunidades históricas de alavancar o crescimento interno, com taxas de juros civilizadas, novas ondas de investimentos produtivas e perspectivas produtivas que culminariam no tão sonhado desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel de Ciências Econômicas, Especialista em Economia do Setor Público, Mestre e Doutor em Sociologia.

Brutalidade policial pode pavimentar o caminho das milícias em SP, por Ricardo & Risso

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Exemplo vem do Rio de Janeiro, onde o descontrole das polícias faz parte de uma estratégia de lealdade da tropa para a manutenção do poder político

Carolina Ricardo, Diretora-executiva do Instituto Sou da Paz

Melina Risso, Diretora de pesquisa do Instituto Igarapé

Folha de São Paulo,11/12/2024.

A série de casos protagonizados por policiais militares de São Paulo que chocaram o país é resultado direto do modelo de gestão escolhido e implementado pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). Os cidadãos paulistas precisam entender que estão seguindo o caminho da segurança pública do Rio de Janeiro, onde uma polícia sem controle ajudou a criar as milícias, fortaleceu o crime organizado e sustenta um tipo de política.

A atual orientação, que incentiva a brutalidade, resultou no maior índice de letalidade da PM de São Paulo desde 2020: 580 pessoas mortas em nove meses, segundo a própria Secretaria da Segurança Pública —um aumento de 55% ante o mesmo período de 2023. Com o aumento, o índice se equiparou ao dos anos em que a PM paulista não contava com as câmeras acopladas no uniforme, instrumento valioso para profissionalização da segurança e que comprovadamente previne excessos cometidos por policiais.

Nada do que vimos nos últimos episódios pode ser considerado como “exceções”. Ao contrário: dizem muito sobre a escolha deliberada de uma cultura de valorização da violência policial. O desmonte da estrutura de promoção nas polícias paulistas; a troca sem explicação de 34 coronéis na cúpula da PM; a criação de uma nova ouvidoria, sem independência; a orientação por ações midiáticas; e a falta de apoio psicológico aos policiais são evidências do aceno feito para a banda podre da polícia que venderá seu apoio político em troca da instalação da lógica do vale-tudo.

Vale até mesmo jogar um suspeito de uma ponte durante uma abordagem policial de rotina ou matar uma criança de 4 anos durante uma operação policial. Quando se valoriza esse tipo de ação, quem sofre são os bons policiais que entraram na corporação para defender a sociedade, com índices crescentes de suicídio e de vitimização.

Foram muitos os indicativos de que a mudança de rumo era urgente e necessária. Ao reconhecer seu erro em relação às corporais, o governador Tarcísio precisará provar que a mudança de posição não é mero oportunismo e sim convicção. Sem uma decisão política de que é importante controlar o uso da força e profissionalizar as polícias com medidas de tolerância zero para desvios, pouco adiantará colocar uma câmera no policial.

Os bons resultados que São Paulo vinha obtendo eram fruto de um conjunto amplo de medidas, como o investimento em armas menos letais, a criação de comissões de mitigação de risco, apoio psicológico a policiais, treinamento sistemático e, não menos importante, o envolvimento da cúpula da Segurança Pública no programa e na difusão de uma cultura de contenção ao uso desproporcional da força.

No Rio, o descontrole das polícias faz parte de uma estratégia de lealdade da tropa para a manutenção do poder político, seja por meio do expressivo voto da família policial ou do controle territorial que garante o curral eleitoral.

A economia política da violência criada pela lógica do vale-tudo se misturou ao crime organizado e hoje opera em sintonia, beneficiando uma determinada classe política em detrimento da segurança da sociedade.

Criar esse mecanismo é relativamente fácil, começa pela desestruturação das instituições. Ainda não sabemos como reverter o processo sem decretar a morte eleitoral dos que ousam fazê-lo.

Com ações movidas sob o espírito da aniquilação e da atenção midiática, como assistimos nas operações Escudo e Verão, São Paulo tem escolhido o modelo da vingança e da falta de controle das polícias. É assim que começa. Fica aqui o nosso alerta.

 

Ajuste fiscal

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Neste momento de grandes transformações estruturais da sociedade brasileira, marcadas pelo incremento da concorrência, alterações no mundo do trabalho, polarizações políticas, degradações ambientais, aumento dos conflitos militares, crescimento do protecionismo e incertezas econômicas, os agentes econômicos exigem, corretamente, um equilíbrio fiscal das contas públicas, com a definição de regras fiscais claras e consistentes para que os agentes produtivos tenham confiança nos rumos da economia nacional, estimulando novos investimentos produtivos, com geração de emprego e movimentando o ciclo econômico, evitando que o crescimento da economia sejam sustentável e consistente, não apenas um breve voo de galinha.

Ajuste fiscal é um tema complexo em todas as nações do mundo, gerando constrangimentos e conflitos na comunidade, suas repercussões impactam sobre toda a sociedade, diante disso, os agentes econômicos, sociais e políticos se organizam para evitar perdas monetárias e financeiras, buscando justificar as isenções e garantindo apoio dos legisladores e dos governos nacionais, mantendo seus privilégios e transferindo o ônus do equilíbrio fiscal para outros grupos econômicos e sociais

Diante da necessidade de controle dos gastos públicos e equilíbrio dos recursos, precisamos destacar a estrutura dos gastos governamentais, analisando em detalhes as origens dos recursos públicos que entram no caixa dos governos e para onde vão estes recursos, dando transparência dos recursos públicos, estudando a necessidade e a importância das políticas públicas, investigando as isenções fiscais e tributárias e as chamadas desonerações.

Neste cenário de ajustes das contas públicos, encontramos um verdadeiro conflito distributivo entre todos os setores da economia, onde grupos mais fortes e dotados de grande poder monetário e força política se utilizam de seus instrumentos para perpetuar seus ganhos financeiros e exige que os governos retirem recursos dos setores mais fragilizados da comunidade, se “esquecendo” dos bilhões acumulados historicamente em isenções fiscais e tributárias, além dos privilégios auferidos pelo sistema tributário nacional que não tributa lucros e dividendos, garantindo ganhos substanciais e aumentando as distorções sociais e, infelizmente, tributa fortemente uma classe média assalariada, endividada e incapaz de estimular o crescimento da economia.

O ajuste fiscal deve ser visto como algo imprescindível para todas as nações do mundo, ainda mais num momento marcado por grandes desequilíbrios financeiros globais e o incremento da competição entre empresas e governos nacionais para atraírem mais investimentos produtivos e a geração de emprego e a sobrevivência de seus trabalhadores de forma mais digna e decente. O ajuste fiscal deve priorizar os grupos mais privilegiados na sociedade, forçando os setores a pagarem seu quinhão do equilíbrio fiscal, reduzindo os penduricalhos salariais que garantem ganhos substanciais e sem tributação adequada, reduzindo os bilhões de isenções fiscais e tributárias de empresas e setores que, sistematicamente, cobram dos governos um ajuste nas contas públicas e não abrem mão de suas isenções tributárias e seus ganhos fáceis garantidos pelas taxas de juros elevadas praticadas pela Autoridade Monetária. Discutir ajuste fiscal e taxa de juros são assuntos urgente e imprescindível mas, receio que nossa sociedade não esteja capacitada para entrar a fundo nesta discussão, como disse Jean-Paul Sartre: “O inferno são os outros”…

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia do Setor Público, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor universitário.

O mito do desenvolvimento econômico – 50 anos depois, por Leda Paulani

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Introdução à nova edição do livro “O mito do desenvolvimento econômico”, de Celso Furtado

Leda Paulani – A Terra é Redonda – 03/12/2024

Se há um traço distintivo na obra de Celso Furtado é a ideia de que não havia restrições objetivas para que o Brasil se tornasse um país forte, soberano, senhor de seu destino, com economia e cultura próprias e com um lugar ao sol no comando dos rumos mundiais. Mas, nele, isso nunca foi reflexo de um imaginário nacional grandioso, mas vazio, que se escorava preguiçosamente na fantasia do “país do futuro”.

Ao contrário, sua percepção embasava-se na análise que fazia do processo socioeconômico que ocorria por aqui, análise fundamentada teoricamente, colocando sempre como pano de fundo a conexão da economia brasileira com o andamento da acumulação de capital em nível mundial. Celso Furtado era um economista político. Mas, mais que isso, era um militante, que nunca deixou de lutar para que essa esperança se objetivasse e foi nessa condição que ocupou importantes cargos em vários governos. Constituiu-se, por isso, num intérprete privilegiado das venturas e desventuras desta periferia.

Mas, para falar cinquenta anos depois deste pequeno grande livro chamado O mito do desenvolvimento econômico, quero trazer à baila uma questão um tanto rarefeita e, à primeira vista, distante, tanto do tema do livro como do propósito de escrever sobre ele meio século depois. Refiro-me à questão metodológica, ou metateórica, ou epistemológica, como queiram. Para mostrar em que medida este livro pode ser entendido como um esforço singular de interpretação, é preciso considerar não só que Celso Furtado era um economista político, e que teve possibilidades concretas, como homem de Estado, de apurar ainda mais suas análises.

É preciso levar em conta também o que significava para ele o processo de produção do conhecimento, sobretudo no campo das ciências sociais. O desvio não será muito grande, não só porque o próprio livro traz também um ensaio metodológico, o que indica a importância que Furtado conferia ao tema, como porque, dado seu objeto, a reflexão mesma em torno da questão metateórica nos trará rapidamente de volta ao mito do desenvolvimento econômico.

Apesar de haver muito dessa discussão em sua tríade autobiográfica, [1] valho-me aqui, para tanto, de uma entrevista que tive o privilégio de fazer com ele em 1997, e de onde se extraiu um depoimento que foi publicado na revista Economia Aplicada, [2] então do ipe-usp. [3] Naquela tarde, passada no Rio de Janeiro, em conversa com o grande economista, que impressionava por sua figura intensa e forte, mas igualmente serena, ouvi que ele tivera três ordens de influência: a do positivismo (ele tinha uma biblioteca positivista em casa, segundo informou), que lhe permitiu adotar uma sorte de “metafísica construtiva” que lhe trouxe confiança na ciência, a de Marx, através da sociologia do conhecimento de Karl Mannheim, que o projetou na história, e, por meio de Gilberto Freyre, a da sociologia americana, que o alertou para a importância da dimensão cultural e do relativismo que daí deriva.

Das três fontes de influência, disse que a primeira depois refutou, porque foi perdendo a confiança na ciência. O que permaneceu muito forte nele foi o “historicismo” de origem marxiana, ou seja, a percepção de que a história é o contexto que envolve tudo e que dá ao homem um marco de referência para pensar. Para ele, “quem não tem esse pensamento histórico, não vai muito longe. Isso é o que separa um pensador do economista moderno, que pretende ser um engenheiro social”. Na mesma linha, ele vai afirmar pouco mais à frente que “a economia vai se tornando uma ciência cada vez mais formal, que é exatamente a negação da ciência social”.

De toda forma, a combinação das três heranças resultou numa visão da produção do conhecimento sobre o mundo social que, além da inescapável consideração da história, associa ao necessário saber teórico e analítico também a imaginação. Para ele, a ciência se constrói, em grande parte, por aqueles que, confiantes em sua imaginação, são capazes de, empurrados pela intuição, ultrapassar determinados limites.

Para Celso Furtado, toda a teorização que se construiu, a partir da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), entre os anos 1950 e 1970, sobre a singularidade latino-americana foi resultado dessa postura: “Acredito que o passo a mais que nós demos na América Latina foi justamente este: imaginamos que éramos capazes de identificar os nossos problemas e de elaborar uma teoria para eles, ou seja, imaginamos que havia uma realidade latino-americana, uma realidade brasileira, e então o fundamental aí tinha que ser captado dessa realidade”. O mito do desenvolvimento econômico é igualmente resultado desse espírito.

Além da imaginação, há ainda outro elemento apontado por Celso Furtado como essencial. Segundo ele, é preciso ter compromisso com alguma coisa, ou seja, se o objeto cujo conhecimento se busca é a realidade social, o diletantismo não é suficiente para que a imagem de atividade nobre que a ciência carrega tenha efetividade: “A ciência social tem que responder às questões colocadas pela sociedade […], não podemos nos eximir de compromissos mais amplos, porque há muitas áreas que não merecem atenção da ciência, e são áreas vitais”. Assim, por mais que haja consciência dos limites ao desenvolvimento do conhecimento que lhe são intrínsecos, ou seja, criados pela própria sociedade, é preciso insistir na produção de uma ciência social pura, que não seja refém de interesses e clientelas específicos. Mas não é fácil, ele avisa.

Para o próprio Celso Furtado, no entanto, isso nunca foi um problema. O mito do desenvolvimento econômico, escrito num momento em que se entoavam loas ao dito “milagre econômico” – seis anos de crescimento a taxas que hoje diríamos “chinesas” –, não se deixou seduzir pelo clima de euforia (construído, ademais, sob as botas dos militares).

Considerado o momento de seu nascimento, não foi pouca coisa, em meio a tanto ufanismo, adentrar a cena um livro que insistia em que, para países periféricos como o Brasil, o desenvolvimento econômico, se entendido tão somente como a possibilidade de os países mais pobres alcançarem em algum momento o padrão de vida dos países centrais, era um mito; mais ainda, um mito que se configurava como “um dos pilares da doutrina que serve de cobertura à dominação dos povos dos países periféricos”. Seu compromisso com o país obrigou-o a dizer que era melhor ir devagar com o andor, escapar de objetivos abstratos, como o puro e simples “crescimento”, e realizar a tarefa básica de identificar as necessidades fundamentais do coletivo.

E com isso chegamos ao livro objeto deste prefácio, não sem antes enfatizar que ele jamais teria sido escrito se a pena que o redigiu tivesse por dono um economista convencional, que elabora seus modelos sem pudor, alheio à história e às carências de seu país, esquecendo-se, como disse Celso Furtado na citada entrevista, “que a ciência social se baseia na ideia de que o homem é, antes de tudo, um processo, não é um dado, uma coisa inerte”.

São quatro os ensaios que compõem o livro. O primeiro, o mais longo e então inédito, cuja quinta e última seção fornece o nome da obra, versa sobre as tendências estruturais do sistema capitalista na fase de predomínio das grandes empresas. A seu lado vão mais três peças: uma reflexão sobre desenvolvimento e dependência, que o próprio Furtado considera, na apresentação que faz, como o núcleo teórico dos demais, uma discussão sobre o modelo brasileiro de subdesenvolvimento e, por fim, o dito “ensaio metodológico”, no qual o autor, não por acaso, faz uma digressão sobre objetividade e ilusionismo em Economia.

O que conecta os quatro ensaios, para além de terem sido escritos entre 1972 e 1974 – período em que Celso Furtado atuou como professor visitante na American University (Estados Unidos) e na Universidade de Cambridge (Inglaterra) –, é o espírito militante do autor e sua inquebrantável disposição para analisar, alertar e apontar os descaminhos que ia tomando o desenvolvimento brasileiro, assentado em imensas desigualdades e delas dependente para ser “bem-sucedido”. Daí todo seu esforço de sustentar a análise na discussão sobre as tendências estruturais do sistema capitalista. Como pensar o desenvolvimento de um país periférico como o Brasil sem vinculá-lo ao plano internacional?

O objeto inicial de exame no ensaio que dá título ao livro é o estudo The Limits to Growth [Os Limites do crescimento], trabalho realizado por Donella H. Meadows, Dennis L. Meadows, Jorgen Randers e William W. Behrens em 1972, no Instituto de Tecnologia de Massachussetts (mit), nos Estados Unidos, para o Clube de Roma.

No estudo, que ficaria bastante famoso (traduzido para 30 idiomas, vendeu mais de 30 milhões de cópias) há aquilo que Furtado vai chamar de “profecia do colapso”. A tese central é que se o desenvolvimento econômico, nos moldes em que ia se dando nos países mais avançados, fosse universalizado, a pressão sobre os recursos não renováveis e a poluição do meio ambiente seriam de tal ordem que o sistema econômico mundial colapsaria.

Celso Furtado discorda da tese, não por divergir da questão em si, isto é, do problema causado pelo consumo exacerbado de recursos não renováveis e da deterioração ambiental que daí advém. Ao contrário, chega mesmo a dizer que “em nossa civilização, a criação de valor econômico provoca, na grande maioria dos casos, processos irreversíveis de degradação do mundo físico”, e que, portanto, é preciso reconhecer “o caráter predatório do processo de civilização, particularmente da variante desse processo engendrada pela revolução industrial”.

Sua discordância deriva do pressuposto da tese, a saber, que o desenvolvimento era um processo de tipo linear, pelo qual passariam todos os países, de modo que, em algum momento da história, todos teriam o mesmo tipo e o mesmo nível de desenvolvimento então em vigor nos países centrais. Para nosso autor, a tese, totalmente equivocada, se chocava com aquela que ele considerou, na entrevista, como “a contribuição mais importante que dei à teoria econômica”, qual seja, sua teoria do subdesenvolvimento, que ele desenvolvera uma década antes. Se o subdesenvolvimento era, não uma etapa, mas um tipo específico de desenvolvimento capitalista, a tese linear estava descartada por definição, o que tornava pouco realista a profecia do colapso.

Muito marcado pelo que ia se dando no Brasil, Celso Furtado concluíra que, dada a divisão internacional do trabalho, consagrada com a consolidação do capitalismo, passaram a existir estruturas socioeconômicas em que o produto e a produtividade do trabalho crescem por mero rearranjo dos recursos disponíveis, com progresso técnico insignificante, ou, pior ainda, por meio da dilapidação de reservas de recursos naturais não reprodutíveis. Assim, o novo excedente não se conectava com o processo de formação de capital, tendendo tais economias a se especializarem na exportação de produtos primários.

Todavia, para Celso Furtado, mais do que a tendência à produção de bens primários, sobretudo agrícolas, o que estabelecia a linha demarcatória entre desenvolvimento e subdesenvolvimento era a orientação dada à utilização do excedente engendrado pelo incremento de produtividade. Nessas economias, de fraca formação de capital, o excedente, transmutado em capacidade para importar, permanecia disponível para a aquisição de bens de consumo. Assim, era pelo lado da demanda de bens de consumo que tais países se inseriam mais profundamente na civilização industrial.

A industrialização por substituição de importações, quando surge, pelas mãos de subsidiárias de empresas dos países cêntricos, acaba então por “reforçar a tendência para a reprodução de padrões de consumo de sociedades de muito mais elevado nível de renda média”, resultando daí “a síndrome de tendência à concentração de renda, tão familiar a todos os que estudam a industrialização dos países subdesenvolvidos”.

A esse traço, que, no segundo ensaio do livro, Celso Furtado relaciona com aquilo que chama de “dependência cultural” (sobretudo das elites), ele associa as características tomadas pelo processo de acumulação naquele momento, a saber, o fato de serem as grandes empresas internacionais a dar-lhe o tom. Entre essas características, o domínio dos oligopólios (com os padrões de consumo se homogeneizando no plano internacional), operações em centros de decisão que escapam ao controle dos governos nacionais, e uma tendência à construção de um espaço unificado de atuação capitalista.

Nesse contexto, os países periféricos, em meio à industrialização por substituição de importações, verão um processo de agravamento de suas disparidades internas. Ao utilizarem tecnologia em geral já amortizada, as grandes empresas oligopólicas conseguiam superar o obstáculo produzido pela incipiente formação de capital, mas industrializavam a periferia perpetuando o atraso cifrado na desigualdade. Sem o dinamismo econômico do centro do sistema, caracterizado por permanente fluxo de novos produtos e elevação dos salários reais, o capitalismo periférico, em contraste, “engendra o mimetismo cultural e requer permanente concentração de renda”.

Em poucas palavras, para Celso Furtado, a evolução do sistema capitalista que ele presenciara caracterizava-se por “um processo de homogeneização e integração do centro, um distanciamento crescente entre o centro e a periferia e uma ampliação considerável do fosso que, na periferia, separa uma minoria privilegiada e as grandes massas da população”. Daí porque a profecia do colapso não tinha condições de vingar, já que o padrão de vida dos países do centro jamais se universalizaria na periferia do sistema.

O Brasil, com sua expressiva dimensão demográfica e um setor exportador altamente rentável, mostra Celso Furtado no terceiro ensaio do livro, tornara-se um caso de sucesso do processo de industrialização, mas não conseguira operar com as regras que prevalecem nas economias desenvolvidas, de modo que o sistema então criado foi espontaneamente beneficiando apenas uma minoria.

Feito esse rápido inventário das principais observações e análises de Celso Furtado, o que podemos dizer de O mito do desenvolvimento econômico cinquenta anos depois? É evidente que há um contexto datado na obra, por exemplo, quando nosso autor afirma que o privilégio de emitir o dólar “constitui prova irrefutável de que esse país exerce com exclusividade a tutela do conjunto do sistema capitalista”. Cinco décadas depois, ainda que o privilégio continue a existir, e tenha sido reforçado pela política de Paul Volcker, presidente do Federal Reserve, ao final dos anos 1970, a liderança americana tem estado sob permanente controvérsia, principalmente por conta da assombrosa evolução da China.

Da mesma maneira, considerada a forma como Celso Furtado faz sua análise, fica implícito que ele considerava ao menos a industrialização, ainda que não a superação do atraso, como algo que tinha se consolidado no Brasil, o que, sabemos hoje, não é verdade, dado o evidente processo de desindustrialização precoce sofrido pelo país.

Isso posto, porém, os acertos de Celso Furtado são de espantar. Nem é preciso considerar sua preocupação com o permanente desgaste dos recursos naturais, a inevitável poluição e o uso frequente de “vantagens comparativas predatórias”, sobretudo na periferia do sistema, que atravessa todo o livro, evidência máxima da correta sintonia em que operava a economia política furtadiana.

O que parece aqui mais importante mencionar é sua correta percepção quanto às tendências unificadoras do sistema capitalista. Note-se que estávamos em 1974, ainda bem longe, portanto, da queda do muro de Berlim e de se começar a falar em globalização, e mesmo assim ele afirma que “as tendências a uma crescente unificação do sistema capitalista aparecem agora com muito maior clareza do que era o caso na metade do decênio de 1960”.

Associada a isso, também a percepção precisa de que ia se formando ao longo do globo uma espécie de grande e única reserva de mão de obra à disposição do capital internacional, haja vista a facilidade com que as grandes empresas podiam evitar aumentos de salário, principalmente na periferia, deslocando os investimentos para áreas com condições mais favoráveis.

Contudo, o que é de fato mais assombroso é o acerto de seus prognósticos, feitos há cinquenta anos, quanto ao destino da modernização em curso no Brasil. Desde então até hoje, com um e outro alívio trazido por políticas sociais de alto impacto implantadas por governos populares, o atraso só fez transbordar. Esse esforço singular de interpretação não teria sido possível sem a compreensão que tinha Celso Furtado da verdadeira constituição do processo de produção de conhecimento do social, aliando à teoria e à percepção do caráter histórico dos fenômenos sob análise também a imaginação e o compromisso com a coletividade.

Na já citada entrevista, diz Celso Furtado: “Minha vida foi simultaneamente um êxito e uma frustração: um êxito pelo fato de que eu acreditei na industrialização, na modernização do Brasil, e isso se realizou; e uma frustração porque eu talvez não tenha percebido com suficiente clareza as resistências que existiam à consolidação mais firme desse processo, ou seja, que, a despeito da industrialização, o atraso social ia se acumulando”.

Não é preciso dizer mais, penso, sobre a importância de se voltar a ler hoje O mito do desenvolvimento econômico, reeditado boa hora.

*Leda Maria Paulani é professora titular sênior da FEA-USP. Autora, entre outros livros, de Modernidade e discurso econômico (Boitempo)

 

Individualismo

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Vivemos numa sociedade marcadamente individualista, o modelo econômico estimula a concorrência, os valores que comandam a sociedade capitalista internacional estão centrados nos valores do imediatismo, queremos mais e mais…. e não estamos nos atentando com as destruições estruturais que ameaçam os seres humanos e a vida em sociedade.

Neste mundo, marcado pelo consumo e pela acumulação, percebemos a degradação crescente do meio ambiente, a temperatura do planeta aumenta de forma acelerada, o clima está vivendo grandes alterações que impacta em todas as regiões do globo, nações dotadas de grandes vantagens comparativas na agricultura e da produção agrícola e mineral estão passando por mudanças extremas, o futuro está sendo marcado por grandes incertezas e grandes instabilidades.

A concorrência é sempre salutar desde que os agentes econômicos, sociais e políticos estejam concorrendo com todas as mesmas “armas”, desta forma podemos acreditar que os melhores tendem a ganhar, mas o que percebemos é uma história diferente, o discurso do mérito está difundido na sociedade, mesmo sabendo que vivemos numa sociedade altamente desigual, marcada pela exploração, pela escravização e pela corrupção que crassa parte substancial da sociedade.

Nesta mesma sociedade, a busca pelo prazer cresce de forma acelerada, os esforços cotidianos que anteriormente passavam pelos estudos e pelas reflexões teóricas, cursos superiores e qualificações constantes estão sendo substituídos por horas e mais horas na academia, nas clínicas estéticas , conversas com personal trainers e nas redes sociais, buscando mais e mais seguidores e uma curtida em uma foto extraordinária, os profissionais que antes eram referência para os jovens e para as crianças estão sendo alteradas por uma carreira de youtubers, influencers, etc… quais as contribuições para o progresso da sociedade mundial estas áreas tendem a trazer para formação humana?

Zygmunt Baumam alertou a sociedade sobre o mundo líquido, os amores líquidos, os medos líquidos, o mundo digital nos trazem vantagens e desvantagens elevadas, mas  precisamos, antes de mais nada, que os seres humanos necessitem agendar uma viagem para os seus sentimentos mais íntimos e pessoais, sem esta viagem individual estaremos construindo uma sociedade cada vez mais narcisista, imaturo e incapaz de compreender os grandes e verdadeiros desafios da sociedade contemporânea.

A psicanálise e seus predicados, por Vera Iaconelli

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Psicanálise evangélica, positiva, próspera e demais bizarrices revelam oportunismo, má-fé e ignorância sobre a teoria

Vera Iaconelli, Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “Manifesto Antimaternalista” e “Felicidade Ordinária”. É doutora em psicologia pela USP.

Folha de São Paulo, 04/12/2024

A psicanálise é um campo centenário de teorização, de pesquisa e de tratamento que não se encaixa nos moldes do ensino universitário. Uma vez que a análise do analista é seu esteio, as supervisões e a escrita, seu testemunho e não há certificado, a academia e o Estado não têm nada a dizer sobre suas formas próprias de transmissão.

A psicanálise tem sido atacada desde o dia um por propor escutar os pacientes cujos sintomas os psiquiatras eram incapazes de curar e, ao fazê-lo, reverter quadros incapacitantes. Não se tratava, obviamente, de uma escuta comum, dessas que temos com médico, padre, amigo ou professor. Freud, com sólida formação como neurologista, sabia de experiência própria como as falas de um doutor não surtiam efeito nesses casos.

Ele passou a escutar o sofrimento dos pacientes, submetidos tanto a formas de opressão e injustiça do campo social quanto às suas altas exigências inconscientes. Logo ficou claro que uma psicanálise que não considerasse o reconhecimento da alteridade como um valor absoluto, e que não defendesse a diversidade humana, não teria razão de existir.

Há mais de 80 anos, Lacan já denunciava que medicina, linguística, psicologia estão entre as áreas afins à psicanálise, mas não devem ser confundidas com ela.

E seguimos, dentro dessa tradição, escutando como os sujeitos se estruturam nos ambientes nos quais foram formados, como lidam com os acontecimentos que se apresentam e, principalmente, como encaram o fato estrutural de que somos todos castrados, limitados.

A psicanálise se debruça sobre inúmeros campos de fenômenos (alcoolismo, desemprego, parentalidade, suicídio…) sem que arrede o pé de ser o exercício da escuta de cada sujeito único diante desses fenômenos. Isso quer dizer que, a rigor, os estudos da psicanálise sobre o suicídio, sobre o alcoolismo ou sobre o desemprego se referem à forma como estudamos esses fenômenos e não a qualquer predicado da psicanálise, cuja única qualidade é escutar o inconsciente.

Se o leigo pedir uma dica de como separar o joio do trigo na oferta obscena de psicanalistas que vemos hoje nas redes, diria que qualquer um que apresente uma psicanálise com adjetivos e/ou certificada está realizando uma impostura. Psicanálise evangélica, positiva, próspera, enfim, essas bizarrices oportunistas só revelam ignorância sobre a teoria, oportunismo e má-fé.

Uma psicanálise do Evangelho, por exemplo, deveria ser aquela que estuda o que Freud demonstrou em “O futuro de uma ilusão”: o caráter alienante das crenças baseadas em dogmas. A ideia de positividade, outro exemplo, vai na contramão de toda a história do pensamento psicanalítico, que se baseia no reconhecimento do negativo como constituinte da subjetividade.

De todas as perseguições e ameaças que a psicanálise sofre desde sua criação – nazismo, fascismo, racismo, misoginia–, as investidas atuais têm sido as que mais arriscam descaracterizá-la.

Seguindo os passos de Freud e dos pós-freudianos, sabemos que a resistência a escutar o inconsciente é um fato estrutural, por isso não existe caminho suave para a formação do psicanalista. Mas as formas nas quais essa resistência se apresenta em cada época variam e devem ser continuamente mapeadas e combatidas.