Os riscos dos desdobramentos da crise.

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Autor: Yoshiaki Nakano – Valor Econômico

Do pico de nível de atividade econômica, no período pré-crise, atingido em abril de 2008, até o segundo trimestre de 2009, a atual crise provocou uma contração maior no PIB, no comércio mundial e nas bolsas de valores do que a grande depressão dos anos 30. Entretanto, as respostas das políticas monetária e fiscal foram muito mais rápidas e intensas do que nos anos 30. Com isso, tivemos uma rápida e sensível melhora nas expectativas e surpreendente início de recuperação da atividade econômica desde o segundo trimestre na Alemanha, França e no Japão, estabilização nos Estados Unidos e recuperação do crescimento na Ásia.

A rigor a crise financeira iniciou-se nos Estados Unidos e contaminou diretamente os bancos dos principais países desenvolvidos. Nos países emergentes ela foi importada pelo pânico psicológico, revelou-se sem maiores consequências e a desaceleração do crescimento veio da queda nas exportações. A sustentação do crescimento e o seu ritmo dependerão do dinamismo de seu mercado doméstico. Tudo indica que os emergentes estão retomando o crescimento ainda que em ritmo menor.

Algumas grandes questões colocam em risco a recuperação recém-ensaiada nos países desenvolvidos. Ela se sustentará no momento em que os estímulos fiscais forem retirados? O que acontecerá com o seu sistema financeiro enquanto a nova regulação não vem, com uma política monetária fortemente expansionista, que inundou o sistema com abundante liquidez, uma taxa de juros próxima a zero e o retorno das práticas e da especulação financeira?
Com o socorro monumental dado pelo Federal Reserve (Fed, banco central) e pelo Tesouro, o mercado financeiro norte-americano já voltou a operar com as mesmas práticas que desencadearam a crise, as operações de trading no mercado de capitais, gerando grandes lucros e, com isso, os bônus bilionários e a sensação de que a crise financeira já acabou.

No entanto, não é a percepção dos analistas econômicos que sabem que as fragilidades do sistema financeiro não foram removidas e ninguém está prevendo a recuperação da economia em forma de V. Ao contrário, os analistas mais sérios agrupam-se em dois grupos. De um lado, aqueles que acham que a recuperação terá a forma U, mas com base achatada e longa e, de outro, aqueles que acreditam que a recuperação terá a forma de um W. Há fortes argumentos para ambos os grupos.

Aqueles que veem a recuperação em forma de U, com base achatada e longa, apontam que dois choques negativos e persistentes nos países desenvolvidos: choque de queda no consumo, em função da enorme destruição de riqueza financeira e necessária elevação da taxa de poupança das famílias americanas que estavam super-endividadas. O mesmo ocorre na Europa em menor grau; assim, a hipótese de recuperação via exportações está afastada. Com forte e persistente queda no consumo e nas exportações, a recuperação dos investimentos também é remota. Mais do que isto alguns analistas como Paul Krugman apontam riscos dos Estados Unidos entrarem numa espiral deflacionária, pois as respostas de política econômica tomadas até agora nos Estados Unidos e os desdobramentos da crise estão distantes daquelas tomadas pela Suécia e outros países nórdicos no início da década de 90, que permitiram rápida recuperação econômica. O desenrolar da crise mais se assemelha com o caso japonês em que o socorro do banco central e do tesouro se deu sem simultânea reestruturação do sistema financeiro, como no caso sueco, e com isso a recuperação foi lenta e prolongada e agravada pela temível espiral deflacionária.

Aqueles que acreditam que a recuperação será longa e em forma de W ou www, apontam duas ordens de riscos. Primeiro os riscos oriundos da estratégia de saída das expansionistas políticas monetária e fiscal e da retirada das garantias e da liquidez extraordinária injetada no sistema. Os desafios são gigantescos: em que momento reverter as políticas, lembrando que os estímulos fiscais têm data marcada para serem retirados e que a sua permanência requer aprovação do Congresso provavelmente resistente; como sequenciar ao longo do tempo as saídas; como coordenar e sincronizar globalmente as saídas.

Em segundo lugar temos os riscos oriundos da injeção extraordinária de liquidez e socorro aos bancos sem a simultânea reestruturação. Com recursos sem limite, as taxas de juros próximas a zero garantidas pelo Fed e na crença de que o governo não permitirá novas quebras os bancos, as mesmas práticas especulativas que geraram as bolhas e seu colapso retornaram. Pois é assim que geram enormes lucros recordes agora captando recursos custo praticamente zero e especulando com ativos com preços deprimidos.

Não são as operações tradicionais de empréstimos bancários ao setor real da economia que estão de volta. Basta verificar que as reservas bancárias ociosas passam de mais de US$ 1,3 trilhão. São as operações alavancadas de trading no mercado de capitais que voltaram e que, ao canalizarem recursos da liquidez extraordinária injetada pelos bancos centrais para as bolsas de valores, principalmente dos emergentes, petróleo, as commodities e para moedas-commodities, como o real, estão provocando a elevação de seus preços que já atingiram níveis em plena recessão global que não se justificam. Assim já podemos falar de mini-bolhas. De fato, nestas instituições quando o preço de seus ativos aumentam no seu balanço recompõe-se o seu patrimônio líquido e a alavancagem se reduz com isto são estimulados pela expectativa de polpudos lucros e bônus milionários abrem o apetite ao risco alavancando-se com novas operações e assim sucessivamente até que geram bolhas que podem eventualmente estourar.

Assim, aqueles que acreditam que a recuperação se dará sob a forma de W apontam para as grandes dificuldades de implementar uma saída das políticas e da retirada da liquidez extraordinária sem turbulências num quadro no qual a própria ação de socorro dos bancos centrais está gerando mini-bolhas. Certamente haverá sustos já que o socorro do governo aos bancos foi feito sem a sua reestruturação que deverá demorar e quem sabe será implementado só em 2011.

Yoshiaki Nakano, ex-secretário da Fazenda do governo Mário Covas (SP), professor e diretor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas – FGV/EESP, escreve mensalmente às terças-feiras.

Pré-sal: farsa e tragédia

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Autor: Cláudio Considera – Valor Econômico

A educação no país é muito ruim e a sociedade não se mobiliza para reivindicar melhoras na qualidade
Em livro recém-lançado (Educação Básica no Brasil, Ed. Campus, vários autores) Samuel Pessoa, Fernando de Holanda B. Filho e Fernando Veloso, chamam a atenção para os poucos anos de educação básica que o Brasil tem, comparativamente a diversos países (mais ricos ou mais pobres), e sua consequência, tanto para o baixo crescimento que tivemos ao longo dos anos, como para a nossa perversa distribuição de renda.

Samuel e Fernando Holanda nos deixam pesarosos ao se perguntarem pelo motivo do descuido da sociedade com a educação da segunda metade do século passado em diante. Para eles, aos olhos de hoje, é difícil entender que a sociedade tenha se mobilizado pelo “petróleo é nosso” e que não tenha havido movimento equivalente por universalização e por melhor qualidade do ensino básico.
Recordando, desde 1950, não foi apenas em petróleo que o Estado brasileiro, do período do nacionalismo-desenvolvimentista, investiu pesadamente. Vários setores da infraestrutura básica, tais como mineração, siderurgia, telecomunicações, energia, portos etc, foram estatizados sob a alegação de que eram investimentos de longo prazo de maturação e de rentabilidade baixa, incapazes, portanto, de atrair o capital privado, quer nacional ou internacional.
Por 30 anos, até 1980, o Brasil cresceu a taxas espetaculares (7,4% ao ano, em média) e seu PIB em 1980 tornou-se 8,5 vezes maior do que em 1950. Certamente esse crescimento tem como fator fundamental a ação investidora do Estado como produtor. De 1980 a 1992, com a falência do Estado, crescemos apenas 1,36% e o PIB per capita teve uma redução de 8%. Além disso, o processo inflacionário ocupou todas as energias e recursos do Estado brasileiro, incapacitando-o até mesmo para ser um Estado apenas indutor.

Em 1992, quando se inicia o processo de privatização, contávamos com mais de 800 empresas estatais em péssimas condições econômicas e financeiras, incapazes de serem recuperadas sem fortes investimentos, impossíveis de serem realizados pelo Estado. Em compensação, o baixo investimento em educação naquele período havia acarretado uma tragédia educacional irrecuperável. Assim é que, os anos médios de escolaridade da força de trabalho brasileira – população economicamente ativa (PEA) – era, em 1980, de apenas 3,1 anos, apenas 1 ano superior àquela da África subsaariana e bastante inferior à dos países de língua inglesa (8,5 anos) e mesmo dos maiores países da América Latina, excluindo o Brasil (5,6 anos).

Samuel e Fernando Holanda mencionam ainda estudos que mostram que a incapacidade do Brasil em universalizar a educação básica no momento em que passávamos pelo processo de transição demográfica (quando se passou a ter altas taxas de crescimento da população) explica diversas características trágicas de nossa sociedade hoje: favelização das grandes cidades, o forte crescimento populacional, a explosão da criminalidade, entre outras, além do aumento da desigualdade e da baixa produtividade do trabalho.
Por sua vez, Fernando Veloso chama a atenção que os países mais ricos (renda per capita superior a US$ 23 mil) em 2000 tinham escolaridade média superior a 8 anos enquanto que o Brasil tinha pouco menos de 6 anos para uma renda per capita de cerca de US$ 7 mil; escolaridade essa inferior à de países com renda per capita inferior à nossa. Mostra ainda que, em 2006, essa pouca escolaridade brasileira era de má qualidade, pois nossa classificação no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) era no máximo o 49 º com cerca de 393 pontos quando os dez primeiros colocados tinham acima de 500 pontos.

Mesmo considerando esses resultados, o governo brasileiro, de 2 anos atrás em diante, lançou-se num programa de reestatização do setor de petróleo no Brasil, turbinado na primeira semana de setembro pela exploração do pré-sal. A história se repete: agora como farsa e tragédia. Como farsa, pois a razão ora esgrimida para que o Estado aumente sua participação no setor é oposta àquela da estatização do nacional-desenvolvimentismo: segundo vários ministros do governo, a estatização é necessária, pois, tratar-se-ia de uma atividade bastante lucrativa, sem risco e que, portanto, não deve ser deixada para o capital privado (nacional ou multinacional). Argumentam que todos os lucros dessa atividade deveriam ser apropriados pelo Estado, que no futuro poderá utilizar esses lucros em benefício da sociedade em ações como educação e outros. Isto é dito, mesmo se reconhecendo que estes frutos só viriam a se concretizar em 10 anos.

De fato, as razões acima expostas são apenas uma farsa daqueles que acham que, de fato, o Estado deve ser o proprietário dos recursos produtivos da nação e ocupar-se da produção de bens e serviços mercantis. O Estado deveria, segundo eles, retomar seu papel de produtor e não apenas de indutor da atividade econômica.

A história se repete também como tragédia: podemos, com base na nossa história, inferir os resultados dessa opção em continuar investindo pouco e mal em educação: ampliação da favelização, da pobreza e da criminalidade nos anos que estão por vir.

Fico pesaroso em pensar o quão melhor o Brasil estaria, daqui a dez anos, se os jornais da primeira semana de setembro anunciassem que os recursos que a União gastará para capitalizar a Petrobras (R$ 100 bilhões – 5 bilhões de barris de petróleo a R$ 20,00 por barril), com vistas à exploração do pré-sal, fossem utilizados na educação. Ou, ainda, se os jornais de 8 de setembro estampassem em suas manchetes: “O Brasil investirá R$ 31,5 bilhões para deflagrar uma revolução na educação”, ao invés de comprar armamentos.

Isto sim beneficiaria a grande maioria dos pobres deste país, tornando-os mais educados e produtivos, menos pobres, socialmente incluídos e contribuindo definitivamente para o desenvolvimento brasileiro.

Mas, como nos lembraria o senador Cristovam Buarque, tal ação não rende votos, mesmo que voltadas para os mais pobres. A sociedade continua preferindo estatais e armas.

Claudio Considera é professor de economia da Universidade Federal fluminense

O mito da redução do Estado

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Valor Econômico
Autor: Luís Gonzaga de Mello Beluzzo

Na edição de segunda-feira, 14 de setembro, a “Folha de São Paulo” publicou entrevista com a “especialista em desenvolvimento” australiana Linda Weiss. Ela proclama que a “a redução do papel do Estado na economia sempre foi um mito”. Disso já sabia o celebrado historiador Fernand Braudel. Em sua obra maior, “Civilização Material e Capitalismo”, Braudel escreveu: “o erro mais grave (dos economistas ) é sustentar que o capitalismo é um sistema econômico… Não devemos nos enganar, o Estado e o Capital são companheiros inseparáveis, ontem como hoje.”

Em seu curso no College de France, oferecido entre 1978 e 1979, mais tarde publicado sob o título de “Nascimento da Biopolítica”, Michel Foucault cuidou de examinar as condições da governabilidade nas sociedades de mercado. A certa altura, Foucault concluiu que a teoria econômica move-se num vazio institucional e histórico, enquanto a vida econômica dos homens concretos se movimenta numa ordem social economicamente regulada pelo direito “com base na economia de mercado”. Não se trata de mercado ou Estado, senão de uma coisa e outra.

As reformas ditas liberalizantes não afastaram, de fato, o Estado da arena econômica, mas foram empreendidas, desde o crepúsculo dos anos 70 do século passado, com o propósito de mobilizar os recursos políticos e financeiros dos Estados Nacionais para fortalecer os respectivos sistemas empresariais envolvidos na concorrência global.

O Estado não saiu da cena, apenas mudou de agenda. Na esteira do apoio decisivo do Estado, as corporações globais passaram a adotar padrões de governança agressivamente competitivos. Entre outros procedimentos, as empresas subordinaram seu desempenho econômico à “criação de valor” na esfera financeira, repercutindo a ampliação dos poderes dos acionistas. Aliados aos administradores, agora remunerados com bônus generosos e comprometidos com o exercício de opções de compra das ações da empresa, os acionistas exercitaram um individualismo agressivo e exigiram surtos intensos e recorrentes de reengenharia administrativa, de flexibilização das relações de trabalho e de redução de custos.

As estratégias de localização da corporação globalizada introduziram importantes mutações nos padrões organizacionais: constituição de empresas-rede, com centralização das funções de decisão e de inovação e terceirização das operações comerciais, industriais e de serviços em geral. A cartilha neoliberal pretendia nos ensinar que a globalização nasceu de uma espantosa revolução tecnológica capaz de aproximar o homem do momento em que vai se livrar da maldição do trabalho e gozar dos encantos da vida cosmopolita. A microeletrônica, a informática, a automação dos processos industriais etc. prometem nos libertar das limitações impostas pelo espaço e pelo tempo. O indivíduo livre pode trabalhar em casa e se tornar, além de patrão de si mesmo, um partícipe da prosperidade universal. A globalização, associando tecnologia e transformação das formas de trabalho, realizaria essa maravilhosa promessa da modernidade.

Mas a realidade da globalização neoliberal foi outra. A individualização das relações trabalhistas promoveu a intensificação do ritmo de trabalho, conforme estudo recente da OIT e de outras instituições que lidam com o assunto. O trabalho se intensificou, sobretudo, entre os que se tornaram independentes das relações formais, os que negociam diariamente a venda de sua capacidade de trabalho nos mercados livres.

Isso aconteceu no mesmo período em que as novas formas financeiras contribuíram para aumentar o poder das grandes corporações nos parlamentos e nos executivos. As fusões e aquisições suscitaram um maior controle dos mercados e promoveram campanhas contra os direitos sociais e econômicos, considerados um obstáculo à operação das leis de concorrência. A abertura dos mercados e o acirramento da concorrência coexistiram com a tendência ao monopólio e, assim, impediram que os cidadãos, no exercício da política democrática, tivessem força suficiente para decidir sobre a própria vida.

Os neorreformistas, na realidade, cuidaram de transferir os riscos para os indivíduos dispersos, ao mesmo tempo em que utilizaram o Estado e sua força financeira coletiva para limitar as perdas provocadas pelos episódios de desvalorização da riqueza. A intensificação da concorrência entre as empresas no espaço global não só acelerou o processo de financeirização e concentração da riqueza e da renda como, ironicamente, incrementou a fúria legislativa do Estado em matéria econômica, o que, em consequência sobrecarregou os aparelhos judiciários. O acirramento da concorrência em todas as esferas multiplicou os conflitos entre empresas e entre estas e os trabalhadores.

Os empenhos do Novo Estado promoveram, ademais, a reversão das tendências à maior igualdade observadas no período que vai do final da Segunda Guerra até meados dos anos 70 – tanto no interior das classes sociais quanto entre elas. Na era do capitalismo “turbinado”, financeirizado e “estatizado”, os frutos do crescimento se concentraram nas mãos dos detentores de carteiras de títulos que representam direitos à apropriação da renda e da riqueza. Para os demais, perduravam a ameaça do desemprego, a crescente insegurança e precariedade das novas ocupações, a exclusão social.

O projeto da autonomia do indivíduo está inscrito no pórtico da modernidade. Significa a sua autorrealização dentro das regras das liberdades republicanas e do respeito ao outro. Opõe-se à submissão aos poderes, públicos e privados, que o cidadão não controla. A disseminação das formas mais agressivas de concorrência, fomentadas pela nova configuração de funções do Estado, encontra débil resistência em seu trabalho de reduzir os “conteúdos” da vida humana às relações dominadas pela expansão do valor de troca. Mas pode se tornar intolerável para os indivíduos a sensação de que o seu quotidiano e seu destino são governados pelas tropas de uma “racionalização” sufocante, destruidora do projeto de uma vida boa e decente.

Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras. E-mail: BelluzzoP@aol.com

Da Guerra

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Valor Econômico
Autor: José Luís Fiori

Entre 1495 e 1975, as grandes potências estiveram em guerra durante 75% do tempo, começando uma nova a cada sete ou oito anos. Mesmo nos anos mais pacíficos desse período, entre 1816 e 1913, essas potências fizeram cerca de 100 guerras coloniais. E, ao contrário das expectativas, a cada novo século houve mais guerras do que no século anterior. (J. Levy, “War in the modern Great Power System”, Ky Lexington, 1983) Por isso, pode-se dizer que as guerras foram a principal atividade dos Estados nacionais europeus, durante seus cinco séculos de existência e, agora de novo, o Século XXI já começou sob o signo das armas.

Mas, apesar disto, segue sendo um tabu falar e analisar objetivamente o papel das guerras na formação, na evolução e no futuro do sistema interestatal capitalista que foi “inventado” pelos europeus nos Séculos XVI e XVII e só se transformou num fenômeno universal no Século XX. Talvez porque seja muito doloroso aceitar que as guerras não são um fenômeno excepcional, nem decorrem de uma “necessidade econômica”. Ou porque seja difícil entender que elas seguirão existindo, mesmo que não ocorram enfrentamentos atômicos entre as grandes potências, porque não precisam ser travadas para cumprir seu “papel” dentro do sistema interestatal. Basta que sejam planejadas de forma complementar e competitiva.
À primeira vista, tudo isso parece meio absurdo e paradoxal. Mas tudo fica mais claro quando se olha para o começo desta história e se entende que o sistema mundial em que vivemos foi uma conquista progressiva dos primeiros Estados nacionais europeus. E desde os seus primeiros passos, esse sistema nunca mais deixou de se expandir, “liderado” pelo crescimento competitivo e imperial de suas grandes potências, que lutam para manter ou avançar sua posição relativa dentro do sistema. Por isso, tem razão o cientista político norte-americano John Mearsheimer, quando diz que “as grandes potências têm um comportamento agressivo não porque elas queiram, mas porque elas têm que buscar acumular mais poder se quiserem maximizar suas probabilidades de sobrevivência, porque o sistema internacional cria incentivos poderosos para que os Estados estejam sempre procurando oportunidades de ganhar mais poder às custas dos rivais…”. (Mearsheimer, “The tragedy of the great powers”, 2001: 21).

Nesse processo competitivo, a guerra, ou a ameaça da guerra, foi o principal instrumento estratégico utilizado pelos Estados nacionais para acumular poder e definir a hierarquia mundial. E as potências vencedoras – que se transformaram em “líderes” do sistema – foram as que conseguiram conquistar e manter o controle monopólico das “tecnologias sensíveis”, de uso militar. Mas essa competição por tecnologia e pelo controle monopólico dos recursos bélicos deu origem à uma dinâmica automática e progressiva de preparação contínua para as guerras, numa disputa que aponta todo o tempo na direção de um império único e universal.

Paradoxalmente, esse império não poderá ser alcançado sem que o sistema mundial perca sua capacidade conjunta de seguir se expandindo. Por quê? Porque a vitória e a constituição de um império mundial seria sempre a vitória de um Estado nacional específico. Daquele Estado que fosse capaz de impor sua vontade e monopolizar o poder até o limite do desaparecimento dos seus competidores. Se isto acontecesse, entretanto, acabaria a competição entre os Estados e, nesse caso, os Estados não teriam como seguir aumentando o seu próprio poder.

Ou seja, nesse sistema interestatal inventado pelos europeus, a existência de adversários é indispensável para que haja expansão e acumulação de poder e a preparação contínua para a guerra é o fator que ordena o próprio sistema. Assim mesmo, como a “potência-líder” também precisa seguir acumulando poder para manter sua posição relativa, ela mesma acaba atropelando as instituições e os acordos internacionais que ajudou a criar num momento anterior. Ela é quem tem maior poder relativo dentro do sistema e, por isso, ela é que acaba sendo, quase sempre, a grande desestabilizadora de qualquer ordem internacional estabelecida.

Agora, a preparação para a guerra, e as próprias guerras, nunca impediram a complementaridade econômica e a integração comercial e financeira entre todos os Estados envolvidos nos conflitos. Pelo contrário, a mútua dependência econômica sempre foi uma peça essencial da própria competição. Às vezes predominou o conflito, às vezes a complementaridade, mas foi essa “dialética” que se transformou no verdadeiro motor político-econômico do sistema inter-estatal capitalista, e no grande segredo da vitória europeia sobre o resto do mundo, a partir do Século XVII.

Entre 1650 e 1950, a Inglaterra participou de 110 guerras aproximadamente, dentro e fora da Europa, ou seja, em média, uma à cada três anos. E entre 1783 e 1991, os Estados Unidos participaram de cerca de 80 guerras, dentro e fora da América, ou seja, em média, também, uma a cada três anos (M. Coldfelter, “Warfare and armed conflicts”, MacFarland, Londres, 2002). Como resultado, neste início do Século XXI, os Estados Unidos têm acordos militares com cerca de 130 países ao redor do mundo e mantém mais de 700 bases militares fora do seu território. E assim mesmo devem seguir se expandindo – independente de qual seja o seu governo – sem precisar ferir necessariamente o direito internacional, e sem precisar dar explicações a ninguém.
Por isto, soa absolutamente cômica e desnecessária a justificativa de que as bases militares dos EUA na Colômbia têm a ver com o combate ao narcotráfico e à guerrilha local, assim como os argumentos que associam a instalação do escudo antimísseis dos EUA na fronteira com a Rússia ao controle e bloqueio de foguetes iranianos. Como soa ridícula, nesse contexto, a evocação do “princípio básico da não ingerência” na defesa das decisões colombianas, polacas ou checas. Nesse “jogo” não há limites e, por mais lamentável que seja, os “neutros” são irrelevantes ou sucumbem, e só restam duas alternativas, para os que não aceitam aliar-se ou se submeter à potência expansiva: no caso dos mais fracos, protestar; e no caso dos demais, defender-se.

José Luís Fiori é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ e autor do livro “O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações” (Editora Boitempo, 2007).

Intervenções cambiais do Banco Central

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Valor Econômico
Autor: Márcio G. P. Garcia

Apesar de toda a incerteza sobre o futuro da economia mundial, o cenário dominante atual é que os piores temores sobre a crise econômica parecem ter passado. Este cenário, que propicia o retorno do apetite dos investidores internacionais por ativos mais arriscados, com maiores retornos esperados, tem contribuído para melhorar a conta financeira (capital) do balanço de pagamentos brasileiro. Simultaneamente, a retomada do crescimento mundial vem se concentrando mais pesadamente na Ásia, em especial na China, acarretando aumento da demanda por nossas exportações de commodities, melhorando também a balança comercial. Tais movimentos voltaram a trazer para o centro da política econômica a questão do que fazer para mitigar a apreciação cambial que vem ocorrendo, prejudicando o desempenho das exportações, sobretudo de manufaturas.

Algumas medidas ineficazes ou insensatas vêm sendo propostas para mitigar o influxo de dólares, como controles de entrada de capitais estrangeiros e taxação das exportações de commodities, embora não se saiba se o governo lançará ou não mão delas. As principais medidas que vêm sendo utilizadas há anos, e deverão crescer ainda mais de importância, são as intervenções esterilizadas pelo Banco Central do Brasil (BC) nos mercados cambiais, ainda que o BC sempre advirta, corretamente, não ter um alvo para a taxa de câmbio.

Intervenções cambiais esterilizadas são compras ou vendas de divisas estrangeiras pelo BC sem que ocorra alteração no estoque de moeda (nem na taxa de juros). Na sua forma mais simples, uma operação esterilizada de compra de divisas envolve duas operações das mesas do BC. Inicialmente, o BC compra dólares e paga em reais, assim acumulando reservas internacionais e aumentando a base monetária. Simultaneamente, o BC conduz operações de mercado aberto que visam o enxugamento da liquidez adicional gerada pela operação de compra de câmbio: o BC vende títulos públicos de sua carteira, assim fazendo retornar a seu valor inicial a base monetária (e também a taxa de juros).

Ressalte-se a diferença entre intervenções esterilizadas e não-esterilizadas: estas últimas expandem (compra de divisas) ou contraem (venda de divisas) a base monetária, alterando, portanto, a taxa de juros. Não há dúvidas quanto à eficácia de intervenções cambiais não-esterilizadas em mover a taxa de câmbio, pelo menos por algum tempo. Países que têm metas, explícitas ou não, para a taxa de câmbio, recorrem, via de regra, a intervenções não-esterilizadas.

Intervenções esterilizadas podem afetar a taxa de câmbio via dois canais teóricos: o canal de sinalização e o canal de equilíbrio de portfólio. No canal de sinalização, o pretenso efeito sobre a taxa de câmbio adviria de sinais implícitos de futuras mudanças em políticas governamentais. Este canal não parece relevante quando se adota o sistema de metas para inflação, no qual há muitas formas de o BC passar ao mercado informações que julgue conveniente divulgar.
No canal de equilíbrio de portfólio, mudanças nas taxas de retorno alteram a taxa de câmbio. Segundo a lógica deste hipotético efeito, ativos denominados em dólares e reais não são substitutos perfeitos. Inicialmente, os dealers de câmbio detêm seus respectivos estoques desejados de moeda estrangeira. Então, o BC realiza a compra esterilizada, reduzindo os estoques dos dealers para níveis abaixo dos desejados (às taxas de retorno vigentes, os dealers passam a ter demasiados ativos em reais e poucos ativos em dólares). Assim sendo, os dealers vão ao mercado para recompor seu estoque, comprando dólares e pagando em reais, causando a depreciação do real, a qual, por sua vez, causa a diminuição do retorno esperado dos ativos em dólares. No novo equilíbrio de portfólio, com o dólar mais apreciado, os novos retornos esperados são compatíveis com a nova quantidade relativa de ativos em dólares e reais.
A literatura empírica sobre a capacidade de intervenções esterilizadas afetarem a taxa de câmbio é bastante controversa. Detecta efeitos que variam entre diferentes países, e mesmo entre diferentes episódios, ao longo do tempo, em um mesmo país. Estudos empíricos em mercados emergentes têm sido pessimistas quanto à eficácia de intervenções esterilizadas em alterar a trajetória da taxa de câmbio.

O advento dos derivativos financeiros veio a tornar ainda mais complexa a operação das intervenções esterilizadas. Por exemplo, ao decidir atuar no mercado cambial, o BC tem ainda que decidir se vai atuar no mercado à vista (mercado composto pelo BC e por bancos autorizados a operar com câmbio) ou no mercado de derivativos cambiais, usualmente via swaps cambiais. Em princípio, o locus de atuação do BC seria indiferente, produzindo o mesmo resultado independentemente de onde o BC intervenha. Na prática, contudo, pode ser relevante a escolha do mercado no qual o BC intervirá. Um exemplo ilustra o problema.
Uma das formas com que investidores estrangeiros lucram com a diferença entre os juros altos no Brasil e os juros mais baixos nos EUA, em operação conhecida como carry-trade, é vendendo contratos futuros de dólar na BM&F Bovespa. A pressão vendedora de dólar futuro deprime o preço do dólar futuro, reduzindo o forward premium (diferença entre os preços do dólar futuro e do dólar à vista). Como a taxa de juros interna não se altera, sobe o cupom cambial (a taxa de juros em dólar no Brasil), gerando oportunidade de arbitragem para os bancos, que passam a trazer dólares tomados por empréstimo no exterior. Neste caso, em qual mercado deve o BCB intervir? No mercado futuro (onde começou a pressão vendedora de dólar futuro), no mercado à vista (onde surgiram os dólares spot (à vista) que apreciaram o BRL), ou em ambos os mercados? Se em ambos, em qual proporção? Esta é uma questão extremamente relevante de política econômica para a qual não se dispõe de respostas claras, teóricas ou empíricas.

Mais ainda, calibrar o tamanho das intervenções é também um grande problema. Em entrevista recente, o diretor do BC Mário Torós rebateu a ideia de que o BC deva aumentar suas intervenções de compra no mercado spot para além do fluxo cambial: “De forma geral, o resultado final desse tipo de atuação (quando a compra, pelo BC, supera o volume de dólares ingressados no dia), é uma circularidade. Você compra, puxa o cupom, entra capital especulativo, o fluxo de dólares aumenta, você vai e compra esse fluxo maior. Por definição, você estará sempre comprando o fluxo”. … O governo sabe se sua política está afetando ou não o ingresso de capitais especulativos na medida em que a atuação do BC no mercado está sendo de tal maneira que a taxa de juros do cupom cambial se mantém no nível da taxa de juros do mercado internacional (mais um pequeno prêmio) (Valor Econômico, 14/8/2009).

Subentende-se da declaração do diretor do BC que não há um objetivo de comprar um volume definido a priori, devendo o BC absorver o excesso do fluxo que ocorreria na ausência de sua intervenção. Tal objetivo é compatível com o já alto nível de nossas reservas cambiais (as quais, em nível menor, já se demonstraram suficientes para enfrentar a crise de 2008) e o alto custo fiscal das mesmas. Em suma, embora não seja claro que as intervenções esterilizadas do BC em mercados cambiais possam alterar a trajetória de longo prazo da taxa de câmbio, é quase certo que continuarão a ocorrer.

Márcio G. P. Garcia, é PhD por Stanford e professor do Departamento de Economia da PUC-Rio, escreve mensalmente às sextas-feiras (http:// www.econ.puc-rio.br/mgarcia

O ponto crítico da civilização

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Autor: Lester Brown
Mercado Ético.

Tem aumentado a preocupação com os pontos críticos da natureza. Cientistas já questionam, por exemplo, a capacidade de recuperação das espécies em risco de extinção. Biólogos marinhos, por sua vez, estão preocupados com o fato de que a pesca excessiva dará início ao colapso dessa indústria.

Sabemos que existiram pontos críticos em civilizações antigas, pontos em que a população foi dominada pelas forças naturais que as ameaçavam. Por exemplo, em algum ponto, o acúmulo de sal relacionado à irrigação do solo esgotou a capacidade agrária dos Sumérios. Com os Maias, os efeitos danosos do desmatamento associados à perda da fertilidade do solo tornaram-se irreversíveis.

Porém, os pontos críticos que levam ao declínio e ao colapso de uma sociedade nem sempre são facilmente previstos. De forma geral, os países desenvolvidos podem lidar com novas ameaças de forma mais efetiva do que os países em desenvolvimento. Por exemplo, enquanto os governos de países industriais têm sido capazes de manter os índices de infecção do HIV entre adultos abaixo de 1%, muitos governos de países em desenvolvimento têm falhado nesse controle e agora estão lutando com altos índices de infecção. Isto é mais evidente em alguns países sul-africanos, onde 20% ou mais adultos estão infectados.

Uma situação semelhante existe com o crescimento populacional. Enquanto a taxa se mantém estável em quase todos os países industrializados, exceto os Estados Unidos, observa-se o contrário em quase todos os países da África, Oriente Médio e do subcontinente indiano – onde a taxa populacional é crescente. Esses 80 milhões de pessoas a mais no mundo por ano nascem, exatamente, em países onde os sistemas naturais já estão se deteriorando, em face da excessiva pressão populacional. Nestes países, o risco de falência do Estado também está crescendo.

No entanto, alguns assuntos parecem superar até mesmo as habilidades de governança das nações mais avançadas. Quando alguns poucos países detectaram a redução nos níveis de água dos lençóis subterrâneos, era lógico esperar que seus governos rapidamente elevassem a eficiência racional do recurso e estabilizassem o crescimento da população, para estabilizar os aqüíferos. Infelizmente, nenhum país – desenvolvido ou em desenvolvimento – o fez. Dois Estados em falência, onde o resultado da extração excessiva da água soma-se à falta de uma política de segurança hídrica, são o Paquistão e o Iêmen.

Embora a necessidade de cortar as emissões de carbono seja evidente já há algum tempo, nenhum país conseguiu se tornar uma nação “carbono-neutra”. Até mesmo as sociedades tecnologicamente mais avançadas enfrentam muita dificuldade política para isso. Poderiam, assim, os crescentes níveis de dióxido de carbono na atmosfera, provarem-se tão incontroláveis para a nossa civilização quanto os níveis de sal no solo foram para os Sumérios no ano 4.000 A.C.?

Outro ponto de pressão sobre os governos é a redução da oferta de combustível fóssil. Embora a extração mundial de petróleo tenha excedido, em 20 anos, a descobertas de novas reservas, somente a Suécia e a Islândia possuem algo que remotamente assemelhe-se a um plano para lidar efetivamente com uma retração da oferta.

Este não é um inventário exaustivo de problemas não resolvidos, mas apresenta uma noção da quantidade deles. Analiticamente, o desafio é avaliar os efeitos de pressionar cada vez mais o sistema natural global. O resultado desse estresse ficou evidente na atual questão da segurança alimentar, o ponto fraco de muitas civilizações antigas que entraram em colapso.

Além da dificuldade de adaptação ao crescimento constante da demanda por alimentos, várias tendências convergentes estão tornando as coisas ainda mais difíceis para agricultores ao redor do mundo. Os pontos críticos delas são a queda dos níveis dos lençóis freáticos, o uso indevido de terras cultiváveis e ocorrências climáticas extremas, incluindo ondas de calor, secas e enchentes. Como os problemas não resolvidos se acumularam, os governos mais fracos estão começando a sucumbir.

Para agravar a situação, os Estados Unidos, maiores produtores mundiais de trigo, aumentaram dramaticamente sua participação na safra de grãos utilizando o etanol como combustível – saltando de 15%, em 2005, para mais de 25% em 2008. Esse esforço mal orientado para reduzir a dependência do petróleo ajudou a conduzir os preços mundiais de grãos a elevações constantes até meados de 2008, criando uma insegurança alimentar mundial sem precedentes.

Os riscos desses problemas acumulados (e suas conseqüências) dominarão cada vez mais os governos, levando à falência generalizada do Estado e, finalmente, ao fim da civilização. Os países que estão no topo da lista de Estados em falência não são particularmente uma surpresa. Incluem, por exemplo, Iraque, Sudão, Somália, Chade, Afeganistão, República Democrática do Congo e o Haiti. E a lista cresce cada vez mais a cada ano, levantando questões perturbadoras: quantos Estados em falência serão submetidos a isso antes do fim completo da civilização? Ninguém sabe a resposta, mas é uma pergunta que precisamos fazer.

Estamos numa corrida entre os pontos críticos da natureza e nossos sistemas políticos. Podemos desativar poderosas usinas de carvão antes que o derretimento da calota de gelo da Groelândia se torne irreversível? Podemos reunir vontade política pelo fim do desmatamento na Amazônia antes que as crescentes queimadas cheguem a um ponto sem retorno? Podemos ajudar os países a estabilizarem a população antes que se tornem Estados em falência?

Temos tecnologias para restaurar os sistemas naturais de suporte da Terra, para erradicar a pobreza, para estabilizar a população, para reestruturar a economia energética mundial e o clima. O desafio agora é construir vontade política para fazê-lo. Salvar a civilização não é um esporte para espectadores. Cada um de nós possui um papel de liderança a representar.

Adaptado do Capítulo 1, “Entering a New World”, Lester R. Brown, Plano B 3.0: Mobilizing to Save Civilization (Nova Iorque: W.W. Norton & Company, 2008), disponível para download gratuito e para compra no site do Earth Police Institute.

Lester R. Brown é considerado um dos mais influentes pensadores mundiais. Formado em ciências agrícolas, dedica-se à pesquisa e ao debate dos grandes temas ambientais e econômicos desde os anos 70, quando fundou o World Watch Institute. É também fundador do Earth Policy Institute.

Cresce o risco de nova contração

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Valor Econômico
Autor: Nouriel Roubini

A Economia mundial está começando a se recuperar da pior recessão e crise financeira desde a Grande Depressão. No quarto trimestre de 2008 e nos primeiros três meses de 2009, o ritmo de contração na maioria das economias avançadas era semelhante à queda livre do PIB que os países registraram nos estágios iniciais da Depressão. No entanto, no final do ano passado, as autoridades econômicas, que até aquele momento estavam agindo tardiamente, enfim começaram a usar a maioria das armas disponíveis em seus arsenais.

Os esforços deram frutos, e a queda livre da atividade econômica se atenuou. Existem agora três questões em aberto quanto às perspectivas. Quando a recessão mundial vai acabar? Que forma tomará a recuperação econômica? Existem riscos de recaída?

Quanto à primeira questão, parece que a economia mundial chegará ao fim da queda no segundo semestre de 2009. Em muitas economias avançadas (Espanha, Estados Unidos, Itália, Reino Unido e em alguns países da zona do euro) e em alguns emergentes (principalmente na Europa), a recessão não se encerrará formalmente antes do final do ano, já que os brotos verdes da recuperação ainda estão cercados de ervas daninhas. Em algumas outras economias avançadas (Alemanha, Austrália, França e Japão) e na maioria dos mercados emergentes (China, Índia, Brasil e outras partes da Ásia e América Latina), a recuperação já começou.

Quanto à segunda questão, o debate se trava entre aqueles -a maioria do consenso econômico- que antecipam uma recuperação em forma de V, com rápida retomada de crescimento, e aqueles -como eu- segundo os quais a recuperação será em U e se manterá anêmica e abaixo da tendência por ao menos dois anos, após um par de trimestres de rápido crescimento alimentado por reposição de estoques e recuperação da produção ante os níveis quase tão desfavoráveis quanto os da Grande Depressão.
Existem diversos argumentos que apontam para uma recuperação fraca e em forma de U. O emprego continua a cair acentuadamente nos Estados Unidos e em vários mercados -em economias avançadas, o desemprego estará acima dos 10% em 2010. Isso é má notícia não só em termos de demanda e prejuízos bancários mas também em termos de capacitação profissional, um fator chave para o crescimento da produtividade em longo prazo.

Segundo, temos uma crise de solvência, e não apenas de liquidez, mas ainda não começou uma redução real no endividamento, porque os prejuízos das instituições financeiras foram socializados e transferidos aos balanços dos governos. Isso limita a capacidade de empréstimo das instituições financeiras, a capacidade de gasto dos domicílios e a capacidade de investimento das empresas.

Terceiro, nos países que operam com deficit em conta corrente, os consumidores precisam começar a cortar gastos e poupar mais, em um momento em que as pessoas endividadas enfrentam um choque de patrimônio causado pela queda nos preços das casas e dos mercados de ações e pela retração na renda e no emprego.

Quarto, o sistema financeiro -a despeito do apoio das autoridades- continua severamente danificado. A maior parte do sistema bancário paralelo desapareceu, e os bancos tradicionais estão sobrecarregados com trilhões de dólares em prejuízos inesperados com empréstimos e títulos, enquanto ainda se mantêm perigosamente subcapitalizados.

Quinto, os lucros fracos (causados por dívidas elevadas e riscos de inadimplência, crescimento baixo e persistentes pressões deflacionárias sobre as margens de ganhos empresariais) restringirão a disposição das companhias de produzir, contratar trabalhadores e investir.

Sexto, o endividamento do setor público por meio do acúmulo de pesados deficits fiscais ameaça dificultar a recuperação nos gastos do setor privado. Os efeitos das políticas de estímulo, além disso, se dissiparão no começo do ano que vem, o que vai requerer maior demanda privada para sustentar o crescimento.

Sétimo, a redução nos desequilíbrios mundiais implica em que os deficits em conta corrente de economias perdulárias, como a dos EUA, vão reduzir os superávits das economias que poupam em excesso (Japão, Alemanha, China e outros emergentes). Mas, caso a demanda interna não se expanda rapidamente o bastante nos países superavitários, resultará em recuperação mais lenta do mundo.

Recessão em forma de W
Também existem duas razões para que exista risco ascendente de uma recessão de duplo mergulho, em forma de W. Para começar, existem riscos associados às estratégias de saída para o grande relaxamento da política monetária e de estímulo fiscal: as autoridades serão criticadas por agir e também por não agir. Caso decidam levar a sério os grandes deficits fiscais e decretem aumento de impostos, corte de gastos e redução da liquidez excessiva, poderão solapar a recuperação e levar a economia a uma estagdeflação (recessão e deflação).

Mas, caso mantenham grandes deficits orçamentários, os ativistas dos mercados de títulos públicos punirão as autoridades econômicas. As pressões inflacionárias subirão, os rendimentos dos títulos públicos de longo prazo terão de subir e as taxas de empréstimo dispararão, gerando estagflação.

Outro motivo para temer uma recessão de duplo mergulho é que os preços de petróleo, energia e alimentos agora estão subindo mais rápido do que os fundamentos econômicos justificam e podem ser propelidos a alta ainda maior pela liquidez excessiva em busca de ativos e pela demanda especulativa.

No ano passado, o petróleo a US$ 145 por barril marcou um ponto de inflexão para a economia mundial, ao criar termos negativos de comércio internacional e um choque na renda disponível para as economias importadoras da commodity. A economia mundial não suportaria outro choque contrativo caso especulação semelhante conduza o preço do petróleo a um rápido retorno para a marca dos US$ 100.

Em resumo, a recuperação deve ser anêmica e abaixo da tendência nas economias avançadas e existe forte risco de uma recessão de duplo mergulho.

O autor é professor de Economia na Escola Stein de Administração de Empresas na Universidade de Nova York.

A crise financeira um ano depois

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Valor Econômico
Autor: Jeffrey D. Sachs

Um ano depois do início da crise, ela parece estar sanada. Mas o desemprego continua em alta

Já transcorreu quase um ano desde que a economia mundial balançou à beira da calamidade. No espaço de três dias, de 15 a 18 de setembro de 2008, o Lehman Brothers apresentou seu pedido de falência, o controle da mega-seguradora AIG foi assumido pelo governo dos EUA e o Merrill Lynch, ícone falido de Wall Street, foi absorvido pelo Bank of America numa transação intermediada e financiada pelo governo dos EUA. Sobreveio o pânico e o crédito parou de circular. Companhias não conseguiam capital de giro, quanto mais recursos para investimentos de longo prazo. Uma depressão parecia possível.

Hoje, a tempestade foi domada. Meses de ações emergenciais promovidas pelos principais bancos centrais do mundo impediram o colapso dos mercados financeiros. Quando os bancos pararam de fornecer liquidez de curto prazo a outros bancos e companhias industriais, os bancos centrais preencheram a lacuna. Consequentemente, as principais economias evitaram um colapso do crédito e da produção. A sensação de pânico diminuiu. Os bancos estão mais uma vez emprestando uns aos outros.

Apesar de o pior ter sido evitado, muitas aflições persistem. A crise culminou no colapso dos preços dos ativos no fim de 2008. Famílias ricas e de classe média em todo o mundo se sentiram mais pobres e, portanto, reduziram suas despesas radicalmente. Os preços de alimentos e de petróleo nas alturas se somaram às aflições e, por conseguinte, à depressão econômica. Empresas não conseguiam vender a sua produção, o que acarretou cortes de produção e demissões. O desemprego crescente agravou a perda de riqueza familiar, arremessando famílias em profundo perigo econômico e levando a reduções adicionais nos gastos dos consumidores.

O grande problema agora é que o desemprego continua aumentando nos EUA e na Europa, já que o crescimento é lento demais para gerar suficientes postos de trabalho novos. Deslocamentos continuam sendo sentidos por todo o mundo.

Seguiu-se um enorme debate em torno do chamado “gasto de estímulo” nos EUA, Europa e China. Esse gasto tem como objetivo usar os maiores gastos ou incentivos fiscais do governo para compensar a queda no consumo das famílias e no investimento empresarial. Nos EUA, por exemplo, praticamente um terço do pacote de estímulo de US$ 800 bilhões consiste em redução de impostos (para estimular gastos de consumidores); um terço é composto por despesas públicas em estradas, escolas, energia elétrica e outros tipos de infraestrutura; e um terço assume a forma de transferências federais a governos locais e estaduais para serviços de saúde, seguro-desemprego, salários para escolas.

Os pacotes de estímulo são controversos, pois aumentam o déficit orçamentário e, consequentemente, implicam na necessidade de reduzir gastos ou elevar impostos no futuro próximo. A pergunta é se eles estimulam a produção e a geração de empregos com êxito no curto prazo, e, caso afirmativo, se fazem o suficiente para compensar os inevitáveis problemas orçamentários que virão.

A real eficácia desses pacotes não está clara. Suponhamos que o governo conceda uma redução de imposto para aumentar o salário líquido dos consumidores. Se os consumidores decidirem poupar essa redução em vez de estimular o consumo. Nesse caso, o estímulo terá pouco efeito positivo sobre o gasto da família, mas agravará o déficit orçamentário.

Uma avaliação inicial dos pacotes de estímulo sugere que o programa da China funcionou bem. A queda acentuada nas exportações da China para os EUA tem sido compensada por uma queda expressiva nos gastos do governo chinês com infraestrutura, digamos, na construção de metrôs nas maiores cidades da China.

Nos EUA, o veredicto é menos claro. O corte de impostos foi mais provavelmente economizado que gasto. O componente de infraestrutura ainda não foi gasto devido a longas demoras para transformar o pacote de estímulo dos EUA em projetos de construção reais. A terceira parte – a transferência para governos locais e estaduais- quase certamente tem sido bem sucedida, na manutenção das despesas com escolas, saúde e desempregados.

Em suma, os efeitos do estímulo sobre os gastos nos EUA provavelmente têm sido positivos, mas reduzidos, e sem um efeito decisivo sobre a economia. Além disso, temores em torno do enorme déficit orçamentário dos EUA, agora na casa dos US$ 1,8 trilhão (12% do PIB) por ano, tendem a aumentar, não só gerando enormes incertezas no meio político e nos mercados financeiros, mas também diminuindo a confiança dos consumidores.

Quando a crise se aprofundou há um ano, Barack Obama inseriu na campanha presidencial o tema de uma “recuperação verde”, baseada num surto de investimentos em energias renováveis, novos veículos elétricos, edifícios “verdes” ambientalmente eficientes e agricultura ecologicamente segura. No calor da batalha contra o pânico financeiro, a atenção das políticas públicas se afastou daquela recuperação verde. Agora, os EUA precisam retornar a essa ideia importante.

As políticas públicas do governo nos EUA e em outros países ricos deveriam estimular aqueles investimentos por meio de incentivos especiais. Esses incentivos incluem um sistema de teto e mercado para emissões de gás estufa, subsídios para pesquisa e desenvolvimento em tecnologias sustentáveis, tarifas do tipo “feed-in” (que visam estimular tecnologias de geração de energia limpa alternativa) e incentivos reguladores para energia renovável e outros atrativos para a absorção de tecnologias. “verdes”.

O mundo rico também deveria fornecer aos países mais pobres subsídios e empréstimos a juros baixos para comprar tecnologias energéticas sustentáveis, como energia solar e geotérmica. Fazê-lo se somaria à recuperação global, melhoraria a sustentabilidade ambiental de longo prazo e aceleraria o desenvolvimento econômico. A crise ainda pode ser uma oportunidade para sair de uma rota de bolhas financeiras e consumo excessivo rumo a uma rota de desenvolvimento sustentável. Na verdade, aproveitar essa oportunidade é a única receita para crescimento genuíno que nos resta.

Jeffrey D. Sachs é professor de Economia na Universidade Columbia e consultor especial do secretário-geral das Nações Unidas para as Metas de Desenvolvimento do Milênio.

A importância da educação

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Valor Econômico
Autor: Fabio Giambiagi

Acaba de ser publicado o livro “Educação básica no Brasil” (Campus/Elsevier), com 12 capítulos, incluindo um do Prêmio Nobel de Economia do ano 2000, o professor James Heckman, que nos honrou com a co-autoria de um ótimo artigo escrito junto com os professores Araújo, Cunha e Moura. Como fui apenas um dos quatro organizadores do livro e os méritos cabem aos autores, que escreveram excelentes capítulos, sinto-me à vontade para elogiar o conteúdo. Penso que os interessados podem ter na leitura das páginas um diagnóstico e um roteiro acerca dos desafios a serem enfrentados pela educação brasileira. A maior contribuição do livro é a de mostrar o que vem sendo feito de inovador e começando a revelar os primeiros resultados nessa área, no Brasil e no mundo. Capítulos como os de Fernandes e Gremaud, destacando o papel da avaliação e do aprimoramento de indicadores; de Menezes-Filho e Ribeiro sobre os determinantes da melhoria do rendimento escolar; de M.Neri sobre como a educação é percebida pela população; e de C.Ferraz sobre as experiências de SP e PE com a adoção de incentivos por desempenho na remuneração de professores, sem prejuízo dos demais capítulos que não há espaço para resumir, apontam caminhos promissores para a ocorrência futura de novos avanços na matéria. Como em tantas outras áreas no Brasil, houve melhoras, mas há uma árdua tarefa pela frente.

A importância da educação pode ser medida pelos dados de um dos capítulos, escrito por C.Moura Castro. Nele, mostra-se que no Brasil, indivíduos com o ensino fundamental ganham em torno de 2 vezes o que ganha um indivíduo sem escolaridade; os que têm ensino médio completo recebem um terço (1/3) a mais que aqueles que possuem apenas o fundamental; e os graduados com ensino superior têm rendimentos equivalentes a mais de 3,5 vezes o de quem tem apenas o ensino médio. Estudar, portanto, é importante para o país e para os indivíduos, pois, de um modo geral, à maior educação estão associados níveis maiores de rendimento e de bem-estar.

O Brasil se atrasou, historicamente, em relação a outros países que ou já tinham feito seu “dever de casa” na matéria há muito tempo – como os EUA – ou se dedicaram intensamente à educação nas últimas décadas – com destaque para alguns asiáticos. F.Barbosa Filho e S. Pessôa mostram que no começo da década atual, o número médio de escolaridade da população economicamente ativa dos países de língua inglesa, com destaque para os EUA, era o dobro em relação ao Brasil.

A tabela, retirada do primeiro capítulo do livro, de autoria do professor F Veloso, complementa essa informação, decompondo o dado do percentual da população com 25 anos ou mais de idade com ensino médio completo. Apesar dos avanços dos últimos anos, o Brasil fica mal na foto. No conjunto da população, o indicador já é constrangedor: enquanto que apenas 30% da população adulta tem ensino médio completo no Brasil, o percentual atinge níveis de 80% a 90% na Alemanha ou os EUA. Porém, é no avanço ao longo do tempo que se nota mais nosso atraso relativo, quando se comparam os percentuais daqueles que concluíram o ensino médio entre grupos populacionais específicos. Uma medida é comparar esse indicador para dois grupos etários: o de 25 a 34 anos e o de 55 a 64 anos. Aquele indica qual o grau de educação dos jovens, enquanto que o último mostra a “fotografia” do grupo que foi jovem três décadas antes. É uma forma de medir o progresso de um país entre gerações. Veja-se o que aconteceu com a Espanha: no grupo de 55 até 64 anos, apenas 27% têm ensino médio completo, mas entre os mais jovens, o percentual atinge 64%. Não é à toa que a Espanha de hoje é apenas uma pálida lembrança do país dos anos 70. No Chile – que experimentou grandes progressos nos últimos 30 anos – tais percentuais são de 32% e 64%, respectivamente. E o que mais impressiona: não apenas os mais idosos da Coréia do Sul têm níveis de educação similares aos dos jovens do Brasil de hoje, mas – pasmem – o percentual de jovens que concluiu o ensino médio na Coréia atingiu incríveis 97%.

Fabiana de Felício apresenta outros dados para compor o quadro: a taxa de conclusão do ensino fundamental aos 16 anos de idade no Brasil era de 61% em 2007, o que é pouco. Por outro lado, tinha sido de apenas 34% em 1997. Ao mesmo tempo, a escolaridade média das pessoas com 15 anos ou mais era de 7 anos em 2007, o que também é pouco, informação essa que, porém, vem acompanhada de duas boas notícias: a primeira é que houve uma melhora importante, pois o número de anos de estudo desse grupo era de 5 em 1987; e a segunda é que a faixa de 15 a 30 anos já tinha alcançado 9 anos de estudo em 2007.

O quadro em geral retratado nos diversos capítulos – que não temos como expor em detalhes, mas que poderá ser melhor percebido mediante a leitura do livro – é de avanços lentos, mas graduais, acentuados nos últimos 15 anos. Se o esforço dedicado ao tema – por méritos compartilhados pelas gestões de Paulo Renato de Souza sob FHC e de Fernando Haddad no Governo Lula – for mantido, o Brasil daqui a algumas décadas poderá ser melhor do que o país em que nos tocou viver. Resta esperar que haja persistência nesses avanços e, de preferência, que eles se acelerem na próxima década.

Fabio Giambiagi é economista.
E-mail: fgiambia@terra.com.br.

Vantagem do atraso

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Autor: César Benjamin – Folha de São Paulo

O SISTEMA produtivo dos países ricos ocupa a ponta tecnológica e é relativamente homogêneo. Neles, o aumento da produtividade depende, principalmente, da invenção de técnicas novas, um processo caro, lento e difícil. Nos grandes países intermediários, porém, como a China e o Brasil, convivem setores que apresentam níveis de produtividade muito desiguais. Essa desvantagem nos confere uma vantagem dinâmica: deslocando trabalhadores dos setores mais atrasados para os mais modernos ou modernizando setores atrasados, eleva-se a produtividade média da economia pela simples difusão de técnicas já conhecidas, um processo, em geral, muito mais fácil.
Um dos segredos do crescimento chinês é, justamente, a capacidade de usar essa vantagem do atraso. São imensos os ganhos de eficiência que nossa economia pode ter dessa maneira. Um exemplo extremo é o da matriz de transportes. No Brasil, a modalidade rodoviária -a mais cara- realiza a quase totalidade dos transportes de passageiros e a grande maioria dos de carga, com cerca de 40 mil empresas e mais de 300 mil transportadores autônomos. Os custos de operação dessa rede se aproximam de 20% do PIB, mais do dobro do percentual que se verifica nos Estados Unidos.
Um estudo da CNT e da Coppe (UFRJ), realizado em 2002, estimou que as empresas brasileiras mantinham US$ 118 bilhões parados, em excesso de estoque, por causa da inconfiabilidade do sistema de transportes. Não podiam operar “just in time”. Isso mostra a importância da infraestrutura: ela transmite eficiência (ou ineficiência) ao conjunto da economia.
O Brasil deveria aproximar a sua matriz de transportes daquela que prevalece nos EUA: 20% em rodovias, 40% em ferrovias, 40% em hidrovias e cabotagem. Não só estamos muito longe disso (a cabotagem, por exemplo, tornou-se residual, apesar de termos sete regiões metropolitanas no litoral) como tendemos a nos distanciar desse objetivo: os investimentos em transportes, além de insignificantes (em média, 0,2% do PIB na última década), concentram-se justamente em rodovias.
Estamos em um círculo vicioso: o transporte rodoviário apresenta baixas barreiras à entrada (basicamente, a habilitação e o caminhão), o que gera um permanente aumento da oferta, que tende a reduzir o preço dos fretes. Resulta daí uma elevada barreira à saída, pois as dívidas dos caminhoneiros se estendem no tempo. As barreiras à entrada em ferrovias e hidrovias, ao contrário, são muito elevadas.
Deixando o setor entregue a decisões atomizadas, o modo rodoviário tende a se expandir. A soma de comportamentos racionais em termos microeconômicos aprofunda a irracionalidade macroeconômica. Para sair dessa armadilha, é preciso planejar, uma função típica de Estado, demonizada aqui há mais de 20 anos. O último Plano Viário Nacional foi elaborado ainda durante o regime militar.
Sucessivos governos dizem que não têm 2% do PIB para investir em transportes, quantia mínima necessária durante, ao menos, dez anos. São os mesmos governos que pagam mais de 8% do PIB em juros, desnecessariamente, há muito mais tempo. A alteração da matriz de transportes não exige que inventemos nada.
Mas, se realizada, teria em nossa economia o mesmo efeito de uma revolução tecnológica. Estaríamos aproveitando uma vantagem do atraso. Para isso, porém, o nosso sistema político deveria ser capaz de identificar grandes objetivos nacionais e sustentar decisões de longa maturação. Nunca estivemos tão distanciados disso. Em anos eleitorais, faremos novas operações tapa-buracos.

CESAR BENJAMIN, 53, editor da Editora Contraponto e doutor honoris causa da Universidade Bicentenária de Aragua (Venezuela), é autor de “Bom Combate” (Contraponto, 2006).