O extremismo enquanto fetiche, por Leonardo Goldberg

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O mais eficaz não é o lobo solitário radical, mas o mestre no jogo do cinismo

Leonardo Godberg, Psicanalista, é doutor em psicologia (USP).

Folha de São Paulo, 13/08/2024

Definir o que significa o extremismo político é importante para pensarmos nas discussões contemporâneas sobre os significados que orientam a vida pública, da macropolítica às batalhas culturais. Poderíamos pensar que os extremistas são aqueles que não apenas divergem do sistema vigente, mas se recusam a endossá-lo.

Em vez da figura do ermitão, do lobo solitário radical, o extremista mais eficaz é o mestre no jogo do cinismo. Por exemplo: ele pode defender radicalmente a democracia social se lhe convém, mas, ao mesmo tempo —e dependendo do grupo ao qual fala—, dizer que a democracia social, liberal ou dos pesos e contrapesos institucionais é apenas uma forma autocrática de manutenção do poder; e, por isso, deveria ser combatida. O cínico político é aquele que domina a artimanha de distanciar aquilo que diz do seu modo de viver, não apenas sem vergonha alguma, mas dotado de certa insolência com verniz.

De forma praticamente intuitiva, alinhamos tal modelo de cinismo às necessidades do jogo político. Porém, o cinismo político ancorado por uma recusa das instituições, do pluralismo, marcado pelo tom acusatório e policialesco e pela relativização da violência de acordo com o aliado político, talvez seja a forma contemporânea mais precisa da pulverização dos extremismos.

Um caso paradigmático para pensarmos nessa figura do cínico político enquanto extremista é o de Adolf Eichmann (1902-62), um dos artífices do Holocausto. Eichmann foi imortalizado pela filósofa Hannah Arendt como aquele que incorporaria a banalidade do mal, através de uma espécie de sujeito cumpridor de ordens. No fundo, essa visão é confortável, pois coloca o mal ao lado de uma razão técnica mais ou menos ingênua.

Por outro lado, a filósofa e historiadora Bettina Stangneth esmiuçou a vida e gravações de Eichmann e mostrou que um dos principais organizadores do nazismo era um político astuto, ardiloso, eficiente, e que depois do nazismo articulou e participou ativamente de campanhas políticas de grupos extremistas na Argentina. Era, portanto, um animal político por excelência, sem banalidade alguma.

Um dos desafios mais importantes das democracias contemporâneas é identificar essa faceta do extremismo que está diluída em todos os espectros e amplificada pelas redes sociais, cuja estrutura reitera toda violência simbólica e física —vide os vídeos de guerra e de massacres que primeiro viralizam e depois são negados por seus autores (quando não chamados de método, por inconsequentes).

Se há uma psicopolítica do extremismo prenhe de certezas, a aposta das sociedades plurais deveria ser naquilo que o filósofo político Norberto Bobbio chamou de uma política da serenidade, essa virtude que, longe de se reduzir à “política do possível”, é justamente ancorada em uma ética que inclua visões opostas no campo do conflito, do debate público, para que a palavra “tolerância” não seja apenas título de livro de cabeceira ou mantra matutino, mas a base inegociável daquilo que chamamos de democracia.

Normalização da extrema direita encobre o mal em nossas ações, por Bernardo Carvalho

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Ryusuke Hamaguchi maneja com maestria, em ‘O Mal Não Existe’, a arte de contradizer valor nominal dos discursos

Bernardo Carvalho, Romancista, autor de ‘Nove Noites’ e ‘Os Substitutos’
Folha de São Paulo, 11/08/2024

Por ocasião da eleição presidencial de 2018, o escritor peruano Mario Vargas Lhosa, político de direita e prêmio Nobel de Literatura, sentenciou, em defesa de Jair Bolsonaro, que não poderia ser fascista um governo eleito por uma maioria de 57 milhões de votos.

A lógica peculiar e pueril foi reciclada recentemente por comentaristas que insistem em comprar a nova face da extrema direita mundo afora pelo valor nominal de seu programa de normalização, como se assumir e enfrentar as contradições da democracia (que, sim, o fascismo pode ser gestado dentro dela, contra ela, servindo-se de suas instituições) não fosse a única forma de defendê-la e preservá-la.

“O Mal Não Existe”, de Ryusuke Hamaguchi, não é uma resposta irônica à leviandade dessa lógica. Não diretamente. O filme também não é uma ilustração da “banalidade do mal” formulada por Hannah Arendt, embora possa ser visto como um desdobramento dela.

A história é simples, mas difícil de contar sem spoilers. Uma pequena comunidade nas montanhas, que vive em equilíbrio delicado com a natureza e da qual fazem parte o protagonista Takumi e sua filha, recebe a visita de uma dupla de produtores do showbiz, associados a um projeto que, com financiamento estatal, pretende instalar um “glamping” (camping com glamour) na região. Uma reunião é convocada com os habitantes, na qual ficam claros os efeitos deletérios e a insustentabilidade ambiental do empreendimento.

De volta a Tóquio, a dupla de produtores confronta o chefe com os problemas e os obstáculos levantados pelos membros da comunidade durante a reunião e é reenviada às montanhas para tentar uma conciliação. Não dá para adiar o projeto sem perder o prazo do financiamento para a revitalização da economia pós-pandêmica na região. Vão procurar convencer Takumi, o faz-tudo local, a participar do empreendimento. É o jeito de quebrar a resistência da comunidade.

No caminho, porém, o produtor dá a entender à colega que já não está tão convicto de seu trabalho e de sua missão. Gostaria de mudar de vida. Ao chegar à comunidade, passa a fazer esforços canhestros para se integrar às tarefas locais. Decide ficar.

Desde o início, diversos elementos vão dando conta da tensão e da precariedade do equilíbrio entre homens e natureza. Ouvem-se tiros de caçadores ao longe. Há carcaças de animais pelas trilhas nevadas. Os cervos alvejados, mas que conseguem escapar feridos, tornam-se violentos, invertendo a balança da ameaça. Tudo parece estar por um triz, de modo que a misantropia do protagonista e a antipatia da comunidade pelo empreendimento se explicam por um sentido urgente de sobrevivência. Qualquer novo elemento pode ser fatal.

A conclusão, entretanto, terá menos a ver com um elogio do conservadorismo e da imobilidade do que com a necessidade de resistência ao mecanismo de autoengano e normalização (essa combinação de narcisismo e ignorância com má-fé e oportunismo) que nunca nos permite reconhecer o mal em nossas próprias ações.

Há uma cadeia complexa de fenômenos, atos e decisões que não podem ser isolados. Querer fazer o bem sem considerar essa cadeia coletiva, sem se ver dentro dela, fazendo parte dela, produz o efeito inverso. É o que mostra a perspectiva trágica, capaz de desconstruir as ideias feitas por trás das premissas que levam ao oposto do que prometiam.

A divisa “ordem e progresso”, por exemplo, mesmo sendo falsa e equivocada, é palatável porque traduz uma ideia que não contradiz nossa autoimagem. Já “ordem e destruição”, mais verdadeira em vista das informações de que hoje dispomos sobre a ação do progresso humano, é insuportável, inconcebível. Ninguém quer se identificar com “ordem e destruição”. Melhor acreditar na normalização da extrema direita, já que teremos de conviver com ela.

É aí que entra o potencial de resistência da arte, ainda mais num momento de crise da consciência e da espécie: na contradição do valor nominal dos discursos, na capacidade de romper a membrana de normalização da autoimagem e fazer ver a complexidade contraditória dos fenômenos e das ações humanas.

Ryusuke Hamaguchi maneja com maestria essa arte crítica, da contracorrente e do dissenso, levando o espectador pela mão até onde ele não gostaria de ir, até a imagem enigmática com a qual ele não gostaria de se identificar. É o contrário da lógica de identificações e soluções fáceis que a cartilha “feel-good” do mercado cultural tem a nos oferecer como espelho, suposto remédio empoderador contra a crise.

Por que a democracia brasileira sobreviveu? por Celso Rocha de Barros

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Vale a pena discutir como o país se mostrou e e ainda se mostra pronto a acomodar golpistas

Celso Rocha de Barros, Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e autor de “PT, uma História”.

Folha de São Paulo, 11/08/2024

Em “Por que a democracia brasileira não morreu?”, os cientistas políticos Marcus André Melo e Carlos Pereira discutem por que a democracia brasileira sobreviveu à crise política que começou com os protestos de 2013 e durou até o fracasso da tentativa de golpe de Jair Bolsonaro.
O livro tem duas teses. Uma é muito mais bem demonstrada que a outra.

Os autores estão certos quando dizem que a culpa das últimas crises políticas não é do presidencialismo de coalizão. Aqui Melo e Pereira jogam em casa: são autores de um livro clássico sobre como o sistema político brasileiro funciona melhor do que se pensa (“Making Brazil Work”, de 2013).

Embora acertada, a análise merece um matiz: além dos choques externos, sofremos com legados históricos que enviesaram nosso sistema para a direita. Fizemos nossa transição à democracia com a classe política herdada da ditadura, fortemente conservadora (pois a esquerda foi perseguida) e bastante corrupta (pois na ditadura conviveram grandes projetos de desenvolvimento e ausência de controle institucional).

Por outro lado, em um país desigual como o Brasil, era de se esperar que a esquerda fosse bem-sucedida em eleições majoritárias (como a presidencial). Isso teria criado crises quando a esquerda chegasse ao poder em qualquer cenário.

Por outro lado, discordo dos autores quando dizem que, durante o bolsonarismo, a democracia nunca correu risco sério. Essa tese não é demonstrada pelo fracasso do golpe: se um investimento deu certo, isso não quer dizer que o capitalista nunca correu risco nenhum. Rebeca Andrade é uma heroína nacional exatamente porque derrotar Simone Biles era altamente improvável antes da prova.

Os autores apresentam bons argumentos sobre a complexidade institucional brasileira contemporânea, que tornaria uma centralização autoritária mais difícil. Entretanto, regimes autoritários podem lidar com alguma complexidade: a própria ditadura de 64 foi institucionalmente mais complexa que, por exemplo, o Estado Novo, sem deixar de ser autoritária.

Talvez uma ditadura Bolsonaro fosse só um passo além da complexidade do regime de 64; ou talvez fosse muito mais violenta, destruindo parte da complexidade institucional em que Melo e Pereira talvez apostem fichas demais.

De longe, a maior falha do livro é a análise muito apressada dos militares. As investigações da Polícia Federal sugerem que a luta interna nas Forças Armadas, sobre a qual ainda não sabemos o suficiente, foi muito importante para o fracasso dos extremistas. O livro não dedica muita atenção aos resultados dessas investigações.

Valeria a pena também discutir como a política brasileira mostrou-se —e ainda se mostra— pronta a acomodar golpistas. A bancada bolsonarista, que em 30 de novembro de 2022 pediu golpe dentro do Congresso Nacional, continua a ser tratada como parte legítima do jogo democrático. Há candidatos à Presidência do Senado negociando impeachment de ministro do STF para conseguir votos dos bolsonaristas.

Melo e Pereira conhecem o funcionamento do sistema político brasileiro de trás para frente, mas por vezes subestimam o peso de sua história, bem como as lutas que ocorrem fora dele (no Exército, por exemplo). De qualquer forma, é um livro que faz as perguntas grandes, e já vem suscitando boas conversas.

Como a extrema direita manipula rancores para obter ganhos políticos, por Bruno Boghossian

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Derrotada na eleição, ultradireita do Reino Unido tenta tirar proveito de um espetáculo de racismo

BRUNO BOGHOSSIAN – FOLHA DE SÃO PAULO – 11/08/2024

A extrema direita foi às ruas no Reino Unido para propagar uma onda de ódio contra imigrantes. O bando espalhou medo e fúria, mas não fez muito sucesso. Depois de invadir abrigos, incendiar carros e agredir policiais, a turma despertou grandes atos antirracistas que, na prática, frearam os ataques. A maioria da população condenou a violência.
Mesmo assim, os políticos que usam a xenofobia como língua corrente não acharam que era o caso de voltar para a toca. O desprezível Nigel Farage tentou convencer o público de que repudia a violência, mas aproveitou para dizer que os protestos exigiam uma iniciativa urgente para conter a imigração.

A ação política da extrema direita é uma aula do jogo baixo que é possível fazer para contaminar o debate público. Partido anti-imigração por natureza, o Reform UK de Larage foi derrotado na última eleição do Reino Unido e ficou com 1% das cadeiras do Parlamento. A legenda, no entanto, tenta explorar os ataques para fazer valer suas preferências.

A manipulação de rancores não é uma tarefa difícil quando ocorre num ambiente inflamável. No Reino Unido, grupos extremistas estimularam a perseguição a imigrantes depois que informações falsas nas redes deram conta de que um imigrante em situação ilegal teria sido o responsável por assassinar três crianças na cidade de Southport.

A ultradireita conhece bem esse território. Ainda que 85% da população tenha rejeitado protestos violentos, 42% dos britânicos disseram ao YouGov que as manifestações que ocorreram de forma pacífica eram justificadas —ainda que tenham sido convocadas por radicais, a partir de um estopim xenofóbico e mentiroso.

A violência pode até ser condenada, mas o espetáculo que ela produz é capaz de ampliar o alcance de um assunto e até amplificar a adesão à retórica de grupos que, em tempos de calmaria, são vistos como radicais. Em certos casos, com alguma boa vontade coletiva, essa mudança é suficiente para que mais gente passe a considerá-los normais.

Crises Financeiras

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Nesta semana a economia internacional passou por grandes incertezas e instabilidades que geraram pânicos e preocupações generalizadas no mercado financeiro, com impactos para todas as regiões, moedas derreteram, Bolsas apresentaram baixas históricas, investidores entraram em alerta e autoridades monetários tiveram que acompanhar com maior atenção os movimentos do mercado.

Na última segunda-feira, as Bolsas asiáticas balançaram a economia internacional, levando a quedas homéricas, algumas caíram mais de 12% num único dia e contribuíram ativamente para espalhar caos e muita confusão no cenário econômico internacional. Vários motivos contribuíram para a compreensão dessa crise financeira, a possível recessão norte-americana, a bolha no mercado de empresas de tecnologia e a crise dos mercados de carry trade.

O carry trade é uma situação quando o investidor pega dinheiro emprestado em países onde a taxa de juros é baixa, como o Japão, e aplica esses recursos em mercados onde a taxa de juros é mais alta para ganhar com a diferença. Neste cenário, o aumento recente dos juros japoneses reduziu os ganhos destes investidores, levando-os para buscar mercados mais sólidos como os norte-americanos.

As crises financeiras acontecem desde os primórdios da humanidade, com impactos generalizados e repercussões imediatas, gerando enriquecimentos de um lado e perdas elevadas de outro, que demandam atuação mais intensa e mais efetiva dos governos nacionais para impedir que os sistemas econômico, produtivo e financeiro entrem em colapso, levando as nações a fortes recessões, aumentando o desemprego e reduzindo a renda agregada, contribuindo ativamente para a concentração das riquezas e o incremento das desigualdades sociais.

Neste momento de grandes incertezas e instabilidades que culminaram em pânico no sistema financeiro, os agentes sociais e econômicos buscam, ativamente, as razões da volatilidade que aumentam as incertezas, reduzindo os investimentos produtivos e estimulando a busca frenética de ativos de baixo risco, como forma de defender seus patrimônios e, se possível, garantir ganhos imediatos.

Os setores financeiros concentram grandes poderes na sociedade internacional, impondo seus interesses imediatos, seus ganhos estratosféricos, transformando as relações sociais, estimulando um verdadeiro cassino financeiro, modificando valores enraizados na comunidade e criando novos valores, centrados no imediatismo, no individualismo e na busca crescente dos lucros monetários e financeiros.

Dados divulgados na semana passada mostram uma possível recessão na economia norte-americana que pode gerar desaceleração da economia internacional, levando muitas nações a exportarem menos para os EUA e impactando negativamente nas economias locais, gerando menos empregos e reduzindo a demanda agregada interna.

Outra situação preocupante para a economia internacional foi os dados divulgados sobre as ações de empresas de tecnologia, muitas delas reportaram quedas elevadas em seus ganhos, levando especialistas a vislumbrarem um possível fim da bolha das empresas de tecnologia. Empresas como a Nvidia apresentaram valores surreais no mercado, as ações da gigante dos chips, a norte-americana Intel, reportou aos investidores perdas de mais de 25% nas ações, destacamos ainda, a venda das ações da Apple pelo grande investidor norte-americano Warren Buffett, gerando incertezas e instabilidades no mercado acionário.

As finanças dominam a economia mundial impondo seus valores, estimulando o imediatismo, o individualismo, o lucro monetário e fortalecendo valores materiais, deixando de lado as aflições humanas, as depressões e os ressentimentos que crescem em todas as regiões do mundo.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

País dos privilégios, por Hélio Schwartsmam

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Livro tenta atualizar clássico de Raymundo Faoro que mostrou como certos grupos extraem para si benefícios da sociedade

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”.
Folha de São Paulo, 04/08/2024

Sou fã de Bruno Carazza desde os tempos em que ele mantinha um blog no qual tentava introduzir medidas objetivas para analisar questões de direito. É com satisfação, portanto, que o vejo agora envolvido no ambicioso projeto de escrever uma trilogia que atualiza “Os Donos do Poder” o clássico de Raymundo Faoro”, que mostrou como alguns estamentos sociais conseguem sequestrar o poder do Estado brasileiro para beneficiá-los. O título da obra de Bruno é “O País dos Privilégios”, da qual acaba de sair o primeiro volume.

Neste tomo inicial, Bruno se debruça sobre o funcionalismo público. Esse livro teria potencial de ser um dos mais aborrecidos do mundo. O que Bruno faz essencialmente é comparar tabelas com rendimentos de servidores e outros dados que não despertam entusiasmo. Mas ele consegue transformar isso numa leitura interessante. Eu exageraria se afirmasse que a obra se lê como um Agatha Christie, romance de mas o texto é agradável e prende a atenção. Até desperta algumas emoções no leitor, quando descreve as formas criativas pelas quais certos estamentos extraem benefícios da sociedade.

O número de funcionários públicos no Brasil não é exagerado –12%, bem menos que o registrado em algumas economias avançadas–, mas empenhamos em suas remunerações a formidável fatia de 13% o PIB, padrão só verificado nos países nórdicos. A distribuição é, como tudo no Brasil, desigual.

Enquanto funcionários municipais ganham em média menos que trabalhadores da iniciativa privada em funções semelhantes, grupos de elite do funcionalismo federal ganham bem mais, além de gozar de outros privilégios. Estamos falando de juízes, membros do Ministério Público, fiscais de renda etc.

O livro não é uma diatribe contra servidores públicos. Bruno é muito cuidadoso ao lembrar que eles desempenham um papel importantíssimo na administração, que justifica alguns (mas não todos) os privilégios.

Reconstruindo as capacidades estatais, por André Roncaglia

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Transparência ajuda a qualificar debate sobre o papel das empresas públicas no século 21

André Roncaghia, Professor da Unifesp, pesquisador associado do Ibre-FGV e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 08/08/2024

A Sest (Secretaria de Coordenação e Governança das Estatais) do MGI (Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos) apresentou, há alguns dias, o “Relatório Agregado das Empresas Estatais Federais”, um mapa do sistema de empresas estatais federais.

O relatório oferece uma descrição de cada uma das 44 empresas sob controle direto da União e permite uma análise mais adequada dos resultados das estatais ajustados aos seus objetivos.

A imprensa costuma repercutir uma análise superficial, tipicamente financista, de lucro ou prejuízo. A extrema direita se gaba de o governo Bolsonaro ter melhorado a gestão das estatais, mas os números mostram o desmonte a granel do sistema, por meio de cortes de investimento e da venda lesa-pátria da Eletrobrás.

Os objetivos das empresas estatais transcendem a mera busca de resultados financeiros de curto prazo. Sua governança considera aspectos ligados ao interesse público, como a geração de empregos de qualidade, o abastecimento e a segurança alimentar, a inovação tecnológica e a gestão focada em resultados.

Em 2023, o sistema de empresas estatais federais contribuiu com cerca de 6% do PIB em valor adicionado bruto e mais 6% na compra de insumos, ativando cadeias produtivas nacionais. Os ativos somaram cerca de R$ 6 trilhões (60% do PIB), e o lucro líquido foi de R$ 197,9 bilhões: dois terços desse resultado vieram da Petrobrás (R$ 125,2 bilhões), seguida pelo Banco do Brasil (R$ 33,8 bilhões), pelo BNDES (R$ 21,9 bilhões) e pela Caixa Econômica Federal (R$ 11,7 bilhões). A queda de 28% nos lucros relativos a 2022 se deveu à redução nos preços do petróleo e ao aumento de 30% dos investimentos das empresas.

Em termos de emprego, o sistema detém mais de 436 mil postos, com atuação em todo o território nacional, e vem melhorando a baixa representatividade das mulheres (ainda em 38% do total), mas que já detém 49% dos empregos gerados nos últimos dez anos.

Ao longo do ano de 2023, foram distribuídos R$ 128,1 bilhões em dividendos e juros sobre o capital próprio, dos quais a União recebeu R$ 49,4 bilhões. Cerca de R$ 222 bilhões foram pagos na forma de impostos, taxas e contribuições para municípios, estados e a União. Os lucros retidos no total de R$ 101 bilhões podem reforçar os investimentos ligados ao Novo PAC.

A Ebserh, que controla 41 dos 45 hospitais universitários federais (responsáveis por mais 8 milhões de cirurgias em 2023), e a Embrapa (tecnologia agropecuária) receberam, cada uma, cerca de R$ 4 bilhões do Tesouro. E os Correios receberam R$ 532 milhões para universalizar o acesso à distribuição postal.

No mundo inteiro, as empresas estatais retomam sua centralidade em setores estratégicos, como os de rede (ferrovias, portos, eletricidade, saneamento, telecomunicações etc.) e na produção e na prestação de serviços (saúde, financeiros, manufatura, indústria aeroespacial etc.). Um estudo do Roosevelt Institute —”Industrial Policy 2025: Bringing the State Back In (Again)”—mostra que, das 10 maiores empresas do mundo, 4 são estatais. A França, por exemplo, tem mais empresas estatais que a ex-soviética Rússia. O Brasil tem menos cobertura estatal do que Suíça, Alemanha e Argentina.

Ao operar uma agenda intensiva em inovações para o setor público, o MGI visa construir as capacidades estatais para lidar com os desafios da transição ecológica e da digitalização da economia. É uma estrada longa e repleta de obstáculos. Por isso, a maior transparência ajuda a qualificar o debate público sobre o papel das empresas estatais no século 21.

Desigualdades sociais

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Nos últimos anos estamos percebendo o incremento das desigualdades sociais na sociedade internacional, anteriormente ao falar sobre esse assunto percebíamos que essa desigualdade acontecia fortemente nas economias subdesenvolvidas ou em desenvolvimento, na contemporaneidade esse assunto se apresenta em todas as nações do globo, tanto as ricas e desenvolvidas como as nações pobres e atrasadas economicamente, gerando novos desafios para os gestores públicos, as elites empresarial e financeira, além da academia e para todos os integrantes da sociedade civil.

Desde os anos 1990, com o incremento da globalização, da abertura econômica e do aumento das tecnologias que culminaram numa sociedade digital e centrada no conhecimento, percebemos uma grande transformação na estrutura econômica e produtiva, alguns países conseguiram se adaptar melhor e mais rapidamente neste novo cenário, enquanto outras nações tiveram grandes dificuldades no mundo globalizado, gerando concorrências crescentes em todos os setores, impactando sobre os trabalhadores e os setores produtivos, impulsionando uma competição que tende a fragilizar muitas empresas e sistemas econômicos.

A desigualdade social sempre caracterizou a sociedade brasileira, somos vistos como uma das nações mais desiguais do mundo, que contrasta com as riquezas que caracterizam a sociedade nacional, afinal somos um país dotado de grandes recursos minerais, clima agradável, grandes reservas de água doce, além de florestas e vegetações em abundância que nos coloca no centro de uma das nações mais ricas de recursos naturais.

Mesmo assim, as desigualdades sociais existentes na contemporaneidade brasileira estão diretamente ligadas a história degradante da escravidão que perdurou mais de trezentos anos, uma colonização caracterizada por uma exploração gigantesca, além de privilégios de poucos grupos econômicos e financeiros, um Estado capturado por elites predadoras e imediatistas, além de um sistema educacional fracassado e ultrapassado para os grupos mais fragilizados economicamente da sociedade, que contribuem para a perpetuação de uma pobreza estrutural que nos afasta imensamente da cidadania e da conscientização política e social.

Além destas características que contribuem maciçamente para o incremento das desigualdades sociais, destacamos salários degradantes que pouco auxiliam na sobrevivência dos trabalhadores e estimulam a construção de um sistema de proteção social para garantir a sobrevivência dos indivíduos, sem estes a degradação social tende a aumentar e gerar graves constrangimentos políticos e sociais.

Nesta sociedade, que se compraz com as desigualdades variadas que vivenciam no Brasil, encontramos grupos altamente privilegiados, que garantem sua reprodução através de ganhos escorchantes de taxas de juros obscenas, dominando as Autoridades Monetárias sem produzir efetivamente nada, sem geração de emprego e de renda, sem pudor, sem caráter e sem capacidade de compreender que seus benesses e imediatismos contribuem diretamente para a manutenção deste quadro de degradação social, além de um exército de cidadãos bem remunerados, bem formados e que se vendem para garantir seu enriquecimento pessoal e suas férias em terras estrangeiras em prol de uma sociedade deficiente e centrada nas desigualdades sociais.

As desigualdades sociais crescem de forma acelerada em todas as regiões do mundo, gerando um quadro obsceno e degradante, precisamos construir uma maturidade que ataque as raízes desta desigualdade, deixando de lado medidas cosméticas e ineficientes que apenas postergam os conflitos sociais e as crises econômicas que crescem todos os dias.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

O Império do Mal? por Elizabeth Schmidt

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Elizabeth Schmidt – A Terra é Redonda – 27/07/2024

A presença da China na África vem desde meados do século passado, inicialmente por simpatia política, hoje mais ligada a perspectivas econômicas

A crescente presença da China na África chamou a atenção global. À medida que seus acordos comerciais e investimentos eclipsaram os do Ocidente, políticos dos EUA e da União Europeia deram o alarme: Pequim, dizem eles, está explorando os recursos do continente, ameaçando seus empregos e apoiando os seus ditadores; ademais, está deixando de lado as considerações políticas ou ambientais.

As organizações da sociedade civil africana fazem muitas das mesmas críticas, ao mesmo tempo em que apontam que os países ocidentais há muito se envolvem em práticas semelhantes. Na mídia anglófona, a maioria das avaliações das perspectivas da China é obscurecida pela retórica da Nova Guerra Fria, que enquadra Xi Jinping como um sujeito que visa dominar o mundo. Pede-se, assim, às forças da civilização que o detenham. Ora, como se poderia fazer uma análise mais sóbria? Como se deve entender o papel da África nessa matriz geopolítica hostil?

Os interesses chineses na África – assim como as preocupações ocidentais sobre a influência de Pequim – não são novidade. Compreender o impasse atual exige que a sua história do imperialismo na África seja rastreada. Em abril de 1955, representantes de 29 nações e territórios asiáticos e africanos se reuniram para uma conferência histórica em Bandung, na Indonésia. Eles resolveram arrancar a própria autonomia do núcleo capitalista, promovendo a cooperação econômica e cultural, bem como a descolonização e a libertação nacional, em todo o Sul Global.

Nesse sentido, o envolvimento chinês com a África foi guiado inicialmente por esse espírito de solidariedade. Do início dos anos 1960 a meados dos anos 1970, a China ofereceu doações e empréstimos a juros baixos para projetos de desenvolvimento na Argélia, Egito, Gana, Guiné, Mali, Tanzânia e Zâmbia. Também enviou dezenas de milhares de “médicos descalços”, técnicos agrícolas e brigadas de solidariedade trabalhadora para países africanos que rejeitaram o neocolonialismo e, por isso, haviam sido rejeitados pelo Ocidente.

Na África Austral, onde o domínio da minoria branca persistiu em certas colônias, Portugal resistiu às demandas de independência, Pequim forneceu aos movimentos de libertação em Moçambique e na Rodésia treinamento militar, conselheiros e armas. Quando os países ocidentais ignoraram os apelos da Zâmbia para isolar efetivamente os regimes renegados, a China criou em empresa ferroviária na Tanzânia e Zâmbia, que construiu uma ferrovia que permitiu à Zâmbia exportar seu cobre através da Tanzânia, em vez da Rodésia e da África do Sul, governadas por brancos. Ao longo desse período, as políticas chinesas foram determinadas principalmente por imperativos políticos, pois o país buscava aliados em uma conjuntura global moldada pela Guerra Fria.

Após o colapso da URSS, porém, as suas prioridades mudaram. A China respondeu ao advento da unipolaridade americana embarcando em um programa maciço de industrialização e liberalização, na esperança de evitar o destino de outros projetos estatais comunistas. Com essa mudança, a África não era mais vista como um campo para iniciativas com teor ideológico, mas como uma fonte de matérias-primas e um mercado para produtos chineses, que vão de roupas a eletrônicos. A simpatia política deu lugar à perspectiva da utilidade econômica. As nações africanas foram valorizadas de acordo com seu significado material e estratégico para os planos de desenvolvimento do Partido Comunista Chinês.

Na primeira década do século XXI, a China ultrapassou os EUA como o maior parceiro comercial da África e recentemente se tornou a quarta maior fonte de investimento estrangeiro direto do continente. Em troca de acesso garantido a recursos energéticos, terras agrícolas e materiais para dispositivos eletrônicos e veículos elétricos, a China gastou bilhões de dólares em infraestrutura nesse continente: construção e reforma de estradas, ferrovias, barragens, pontes, portos, oleodutos e refinarias, usinas de energia, sistemas de água e redes de telecomunicações.

As empresas chinesas também construíram hospitais e escolas e investiram nas indústrias de vestuário e processamento de alimentos, juntamente com agricultura, pesca, imóveis comerciais, varejo e turismo. Os investimentos mais recentes se concentraram em tecnologia de comunicação e energia renovável.

Ao contrário das potências ocidentais e das instituições financeiras internacionais, Pequim não fez da reestruturação política e econômica uma condição para seus empréstimos, investimentos, ajuda ou comércio. Eles não estão também condicionados a proteções trabalhistas e ambientais.

Embora essas políticas sejam populares entre os governantes africanos, elas são frequentemente contestadas por organizações da sociedade civil, que observam que as empresas chinesas expulsaram empresas de propriedade africana do mercado e empregaram trabalhadores chineses em vez de trabalhadores locais.

Quando contratam mão de obra africana, as empresas chinesas muitas vezes os forçam a trabalhar em condições perigosas por salários miseráveis. Os projetos de infraestrutura da China também resultaram em dívidas maciças que aprofundaram a dependência africana. No entanto, os países africanos ainda devam muito mais ao Ocidente.

O mais danoso é que Pequim garantiu seu acesso irrestrito a mercados e recursos apoiando elites corruptas, fortalecendo regimes que roubam a riqueza de seus países, reprimem a dissidência política e travam guerras contra estados vizinhos. Os governantes africanos, por sua vez, deram à China o apoio diplomático muito necessário nas Nações Unidas e em outras organizações internacionais.

Durante décadas, a China se opôs à interferência política e militar nos assuntos internos de outras nações. No entanto, à medida que os interesses econômicos de Pequim na África cresceram, ela adotou uma abordagem mais intervencionista, envolvendo operações de socorro em desastres, antipirataria e contraterrorismo.

No início dos anos 2000, a China aderiu aos programas de manutenção da paz da ONU em países e regiões onde tinha interesses econômicos. Em 2006, a China pressionou o Sudão, um importante parceiro petrolífero, a aceitar a presença da União Africana e da ONU em Darfur. Em 2013, aderiu
à missão de manutenção da paz da ONU no Mali, motivada pelos seus interesses no petróleo e no urânio dos países vizinhos. Em 2015, trabalhou com potências ocidentais e organizações sub-regionais da África Oriental para mediar as negociações de paz no Sudão do Sul.

Durante este período, a China inicialmente se absteve de se envolver militarmente em áreas dominadas por conflitos, preferindo contribuir com trabalhadores médicos e engenheiros. Mas isso não durou muito. Houve uma notável presença militar chinesa nas missões de paz da ONU no Burundi e na República Centro-Africana.

A missão da ONU no Mali marcou a primeira vez que as forças de combate chinesas se juntaram a uma operação desse tipo, ao lado de cerca de 400 engenheiros, pessoal médico e policial. Pequim também enviou um batalhão de infantaria composto por 700 soldados armados para o Sudão do Sul em 2015. No ano seguinte, estava contribuindo com mais militares para as operações de manutenção da paz da ONU do que qualquer outro membro permanente do Conselho de Segurança.

A tendência de maior envolvimento político e militar na África culminou em 2017, quando a China se juntou à França, EUA, Itália e Japão no estabelecimento de uma instalação militar em Djibuti: assim nasceu a primeira base militar chinesa permanente fora das fronteiras do país.

Estrategicamente localizada no Golfo de Aden, perto da foz do Mar Vermelho, a instalação tem vista para uma das rotas marítimas mais lucrativas do mundo.

Isso permitiu que Pequim reabastecesse embarcações chinesas envolvidas em operações antipirataria da ONU e protegesse os cidadãos chineses que vivem na região. Também permitiu o monitoramento do tráfego comercial ao longo da Rota da Seda Marítima do Século XXI da China, que liga países da Oceania ao Mediterrâneo em uma vasta rede de produção e comércio. Isso ajudará a China a proteger seu suprimento de petróleo, metade do qual se origina no Oriente Médio e transita pelo Mar Vermelho e pelo Estreito de Bab el-Mandeb até o Golfo de Aden. A maioria das exportações da China para a Europa segue a mesma rota.

Embora Washington condene o que chama de imperialismo chinês, sua própria pegada militar na África é muito mais profunda e dolorosa, consistindo em 29 bases em áreas ricas em recursos. Os EUA prometem afastar os “impérios do mal” enquanto ostentam mais de 750 bases em pelo menos 80 países, em comparação com as três da China. Lutou em pelo menos 15 guerras estrangeiras desde 1980 – a China aderiu a apenas uma – e os regimes fiscais que impôs às nações africanas, baseados na privatização, desregulamentação e restrições de gastos, foram ruinosos.

O establishment de segurança dos EUA agora visa conter a ascensão da China, reforçando alianças militares, especialmente com regimes que receberam investimentos chineses. No entanto, um número crescente de estados africanos, cientes desse histórico desastroso, está se recusando a tomar partido na Nova Guerra Fria e, em vez disso, está tentando jogar seus combatentes uns contra os outros.

A verdade é, porém, que enquanto a África for tratada como um meio para as potências rivais expandirem seus mercados ou influência, em colaboração com as elites locais, o povo do continente não exercerá a verdadeira soberania. Hoje, os legados de Bandung são escassos.

*Elizabeth Schmidt é professora de história na Loyola University Maryland.

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Para ‘despiorar’ o socorro aos estados, por Marcos Mendes

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Fundo garantidor bancado pelos estados reduziria comportamento predatório

Marcos Mendes, Pesquisador associado do Insper, é organizador do livro ‘Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil’

Folha de São Paulo, 27/07/2024

Nos anos 1980 e 1990, a desordem fiscal nos estados era grande. Governadores contavam com a inflação para corroer a folha de salários e aumentar as receitas dos bancos estaduais, que financiavam diretamente os seus controladores.

O Banco Central, então responsável por autorizar operações de endividamento subnacionais (a partir de regras fixadas pelo Senado), era chamado à mesa de negociação toda vez que havia necessidade de socorro. A execução era feita via bancos federais, flexibilizando exigências prudenciais a bancos estaduais ou “emprestando” títulos de sua emissão para os estados captarem dinheiro em mercado.

O Plano Real desmontou o financiamento inflacionário dos bancos e dos tesouros estaduais, revelando o desequilíbrio que a inflação escondia. Foi necessário um programa de saneamento e privatização dos bancos, bem como a federalização das dívidas estaduais.

Esses socorros embutiram subsídio aos estados e custaram muito aos contribuintes. Em
contrapartida, exigiu-se um programa de ajuste fiscal e aprovou-se a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal).

O Banco Central foi retirado do processo de autorização de endividamento, afastando o risco de ser dragado para nova operação de socorro. A tarefa foi transferida ao Tesouro, que cumpriu bem a função, empoderado pela LRF e pelos instrumentos que garantiam o cumprimento do ajuste pelos estados, como a possibilidade de confiscar depósitos daqueles que não honrassem a dívida.

Os estados deixaram de ser um problema fiscal e melhoraram a qualidade e eficiência na prestação de serviços públicos.

A partir de 2008, esse arranjo institucional começou a ruir. Primeiro, porque o governo federal afrouxou os limites de endividamento. Segundo, porque os estados aprenderam a explorar brechas nos limites da LRF.

Em 2014, o desequilíbrio fiscal estadual já havia voltado a ser problema de primeira ordem. E o jogo político mudou. Os estados amealharam forte apoio no Congresso, onde cada parlamentar tem interesse em beneficiar o seu estado e jogar a conta para os contribuintes do resto do país.

Governadores conseguiram obter vitórias sobre a União no STF, mesmo em causas sem fundamento jurídico ou econômico, geralmente sob o argumento de que o atendimento da população não poderia ser prejudicado.

Rompeu-se a principal cláusula da LRF: a proibição de novos socorros fiscais. Todos os governos, desde Dilma, foram forçados a renegociar a dívida. O Tesouro, que antes tinha poder para exigir ajuste aos estados, ficou acuado, sob pressão de governadores, Congresso e STF.

Há incentivo a comportamento fiscal irresponsável, dada a alta probabilidade de repassar a conta para a União.

Tornou-se comum um estado tomar empréstimo no mercado com garantia da União, não pagar, e forçar a União a saldar o débito. Quando esta tenta executar a contragarantia, o estado consegue uma liminar do STF bloqueando a execução.

A coação ao Tesouro evoluiu ao ponto de os estados que estão no Regime de Recuperação Fiscal passarem a ter, por lei, o direito de não honrar as garantias e refinanciar o valor em 30 anos.

Desde 2016, a União já honrou R$ 70 bilhões e executou apenas R$ 6 bilhões em contragarantias.

Esse comportamento predatório só mudará se a vulnerabilidade do Tesouro for reduzida. Exatamente como se fez no passado com o Banco Central, ao isolá-lo da negociação política com os estados.

No caso do Tesouro, não será possível tirá-lo completamente das negociações, mas pode-se reduzir a sua exposição. Uma forma de fazê-lo, sugerida em estudo do FMI de 2019, seria a criação de um fundo garantidor de empréstimos dos estados custeado pelos próprios estados, sem participação financeira ou gerencial da União.

O Tesouro ficaria proibido de dar novas garantias. Somente este fundo poderia fazê-lo. Se um estado desse calote, o custo recairia sobre os demais estados, e não sobre a União.

A negociação de socorro fiscal que ora se desenrola no Senado prevê que parte dos juros pagos pelos estados, em vez de ir para a União, irá para um fundo, que financiará despesas de todos os estados. Em vez de financiar despesas, este fundo poderia garantir empréstimos. Capitalizações adicionais do fundo, somente com dinheiro dos estados.

Em troca das benesses que o projeto está dando aos estados, teríamos pelo menos uma mudança institucional para induzir um pouco de responsabilidade fiscal.