Copa do mundo, eleições e interesses nacionais.

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Depois de termos sofrido com as derrotas da seleção brasileira, das preocupações com a infraestrutura e com os graves problemas de segurança pública, estamos no início de mais uma campanha eleitoral, onde nos próximos dias nossas casas serão invadidas por promessas das mais variadas, desde soluções para os problemas da saúde, da educação e da segurança, até soluções para melhorar as perspectivas econômicas do país, que nestes últimos três anos vêm amargando péssimos resultados negativos, como se resolver tudo isso fosse fácil e estivesse nas mãos de governantes bem intencionados e competentes para retirar o país de seu atraso histórico, uma blasfêmia das mais agressivas aos cidadãos brasileiros. Para colocarmos o país na rota do progresso faz se necessário um conjunto de políticas que passam por melhorar o ambiente de negócios, políticas baseadas na meritocracia e na competência moral de seus cidadãos. Diante disso tudo é importante que os eleitores se conscientizem de que votar é um ato complexo e com resultados difíceis de ser mensurados, ainda mais que, ao votar corretamente, estamos evitando problemas mais graves num futuro muito próximo.

Discussões Econômicas

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A economia brasileira apresenta espaço para grandes discussões sobre suas perspectivas para o ano de 2014, para muitos economistas o ano será bem melhor do que o ano que terminou, enquanto outros acreditam que os problemas se aprofundarão e as possibilidades de mudanças mais significativas só devem acontecer em 2015, mesmo se o atual governo conseguir ser reeleito, o que, neste momento, apresenta grandes possibilidades.

O ano passado foi marcado por uma queda de braço entre governo e mercado, principalmente o mercado financeiro, que viam o governo como intervencionista, protecionista, heterodoxo e pouco ousado nos fóruns internacionais, condenando o país a uma situação de isolamento nos acordos e nos compromissos externos que, numa economia marcada pela crescente interdependência entre os agentes econômicos, traria pouca possibilidade de inovação e melhoria de nossa capacidade produtiva.

O governo, em contrapartida, se mostrou muito confuso em suas decisões econômicas, adotando políticas para arbitrar os ganhos dos concessionários, interferindo em setores estratégicos de forma atabalhoada, criando, com isso, uma crescente instabilidade jurídica e afugentando os investidores internacionais, fundamentais para o aumento dos investimentos externos responsáveis pela geração de novos empregos e melhoria na renda agregada da sociedade.

Os últimos anos foram marcados por baixas taxas de crescimento econômico, entre 2% e 2,5%, com inflação crescente na faixa dos 5,5%, taxas de juros elevadas e déficits nas contas externas, o que, para muitos, pode sugerir graves desequilíbrios econômicos para os economistas vinculados ao mercado financeiro, embora os indicadores não sejam tão saudáveis estamos muito longe de situações negativas e perspectivas ruins como querem nos levar a acreditar estes economistas, não estamos como estávamos no período 2003-2010, mas estamos longe de situação de crise iminentes.

A política fiscal destes últimos três anos apresentou uma piora considerável, o que ficou caracterizado como “contabilidade criativa” pelos seus críticos, que viram nesta uma manobra do governo para esconder do mercado a degradação das condições fiscais do Estado, que vêm se deteriorando nos últimos anos com subsídios concedidos sem critérios claros, empréstimos e aumento de capitais para o BNDES financiar grupos econômicos com potencial de crescimento, política esta que ficou conhecida como campeões nacionais.

            Em ano de Copa do mundo da Fifa, o Brasil hoje está sendo observado em todos os cantos do mundo, as obras atrasadas geram preocupações, os gastos excessivos e pouco transparentes criam perspectivas, no mínimo, preocupantes para a sociedade, estamos num momento de grande apreensão, podemos ter um evento internacional de grande sucesso mas, podemos estar diante de um fiasco cuja repercussão se irradiará para todos os setores da sociedade e terá impactos fortes nas eleições, podendo interromper um ciclo de governo do Partido dos Trabalhadores e levar novos ventos à Brasília.

Neste ambiente de discussões e debates encontramos ideias sérias nos dois lados, percebemos na oposição uma crítica, muitas vezes vazia e pouco inteligente, enquanto do lado dos defensores governamentais uma defesa sistemática a um intervencionismo estatal cujos impactos negativos são significativos. A discussão clássica de mais ou menos Estado, mais ou menos Mercado, me parece uma discussão desnecessária e pouco construtiva, temos que discutir se o Estado é eficiente na alocação de seus recursos, se estamos diante de uma redução estrutural das desigualdades ou apenas próximos de uma política conjuntural que se apoia apenas em propostas eleitorais e eleitoreiras, cujos benefícios se limitam ao calendário político-eleitoral, tempo suficiente apenas para que o governo consiga se manter no poder.

Neste Brasil encontramos uma constante crítica do governo com relação a perseguições sistemáticas do mercado e da mídia, esta perseguição não acontece apenas neste governo, mas constantemente. O que devemos frisar com tranquilidade é que esta perseguição é legítima em uma sociedade democrática, hoje o partido da situação reclama da guerra psicológica orquestrada pelos oposicionistas, mas neste desabafo esquece que, vinte anos atrás, era seu partido e seus companheiros os responsáveis por esta mesma guerra psicológica, se concentrando num papel de quanto pior melhor para seus interesses eleitorais, lembremos sempre e tenhamos consciência de nossas críticas, pois quem sabe num momento próximo seremos nós os responsáveis pelos rumos da sociedade.

 

 

Elogio de Mandela

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MARIO VARGAS LLOSA

Nelson Mandela, o político mais admirável destes tempos tumultuados, segue em um hospital de Pretória, após completar 95 anos na quinta-feira. Poderemos ter a certeza de que todos os elogios feitos a ele são justos, pois o estadista sul-africano transformou a história do seu país de uma maneira que ninguém imaginava concebível, e demonstrou com sua inteligência, habilidade, honestidade e coragem que, no campo da política, às vezes, os milagres são possíveis.

Tudo isso foi sendo gestado, antes mesmo que na história, na solidão de uma consciência, na desolada prisão de Robben Island, onde Mandela ingressou, em 1964, para cumprir pena de prisão perpétua e trabalhos forçados. As condições em que o regime do apartheid mantinha seus presos políticos na ilha rodeada de um mar traiçoeiro e tubarões, em frente à Cidade do Cabo, eram atrozes. Uma cela tão minúscula que parecia um nicho ou o covil de uma fera, uma esteira de palha, uma sopa de milho três vezes ao dia, mudez obrigatória, visitas de meia hora de duração a cada seis meses, e o direito de receber e escrever somente duas cartas ao ano, nas quais jamais deveriam ser mencionados temas políticos nem da atualidade. Em tal isolamento, ascetismo e solidão transcorreram os primeiros nove anos dos 27 que Mandela passou na ilha.

Em vez de suicidar-se ou enlouquecer, como muitos companheiros de prisão, nos nove anos Mandela meditou, reviu suas próprias ideias e ideais, fez uma autocrítica radical de suas convicções e atingiu aquela serenidade e sabedoria que a partir de então guiariam todas as suas iniciativas políticas. Embora nunca tenha compartilhado das teses dos resistentes que propunham uma ‘África para os africanos’ e queriam atirar ao mar todos os brancos da União Sul Africana, em seu partido, o Congresso Nacional Africano, Mandela, assim como Sisulu e Tambo, os dirigentes mais moderados, estavam convencidos de que o regime racista e totalitário só seria derrotado mediante ações armadas, sabotagens e outras formas de violência, e para tanto formou um grupo de comandos ativistas chamado Umkhonto we Sizwe, que enviava para Cuba, à China Popular, à Coreia do Norte e à Alemanha Oriental jovens militantes para que se adestrassem.

Deve ter levado muito tempo – meses, anos – para convencer-se de que toda essa concepção da luta contra a opressão e o racismo na África do Sul era equivocada e ineficaz, e era preciso renunciar à violência e optar por métodos pacíficos, ou seja, buscar uma negociação com os dirigentes da minoria branca – equivalente a cerca de 12% do país, que explorava e discriminava de maneira iníqua os 88% restantes – e convencê-la de que permanecera no país porque a convivência entre as duas comunidades era possível e necessária, quando a África do Sul fosse uma democracia governada pela maioria negra.

Naquela época, final dos anos 60 e início dos 70, pensar semelhante coisa era um exercício mental distante da realidade. A brutalidade irracional com que a maioria negra era reprimida e os esporádicos atos terroristas com que os resistentes respondiam à violência do Estado haviam criado um clima de rancor e ódio que fazia prever, mais cedo ou mais tarde, um desenlace de dimensões cataclísmicas no país.

A liberdade só poderia significar o desaparecimento ou o exílio para a minoria branca, particularmente para os africâners, os verdadeiros donos do poder. É espantoso pensar que Mandela, perfeitamente consciente das vertiginosas dificuldades que encontraria no caminho que traçara para si, decidiria empreendê-lo, e, mais ainda, que perseveraria nele sem sucumbir ao desalento um só instante, e, 27 anos mais tarde, concretizaria aquele sonho impossível: uma transição pacífica do apartheid para a liberdade, enquanto a maior parte da comunidade branca permanecia no país ao lado dos milhões de negros e mulatos sul-africanos que, convencidos por seu exemplo e suas razões, haviam esquecido os insultos e os crimes do passado, e perdoado.

Seria preciso recorrer à Bíblia, àquelas histórias exemplares do catecismo que nos contavam quando éramos crianças, para tentar entender o poder de convicção, a paciência, a vontade inquebrantável e o heroísmo que Nelson Mandela deve ter demonstrado durante todos aqueles anos para persuadir, primeiramente seus próprios companheiros de Robben Island, depois seus correligionários do Congresso Nacional Africano e, por último, os próprios governantes e a minoria branca, de que não era impossível que a razão substituísse o medo e o preconceito, que uma transição sem violência era igualmente factível e ela assentaria as bases de uma convivência humana em lugar do sistema cruel e discriminatório imposto à África do Sul por séculos. Creio que Nelson Mandela é ainda mais digno de reconhecimento por esse trabalho extremamente lento, hercúleo, interminável, graças ao qual suas ideias e convicções foram contagiando os seus compatriotas como um todo, do que pelos extraordinários serviços que prestaria depois, já no governo, aos seus concidadãos e à cultura democrática.

É preciso lembrar que o homem que assumiu essa admirável tarefa era um prisioneiro político, o qual, até o ano de 1973, quando foram abrandadas as condições carcerárias em Robben Island, vivia praticamente confinado numa minúscula cela e com apenas uns poucos minutos diários para trocar algumas palavras com os outros presos, quase privado de toda comunicação com o mundo exterior. Contudo, sua tenacidade e sua paciência tornaram possível o impossível. Enquanto na prisão já menos inflexível dos anos 70, pôde estudar e formar-se em Direito, suas ideias foram rompendo pouco a pouco os preconceitos totalmente legítimos que existiam entre os negros e mulatos sul-africanos e começou a ser aceita sua tese de que a luta pacífica na busca de uma negociação seria mais eficaz e permitiria alcançar a liberdade mais rapidamente.

Mas foi ainda mais difícil convencer de tudo isso a minoria que detinha o poder e julgava ter o direito divino de exercê-lo com exclusividade e para sempre. Esses eram os pressupostos da filosofia do apartheid proclamada por seu mentor intelectual, o sociólogo Hendrik Verwoerd, na Universidade de Stellenbosch, em 1948, e adotada de modo quase unânime pelos brancos nas eleições daquele mesmo ano. Como convencê-los de que estavam equivocados, de que deviam renunciar não apenas a semelhantes ideias, mas também ao poder, e resignar-se a viver numa sociedade governada pela maioria negra?

O esforço durou muitos anos, mas, no final, como a gota persistente que fura a pedra, Mandela foi abrindo portas na cidadela de desconfiança e temor, e, um dia, o mundo inteiro descobriu estupefato que o líder do Congresso Nacional Africano saía às vezes de sua prisão para ir tomar civilizadamente o chá das cinco com os que seriam os dois últimos mandatários do apartheid, Botha e de Klerk.

Quando Mandela subiu ao poder, sua popularidade na África do Sul havia se tornado indescritível, tanto na comunidade negra quanto na branca (lembro ter visto, em janeiro de 1998, na Universidade de Stellenbosch, o berço do apartheid, uma parede coberta de fotos de alunos e professores recebendo a visita de Mandela com entusiasmo delirante).

Esse tipo de devoção popular mitológica costuma atordoar quem a recebe e fazer dele – como no caso de Hitler, Stalin, Mao, Fidel Castro – um demagogo e um tirano. Mas Mandela não se deixou envaidecer; continuou sendo o homem simples, austero e honesto que sempre foi e, para surpresa do mundo todo, negou-se a permanecer no poder, como seus compatriotas pediam. Aposentou-se e foi passar os seus últimos anos na aldeia indígena de onde se originara sua família.

Mandela é o melhor exemplo que temos – aliás muito raro nos nossos dias – de que a política não é apenas a tarefa suja e medíocre que tantos imaginam, da qual os malandros se valem para enriquecer e os vagabundos para sobreviver sem fazer nada, mas uma atividade que pode também melhorar a vida, substituir o fanatismo pela tolerância, o ódio pela solidariedade, a injustiça pela justiça, o egoísmo pelo bem comum, e que alguns políticos, como o estadista sul-africano, tornam o seu país, e o mundo, muito melhor do que com

Abdicar de pensar

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Autor: Frei Betto – – Brasil de Fato

Está em cartaz, em alguns cinemas do Brasil, o filme “Hannah Arendt”, direção de Margarethe Von Trotta. Por ser uma obra de arte que faz pensar não atrai muitos espectadores. A maioria prefere os enlatados de entretenimento que entopem a programação televisiva.

Hannah Arendt (1906-1975) era uma filósofa alemã, judia, aluna e amante de Heidegger, um dos mais importantes filósofos do século XX, que cometeu o grave deslize de filiar-se ao Partido Nazista e aceitar que Hitler o nomeasse reitor da Universidade de Freiburg. O que não tira o valor de sua obra, que exerceu grande influência sobre Sartre. Hannah Arendt refugiou-se do nazismo nos EUA.

O filme de Von Trotta retrata a filósofa no julgamento de Adolf Eichmann, em 1961, em Jerusalém, enviada pela revista “The New Yorker”. Cenas reais do julgamento foram enxertadas no filme.

De volta a Nova York, Hannah escreveu uma série de cinco ensaios, hoje reunidos no livro “Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal” (Companhia das Letras, 1999). Sua ótica sobre o réu nazista chocou muitos leitores, em especial da comunidade judaica.

Hannah escreveu que esperava encontrar um homem monstruoso, responsável por crimes monstruosos: o embarque de vítimas do nazismo em trens rumo à morte nos campos de concentração. No entanto, ela se deparou com um ser humano medíocre, mero burocrata da máquina genocida comandada por Hitler. A grande culpa de Eichmann, segundo ela, foi demitir-se do direito de pensar.

Hannah pôs o dedo na ferida. Muitos de nós julgamos que são pessoas sem coração, frias, incapazes de um gesto de generosidade os corruptos que embolsam recursos públicos, os carcereiros que torturam presos em delegacias e presídios, os policiais que primeiro espancam e depois perguntam, os médicos que deixam morrer um paciente sem dinheiro para custear o tratamento. É o que mostram os filmes cujos personagens são “do mal”.

Na realidade, o mal é também cometido por pessoas que não fariam feio se convidadas para jantar com a rainha Elizabeth II, como Raskólnikov, personagem de Doistoiévski em “Crime e castigo”. Gente que, no exercício de suas funções, se demite do direito de pensar, como fez Eichmann.

Elas não vestem apenas a camisa do serviço público, da empresa, da corporação (Igreja, clube, associação etc.) no qual trabalham ou frequentam. Vestem também a pele. São incapazes de juízo crítico frente a seus superiores, de discernimento nas ordens que recebem, de dizer “não” a quem estão hierarquicamente submetidas.

Lembro de “Pudim”, um dos mais notórios torturadores do DEOPS de São Paulo, vinculado ao Esquadrão da Morte chefiado pelo delegado Fleury. Ele foi incumbido de transportar o principal assessor de Dom Helder Camara, monsenhor Marcelo Carvalheira (que mais tarde viria a ser arcebispo de João Pessoa), do cárcere de São Paulo ao DOPS de Porto Alegre, onde seria solto.

Antes de pegar a estrada, a viatura parou à porta de uma casa de classe média baixa, em um bairro da capital paulista. Marcelo temeu por sua vida, julgou funcionar ali um centro clandestino de tortura e extermínio. Surpreendeu-se ao se deparar com uma cena bizarra: a mulher e os filhos pequenos de “Pudim” em torno da mesa preparada para o lanche. O preso ficou estarrecido ao ver o torturador como afetuoso pai e esposo…

Uma das áreas em que as pessoas mais se demitem do direito de pensar é a política. Em nome da ambição de galgar os degraus do poder, de manter uma função pública, de usufruir da amizade de poderosos, muitos abdicam do pensamento crítico, engolem a seco abusos de seus superiores, fazem vista grossa à corrupção, se abrem em sorrisos para quem, no íntimo, desprezam.

Essa a banalidade do mal. Muitas vezes ele resulta da omissão, não da transgressão. Quem cala consente. Ou do rigoroso cumprimento de ordens que, em última instância, violam a ética e os direitos humanos.

Assim, o mal viceja graças ao caráter invertebrado de subalternos que, como Eichmann, julgam que não podem ser punidos pelo genocídio de 6 milhões de pessoas, pois apenas cuidavam de embarcá-las nos trens, sem que elas tivessem noção de que seriam levadas como gado ao matadouro das câmaras de gás.

Dois exemplos da grandiosidade do bem temos, hoje, em Edward Snowden, o jovem estadunidense de 29 anos que ousou denunciar a assombrosa máquina de espionagem do governo dos EUA, capaz de violar a privacidade de qualquer usuário da internet, e no soldado Bradley Manning, de 25, que divulgou para o WikiLeaks 700 mil documentos sigilosos sobre a atuação criminosa da Casa Branca nas guerras do Iraque e do Afeganistão.

Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.

Complicações: Luiz Carlos Bresser-Pereira

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O ex-ministro da Fazenda, Luiz Carlos Bresser-Pereira, fala sobre a inflação brasileira e suas consequências na economia. Segundo o economista, este é um problema macroeconômico fundamental, que resulta, principalmente, do excesso de demanda.

Complicações é um programa de entrevistas com apresentação da jornalista Mônica Teixeira. Trata de problemas difíceis da atualidade por meio de entrevistas com pessoas que conhecem em detalhes temas importantes e controversos, sem soluções simples. Um espaço para o debate dos problemas que o mundo ainda não sabe como resolver.

Mercados reemergentes

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Autor: Marcos Troyjo – FSP – TENDÊNCIAS/DEBATES

Emergente ou desenvolvido, ganhará o país que abandonar a certeza do “automatismo inevitável” de sua ascensão e incrementar a inovação.

O conceito de “mercados emergentes” surgiu nos últimos anos como ideia associada ao desenho do futuro.

Demografia, escala territorial, baixos custos de produção, acesso privilegiado a commodities –vetores de uma mudança no eixo da geoeconomia.

Nações como os Brics (Brasil, Rússia, Índia e China) alcançaram status de “usinas de crescimento”. Expansão liderada por exportações na China; “economia em transição” para o mercado na Rússia; “outsourcing” e empreendedorismo tecnológico na Índia, e “substituição de importações 2.0” no Brasil mantiveram a economia aquecida –e tensões sociais arrefecidas.

Adaptaram-se com sucesso à “globalização profunda” radicalizada pelo fim da Guerra Fria, ou à “desglobalização” –lógica do cada um por si que influencia o comportamento internacional desde a crise de 2008.

Esse contexto levou a uma ingênua projeção. Os Brics estariam fadados a, inercialmente, liderar um processo de convergência dos emergentes rumo aos padrões de desenvolvimento das economias mais maduras. No advento de crises, observaríamos um desejado “decoupling” –o descolamento entre o imobilismo dos desenvolvidos e o dinamismo dos emergentes.

Nos últimos meses, no entanto, a lua de mel com os emergentes se desgastou. Suas economias desaceleraram. Em contraste, Estados Unidos e Japão se recuperam. A Europa, ainda que lentamente, está saindo da recessão. Alterou-se o panorama dos fluxos internacionais de liquidez.
Isso tem levado a um novo e apressado prognóstico. Nada mais de convergência ou “decoupling”. Estaríamos de regresso à engessada hierarquia Norte-Sul.

Na realidade, o desempenho ao longo dos próximos anos estará menos relacionado ao que hoje se rotulam economias avançadas ou emergentes e mais à capacidade de se moldarem competitivamente à “reglobalização” em curso.

Ao contrário de um novo “mundo plano”, a reglobalização não trará uma verticalização aguda das dinâmicas supranacionais de integração regional, política e jurídica.

Não ambicionará a comunhão de visões de mundo. Não florescerá de um grande pacto global costurado por todas as nações num palco como a ONU (Organização das Nações Unidas) ou a OMC (Organização Mundial do Comércio).

A reglobalização será mais “superficial” –concentrada em comércio, investimento e fortalecimento de redes produtivas. E “seletiva” –resultará de acordos envolvendo, por um lado, EUA e Europa, e, por outro, EUA e países banhados pelo Pacífico nas Américas, Ásia e Oceania.
Será ainda modelada pelo sucesso ou fracasso da China em converter-se numa economia de consumo e elevado valor agregado.

Nela, terá pouco espaço o neomercantilismo asiático, como o praticado pela China desde que Deng Xiaoping estipulou não importar a cor do gato, mas apanhar o rato. Tampouco impressionará a envergadura de projetos de associação regional-ideológica ou de neodesenvolvimentismo autárquico de países como o Brasil.

Assim, os que hoje classificamos como emergentes podem estagnar-se. Porém, o mesmo também é verdade em relação a economias maduras que deixaram de lado os imperativos do trabalho duro e da constante reinvenção.

Escassearão as chances de nações que, por integrarem um quadro comunitário, deram-se ao luxo da irresponsabilidade fiscal e da concessão de benefícios trabalhistas e previdenciários não sustentados pela produtividade de suas economias. É bem o caso da Europa mediterrânea e o severo ajuste a que tem de submeter-se.

A reglobalização pertencerá àquelas nações que privilegiarem ambientes amigáveis aos negócios, regras do jogo bem estabelecidas e integração a cadeias produtivas transnacionais.

Entre os atuais emergentes ou desenvolvidos, ganharão os que abandonarem a certeza do “automatismo inevitável” de sua ascensão e redirecionarem excedentes para o incremento da inovação.

Esses países, ainda que pertençam originalmente a um ou outro polo da antiga geografia Norte-Sul, serão os verdadeiros “mercados reemergentes”.

MARCOS TROYJO, 46, economista e cientista social, é professor do Ibmec (Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais) e diretor do BRICLab na Universidade Columbia

Wallerstein: Levantes aqui, ali e em toda parte

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Autor: Immanuel Wallerstein

O levante, agora persistente, na Turquia foi seguido por uma revolta ainda maior no Brasil, que por sua vez foi acompanhada por manifestações menos noticiadas, mas não menos reais, na Bulgária. Obviamente, esses protestos não foram os primeiros, e muito menos os últimos de uma série realmente mundial de revoltas nos últimos anos. Há muitas maneiras de analisar este fenômeno. Eu o vejo como um processo contínuo de algo que começou com a revolução mundial de 1968.

É claro que todas as revoltas são particulares em seus detalhes e na correlação de forças interna em cada país. Mas existem certas similaridades que devem ser notadas, se quisermos dar sentido ao que está acontecendo e decidir o que todos nós, como indivíduos e como grupos, deveríamos fazer.

A primeira característica em comum é que todas as revoltas tendem a começar muito pequenas — um punhado de pessoas corajosas manifestando-se sobre algo. E então, se elas “pegam”, coisa que é muito imprevisível, tornam-se maciças. De repente, não apenas o governo está sob ataque, mas, em alguma extensão, o Estado enquanto tal. Esses levantes reúnem tanto aqueles que querem a substituição do governo por outro melhor quanto os que questionam a própria legitimidade do Estado. Ambos grupos invocam o tema da democracia e dos direitos humanos, embora sejam variadas as definições que dão a esses dois termos. No conjunto, o tom dessas manifestações começa do lado esquerdo do espectro político.

O governo no poder reage, obviamente. Ou ele tenta reprimir as revoltas; ou tenta abrandá-las com algumas concessões; ou faz ambas as coisas. A repressão normalmente funciona, mas algumas vezes é contraproducente para o governo no poder, trazendo ainda mais pessoas às ruas. Concessões geralmente funcionam, mas algumas vezes podem ser ruins para o governo, levando as pessoas a ampliar suas demandas. De modo geral, os governos recorrem à repressão com mais frequência que às concessões. E, também grosso modo, a repressão tende a funcionar em um relativo curto prazo.

A segunda característica comum dessas revoltas é que nenhuma delas continua na velocidade máxima por muito tempo. Muitos manifestantes dão-se por vencidos após medidas repressivas. Ou são de alguma maneira cooptados pelo governo. Ou ficam cansados por causa do enorme esforço que as manifestações frequentes requerem. Essa diminuição da intensidade dos protestos é absolutamente normal. Ela não indica uma derrota.

Esse é o terceiro fator em comum, nos levantes. Embora terminem, deixam um legado. Mudam algo na política de seus países, e quase sempre para melhor. Forçam a entrada de alguma questão principal — por exemplo, as desigualdades — na agenda pública. Ou fazem crescer o senso de dignidade entre os extratos inferiores da população. Ou ampliam o ceticismo diante da retórica com a qual os governos tendem a encobrir suas políticas.

A quarta característica em comum é que, em cada onda de protestos, muitos que se unem ao movimento (especialmente os mais tardios) não chegam para reforçar os objetivos iniciais, mas para pervertê-los — ou para tentar conduzir ao poder político grupos de direita que são distintos daqueles que estão atualmente no poder, mas de maneira alguma mais democráticos ou preocupados com os direitos humanos.

O quinto traço em comum é que todos eles acabam envolvidos no jogo geopolítico. Governos poderosos, de fora do país nos quais os tumultos estão ocorrendo, trabalham intensamente (embora nem sempre com sucesso), para ajudar grupos aliados a seus interesses a alcançar o poder. Isso acontece tão frequentemente que uma das questões imediatas sobre cada movimento específico é sempre — ou deveria ser — saber quais suas consequências, em termos do sistema mundial como um todo. Isso é muito difícil, já que os desdobramentos geopolíticos potenciais podem levar alguns a desejar rumos opostos às intenções antiautoritárias originais do movimento.

Finalmente, devemos lembrar a respeito deste tema, e de tudo que está acontecendo agora, que estamos no meio de uma transição estrutural: de uma economia mundial capitalista que está se esgotando para um novo tipo de sistema. Mas ele pode ser melhor ou pior. Essa é a batalha real dos próximos vinte a quarenta anos. E a posição a assumir aqui, ali e em qualquer lugar deve ser decidida em função desta grande batalha política mundial.

*Publicado originalmente em iwallerstein.com, em 1 de julho de 2013. A tradução é de Gabriela Leite para o OutrasPalavras.

Desenvolvimento e ciências humanas

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Autor: Gustavo Lins Ribeiro | Valor Econômico – 28/06/2013

A exclusão das ciências sociais e humanas do programa Ciência sem Fronteiras torna necessário explicitar sua importância estratégica. Desenvolvimento é promessa de bem-estar e corrida competitiva. Claro que para estarmos bem necessitamos de condições materiais adequadas. Talvez por isso sempre que se fale de desenvolvimento se pense, primeiro, em condições materiais e, depois, em saúde. Mas, como o desenvolvimento sempre se dá de forma desigual e combinada, é comum existirem lugares que proveem melhor bem-estar material e saúde do que outros. Dessa forma, se deseja aquilo que foi feito em algum outro local para que possamos igualar-nos em uma competição que parece não ter fim. As engenharias, com seu interesse imediato voltado ao tecnológico e ao mundo das coisas e seu funcionamento, assim como as ciências da vida e da terra, estão diretamente relacionadas a tais desideratos.

Mas de que valem saúde e infraestrutura invejáveis se as pessoas não se localizarem no mundo em que vivem, se não souberem o que fazer de suas condições imediatas? Pior ainda, como chegar a esse mundo supostamente aconchegante e perfeito se não tivermos pessoas que consigam operá-lo, criticá-lo e contribuir para o seu aperfeiçoamento? Afinal, “desenvolvimento” ocorre em situações específicas, em lugares com pessoas, histórias e culturas concretas. Operar (n)esse mundo, vivê-lo, imaginá-lo para aperfeiçoá-lo, não são tarefas redutíveis às técnicas e aos laboratórios. Inovação e criação implicam condições sociais e subjetivas incapazes de ser determinadas por fórmulas ou por tabelas de elementos químicos.

Desenvolvimento é um objetivo mundial. Mas, pela via pacífica e democrática, como alcançá-lo sem conhecer a cultura, as relações sociais, econômicas, a política e a história do povo que deve abraçá-lo? Aqui, não adianta chamar engenheiros, biólogos, matemáticos, químicos ou físicos. É óbvio que a vida social, cultural, política e psíquica, com sua imensa complexidade, não se reduz a átomos, a estradas, portos, hidrelétricas ou estádios. O desenvolvimento de um país, de suas diferentes regiões ou de uma localidade não pode ser pensado apenas como um problema de engenharia, de biologia ou de agronomia. Se assim o fosse, ao lado de cada grande projeto de desenvolvimento ou de cada grande plantação de soja engenheirada haveria um paraíso.

Momentos de crises políticas como o que atravessamos tornam óbvia a necessidade por pensadores do social
As ciências sociais e humanas – e também as artes – são fundamentais para o desenvolvimento, porque ele envolve múltiplas dimensões do humano, da nossa experiência com os outros, do nosso entendimento do que é a boa vida, do que é o certo e errado no coletivo político e social, das normas que implementamos para lidar com as nossas diferenças e com os conflitos internos e externos ao país. Um país sem história, sem memória, sem literatura, sem arte, sem intérpretes de suas características culturais, sociais, econômicas, jurídicas, psicológicas, seria apenas uma colônia dos pensamentos de outrem. Em tal cenário, não pode haver inovação, porque aqueles que não pensam coletiva e diferenciadamente por si mesmos nada criarão.

Na verdade, “desenvolvimento” enquanto categoria fundamental da vida política situa-se plenamente no reino das humanidades. Quando se trata de transformar e aperfeiçoar o conteúdo da ideia de desenvolvimento enquanto discurso programático a ser implementado por todos, Estado e sociedade civil, a capacidade de inovação vem das ciências sociais e humanas, com seus compromissos com a igualdade e o bem-estar coletivo, como provam reiteradamente os debates sobre inclusão social que terminam por se concretizar em experiências como o Bolsa Família ou em posicionamentos sobre a necessidade de distribuição de renda, de respeito à diferença e defesa do ambiente.

Como “desenvolvimento” não paira acima da vida social, é afetado profundamente pelas ideologias e utopias do seu tempo e, aqui, de novo, as humanidades cristalizam e operacionalizam novas formulações, como ilustram as concepções de desenvolvimento humano, de desenvolvimento como liberdade e as lutas por direitos humanos.

Não resta dúvida de que desenvolvimento implica transformações e aperfeiçoamentos materiais e que o país precisa de mais cientistas e engenheiros. Mas mudanças nas subjetividades, nos contextos e relações sociais; aperfeiçoamentos institucionais, normativos; o aumento do entendimento da complexidade lógica, estética, cultural, econômica e política do mundo contemporâneo são tão importantes quanto transformações materiais.

O que seria de um país “desenvolvido” sem antropólogos e sociólogos para compreender suas desigualdades, suas diferenças, seus contrastes, formular imagens, narrativas e soluções para nós mesmos? Sem cientistas políticos que discutam a vida política e institucional? Sem pesquisadores de relações internacionais que debatam as novas inserções no mundo globalizado? Imaginem se não houvesse advogados para manter e aperfeiçoar o estado de direito, economistas e administradores para compreender e gerir a vida econômica e institucional, historiadores que perscrutassem nosso passado, psicólogos que se dedicassem à nossa saúde mental, estudiosos da literatura, jornalistas, geógrafos, linguistas, músicos, pintores, atores.

A lista é extensa e poderia em muito ser ampliada. Ao mesmo tempo, é preciso rever a concepção de inovação como um fenômeno exclusivamente restrito ao laboratório. Inovação depende de uma economia criativa, na qual a intelectualidade e os artistas, os especialistas do humano e da imaginação, têm papel central.

O Brasil certamente seria um país menor, menos imaginativo, sem Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Josué de Castro, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Jorge Amado, Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira, Cora Coralina, Celso Furtado, Sobral Pinto, Nise da Silveira, Florestan Fernandes, Milton Santos, para mencionar uns poucos entre os nossos mais brilhantes intelectuais já mortos.

Momentos de crises políticas como o que atravessamos tornam óbvia a necessidade por pensadores do social. Um país sem inteligência nas áreas de humanas se reduz a uma visão material que, ainda que necessária, sozinha é pobre e está longe de esgotar qualquer concepção de bem-estar social e felicidade que inclua as pessoas e a vida social como totalidades complexas.

Gustavo Lins Ribeiro é presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs)

Tentativa de compreensão

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Autor: Ferreira Gular

Talvez que, para melhor entender o atual neopopulismo que chegou ao governo de alguns países latino-americanos, convenha lembrar o que ocorreu antes, logo após a Revolução Cubana, de 1959.

A tomada do poder pelos guerrilheiros de Fidel Castro levou alguns setores da esquerda latino-americana a embarcar na aventura da luta armada, de desastrosas consequências. Os Estados Unidos, que haviam aprendido a lição cubana, trataram de induzir os militares da região a substituir governos eleitos por ditaduras militares.

Nesse quadro, a exceção foi a chegada ao poder, pelo voto, de um partido de esquerda, elegendo Salvador Allende, no Chile, com o apoio da Democracia Cristã, que dele se afastou quando o viu refém da extrema esquerda.

O resultado disso foi o que se conhece: Allende foi deposto e morto, dando lugar à ditadura de Augusto Pinochet. Todos os movimentos guerrilheiros foram sistematicamente dizimados nos diversos países onde surgiram, e com eles a esquerda moderada.

As ditaduras militares, durante décadas, lançando mão da tortura e eliminação física dos adversários, tornaram inviável a vida democrática nesses países. Mas se desgastaram e tiveram que, finalmente, devolver o poder aos civis.

Em cada país isso ocorreu em momentos diversos e com características próprias. No Brasil, por exemplo, essa passagem se fez mediante um acordo que resultou em anistia geral e irrestrita, o que, sem dúvida, facilitou a reimplantação do regime democrático.

Não obstante, aqui como noutros países, esse retorno à democracia não significou o abandono, por todos, dos propósitos revolucionários.

Em alguns deles, os antigos guerrilheiros se reorganizaram em partidos que, implícita ou explicitamente, ainda que disputando eleições, visavam a implantação do regime socialista a que, antes, tentaram alcançar pelas armas.
Esse é um fenômeno curioso, especialmente porque se manteve mesmo após a derrocada do sistema socialista mundial e quando, com o fim da União Soviética, o regime cubano entrou em visível decadência e passou a fazer concessões ao capital norte-americano, que, então, voltou a explorar a hotelaria e o turismo, o que, para os revolucionários de 59, havia transformado Cuba num prostíbulo.

Mas esse revolucionarismo retardado, na maioria dos países, foi uma fantasia passageira, uma vez que, na disputa eleitoral, ficou provado que a maioria da opinião pública rejeitava as palavras de ordem radicais.

No Brasil, após várias derrotas, Lula exigiu que o PT abrisse mão do radicalismo, ou ele não se candidataria mais. Sem outra alternativa, o partido o atendeu e publicou uma Carta ao Povo Brasileiro, em que abria mão do revolucionarismo de palavra e, graças a isso, conseguiu ganhar as eleições de 2002.

Mas não parou aí, pois, para governar, Lula teve que aliar-se até com os evangélicos, numa total negação de seus princípios ideológicos. Claro que, para aparentar fidelidade a suas origens e satisfazer discordâncias internas, estatizou tudo o que pode, enquanto usava o dinheiro público, por meio do BNDES, para financiar grandes empresas privadas.

Esse é o dilema dos neopopulistas latino-americanos: usam discurso de esquerda e governam fazendo acordos e concessões que sempre condenaram. No discurso de Hugo Chávez, por exemplo, os Estados Unidos apareciam como o capeta, mas é para eles que a Venezuela vende quase todo o seu petróleo.

Sei que é impossível fazer política sem fazer concessões. Não é isso que critico, portanto. O que pretendo mostrar é como a esquerda, que se dizia radicalmente comprometida com os princípios anticapitalistas, ao perceber a inviabilidade de seu projeto ideológico, converteu-se, na prática, em seu contrário, mantendo, não obstante, o mesmo discurso de antes.

O mais patético exemplo disso é mesmo o chavismo, que, agora sem o Chávez, deve tomar um rumo imprevisível.

É certo, também, que o neopopulismo, valendo-se do assistencialismo e do discurso esquerdista, inviabilizou a esquerda moderada, que ficou sem discurso. O Brasil é exemplo disso. Lula se apropriou dos programas sociais e econômicos do governo anterior, contra os quais lutara ferozmente, e ainda os qualificou de herança maldita.

Bento XVI: Crise e exaustão conservadora

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Autor: Saul Leblon

Dinheiro, poder e sabotagens. Corrupção, espionagem, escândalos sexuais.

A presença ostensiva desses ingredientes de filme B no noticiário do Vaticano ganhou notável regularidade nos últimos tempos.

A frequência e a intensidade anunciavam algo nem sempre inteligível ao mundo exterior: o acirramento da disputa sucessória de Bento XVI nos bastidores da Santa Sé.

Desta vez, mais que nunca, a fumaça que anunciará o ‘habemus papam’ refletirá o desfecho de uma fritura política de vida ou morte entre grupos radicais de direita na alta burocracia católica.

Mais que as razões de saúde, existiriam razões de Estado que teriam levado Bento XVI a anunciar a renúncia de seu papado, nesta 2ª feira.

A verdade é que a direita formada pelos grupos ‘Opus Dei’ (de forte presença em fileiras do tucanato paulista; veja obs. ao final dessa nota), ‘Legionários’ e ‘Comunhão e Libertação’ (este último ligado ao berlusconismo) já havia precipitado fim do seu papado nos bastidores do Vaticano.

Sua desistência oficializa a entrega de um comando de que já não dispunha.

Devorado pelos grupos que inicialmente tentou vocalizar e controlar, Bento XVI jogou a toalha.

O gesto evidencia a exaustão histórica de uma burocracia planetária, incapaz de escrutinar democraticamente suas divergências. E cada vez mais afunilada pela disputa de poder entre cepas direitistas, cuja real distinção resume-se ao calibre das armas disponíveis na guerra de posições.

Ironicamente, Ratzinger foi a expressão brilhante e implacável dessa engrenagem comprometida.

Quadro ecumênico da teologia, inicialmente um simpatizante das elaborações reformistas de pensadores como Hans Küng (leia seu perfil elaborado por José Luís Fiori, nesta pág.), Joseph Ratzinger escolheu o corrimão da direita para galgar os degraus do poder interno no Vaticano.

Estabeleceu-se entre o intelectual promissor e a beligerância conservadora uma endogamia de propósito específico: exterminar as ideias marxistas dentro do catolicismo.

Em meados dos anos 70/80 ele consolidaria essa comunhão emprestando seu vigor intelectual para se transformar em uma espécie de Joseph McCarty da fé.

Foi assim que exerceu o comando da temível Congregação para a Doutrina da Fé.

À frente desse sucedâneo da Santa Inquisição, Ratzinger foi diretamente responsável pelo desmonte da Teologia da Libertação.

O teólogo brasileiro Leonardo Boff, um dos intelectuais mais prestigiados desse grupo, dentro e fora da igreja, esteve entre as suas presas.

Advertido, punido e desautorizado, seus textos foram interditados e proscritos. Por ordem direta do futuro papa.

Antes de assumir o cargo supremo da hierarquia, Ratzinger ‘entregou o serviço’ cobrado pelo conservadorismo.

Tornou-se mais uma peça da alavanca movida por gigantescas massas de forças que decretariam a supremacia dos livres mercados nos anos 80; a derrota do Estado do Bem Estar Social; o fim do comunismo e a ascensão dos governos neoliberais em todo o planeta.

Não bastava conquistar Estados, capturar bancos centrais, agências reguladoras e mercados financeiros.

Era necessário colonizar corações e mentes para a nova era.

Sob a inspiração de Ratzinger, seu antecessor João Paulo II liquidou a rede de dioceses progressistas no Brasil, por exemplo.

As pastorais católicas de forte presença no movimento de massas foram emasculadas em sua agenda ‘profana’. A capilaridade das comunidades eclesiais de base da igreja foi tangida de volta ao catecismo convencional.

Ratzinger recebeu o Anel do Pescador em 2005, no apogeu do ciclo histórico que ajudou a implantar.

Durou pouco.

Três anos depois, em setembro de 2008, o fastígio das finanças e do conservadorismo sofreria um abalo do qual não mais se recuperou.

Avulta desde então a imensa máquina de desumanidade que o Vaticano ajudou a lubrificar neste ciclo (como já havia feito em outros também).

Fome, exclusão social, desolação juvenil não são mais ecos de um mundo distante. Formam a realidade cotidiana no quintal do Vaticano, em uma Europa conflagrada e para a qual a Igreja Católica não tem nada a dizer.

Sua tentativa de dar uma dimensão terrena ao credo conservador perdeu aderência em todos os sentidos com o agigantamento de uma crise social esmagadora.

O intelectual da ortodoxia termina seu ciclo deixando como legado um catolicismo apequenado; um imenso poder autodestrutivo embutido no canibalismo das falanges adversárias dentro da direita católica. E uma legião de almas penadas a migrar de um catolicismo etéreo para outras profissões de fé não menos conservadoras, mas legitimadas em seu pragmatismo pela eutanásia da espiritualidade social irradiada do Vaticano.

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Obs.

Simpatizantes do PSDB, como o jurista Ives Gandra, e militantes, como o jornalista Carlos Alberto di Franco,entre outros, são reconhecidos como membros da Opus Dei no Brasil. Di Franco teria sido o mentor do governador Geraldo Alckmin na organização. O falecido bispo de Guarulhos, D Luiz Bergonzini, que serviu como cabeça-de -turco de Serra na campanha de 2010, acusando Dilma de ‘aborteira’ em planfletos com assinatura falsa da CNBB, era igualmente vinculado à extrema direita católica. O ex- chefe da Casa Civil do governo de SP, Sidney Beraldo,agora no TCE, foi apontado então como um tucano com fortes vínculos junto a D Bergonzini; ambos eram conterrâneos de São João da Boa Vista, onde Beraldo foi prefeito e Bergonzini nasceu e atuou. A revista ‘Época’, pertencente às Organizações Globo, documentou em reportagem intitulada ‘O governador e a Obra’, o ‘noviciato’ do tucano Geraldo Alckmin na Opus Dei. A revista ‘IstoÉ’ fez um pedagógico mapeamento dos vínculos entre tucanos e os responsáveis pelo panfleto anti-aborto da extrema direita religiosa, em 2010.