A insustentável leveza das narrativas, por Renato Ortiz

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Renato Ortiz – A Terra é Redonda – 12/09/2024

Uma narrativa não se define em função da realidade, ela é o relato, basta-se a si mesma
Tudo é narrativa: os contos de Grimm, um romance, o terraplanismo, as notícias de jornal, a locução de uma partida de futebol, uma fala política, uma peça publicitária. Em sua discrepância e omnipresença a ideia de narrativa desfruta da insustentável leveza de ser. Ela não se confunde com a noção de discurso, explorada pelos linguistas e semiólogos, é imprecisa e insatisfatória; entretanto, o seu uso generalizado lhe dá uma aparente feição de verdade.

A rigor a indefinição conceitual lhe garante um êxito inconteste no vocabulário do dia a dia; particularmente com o advento das redes sociais, nas quais se alimenta uma ilusão coletiva, qualquer coisa dita com convicção e estridência torna-se convincente. Uma narrativa é uma série de eventos que constitui uma história, diz-se em inglês: storytelling.

Seu intuito é contar “tudo que aconteceu”, isto é, a sequência do que é narrado em um relato. Sua verdade reside em ser coerente, a razão de sua existência não repousa no que lhe é alheio.

Ela difere assim do conceito de ideologia, ele exige um necessário contraponto com o real, a questão da falsidade é sempre algo presente. É neste sentido que se dizia que a ideologia burguesa ou a religião eram uma “falsa consciência” do mundo.

Elas certamente mobilizavam as pessoas, davam sentido a suas vidas, entretanto, eram parciais (o conhecimento ideológico vem marcado pela parcialidade). Subjaz à noção de ideologia o traço da “distorção” ou de incompletude, os pontos de seu relato podem ser contrastados por algo que se encontra fora de sua enunciação.

Uma narrativa não se define em função da realidade, ela é o relato, basta-se a si mesma. O que se passa à sua volta é impertinente, importa sua essência, aquilo que é narrado. Dois exemplos “extremos” (se é possível falar em extremos no universo dos relatos) são sugestivos. O primeiro refere-se ao terraplanismo, ele afirma: nossos sentidos indicam que a Terra é plana; não enxergamos a curvatura do horizonte mesmo quando estamos em um avião; rios e lagos estão nivelados, deveriam ter uma curvatura se a Terra fosse esférica. O planeta é um disco redondo e achatado no qual o polo Norte encontra-se no centro e a borda é formada por gelo, a Antártica.

O segundo implica no negacionismo da corrida espacial à lua. Ele se sustenta a partir de um indício específico: a fotografia da bandeira americana na superfície lunar. Nela vê-se uma pequena parte dobrada, o que é percebido como algo “tremulante”; ora, não há vento na lua, portanto, a foto foi feita em algum lugar da Terra. Nenhuma dessas ponderações pode ser contradita pelo princípio de realidade, ou seja, quando confrontadas ao discurso científico.

Ele nos assegura que a Terra é redonda, há fotos e filmes feitos no espaço sobre o planeta azul, e que existem provas efetivas que demonstram a presença do homem na lua. Entretanto, tais evidências são exteriores à coerência interna do que é afirmado, elas em nada lhes importunam.

Pode-se ainda dizer que a própria ciência é também uma narrativa, ela se situaria assim ao lado de outras, sem, porém, contradizê-las.

Mas a coerência estrutural das “estórias” parece não ser suficiente para que elas se confirmem enquanto tal. Há ruídos. Mesmo as narrativas conspiratórias são coerentes, como se diz, são “teorias” que se organizam através de uma explicação racional das forças ocultas que perpetuam determinado ato. Neste sentido, os exemplos que utilizei não prescindem inteiramente da utilização de certos elementos da realidade. Afirmar que “não conseguimos ver a curvatura da Terra” ou “não há vento na lua” implica em buscar por uma materialidade do real que possa justificar tais afirmações.

Isso não seria contraditório com a própria noção de narrativa? Creio que a contradição se resolve quando se analisa o uso dessas histórias, em particular considerando o caráter acusatório que ele encerra. Como mostram os antropólogos em relação à feitiçaria, ela é uma crença partilhada por todos os membros de uma comunidade. Porém, ninguém se identifica como sendo feiticeiro. A “maldade” existe, mas é praticada pelos outros.

As narrativas se alimentam da acusação da falsidade das outras. Como na feitiçaria, ao situar fora de si a inverdade, a crença expele os ruídos de sua contradição; ao acusar os adversários de distorcer a realidade, sua dimensão interna permanece ilesa, inalterada. A virtude de existir ancora-se assim em sua leveza imaculada.

*Renato Ortiz é professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de O universo do luxo (Alameda).
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Ventos positivos

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Num ambiente de constantes transformações econômicas e produtivas nos cenários nacional e internacional, percebemos que a economia brasileira apresenta ventos positivos, desemprego em queda, aumento do investimento, crescimento do superávit comercial, expansão do mercado de capitais e crescimento econômico, depois de momentos de grandes instabilidades, agitações políticas, polarizações constantes, negativismos, pandemia e crises econômicas, que contribuíram para aumentar as vulnerabilidades da economia nacional.

Com a divulgação recente dos indicadores macroeconômicos, percebemos dados interessantes e auspiciosos, o crescimento econômico surpreendeu e colocou o Brasil dentre as nações que mais cresceram no trimestre, o desemprego diminuiu, os investimentos produtivos cresceram, o setor externo da economia apresentou indicadores atraentes, a inflação se manteve sob controle, além do incremento do consumo, desta forma, vislumbramos melhoras nas perspectivas da economia
nacional.

Mesmo assim, ao analisar a economia nacional, percebemos grandes contradições, de um lado, encontramos números auspiciosos e boas perspectivas, levando-nos a vislumbrar um ambiente macroeconômico saudável e bons horizontes de crescimento econômico, mas ao mesmo tempo, encontramos grupos, liderados pelos rentistas, clamando pelo aumento das taxas de juros como forma de impedir o crescimento da inflação. Neste cenário, estamos presos numa mediocridade que limita o crescimento da economia nacional, reduzindo as perspectivas de geração de emprego e renda, e indiretamente contribuindo para garantir os grandes lucros dos setores que vivem no rentismo.

No cenário econômico, percebemos críticas ácidas dos economistas do mercado financeiro e dos gestores de fundos de investimentos com relação à política fiscal, cobrando do governo uma maior racionalização dos gastos públicos e uma urgente redução dos gastos públicos, vistos como o responsável pelos desequilíbrios fiscais e financeiros que podem aumentar as taxas de juros, último instrumento para reduzir a inflação.

Embora percebamos que as questões fiscais estejam na berlinda da política econômica, percebemos ainda que os analistas econômicos vinculados ao chamado mercado exigem cotidianamente que sejam reduzidos os recursos públicos direcionados para a população mais carente e mais fragilizada, julgando-os como os grandes responsáveis pela chamada “farra” fiscal, se esquecendo, de forma deliberada, os vultosos incentivos fiscais e isenções tributárias que beneficiam os grandes grupos econômicos e financeiros, que atuam fortemente para extrair grandes somas dos fundos públicos, gerando pouco emprego, pagando poucos impostos e deixando de contribuir para o desenvolvimento nacional.

Vivemos um momento interessante para o fortalecimento da economia nacional e, novamente, vislumbrar os sonhos esquecidos do desenvolvimento econômico, somos dotados de energias alternativas que tendem a atrair novos investimentos industriais, estamos atraindo novos investimentos externos em variadas áreas e setores, precisamos estimular uma nova política de industrialização que atraia todos os agentes econômicos, sociais e políticos, construindo um verdadeiro ecossistema de inovação que inclua todos os setores da economia nacional, mas para isso, precisamos deixar de lado discussões equivocadas e ultrapassadas que pululam nos agentes que formulam as políticas públicas, compreendendo os verdadeiros medos, desafios e anseios da sociedade nacional, como disse o grande Tom Jobim: “O Brasil não é para amadores”…

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Dowbor: Para decifrar o enigma da ultradireita

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Desigualdade e frustrações deslocaram o eixo da política para o campo dos valores – onde opera uma aliança entre interesses financeiros, preconceitos de gênero e religião. Hipótese: esquerda pode (e precisa!) disputar este território

Ladislau Dowbor, Outras Palavras – 04/09/2024

Estávamos acostumados a tratar questões políticas, econômicas, religiosas e de gênero como espaços diferentes, tanto nas discussões como nas pesquisas, e em particular como áreas separadas nas universidades. Isso fragilizou muito a nossa compreensão das novas dinâmicas que transformam a sociedade a partir da sua própria base.

Lembro que há uns 15 anos atrás, tempos de governo Lula, uma alta autoridade da União Europeia me perguntou do que eu achava da perspectiva de os evangélicos chegarem ao poder no Brasil.

Comuniquei de maneira condescendente que não estava no horizonte político. Hoje me arrependo desta minha incompreensão do que estava se passando no país, transformação melhor entendida por um especialista europeu. O que está hoje escancarado, é precisamente que o populismo de direita se enraizou na base da sociedade numa aliança que usa crenças religiosas, preconceitos de gênero, interesses financeiros, sistemas modernos de comunicação comportamental, e os sentimentos de frustração irritada dos mais pobres para gerar uma máquina de poder político, o populismo de direita.

No caso do Brasil, um livro de primeira ordem, de Bruno Paes Manso, A fé e o Fuzil: crime e religião no Brasil do século XXI, (2023) analisa precisamente como se formou esta convergência de diversas dimensões do cotidiano da população, aliando religião, política, polícia e criminalidade numa nova “costura” que articula as comunidades, gerando novos sistemas de governança. A religião e a sexualidade, o controle do comportamento íntimo das famílias, passam a desempenhar um papel poderoso. Quando elegemos um político, teoricamente se trata de assegurar que o setor público administre os investimentos necessários na educação, na saúde, nas infraestruturas, na promoção de empregos e semelhante. São os “programas” que se apresentam para as eleições. Em vez disso, as pessoas irão votar no que se apresenta como costumes, como se os políticos devessem tratar de como e para quem rezamos, como organizamos as nossas famílias, como educamos nossos filhos. Deus, Pátria, Família já era o mote da ditadura de Salazar em Portugal, um século atrás. E como funciona. Não busca a racionalidade, busca as emoções.

O livro que queria aqui apresentar foca essas dimensões no plano internacional. Na Europa tão cultural e civilizada, enfrenta-se essa convergência da luta anti-gênero (leia-se controle da sexualidade das mulheres), da promoção da religiosidade (como se estivéssemos elegendo pastores), do uso das mídias sociais personalizadas (baseadas no uso de informações privadas das pessoas), e de pretensos valores “tradicionais”. Nos Estados Unidos as religiões se transformaram já há tempos em feudos de poder, com impressionante convergência entre valores retrógrados e as mídias mais avançadas, também navegando no mundo de frustrações geradas pela desigualdade e estagnação na base da sociedade. Os mais pobres nas mãos dos que mais reproduzem a pobreza.

Duas polonesas, Agnieszka Graff e Elzbieta Korolczuk realizaram uma pesquisa de impressionante riqueza sobre justamente como se articulam essas diversas dimensões da sociedade, com poderoso impacto político que se enraíza na intimidade de como rezamos, de como nos relacionamos com a família, mas também de como votamos. O populismo político de direita é aqui visto como construção inovadora, que termina se articulando com as forças econômicas das grandes corporações, como no caso das Koch Industries nos Estados Unidos, justificando e assegurando apoio político da base social mais explorada para o sistema tecnologicamente mais avançado e explorador. A análise nos ajuda a entender como se construiu esse paradoxo político, por meio da pretensa superioridade moral, com uso não de propostas de soluções concretas de governança, mas sim de grandes acenos à família, uso da bandeira, conceito de austeridade na política, e de controle comportamental, em particular das mulheres.

As autoras analisam o caso da Polônia, que acaba de sair de 7 anos de um governo religioso fundamentalista que desestruturou as políticas públicas, e também os casos de Donald Trump nos Estados Unidos, de Orban na Hungria, bem como dos movimentos semelhantes na Itália, na França, na Inglaterra e inclusive no Brasil. A força do livro resulta em grande parte da profundidade da análise: as autoras participaram como observadoras das grandes reuniões internacionais dos movimentos de extrema direita populista nos diferentes países e em diferentes épocas, permitindo justamente a compreensão de como o uso das religiões, dos movimentos anti-gender, em particular com a questão do aborto, dos interesses financeiros e dos interesses político-partidários convergiram para a formação do poderoso movimento populista de extrema direita que se tornou tão poderoso no mundo.

Tive uma reunião com uma das autoras, Elzbieta Korolczuk, em Varsóvia, em julho deste ano, ela me deu a versão polonesa do livro, que terminei lendo no avião. Impressionante a riqueza das análises. Ao comunicar-lhe por e-mail o meu entusiasmo, Korolczuk, que é professora na Suécia, me mandou o link da versão original em inglês, disponível gratuitamente online, opção que tantos autores e editores estão começando a adotar: não substitui a venda dos livros impressos, pelo contrário, estimula, como constato com meus próprios livros, todos disponíveis no meu site Dowbor.org e nas livrarias. Tempo de nos modernizarmos.

Uso moderno e construtivo das tecnologias mais avançadas, para denunciar, neste caso, o uso dessas tecnologias para nos empurrar para o mais profundo obscurantismo político e comportamental. O problema não está nas tecnologias, e sim no para que são usadas, como é o caso em particular da inteligência artificial. Hoje o poder das plataformas da comunicação, o dinheiro dos gigantes financeiros, e o controle dos nossos comportamentos íntimos geram uma nova ameaça, e se tornaram dominantes. Estamos na era da inteligência artificial manipulando a profundidade das nossas emoções, das nossas dimensões irracionais, buscando nos trancar em regimes obscurantistas.

O ponto de partida das autoras é a própria Polônia, onde o tradicionalismo religioso e o controle das políticas feministas, o “anti-gender” como é qualificado no plano mundial, foram apropriados pelo partido PIS (Prawo i Sprawiedliwosc: Direito e Justiça) para eleger um governo fundamentalista religioso de extrema direita. Quando chegaram ao extremo de proibir e criminalizar o aborto até em casos de estupro e de malformação do feto, houve uma reação impressionante: meio milhão de mulheres desceram às ruas, vestidas de preto, e com cartazes radicais em defesa dos direitos das mulheres. A causa do aborto, tratada com tantos cuidados e prudência em diversos países, aqui foi escancarada, e transformada em movimento político poderoso, contribuindo fortemente, inclusive, para a queda do PIS em 2023. Caiu o governo, mas o enraizamento do discurso populista, a propagação da sua falsa superioridade moral, e a sua articulação com o populismo político continuam muito presentes na sociedade, em particular no meio rural e nas camadas mais pobres.

Segundo as autoras, “As campanhas antigênero se alimentam de sentimentos religiosos e empregam discursos moralizantes, mas sua disseminação só pode ser devidamente compreendida no contexto da ascensão de forças políticas de direita que buscam meios ideológicos e afetivos para ganhar hegemonia.”(164) Trata-se de manipulação de sentimentos, no sentido mais direto. “A retórica anti-gênero funciona porque reorienta a raiva coletiva para longe das questões econômicas estruturais e para as morais. No processo, o anti-generismo confere aos sujeitos a memória de uma vergonha imaginária e a promessa de uma nova dignidade; oferece satisfação moral (nossos inimigos são maus, mas miseráveis), um senso de propósito e uma comunidade.”(135) O populismo, segundo as autoras, “se alimenta do ressentimento e do medo, e tende a moralizar os conflitos e necessita de inimigos.”

“Argumentamos que a mobilização antigênero desempenhou um papel importante na consolidação da direita populista como um movimento transnacional, que aproveita com sucesso a ansiedade, a vergonha e a raiva causadas pelo neoliberalismo. Em país após país, atores antigênero construíram alianças com populistas de direita: juntos eles atacaram os direitos das mulheres, minorias sexuais e étnicas, promovendo o que os conservadores chamam de “valores familiares”. Os vários episódios que observamos em diferentes contextos – campanhas contra o aborto e a educação sexual, esforços para impedir a ratificação da Convenção de Istambul e ataques contra a comunidade LGBT – somam-se a um fenômeno transnacional na interseção de cultura, religião e política, que liga diferentes atores e agendas ideológicas muitas vezes díspares.”(165)

O sucesso da impressionante mobilização feminina na Polônia foi devido em grande parte ao fato de responder na mesma moeda, nas emoções, na solidariedade, na reversão do medo, indo além do papel que desempenha a argumentação racional. As mulheres desceram às ruas com raiva. “Na Polônia, A luta das mulheres pela liberdade reprodutiva foi promulgada com sucesso como uma revolta popular, uma luta pela democracia e contra a violência do populismo de direita. Também acabou sendo um movimento de esquerda, que prontamente apoiou protestos de pessoas com deficiência exigindo incluir entre os seus objectivos um conjunto de exigências relativas à cuidados, provisões sociais para famílias e justiça social.”(162)

As autoras citam o manifesto Feminismo para os 99%: “O que estamos vivendo é uma crise da sociedade como um todo. De forma alguma restrito aos recintos das finanças, é simultaneamente uma crise de economia, ecologia, política e “cuidado”. Uma crise geral de toda uma forma da organização social, é no fundo uma crise do capitalismo – e em particular da forma viciosamente predatória de capitalismo que habitamos hoje: globalizante, financeirizado, neoliberal.”(p.142)

A leitura do livro nos enriquece muito, na medida em que traz informações sobre como a extrema direita, que hoje tanto progride no mundo, utiliza esta articulação da sexualidade, da falsa proteção “das nossas crianças”, da manipulação religiosa, da moralidade familiar, da mídia social, de símbolos poderosos como a pátria, para favorecer a submissão ao mundo corporativo.

Permite também, em diversos capítulos, entender como organizações de extrema direita se organizam no mundo para esta articulação, com participação direta, por exemplo, de Steve Bannon, tão importante na eleição do Trump nos Estados Unidos, inclusive com referências ao bolsonarismo.

São desafios políticos no sentido mais amplo, envolvendo muito além dos partidos e das propostas de políticas públicas. Usam as tecnologias mais avançadas de comunicação, e também o enraizamento nas comunidades religiosas, para formar uma máquina de manipulação poderosa. Para mim, a leitura simultânea do livro de Bruno Manso mencionado acima, e da análise dos diversos movimentos no plano internacional, ajuda a entender o deslocamento profundo do que chamamos de política. Trata-se de uma batalha de valores e de civilização. Lembrando mais uma vez que o livro em inglês está disponível gratuitamente online, no link (Anti-Gender Politics in the Populista Momento – Agnieszka Graff, Elzbiet (taylorfrancis.com) Eu recomendaria muito que fosse traduzido e publicado online no Brasil.

O campo democrático e o nosso patrimônio constitucional, por Oscar Vilhena Vieira

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Será preciso reinventar a forma de fazer política para enfrentar ameaças à democracia

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023)

Folha de São Paulo, 07/09/2024

Estamos completando 200 anos de uma trajetória constitucional intensa e acidentada. Intensa pois o corpo das sucessivas Constituições e Cartas Constitucionais têm sido o campo onde se travaram as principais disputas em torno do destino da nação. Da unidade nacional à Abolição, passando pelo federalismo, a construção da ordem conservadora, o desenvolvimentismo, assim como a promoção da democracia e dos direitos, tudo passou pela arena constitucional.

Essa constante disputa gerou, no entanto, uma história constitucional acidentada, que nos levou a adotar diversas linhagens de constituição. Quatro Cartas centralizadoras e conservadoras, impostas por governantes autoritários; e quatro Constituições liberais ou progressistas, resultantes de processos mais ou menos inclusivos.

Além das cicatrizes deixadas pelas rupturas, há, de um lado, sequelas crônicas das promessas constitucionais não cumpridas, como a violência, as profundas desigualdades e as dificuldades econômicas. De outro lado, um forte ressentimento com tudo aquilo que ameace privilégios e a hierarquia social.

Nosso constitucionalismo sempre esteve submetido a uma forte tensão entre aqueles que apostam no aprofundamento da democracia, do federalismo, do Estado de Direito e da ampliação de direitos e os que acreditam que apenas o fortalecimento do poder central e da ordem conservadora serão capazes de promover o desenvolvimento. Em comum, ambos os polos parecem tolerantes com um ineficiente capitalismo de compadrio.

A Constituição de 1988 foi, em grande medida, uma resposta a essa tensão. Ponto culminante do processo de transição, resultou de um compromisso entre as principais correntes que povoaram nosso terreiro político. Adotou um sistema político consensual, como resposta à tradição populista e autoritária do presidencialismo. Fortaleceu o Parlamento, o Judiciário e a federação. Ampliou direitos, especialmente dos grupos vulneráveis e tradicionalmente discriminados. Olhou para a frente, determinando investimentos obrigatórios em educação e saúde e protegendo o meio ambiente. Fez tudo isso sem, no entanto, remover privilégios, mecanismos regressivos e um capitalismo impotente.

Nos últimos anos, esse projeto de Constituição, de linhagem pluralista e social-democrática, vem sendo desafiado não apenas pelas tradicionais forças da ordem conservadora e hierárquica como por uma concepção libertária e pré-política. Um individualismo radical, focado no sucesso individual, que não aceita regras e despreza valores democráticos.

Figuras como as do multibilionário Musk e do multimilionário Marçal, que capturaram o noticiário político brasileiro nesta semana, ameaçando e debochando das instituições, simbolizam os novos desafios que as democracias constitucionais, não apenas a brasileira, terão que enfrentar na próxima quadra.

A defesa da democracia constitucional não pode ser deixada apenas sob a responsabilidade de suas instituições. A Justiça não substitui a política. Sem que o campo democrático seja capaz de reinventar a forma de fazer política e cumprir suas promessas, dificilmente legará às futuras gerações o seu patrimônio constitucional, ainda que imperfeito, que recebeu.

Brasil sufoca em fumaça e a culpa é do agro, por Marcelo Leite

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Setor ruralista vai pagar caro por cegueira diante da crise do clima

Marcelo Leite, Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

Folha de São Paulo – 07/09/2024

Faz mais de duas semanas que brasileiros de todos os quadrantes do território respiram fumaça e vivem cansados ou doentes. Um belo Sol tingido de vermelho não compensa o sofrimento.
O país passa por estiagem excepcional, que alguns proprietários irresponsáveis aproveitam para tocar fogo em sua área ou monturos de detritos. Faíscas e chamas se espalham dizimando matas, empesteando o ar.

Crianças e idosos são os que mais sofrem, com laringites, rinites e pneumonias que logo retornam. Mas todo mundo, moço ou velho, anda irritado. Não é uma condição favorável a enxergar o óbvio: a culpa é do agronegócio.

Considere o Dia do Fogo em São Paulo, no final de agosto. Levantamento do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) constatou que 81,3% de 2.600 focos de incêndio entre os dias 22 e 24 tiveram origem em áreas de agropecuária.

Verdade que muitos canaviais se incineraram, com prejuízo para o setor sucroalcooleiro. Decerto usineiros não têm interesse em ver a plantação arder. Só que eles integram a banda menos atrasada do agro, não são representativos da média ruralista.

O protótipo do homem do campo é um pecuarista useiro em queimar o pasto para se livrar de pragas. Subestimam o risco decorrente do clima seco e dos ventos quentes, depois não conseguem manejar o fogo.

Isso quando as queimadas não são mera atividade criminosa, como no caso da queima de troncos e galhos resultantes de desmatamento ilegal. Não adianta proibi-las; governos mal conseguem fiscalizar o corte raso e sofrem ainda mais para monitorar o fogo.

É ingenuidade pensar que o poder público possa resolver o problema enviando brigadistas do ICMBio para combater as chamas. Nenhum governo do mundo pode se preparar para conter incêndios que abrangem milhões de quilômetros quadrados e produzem mantas de fumaça contínua visíveis por satélite.

É imperioso prevenir, não remediar. E a prevenção só se tornará eficaz quando atingir o bolso dos incendiários, criminosos ou não.

A iniciativa Map Biomas já demonstrou a eficiência de automatizar alertas de desmatamento. Seria agora o caso de investigar a possibilidade técnica de desenvolver sistema similar para fogo não autorizado.

A seca atual abarca 58% do território e é a pior desde 1950, segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Não parece mero acaso que o dado tenha saído um dia após o IBGE divulgar o PIB trimestral assinalando que o agro encolheu 2,3% quando a economia crescia 1,4%.

O colunista Bráulio Borges estima que anomalias em chuvas desde 2012 subtraíram entre 0,8 e 1,6 ponto percentual do PIB brasileiro. E isso tem a ver com o setor rural: “A produtividade da agropecuária, que cresceu cerca de 4% ao ano entre 1970 e 2011, avançou apenas 1,5% a.a. no período 2012-2021”, escreveu.

Não fosse a valorização das commodities agrícolas em 2020/22 e do dólar após a pandemia, analisa, a renda no campo teria sofrido muito nos últimos anos. De quanto prejuízo no bolso o agro vai precisar para escapar das garras do negacionismo climático e da banda ogra que o representa no Congresso?

As mãos divinas do mercado, por Belluzzo & Back

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Manfred Back & Luiz Gonzaga Belluzzo

A Terra é Redonda – 30/06/2022

Nossa autoridade monetária voltou ao caminho da fé financista, viu a luz no caminho de Damasco…Faria Lima! Amém…

“A liberdade consiste em conhecer os cordéis que nos manipulam”
(Baruch Espinosa).

Na última reunião do comitê de política monetária do Banco Central do Brasil (Copom), por unanimidade foi ratificada a manutenção da Taxa Selic em 10,5% ao ano e a suspensão temporária de cortes na taxa básica. No Templo dos Milagres do Financismo, localizada na Faria Lima, o pastor J. P. Morgan no final do culto bradou em êxtase: Amém, Irmãos! A credibilidade voltou!

Nossas preces foram ouvidas, somos o povo escolhido para ganhar dinheiro, nossa verdade, é a nossa fé! Os fiéis gestores do dinheiro alheio fizeram o coro: Oh a credibilidade voltou, oh oh…

O Deus Mercado sempre está certo, amém irmãos! Quem melhor entende do vil metal? Nós ou o Banco Central? Nossa autoridade monetária voltou ao caminho da fé financista, viu a luz no caminho de Damasco…Faria Lima! Amém…

O dilúvio da desancoragem das expectativas inflacionárias foi salvo pelas mãos divinas do mercado. Contra a fé e o dogma metamorfoseados em Ciência, ninguém pode! Nem o Bacen! Amém, duas vezes, irmãos!

No livro Poder e progresso Daron Acemoglu e Simon Johnson relembram Edmund Burke, contemporâneo de Jeremy Bentham e Adam Smith. Edmund Burke referia-se às leis do comércio como “as leis da natureza e, consequentemente, as leis de Deus. Como alguém poderia se opor às leis divinas?”

Assim, vamos excomungar os infiéis do Federal Reserve, sempre dispostos a renegar nossas crenças. Eles dizem: “Desde o final de 2008 até outubro de 2014, a Reserva Federal expandiu grandemente a sua detenção de títulos de longo prazo através de compras no mercado aberto com o objetivo de exercer pressão descendente sobre as taxas de juro de longo prazo e, assim, apoiar a atividade económica e a criação de emprego, tornando as condições financeiras mais acomodativo”. (site do FED).

“O dinheiro que utilizamos para comprar obrigações quando estávamos a realizar a flexibilização quantitativa não provinha de impostos nem de empréstimos governamentais. Em vez disso, tal como outros bancos centrais, podemos criar dinheiro digitalmente sob a forma de “reservas do banco central”.

“Usamos essas reservas para comprar títulos. Os títulos são essencialmente notas promissórias emitidas pelo governo e pelas empresas como forma de pedir dinheiro emprestado”.

“Agora que estamos a reverter a flexibilização quantitativa, alguns desses títulos vencerão e estaremos vendendo outros aos investidores. Quando isso acontecer, o dinheiro que criamos para comprar os títulos desaparecerá e a quantidade total de dinheiro na economia diminuirá”. (site do Banco da Inglaterra)

Felizmente, dizem os Sacerdotes da Seita Faria Lima, o Banco Central do Brasil, está impedido de fazer esse tipo de operação amaldiçoada, praticada sem pejo por nossos irmãos anglo-saxões, tão admirados aqui. No Brasil a autoridade máxima monetária não pode determinar, intervir ou ancorar a estrutura a termo da taxa de juros. Nossa crença exige que a autonomia operacional seja contida nos limites da fé imposta pelo sacramento das Metas de Inflação.

Segundo os mandamentos da Seita Faria Lima, o Banco Central só pode definir a taxa Selic a cada 45 dias, em conformidade com o Boletim Focus, o santo graal das expectativas. Só eles falam com Deus Dinheiro! Os mortais das fábricas de parafusos não entendem de âncoras, só de parafusos! Amém, duas vezes irmãos!

Reza a legislação dos crentes Brazucas: “O objetivo fundamental do BC é assegurar a estabilidade de preços, além de, acessoriamente, zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego”. (site do BACEN).

Para apaziguar o espírito dos crentes, graças às prescrições do Velho Testamento do Senhor Dinheiro, a autoridade monetária não deve fazer política monetária e escapa do objetivo enganoso de suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego. Por quê?

Porque negar os mandamentos do Deus Mercado é pecado sem remissão!

Nos cultos aos domingos, os mais concorridos, o cântico final é o mais esperado, onde o pastor J. P. Morgan puxa a reza final: fiscal, fiscal, fiscal! A oração mais esperada: o dinheiro nosso que estás no céu. Contra satã: a dívida pública explosiva e o estado esbanjador!

As ditas operações compromissadas, são um instrumento comum dos bancos centrais para controlar a taxa básica fixada no mercado interbancário. No nosso caso, diferente de nossos irmãos do Norte, a autoridade monetária usa título público federal com clausula de recompra, para manter a taxa básica. Muito lucrativa aos bancos, e risco zero. Cabe uma observação importante, instituições financeiras existem para ganhar dinheiro. O que podem ou não podem fazer, cabe a autoridade monetária definir. Aqui podem quase tudo, afinal, são elas que garantem a credibilidade do Banco Central.

As operações compromissadas são registradas como dívida pública federal. Estimam-se entre 20 a 30% do total, seria na ordem de quase dois trilhões de reais. São operações de política monetária, nada a ver com o financiamento do déficit público. Mas serve ao mantra da congregação da faria lima: fiscal, fiscal…

Para barrar as incursões de Galileu Galilei o Cardeal Belarmino escreveu para outro clérigo: “… querer afirmar que realmente o Sol está no centro do mundo e gira apenas sobre si mesmo sem correr do oriente ao ocidente e que a Terra está no 3º céu e gira com suma velocidade em volta do Sol, é coisa muito perigosa não só de irritar todos os filósofos e teólogos escolásticos, mas também de prejudicar a Santa Fé ao tornar falsas as Sagradas Escrituras”.

Voltamos aos heréticos do Federal Reserve: Durante o processo de normalização da política que começou em dezembro de 2015, a Reserva Federal utilizou pela primeira vez acordos de recompra reversa overnight (ON RRPs) – um tipo de OMO – como uma ferramenta de política suplementar, conforme necessário, para ajudar a controlar a taxa de fundos federais e manter dentro da faixa-alvo definida pelo FOMC.

Em setembro de 2019, a Reserva Federal utilizou acordos de recompra (repo) a prazo e overnight para garantir que a oferta de reservas permanecesse ampla, mesmo durante períodos de aumentos acentuados nos passivos não relacionados com reservas, e para mitigar o risco de pressões do mercado monetário que poderiam afetar negativamente política de implementação.

A Reserva Federal continuou a oferecer acordos de recompra overnight e, no contexto do stress relacionado com a COVID por volta de março de 2020, os acordos de recompra a prazo e overnight desempenharam um papel importante para garantir que a oferta de reservas permanecesse ampla e apoiar o bom funcionamento dos mercados de financiamento de curto prazo em dólares dos EUA.

Na Declaração sobre acordos de acordo de recompra divulgada em 28 de julho de 2021, o Federal Reserve anunciou o estabelecimento de um mecanismo de recompra permanente (SRF) nacional. Ao abrigo do SRF, a Reserva Federal realiza diariamente operações de recompra overnight contra títulos elegíveis. “O FUR serve de apoio nos mercados monetários para apoiar a implementação eficaz da política monetária e o bom funcionamento do mercado”. (site do FED)

Nosso irmão do Norte, faz o mesmo tipo de operação, e não é contabilizado como dívida pública! Indagam os hereges: “Cadê nossa autonomia operacional? Por que não implementar os depósitos voluntários, e acabar de vez com as compromissadas, como a grande maioria dos bancos centrais no mundo?”

A Seita Faria Lima não deixa. Amém irmãos!

Prosseguem os malditos hereges: “A taxa de juros sobre os saldos de reservas (taxa IORB) é determinada pelo Conselho e é uma ferramenta importante para a condução da política monetária do Federal Reserve. Para a configuração atual da taxa IORB, consulte a nota de implementação mais recente emitida pelo FOMC. Esta nota fornece as configurações operacionais para as ferramentas de política que apoiam a meta do FOMC para a taxa de fundos federais”.

“Os depósitos a prazo facilitam a implementação da política monetária, proporcionando uma ferramenta adicional através da qual a Reserva Federal pode gerir a quantidade agregada de saldos de reservas detidos pelas instituições depositárias. Os fundos colocados em depósitos a prazo são retirados das contas de reserva das instituições participantes durante a vigência do depósito a prazo e, assim, drenam os saldos de reserva do sistema”. (site do FED).

Alô, Cardeal Belarmino, é hora de convocar a Inquisição!!!

*Manfred Back é professor de economia e mercado de capitais na ESPM.

*Luiz Gonzaga Belluzzo, economista, é Professor Emérito da Unicamp. Autor entre outros livros,
de O tempo de Keynes nos tempos do capitalismo (Contracorrente).

Governo alemão deporta refugiados, por Flávio Aguiar

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Flávio Aguiar – A Terra é Redonda – 04/09/2024

Há na Alemanha mais de 50 mil ordens de deportação contra refugiados que tiveram negados seus pedidos de asilo

O governo alemão decidiu endurecer sua política em relação a refugiados considerados como em situação ilegal no país. Na semana passada já houve a deportação de um primeiro grupo para seu país de origem, o Afeganistão.

A decisão aconteceu na sequência de um atentado a facadas na cidade de Solingen, perto de Colônia e Bonn, a antiga capital da Alemanha Ocidental. O atentado deixou um saldo trágico de três mortos e vários feridos, alguns com gravidade. A polícia deteve um suspeito, um cidadão sírio que pedira asilo no país e o tivera negado. O acusado desapareceu, só reaparecendo no trágico incidente em Solingen.

Ele fora admitido na Bulgária, e deste país passou para a Alemanha. O governo alemão aprovara sua deportação para aquele país, de onde viera. A Bulgária concordou com a deportação, mas ela acabou não acontecendo devido a desaparição de acusado.

A organização Estado Islâmico divulgou um vídeo em que reivindicava a autoria de atentado como uma “vingança” pelo que estava acontecendo com os palestinos na Faixa de Gaza.

Seguiu-se um tumulto político, em que o líder do principal partido de oposição, Friedrich Merz, da União Democrata Cristã, acusou o governo do chanceler Olaf Scholz, do SPD, Partido Social Democrata, de negligência, e propôs uma ação conjunta para solucionar o problema.

Surpreendentemente o chanceler aceitou a proposta, o que levantou receios de que sua coalizão de governo, formada também pelo Partido Verde e o liberal FDP, rachasse. Isto não aconteceu, pois os líderes deste partido apoiaram a decisão de Olaf Scholz.

Há na Alemanha mais de 50 mil ordens de deportação contra refugiados que tiveram negados seus pedidos de asilo. Entretanto destas, até o momento, somente pouco mais de 20 mil foram efetivadas. A esmagadora maioria delas atinge originários de países africanos ou do Oriente Médio, muitos dos quais entraram na União Europeia através de outros países, dirigindo-se depois para a Alemanha. Olaf Scholz comprometeu-se a restringir essa possibilidade de acesso, além de agilizar as deportações já aprovadas e o julgamento dos casos pendentes.

O debate e as medidas restritivas ocorrem num momento em que aconteceram eleições regionais em estados do antigo Leste alemão, a Turíngia e a Saxônia, e o governo federal se vê acossado pelo crescimento das votações da oposição tradicional – a União Democrata Cristã – e da extrema direita, no partido Alternative für Deutschland, Alternativa para a Alemanha. Este, radicalmente voltado contra imigrantes e refugiados, vem ditando a pauta sobre esta questão na Alemanha, assim como acontece em outros países do continente.

Para complicar o cenário, a economia alemã vem se retraindo nos últimos tempos, num processo de desindustrialização, apesar dos esforços por parte do governo de revitalizar a indústria bélica alemã.

Neste quadro, à beira do abismo de uma recessão prolongada, a busca de bodes expiatórios prospera, e os candidatos mais cotados para esta função são os emigrados provenientes do chamado Terceiro Mundo, em particular os muçulmanos, sobre os quais sempre paira a suspeita, no mais das vezes indevida, de adesão a grupos terroristas.

Organizações de defesa dos direitos humanos, como a Caritas, vêm manifestando preocupação de que esta circunstância possa desandar num quadro de discriminação generalizada.

Estes últimos desenvolvimentos na Alemanha se dão num contexto continental de crescimento das discriminações contra estrangeiros não europeus, como aconteceu recentemente no Reino Unido, onde um ataque fatal contra crianças, também a facadas, deflagrou uma série de vandalismos contra mesquitas e centros de acolhimento de imigrantes, insuflados por mensagens mentirosas, de extrema direita, sobre a identidade do assaltante, divulgadas na internet.

Durante a década e meia do governo da chanceler Angela Merkel, da União Democrata Cristã, a Alemanha destacou-se por uma política generosa de acolhimento de imigrantes e refugiados de todas as partes do mundo. Agora está abertura vem se fechando gradativamente, em parte por pressões de seu próprio partido, que, em disputa com o Alternative für Deutschland, arrisca voltar-se, também como a coalizão governamental, para políticas que revigoram o fantasma da xenofobia e da discriminação.

Da Rádio França Internacional especialmente para a Agência Rádio Web, Flávio Aguiar, direto de Berlim.

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo)

Apostas estratégicas

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A sociedade vem passando por grandes transformações nas últimas décadas, novas oportunidades e novos desafios surgem diariamente, levando as nações, as empresas e os seres humanos à tomada de decisões estratégicas, sob pena de perder espaço na economia internacional, perderem competitividade e serem ultrapassados pelos concorrentes diretos e indiretos.

Num ambiente de constantes transformações, todos os agentes econômicos e produtivos são impulsionados a escolhas e apostas cotidianas, levando-os a tomada de decisões urgentes e imprescindíveis, traçando horizontes, desenvolver conhecimentos, compreendendo as movimentações corporativas, aprendendo com os novos modelos de negócios e fazendo apostas estratégicas.

Os indivíduos apresentam desafios generalizados, tanto profissionais como pessoais e emocionais, muitas profissões que sempre atraíram muitas pessoas estão perdendo relevância, gerando imensas massas de profissionais desempregados ou na informalidade, criando uma desesperança, aumentando o medo e os ressentimentos que podem culminar em depressão e desequilíbrios emocionais. Neste cenário, percebemos a importância de se capacitar constantemente, uma constante atualização profissional, novas experiências intelectuais e culturais contribuem muito para a formação do profissional. Anteriormente os trabalhadores competiam localmente, em muitos casos até nacionalmente, agora a competição é global, encontramos pessoas nas mais variadas regiões do mundo, com suas especificidades, seus comportamentos, suas identidades, seus valores e suas variadas culturas.

As organizações precisam construir novas estratégias organizacionais como forma de qualificar seus sistemas produtivos, capacitar fortemente seus trabalhadores, criando estímulos constantes, além de uma grande capacidade de motivação e de liderança, além de satisfazer os anseios variados de seus consumidores, que mudam constantemente seus desejos, suas vontades e suas necessidades, desta forma, as empresas precisam construir uma cultura de constante movimentação, criatividade, agilidade e flexibilidade.

As nações precisam se atentar para os grandes desafios contemporâneos, num momento de grandes transformações geopolíticas e comerciais as oportunidades crescem, exigindo posicionamentos estratégicos, fortes investimentos em capital humano, capacitando seus cidadãos para compreenderem as oportunidades crescentes da sociedade globalizada, centradas no desenvolvimento tecnológico e pela maior competição, exigindo transferências de tecnologias dos parceiros comerciais estratégicos, além de forte solidariedade nos momentos de instabilidades e de incertezas da economia mundial.

Vivemos numa sociedade marcada por grandes desafios e oportunidades, além de inúmeras possibilidades, com variadas escolhas, levando os atores econômicos e produtivos a aumentarem as suas apostas cotidianas, gerando ganhos elevados, altos retornos ou, muitas vezes, inúmeras frustrações, além de prejuízos que podem trazer graves constrangimentos.

Neste momento de constantes transformações da sociedade internacional, marcada pelo incremento da competição e pelo desenvolvimento de novas tecnologias, percebemos que todos os atores produtivos precisam adotar estratégias arriscadas, que podem influenciar e vislumbrar novos horizontes, muitas organizações que lideraram seus mercados e foram referências em suas épocas fizeram escolhas equivocadas, apostando em caminhos errados, perdendo espaços e foram ultrapassados pelos concorrentes, lembremos de empresas como Xerox, Yahoo, Nokia, Kodak, dentre outras.

Vivemos momentos de grandes transformações, mas o que caracteriza este momento da comunidade internacional é a rapidez destas transformações, que exigem mudanças cotidianas, rapidez de raciocínio e agilidades constantes, levando os indivíduos e as organizações a uma sensação de constante exaustão, estresse, ansiedade e desequilíbrios emocionais.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário

Em busca de maior Autonomia Tecnológica, por Fernando Nogueira da Costa

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A Terra é Redonda – 02/09/2024

Alcançar autonomia tecnológica no Brasil requer uma abordagem multidisciplinar e integrada, envolvendo educação, infraestrutura, políticas públicas, incentivos financeiros e colaboração internacional

A economia brasileira, apesar de ser uma das maiores do mundo (8ª.) e possuir avanços superiores em setores como agricultura, mineração, extração de petróleo e aviação, ainda apresenta lacunas tecnológicas em várias indústrias estratégicas. Nestas áreas, o Brasil depende de multinacionais para atrair investimentos, transferir tecnologia, ou precisa importar produtos e tecnologias avançadas para suprir as demandas do mercado interno.

Por exemplo, em Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), embora o país tenha uma indústria de software crescente e um setor de startups em expansão, ainda depende de multinacionais para o fornecimento de hardware, semicondutores, e tecnologias avançadas de comunicação, como equipamentos para redes 5G. Grande parte dos equipamentos de telecomunicações, componentes eletrônicos e sistemas de computação avançada são importados, com destaque para países como Estados Unidos, China, e Taiwan, dominantes do mercado global de semicondutores.

O Brasil tem uma indústria farmacêutica especializada na produção de medicamentos genéricos, mas ainda dependente de multinacionais para o desenvolvimento de medicamentos inovadores, vacinas, e biotecnologias avançadas. O país importa grande parte dos insumos farmacêuticos ativos (IFAs) e tecnologias para a produção de biomedicamentos. A pandemia de COVID-19 ressaltou essa dependência, quando o Brasil teve de importar vacinas e materiais para sua produção.

A produção de semicondutores é crucial para várias indústrias, incluindo eletrônicos, automotiva e telecomunicações. O Brasil não possui uma indústria relevante de semicondutores e depende de importações para suprir a demanda.

Semicondutores são importados principalmente de países asiáticos dominantes da produção mundial. O Brasil precisa atrair multinacionais ou desenvolver capacidades locais para reduzir essa dependência.

Quanto às Tecnologias de Energia Renovável Avançada, embora o Brasil seja um líder mundial em energia hidrelétrica e tenha uma base crescente de energia eólica e solar, a produção de equipamentos de alta tecnologia para esses setores, como turbinas eólicas e painéis solares de última geração, depende de empresas multinacionais. Equipamentos e tecnologias avançadas, como inversores solares, turbinas de alta eficiência, e tecnologias de armazenamento de energia, são importados de países como Alemanha, China e Estados Unidos.

A Embraer é um destaque na aviação regional, mas o Brasil depende de multinacionais para tecnologias de ponta na Indústria de Defesa Aeroespacial, como sistemas de radar, mísseis, satélites, e aeronaves de combate avançadas. Para desenvolver capacidades mais avançadas, o Brasil precisa importar ou firmar parcerias com empresas de países como Estados Unidos, Israel e Rússia. Têm tecnologias mais avançadas nesses setores.

A indústria automotiva brasileira é de grande porte, mas a produção de veículos elétricos, híbridos e autônomos, requerem tecnologias avançadas. Aqui está em estágio inicial. A maioria das tecnologias relacionadas a baterias de lítio, motores elétricos, e sistemas de inteligência artificial para veículos autônomos são importadas de países como China, Alemanha e Japão.

A nanotecnologia é uma área emergente com aplicações em setores como medicina, eletrônicos e materiais avançados. No entanto, o Brasil não desenvolveu plenamente essa indústria e depende de importações e parcerias para avançar. Equipamentos, materiais e know-how em nanotecnologia são importados, com destaque para parcerias com empresas e instituições de pesquisa de países como Estados Unidos, Japão e Alemanha.

O Brasil tem feito avanços em inteligência artificial, principalmente em setores de serviços e fintechs, mas depende de tecnologias estrangeiras para aplicações mais avançadas em robótica, automação industrial, e inteligência artificial aplicada. A maioria dos sistemas avançados de robótica e plataformas de IA utilizadas em indústrias brasileiras são desenvolvidas por empresas estrangeiras, em geral, dos mesmos países antes citados.

A economia brasileira, apesar de seus avanços em várias indústrias, depende de tecnologias estrangeiras e da presença de multinacionais em setores estratégicos. A importação de produtos e a atração de empresas globais são essenciais para preencher essas lacunas, enquanto o país trabalha para desenvolver suas capacidades tecnológicas e reduzir a dependência externa a longo prazo. Iniciativas de políticas públicas voltadas para inovação, pesquisa e desenvolvimento, assim como parcerias internacionais, serão cruciais para fortalecer a base tecnológica brasileira nessas áreas.

Para o Brasil alcançar certa autonomia tecnológica, é necessário implementar uma série de ações coordenadas e políticas estratégicas desde a formação de capital humano até o desenvolvimento de infraestrutura e fomento à inovação.

A base para qualquer desenvolvimento tecnológico é educação e capacitação de capital humano em quantidade e qualidade. É crucial investir na qualidade da Educação Básica, especialmente em áreas como Matemática e Ciências Exatas, além da alfabetização digital. A Educação Superior também deve ser fortalecida, com ênfase em Engenharia, Ciências da Computação, Biotecnologia, e outras áreas técnicas críticas.

É essencial expandir a formação de pesquisadores, engenheiros e técnicos especializados. Programas de pós-graduação devem ser ampliados e alinhados com as demandas tecnológicas estratégicas do país.

Com o avanço rápido da tecnologia, é necessário promover programas de educação continuada e requalificação profissional para garantir a força de trabalho se manter atualizada e capaz de lidar com novas tecnologias.

O governo deve oferecer incentivos fiscais e subsídios para empresas investirem em Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I), criando um ambiente favorável para a inovação. Políticas públicas (como a Lei do Bem: Lei 11.196/2005) oferecem benefícios fiscais para empresas investidoras em pesquisa.

Cabe promover colaborações entre universidades, centros de pesquisa e o setor privado para desenvolver tecnologias e soluções inovadoras. As Parcerias Público-Privadas (PPPs) ajudam a transformar descobertas científicas em produtos e serviços comercializáveis. Necessita desenvolver e expandir parques tecnológicos, incubadoras e aceleradoras de startups para apoiar a criação e crescimento de empresas de base tecnológica.

Um objetivo chave é ampliar e modernizar a infraestrutura de telecomunicações, garantindo acesso universal à internet de alta velocidade e expandindo as redes de fibra óptica, 5G e outras tecnologias de comunicação essenciais. Investir na criação e modernização de centros de pesquisa e laboratórios com infraestrutura avançada propicia apoiar pesquisas em áreas estratégicas, como biotecnologia, nanotecnologia, inteligência artificial, e energia renovável.

A Nova Indústria Brasil, isto é, a política de reindustrialização), é norteada por metas aspiracionais relacionadas a cada uma de suas seis missões.

1 – A garantia da segurança alimentar e nutricional dos brasileiros passa pelo fortalecimento das cadeias agroindustriais (missão 1).

2 – Na área da saúde (missão 2), a meta é ampliar a participação da produção no país de 42% para 70% das necessidades nacionais em medicamentos, vacinas, equipamentos e dispositivos médicos.

3 – Para melhoria do bem-estar das pessoas nas cidades (missão 3), investirá em infraestrutura, saneamento, moradia e mobilidade sustentáveis.

4 – Para tornar a indústria mais moderna e disruptiva, há a meta de transformar digitalmente (missão 4) 90% do total das empresas industriais brasileiras (hoje são 23,5%) digitalizadas e triplicar a participação da produção nacional nos segmentos de novas tecnologias.

5 – Entre as metas estabelecidas com foco na bieconomia, descarbonização e transição e segurança energéticas (missão 5) está a de ampliar em 50% a participação dos biocombustíveis na matriz energética de transportes — atualmente os combustíveis verdes representam 21,4% dessa matriz.

6 – Por fim, na área da defesa (missão 6), pretende-se alcançar autonomia na produção de 50% das tecnologias críticas de maneira a fortalecer a soberania nacional.

Em síntese, alcançar autonomia tecnológica no Brasil requer uma abordagem multidisciplinar e integrada, envolvendo educação, infraestrutura, políticas públicas, incentivos financeiros e colaboração internacional. A construção de um ambiente favorável à inovação, combinado com o desenvolvimento de capacidades internas em áreas estratégicas, permitirá ao país não apenas reduzir sua dependência de tecnologias estrangeiras, mas também posicionar-se como um líder global em setores chave.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP)

Informação não é conhecimento, e IA é a tecnologia mais poderosa da história, diz Yuval Harari

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Em entrevista à Folha sobre seu novo livro que aborda o assunto, autor de ‘Sapiens’ defende que ferramenta seja regulada como carros e remédios
Patrícia Campos Mello – Folha de São Paulo – 03/09/2024

São Paulo – O israelense Yuval Noan Harari, um dos autores mais populares da atualidade, alerta para um futuro aterrador em seu novo livro, “Nexus: Uma Breve História das Redes de Informação, da Idade da Pedra à inteligência artificial”, cujo lançamento mundial ocorre nesta terça-feira (3).

Segundo ele, a humanidade está pisando no acelerador do desenvolvimento da inteligência artificial, mas não sabe como freá-la.

“A IA é a tecnologia mais poderosa já criada pela humanidade, porque é a primeira que pode tomar decisões: uma bomba atômica não pode decidir quem atacar, nem pode inventar novas bombas ou novas estratégias militares. Uma IA, ao contrário, pode decidir sozinha atacar um alvo específico e pode inventar novas bombas”, diz à Folha o historiador, que vendeu 45 milhões de exemplares com “Sapiens”, “Homo Deus” e “21 Lições para o Século 21″.

Para Harari, o primeiro passo é concordar que precisamos regular a IA da mesma forma que regulamos produtos, medicamentos e carros”. Leia a seguir a entrevista, feita por e-mail.

Por que o sr. decidiu escrever um livro sobre tecnologia e inteligência artificial?
Este não é um livro apenas sobre IA. Ele explora a história das redes de informação desde a Idade da Pedra. A ideia é ter uma perspectiva histórica sobre a revolução da IA estudando o impacto das revoluções de informação anteriores.

Por exemplo, como a invenção do livro levou à Bíblia e ao cristianismo. Como a invenção da imprensa levou a uma onda de teorias da conspiração, caça às bruxas e guerras religiosas na Europa do século 16. E como os soviéticos usaram a tecnologia da informação moderna para criar sua polícia secreta.

O objetivo é entender a interação entre tecnologia e seres humanos. Especialistas em IA acham difícil entender como uma nova tecnologia influenciará a religião, a cultura e a política. Especialistas em computação tendem a ter visões ingênuas sobre a história.

Quando a internet surgiu, os gigantes da tecnologia prometeram que ela espalharia a verdade e a liberdade e levaria à queda de ditadores e ao fortalecimento da democracia. Isso não aconteceu.
Hoje temos a tecnologia de informação mais sofisticada da história, mas as pessoas estão perdendo a capacidade de conversar umas com as outras. Democracias em todo o mundo estão sendo minadas. Um conhecimento da história pode nos ajudar a entender o porquê.

Hoje, há uma quantidade recorde de informações em circulação, e a tecnologia nunca foi tão avançada. Mesmo assim, a humanidade nunca esteve tão próxima do autoextermínio por causa do aquecimento global e das guerras. Os luditas [trabalhadores têxteis que se opunham à introdução de novas máquinas durante a Revolução Industrial] estavam corretos?

Informação não é conhecimento. A maior parte da informação é lixo. Conhecimento é um tipo raro e caro de informação.

Por exemplo, é fácil inventar uma fake news atraente —você simplesmente escreve o que quiser.

Mas é difícil escrever uma reportagem verdadeira, porque pesquisar e apurar é caro. E a notícia verdadeira que você produz provavelmente atrairá menos atenção do que a fake news, porque a verdade tende a ser complicada, e as pessoas não gostam de histórias complicadas.

Podemos comparar informação com comida. Há cem anos, a comida era escassa. Então os humanos comiam qualquer coisa que encontrassem, gostavam especialmente de comida com muita gordura e açúcar. Hoje, a comida é abundante, e somos inundados por “comida lixo”, artificialmente rica em gordura e açúcar. Se as pessoas comem muito lixo, ficam doentes.

O mesmo vale para a informação, que é o alimento da mente. Estamos inundados por muita informação lixo. A informação lixo é artificialmente cheia de ganância, ódio e medo —coisas que atraem nossa atenção. Toda essa informação lixo deixa nossas mentes e sociedades doentes. Precisamos de uma dieta de informação.

O sr. chama de conceito ingênuo de informação a ideia de que quanto mais informação, melhor, e que as melhores ideias e a verdade prevalecerão naturalmente. Mas também rejeita a ideia de o governo atuar como um Ministério da Verdade. Qual é o meio-termo?

Devemos partir do pressuposto de que todos são falíveis. As corporações são falíveis, assim como o governo. Portanto, nunca devemos dar autoridade absoluta a uma única entidade.

O poder de regular a tecnologia da informação deve ser distribuído entre o governo, as corporações, os tribunais, a mídia, a academia e as ONGs. Isso é complicado, mas a complexidade é uma característica da democracia. A ditadura é simples —uma única pessoa manda em tudo e nunca admite nenhum erro. A democracia é complicada —muitas pessoas conversando e corrigindo os erros uns dos outros.

O primeiro passo crucial, no entanto, é concordar que precisamos regular a tecnologia da informação da mesma forma que regulamos produtos, medicamentos e carros.

Quando uma empresa automobilística decide produzir um novo modelo de carro, ela investe uma parte significativa de seu orçamento em segurança. Se uma empresa automobilística negligência a segurança, os clientes podem processá-la em busca de indenizações, e o governo pode impedi-la de vender seus carros.

Existem muitas leis que limitam aonde os carros podem ir, quem pode dirigir e a velocidade que podem atingir. Exatamente os mesmos padrões devem ser aplicados aos algoritmos.

Em um ensaio de junho de 2023, o bilionário Marc Andreessen disse que a inteligência artificial não destruirá o mundo; na verdade, pode salvá-lo. Faz sentido?

Andreessen está certo ao dizer que a IA pode melhorar muito nossas vidas. Ela pode criar o melhor sistema de saúde da história e ajudar a prevenir o colapso ecológico. Mas não devemos ignorar suas ameaças.

É a tecnologia mais poderosa já criada pela humanidade porque é a primeira que pode tomar decisões. Uma bomba atômica não pode decidir quem atacar nem pode inventar novas bombas ou estratégias militares. Uma IA, ao contrário, pode decidir sozinha atacar um alvo específico e pode inventar novas bombas, estratégias e até novas IAs.

A coisa mais importante a saber sobre a IA é que ela não é uma ferramenta em nossas mãos —é um agente autônomo, fazendo coisas que não esperávamos. O que acontecerá conosco quando milhões de agentes não humanos começarem a tomar decisões sobre nós e a criar coisas novas —de novos medicamentos a novas armas, de novos textos religiosos a novos tipos de dinheiro?

No livro, o sr. menciona várias vezes o ex-presidente Jair Bolsonaro como exemplo de líder populista que usou a informação como arma. Por que lhe pareceu importante incluí-lo?

Muitos livros sobre a revolução da IA focam demais os Estados Unidos e ignoram o resto do mundo.

Mas alguns dos piores efeitos da IA podem ser sentidos em lugares como o Brasil antes dos EUA. Vimos isso anteriormente na história, por exemplo, com a Revolução Industrial.

O senhor fala sobre o perigo de a IA, sem mecanismos de autocorreção, ser usada por líderes autoritários. Qual seria o cenário no Brasil, com um líder autoritário governando com a ajuda da IA?

Um grande perigo é a criação de regimes de vigilância total.

Ao longo da história, ditadores quiseram monitorar toda a população 24 horas por dia para garantir que todos estavam obedecendo às suas ordens e ninguém estava resistindo ou mantendo opiniões dissidentes. No entanto, até agora os ditadores não conseguiam fazer isso.

Primeiro, faltavam espiões suficientes. Por exemplo, a ditadura militar no Brasil nos anos 1970 não conseguia seguir 100 milhões de cidadãos brasileiros 24 horas por dia. Isso teria exigido 200 milhões de agentes da polícia secreta (porque até mesmo os agentes do DOI-Codi precisavam dormir às vezes).

Em segundo lugar, a ditadura não tinha analistas suficientes. Se todos os dias os espiões coletassem informações sobre 100 milhões de brasileiros, de onde o regime poderia obter analistas suficientes para processar todas essas informações?

Com a IA, um futuro ditador não precisaria de milhões de agentes humanos para espionar todo mundo. Smartphones, computadores, câmeras, microfones e drones poderiam fazer isso. Nem precisaria de milhões de analistas humanos. A IA poderia processar a enorme quantidade de informações e punir qualquer dissidência.

Isso já está acontecendo em algumas partes do mundo. No Irã, por exemplo, existem leis rígidas que obrigam as mulheres a usarem o hijab sempre que saem de casa. Anteriormente, era difícil fazer cumprir essas leis. Mas o regime iraniano agora usa IA. Mesmo que uma mulher dirija seu próprio carro sem hijab, as câmeras de reconhecimento facial identificam esse crime.

Quais são os mecanismos de autocorreção essenciais para garantir que a IA seja segura?
Precisamos criar instituições que possam identificar rapidamente problemas e reagir a eles.

Serão novas instituições regulatórias que atrairão alguns dos maiores talentos e serão financiadas por um imposto sobre os lucros dos gigantes de tecnologia.

Criar apenas uma instituição regulatória será perigoso, porque ela terá poder demais. Precisamos aderir ao princípio democrático da divisão de poder.

Há entusiastas da IA que nos dizem que não precisamos dessas instituições no momento.

Regulamentações retardariam o desenvolvimento e talvez dessem vantagem a competidores em outros países. Eles dizem que, no futuro, se descobrirmos que a IA é perigosa, podemos focar nossos esforços na segurança. Mas isso é insano.

Quando você aprende a dirigir um carro, a primeira coisa que ensinam é como brecar. Só depois de saber como usar os freios é que ensinam como apertar o acelerador. Isso também se aplica à IA.

Quanto ao argumento de que investir em segurança daria vantagem a competidores —isso é um absurdo. Se seus concorrentes desenvolverem um carro sem freios, isso significa que você também deve desenvolver um carro tão perigoso?

RAIO-X | Yuval Noah Harari, 48
Nascido em Israel, é professor na Universidade Hebraica em Jerusalém e pesquisador na Universidade de Cambridge. Formado em história militar e medieval na Universidade Hebraica, tem doutorado pela Universidade de Oxford. Autor dos best-sellers mundiais “Sapiens – Uma Breve História da Humanidade”, “Homo Deus – Uma Breve História do Amanhã” e “21 Lições para o Século 21”, traduzidos para 65 idiomas.