Fogo na mata é pedra cantada, por Manuel Domingos Neto

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Manuel Domingos Neto,

A Terra é Redonda, 19/09/2024

O Brasil precisa de um tipo de desenvolvimento que sepulte a mentalidade colonial prevalecente, inclusive em importantes parcelas da esquerda

Três ramos industriais muito rentáveis estiveram na aurora da modernidade: o metalúrgico, o naval e o açucareiro. Rivalizavam em sofisticação tecnológica e importância estratégica. A indústria açucareira nasceu globalizada e o teor energético do açúcar mudaria a condição alimentar da humanidade.

Para produzir açúcar além-mar o colonizador assassinou nativos, trouxe escravizados da África e tocou fogo na mata.

O engenho precisava de gado vacum como fonte proteica, força de tração e meio de transporte. O couro servia para mil aplicações. A cultura do tabaco e a extração do ouro também precisaram do boi.

Os sertões foram tomados pelos rebanhos. O colonizador dizimou povos originários e tocou fogo em bioma especialíssimo, favorável à reprodução humana. Na caatinga, o fogo era aceso antes das chuvas para o rápido florescimento de ramagem que engordasse o boi.

Centenas de espécies que ajudavam a nutrir a população sumiram para sempre. A drenagem natural das chuvas foi destroçada. Antigos bebedouros e nascentes desapareceram. No Ceará, já no final do século XVIII, o colonizador criara o maior rico seco do mundo, o Jaguaribe.

Na Europa, a indústria têxtil avançara no século XIX. Mais fogo na mata para produzir algodão.
Os ricos e civilizados aprenderam a beber café e, para produzi-lo, os colonizados continuaram tocando fogo na mata.

No Brasil, as cidades cresciam e demandavam proteína animal. Para a criação de bovinos, seja extensiva (em terras abertas) ou em espaços demarcados, tocava-se fogo na mata.

A reprodução dos rebanhos passou a depender de chapadas montanhosas e, sobretudo, do Vale do Parnaíba. Todos cantavam “o meu boi morreu, o que será de mim, vou mandar buscar outro, maninha, lá do Piauí”. Essa foi a primeira canção entoada de norte a sul do Brasil.

A agressão aos biomas mostraria suas consequências em 1877, quando eclodiu a maior crise humanitária da história do Brasil: meio milhão de pessoas morreram de fome, sede e peste. A população brasileira girava em torno de dez milhões.

Não fosse o refrigério do Vale do Parnaíba, onde havia água, peixe, carne, mel e frutas nativas, a mortandade seria maior. Meio século se passara desde que dois cientistas austríacos descreveram o Piauí como a Suíça brasileira.

Os países industrializados precisaram de cera de carnaúba, óleos vegetais e borracha natural. A exploração avançou nos biomas do Meio Norte e na Amazônia. As divisas resultantes beneficiariam a industrialização concentrada no Sudeste, observou Celso Furtado.

A Ditadura Militar empenhou-se em garantir a venda das riquezas naturais. Abriu estradas na floresta e ofertou grandes glebas ao estrangeiro.

Os governos democráticos persistiram com igual orientação, agora entregando a mata aos monocultores e mineradores. As velhas práticas de dizimação dos povos originários persistiram. Além de fogo, o mato foi atingido por produtos químicos.

A defesa ambiental entrou em pauta há décadas sem que houvesse revisão do modelo agrícola basicamente definido na colonização. O Estado apoiou os agroexportadores.

Essa de “celeiro do mundo” é roubada. O lucro não fica aqui. Vai para o estrangeiro que controla as finanças e o comércio internacional. Beneficia quem produz máquinas e insumos agrícolas.

A agricultura moderna não gera empregos no campo: gera demandas à indústria. No caso brasileiro, não beneficia nem o campo nem a cidade.

Monocultura para exportação é desgraça. Incendeia a mata, empobrece o ambiente e prepara calamidades. Enriquece poucos e deixa o povo sem arrimo. O Piauí, que forneceu proteína para boa parte dos brasileiros, hoje bebe leite de São Paulo.

Desastre ambiental não é emergência, é rotina histórica, velha como a colonização; é traço permanente da economia agrícola prioritariamente voltada para a demanda externa.

Há quem diga que os incêndios de hoje são criminosos, provocados para atingir Lula. Assim, encobre-se perversidade secular. Que os bandidos sejam presos, mas não vale esquecer que o crime maior é o tipo de agricultura incentivado pelo Estado.

Não há plano de combate ao fogo que dê jeito. Nem programa de defesa ambiental que atenue a perda da biodiversidade ou programa assistencial que tire da penúria milhões de famintos de hoje e de amanhã.

O que precisamos é de uma agricultura que produza comida farta, barata, diversificada, saudável e que não nos jogue fumaça nos olhos.

Onde se viu governo progressista bater palmas para o MATOPIBA?

O Brasil precisa de um tipo de desenvolvimento que sepulte a mentalidade colonial prevalecente, inclusive em importantes parcelas da esquerda.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). Autor, entre outros livros de O que fazer com o militar — Anotações para uma nova Defesa Nacional (Gabinete de Leitura)

Sequestrados por Keynes, por Samuel Pessoa

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Superar o subdesenvolvimento depende de educação e de aumentar a produtividade

Samuel Pessoa, Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.

Folha de São Paulo, 22/09/2024

Uma das maiores tragédias sociais do século 20 foi a Grande Depressão. Entre 1932 e 1938, a taxa de desemprego nos EUA situou-se acima de 16%, atingindo 21% no pico.

Keynes mostrou que era relativamente simples resolver o problema. Era necessário que os economistas abrissem mão da ideia de que o sistema se corrigia automaticamente. A política fiscal expansionista, esta sim, corrigia o problema. Sem custos, a expansão fiscal colocava a economia para rodar, e o desperdício de recursos e toda a tragédia social podiam ser facilmente superados.

No pós-Guerra, com todo o sucesso da reconstrução da Europa, ficou a impressão de que a superação do subdesenvolvimento poderia ser alcançada da mesma forma que a do desemprego foi atingida.

Toda uma área da economia —chamada de alta teoria do desenvolvimento— tentava encontrar uma falha de mercado e uma ação do setor público que poderia abrir o caminho para a superação do subdesenvolvimento.

A ideia era que o subdesenvolvimento, com o desemprego escondido ou subemprego, representava um desperdício equivalente ao da Grande Depressão e que uma ação do Estado, com alguma política macroeconômica em geral relativamente simples, poderia resolver a falha de mercado.

Todos quiseram ser o Keynes do subdesenvolvimento. Nomes com Paul Rosenstein-Rodan, Ragnar Nurske, Arthur Lewis e, por aqui, Celso Furtado, entre outros, se candidataram. Hoje, o novo-desenvolvimentismo do professor Bresser-Pereira é o filho mais recente desse programa de pesquisa.

Como escreveu Paul Krugman em seu prefácio da edição do aniversário de 60 anos da Teoria Geral, talvez Keynes tenha se deparado com o único problema complexo em ciência social que tinha uma solução relativamente simples. Bastava trocar o motor de arranque que o carro da economia voltava a andar.

Desde os anos 1980, o consenso na teoria do desenvolvimento entre os pesquisadores é que a superação do subdesenvolvimento é um problema de natureza qualitativa muito distinto da redução
da amplitude do ciclo econômico.

A superação do subdesenvolvimento depende da construção de um sistema público de educação fundamental universal de qualidade. Os países latino-americanos, apesar do aumento do orçamento, não têm conseguido avançar.

Adicionalmente, a superação do subdesenvolvimento depende da construção de um marco legal institucional que estimule a eficiente alocação da capacidade produtiva do país.

Em ambos os casos, educação e instituições, temos diagnósticos simples de execução muito difícil.

Em vez da grandiloquência macroeconômica, estamos no campo sem charme das inúmeras reformas microeconômicas que, aos pouquinhos, se conseguirmos fazer tudo certo por muito tempo, produzirão o crescimento da produtividade do trabalho por aqui.

Há espaço para o setor público na oferta de bens públicos, principalmente infraestrutura física e humana, mais esta do que aquela, e no estímulo à absorção de novas tecnologias. Novamente, nada muito charmoso.

Não temos avançado muito nas últimas décadas.

Equilíbrio

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Neste momento da economia internacional, as nações precisam construir estratégias consistentes para a sobrevivência neste cenário de instabilidades constantes, de incertezas crescentes, de rupturas e transformações tecnológicas, de exclusões e desigualdades sociais em ascensão, de guerras fratricidas e de novas crises financeiras, com impactos impossíveis de mensuração para a comunidade mundial.

Neste cenário, percebemos o incremento das animosidades entre as nações, uma verdadeira busca pela liderança e um conflito entre os países que lutam pela hegemonia internacional. De um lado, encontramos a sociedade norte-americana, que liderou a economia mundial desde o final da segunda guerra mundial, impondo instituições multilaterais, exigindo a oficialização de sua moeda, o dólar, como o padrão monetário global, espalhando empresas em todas as regiões do mundo, difundindo seu modelo econômico e produtivo, influenciando os governos aliados e pressionando nações com posicionamentos diferentes. De outro lado, encontramos uma nação que vem ganhando espaço na economia internacional, a China, que apresenta números astronômicos da comparação mundial, uma nação que nos anos 1980 era constituída por camponeses pobres e miseráveis e se tornou uma das maiores economias internacionais, detentora do maior setor industrial da contemporaneidade, responsável por grande desenvolvimento tecnológico, com fortes investimentos em energias alternativas, em inteligência artificial e grande potencial de liderar a sociedade mundial nas próximas décadas.

Diante deste cenário que se abre para a sociedade mundial, encontramos modelos econômicos e produtivos que se enfrentam para a busca da liderança da economia global, trazendo culturas e comportamentos diferentes, trajetórias variadas e visões de vida e formas de organização social diferenciadas, uma nação mais centrada no imediatismo, na concorrência crescente, no individualismo, na busca crescente dos ganhos materiais e, do outro lado, encontramos uma nação milenar, dona de uma história rica de mais de cinco mil anos, com valores atrelados a coletividade, nos valores intangíveis e na busca crescente pela consciência humana.

Neste cenário de confrontos geopolíticos em curso na sociedade mundial, as nações se encontram num momento de escolhas estratégicas, alguns países se atrelam a um dos lados do conflito em detrimento de outro, buscando seus interesses imediatos e os ganhos materiais, garantindo para a sua população recursos monetários e proteção para angariar espaços de crescimento econômico e melhorias sociais para seus concidadãos, almejando o tão sonhado desenvolvimento.

Nações como o Brasil se encontram em uma grande encruzilhada histórica, demandando escolhas estratégicas, além de decisões políticas e geopolíticas imprescindíveis, sendo cortejadas pelas nações que buscam a hegemonia internacional, com promessas interessantes e novas oportunidades de negócio, além de garantir novos investimentos produtivos e novos modelos de organização social. Neste momento, fazem-se necessário, maior maturidade e serenidade e a compreensão do que queremos ser nos próximos anos, algo que nos falta e dificulta nossa compreensão do cenário mundial e nos leva a entregar de graça nossas riquezas minerais e agrícolas, alegrando os donos de poder global e, ao mesmo tempo, perpetuando nosso subdesenvolvimento. Estamos num momento imprescindível para o futuro da sociedade brasileira, as escolham devem definir os rumos do Brasil contemporâneo.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre e Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

‘Trabalho ganancioso’ para os homens é o culpado por salários mais baixos das mulheres, diz economista

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Claudia Goldin, Nobel de Economia de 2023, afirma que casais podem ter divisão mais igualitária de carreiras, mas o preço é uma renda menor para a família

Folha de São Paulo

Patrícia Campos Mello As mulheres conquistaram o direito ao voto, a pílula anticoncepcional, leis que condenam discriminação por gênero e já são maioria entre pós-graduados em várias áreas. Mesmo assim, continuam ganhando menos que os homens.

Para a professora de Harvard Claudia Goldin, vencedora do Prêmio Nobel de Economia em 2023, a grande culpada é a divisão desigual das carreiras entre os casais. Mulheres avançam na mesma velocidade que os homens até terem filhos. Aí, alguém precisa ter o emprego mais flexível, que permite buscar o filho doente na creche no meio da tarde e estar de prontidão para a criança.

Esse alguém, por tradição ou normas sociais, costuma ser a mulher. Já o homem mantém seu “emprego ganancioso” —trabalha mais horas, está sempre disponível, ascende na carreira e ganha muito mais.

Goldin adverte que não tem por que as mulheres serem sempre as que abrem mão de suas carreiras. “As mulheres são mais necessárias nos primeiros meses de vida de um bebê. Mas os homens poderiam muito bem assumir [a maior parte das tarefas] depois disso”, diz Goldin, que acaba de lançar no Brasil o livro “Carreira e Família”, em que analisa como gerações de mulheres derrubaram
barreiras para conciliar família e carreira e os obstáculos que permanecem. “Todos os casais têm que se sentar e conversar: podemos ter um relacionamento 50-50 [os dois com empregos mais flexíveis e ganhando menos]? Quanto isso vai nos custar?”

Em seu livro, a senhora documenta como gerações de mulheres conquistaram melhores condições no mercado de trabalho e se tornou possível conciliar uma carreira com uma família e filhos, quando optaram por ter filhos. Mas mesmo havendo avanços significativos, ainda existe uma grande diferença salarial entre homens e mulheres. A senhora pode explicar por que e falar sobre seu conceito de ‘trabalho ganancioso’?

Houve muitas mudanças importantes e muito positivas para as mulheres. E, hoje, as mulheres não são apenas iguais aos homens em termos de graduação universitária nos EUA, mas superam os homens em formação avançada em diversos campos. Então por que ainda existe essa grande diferença? Limitando nossa exploração às mulheres com ensino superior, vemos que as mulheres avançam na mesma velocidade que os homens na carreira, mas dão um passo para trás depois de terem filhos.

Meu exemplo favorito: Você tem um homem e uma mulher se formando na mesma instituição, com a mesma formação e especialização avançada, trabalhando com o mesmo nível de motivação, ambição e inteligência. Os dois trabalham em escritórios de advocacia de alto nível. Depois de um tempo, este homem e esta mulher têm um filho ou dois. Eles percebem que não podem terceirizar todo o cuidado, então um deles dá um passo para trás e assume o emprego no escritório de advocacia menor e o outro fica no trabalho ganancioso.

O trabalho ganancioso é aquele em que quanto mais horas você trabalha, quanto mais disponível está, maior é o pagamento implícito por hora. Esse casal poderia arrumar empregos equivalentes (os dois mais flexíveis), que permitem que ambos tenham mais tempo em casa. Isso seria bom para ambos, porque muitos homens que não conseguem ver seus filhos darem o primeiro passo, jogarem futebol, se arrependem mais tarde.

Então, a questão é: quanto isso vai custar a eles? Eles poderiam assumir ambos os empregos mais flexíveis, poderiam trabalhar no agradável escritório de advocacia na rua de casa e não ir para Nova York, mas isso significa que o rendimento do casal vai sofrer um grande impacto, então depende de quanto estão dispostos a pagar. A grande questão, no final, é: ok, se tudo avançou tanto, por que ainda não está equilibrado? Os culpados não são apenas os indivíduos, mas o mercado de trabalho e a interação. A chance deveria ser a mesma: em 50% das famílias, a mulher assume o emprego ganancioso, e nos outros 50%, o homem. Mas, na verdade, há muito poucos casos em que isso acontece. Geralmente, o homem assume o emprego ganancioso. Precisamos considerar também as tradições e as normas sociais que fazem com que essa seja a maneira usual de agir.

Algumas pesquisas mostram que, mesmo quando os pais dizem para a escola ligar para o pai, eles ligam para a mãe. Está arraigado.

Portanto, o casal (hétero ou gay) que optar por ter um casamento mais igualitário terá os dois parceiros assumindo empregos mais flexíveis que pagam menos. Mas o que poderia mudar institucionalmente, para que não haja essa diferença tão forte entre os empregos flexíveis e os
gananciosos?

Por que existem empregos gananciosos? Porque não há substituição suficiente no local de trabalho. Empregos gananciosos são frequentemente voltados para o cliente. O cliente diz: ‘eu quero a Patrícia’. A empresa deveria dizer: ‘treinamos um grupo, uma equipe, para atender’. Sim, ninguém quer ser uma commodity. Mas não estamos falando sobre commodities, trata-se de ter um ou dois substitutos, isso não faz do funcionário uma mercadoria totalmente substituível.

Entre as ocupações em que isso ocorreu estão a anestesiologia, pediatria e farmácia. Todas são ocupações muito bem remuneradas e ainda assim, em cada uma delas, encontraram uma maneira de transformar indivíduos em equipes. Na anestesiologia, por exemplo. Se fosse preciso coordenar sempre a sala de cirurgia com a agenda do cirurgião e do anestesista, você não faria nenhuma cirurgia. Então hospitais ou cirurgiões contratam um grupo de anestesiologistas, que se revezam.

Até mesmo para mim, como professora. Eu dou um curso. Se alguém tivesse que me substituir, não daria da mesma forma. É o caso em que não é um substituto perfeito, mas, oras, espero que haja alguém que possa dar meu curso até melhor do que eu.

Como os homens poderiam contribuir para haver maior equilíbrio profissional nos casais?

Os homens podem ajudar de 1 bilhão de maneiras. É cara ou coroa: as mulheres são mais necessárias nos primeiros meses de vida de um bebê. Mas os homens poderiam muito bem assumir [a maior parte das tarefas] depois disso. Bebês não dizem apenas “mamãe”, eles dizem “papai”. Todos os casais têm que se sentar e conversar: podemos ter um relacionamento 50-50 [os dois com empregos mais flexíveis e ganhando menos]? Quanto isso vai nos custar? Ao mesmo tempo, as pessoas deveriam ir em massa até seus empregadores e dizer: queremos ter famílias e queremos ser bons funcionários. Vamos conversar sobre como podemos fazer isso?

Durante a pandemia, o home office tornou-se muito mais comum para faixas de renda mais altas. A senhora menciona em seu livro que o trabalho remoto é muito importante para as mulheres. Mas agora muitas empresas estão exigindo que os funcionários voltem ao escritório.

Bem, não muitas pessoas estão voltando. De acordo com algumas pesquisas, eram 5% em trabalho remoto antes da pandemia e agora são entre 25% e 30%. E faz diferença para as mulheres, porque permite conciliar seu dia com o tempo em família, é como estar da prontidão em casa, mas estar trabalhando efetivamente. Isso tem enormes implicações. Dados mostram que, nos EUA, a participação feminina na força de trabalho estava estagnada desde cerca de 1995 até a pandemia.

Depois, começou a aumentar. O aumento é maior para mulheres com filhos menores de cinco anos que têm educação universitária. Aquelas com menor nível de escolaridade terão menos possibilidades de trabalhar em casa. Agora, os dados apontam que isso também está acontecendo com os homens.

Então, acho que o próximo passo em uma pesquisa é descobrir quais são as circunstâncias para os homens que estão trabalhando em casa. Tenho amigos homens que têm filhos pequenos e trabalham em casa. Para eles, é um divisor de águas.

O título de um artigo que a senhora publicou no ano passado é “Por que as mulheres venceram”. As mulheres realmente venceram?

Sim, com certeza. Isso não significa que não haja alguns retrocessos ocasionalmente, mas elas fizeram conquistas enormes, desde o direito ao voto, até os direitos no local de trabalho, na família. Mas algo em que ainda estou trabalhando é o grau em que as mulheres conquistam direitos na rua, bastante importante na Índia, Paquistão, e também em partes da América Latina. Se as mulheres não têm direitos na rua, nos bondes, nos metrôs, nos ônibus, nas lojas, se elas não têm direitos sobre seu próprio corpo, direitos de não serem provocadas, assediadas, elas não podem
ser cidadãs eficazes e produtivas.

Depois de os filhos já estarem crescidos, muitas vezes as mulheres têm que cuidar dos pais idosos. Depois de terem essa pausa inicial em suas carreiras após terem filhos, como essa segunda pausa impacta suas carreiras?

Após as crianças estarem crescidas, as horas de trabalho das mães aumentam no início. Mas elas nunca conseguem alcançar os homens, provavelmente por causa dessa segunda onda de cuidados que chega quando elas têm 40 a 50 anos. Não sabemos exatamente por que isso está acontecendo. Mas vemos que as mulheres simplesmente nunca conseguem alcançar os homens, independentemente de terem filhos ou não. Então, parece que uma parte extremamente importante disso é o cuidado com os outros. Eu fui muito sortuda porque meus pais, quando eles tiveram problemas, cuidaram de si, e depois morreram também sem precisar de nenhuma assistência. Mas isso não é comum.

Raio-X
Claudia Goldin, 78, é professora de Economia na Universidade de Harvard. Ela se formou em Economia na Universidade Cornell e fez seu doutorado no mesmo campo na Universidade de Chicago. Goldin recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 2023 “por contribuir para nosso entendimento sobre o mercado de trabalho feminino”.

Crise climática: Mundo pode não ter mais volta e isso me apavora, por Carlos Nobre

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A Terra só viu algo parecido no último período do interglacial, 120 mil anos atrás

Carlos Nobre, Climatologista, é pesquisador sênior pelo Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e copresidente do Painel Científico para a Amazônia; foi eleito em maio de 2022 como membro estrangeiro da Royal Society

Folha de São Paulo, 15/09/2024

A ciência climática do mundo inteiro não previa uma aceleração tão intensa das mudanças climáticas como temos visto recentemente. No começo de 2023, os cientistas previram um El Niño de grande intensidade, com temperaturas chegando a 1,3°C acima dos níveis pré-industriais. Mas ninguém esperava que as temperaturas globais fossem explodir e ficar 1,5°C mais quentes.

Com exceção de julho de 2024, estamos desde junho de 2023 vivendo temperaturas acima de 1,5°C. O último mês de agosto foi o mais quente já registrado. A Terra só viu algo parecido no último período do interglacial, 120 mil anos atrás.

A consequência desses 14 meses de temperatura alta, incluindo os recordes de temperatura dos oceanos, é o aumento dos eventos climáticos extremos. Mas eles não cresceram devagarzinho ou de uma forma linear. Eles cresceram exponencialmente, como a ciência previu. E é isso que está acontecendo no Brasil e no mundo inteiro, com ondas de calor, seca, chuvas intensas e incêndios florestais.

O Acordo de Paris e as COPs estabeleceram metas para reduzir as emissões de gases de efeito estufa de 28% a 42% até 2030, o que já é um enorme desafio. Mas as emissões continuam aumentando. Tudo isso foi definido para não passarmos de 1,5°C em 2050. Mas se no ano que vem continuarmos com temperaturas 1,5°C acima do período pré-industrial, serão três anos com temperaturas acima da meta do Acordo de Paris. Pode ser tarde demais e isso me apavora.

Estou apavorado porque, com 2,5°C, nós vamos criar uma mudança climática nunca vista. Com 2,5°C, os eventos extremos vão aumentar muito exponencialmente e o mais preocupante é que atingiremos os chamados pontos de não retorno.

Se passarmos de 2°C, todos os recifes de coral do mundo serão extintos. Se passarmos de 2,5°C, vamos perder de 50% a 70% da amazônia e grande quantidade do solo congelado da Sibéria, do Canadá e do Alasca, o chamado permafrost, será descongelado. Com isso, vamos jogar uma gigantesca quantidade de gases de efeito estufa que estão ali aprisionados.

Na semana passada, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, afirmou que o Brasil pode perder o pantanal por completo até o fim deste século se o mundo não for capaz de reverter o cenário de aquecimento global.

Como isso aconteceria? Grande parte da água que abastece o pantanal vem da bacia amazônica e do cerrado. Se ultrapassarmos 2,5°C de aquecimento, a amazônia será devastada, o que reduzirá significativamente as chuvas na região do pantanal. Sem essa umidade, o bioma pode se transformar em uma caatinga. E isso já vem acontecendo. O prolongamento das estações secas já resultou em 35% do pantanal deixando de ficar coberto por água nos últimos 40 anos.

Quando analisamos alguns países, especialmente na Ásia e em partes da Europa, vemos que eles estão adotando medidas eficazes para lidar com as mudanças climáticas. Um exemplo notável é Singapura, que implementou o conceito de “esponja urbana”, que envolve a restauração florestal nas áreas urbanas e periféricas, que reduz a temperatura e ajuda a mitigar desastres climáticos. O Brasil também tem potencial para implementar essas medidas.

Em São Paulo, por exemplo, a área urbana, com muito concreto e asfalto, pode ser de 6°C a 10,5°C mais quente do que áreas cobertas pela mata atlântica próximas, como o Parque Zoológico.

Estudos da USP mostram que a restauração da vegetação urbana pode reduzir as temperaturas em até 5°C, reter água no solo, diminuir enxurradas e remover de 20% a 30% dos poluentes. Além disso, melhora o microclima e, consequentemente, a saúde, já que ondas de calor são um dos maiores riscos climáticos.

No entanto, se falharmos em reduzir drasticamente as emissões, poderemos enfrentar um cenário extremo. Se a temperatura global aumentar em 4°C até 2100, grande parte do planeta, incluindo o Brasil, pode se tornar inabitável, especialmente as regiões tropicais e equatoriais. Isso incluiria vastas regiões do Brasil, especialmente as áreas tropicais e equatoriais. No Sudeste, os verões seriam tão extremos que viver ali seria insustentável.

A situação seria tão drástica que, no século 21, as únicas áreas habitáveis no mundo seriam regiões como o Ártico, a Antártica e as grandes cadeias montanhosas, como os Alpes e o Himalaia. Esse cenário nos mostra a gravidade da crise climática e o quanto é urgente zerar as emissões de carbono rapidamente, para evitar esse futuro quase inacreditável.

Ações mais rigorosas para combater as mudanças climáticas são urgentes. Sem medidas imediatas e eficazes, estamos caminhando para um futuro em que vastas regiões do planeta poderão se tornar inabitáveis, com impactos profundos para a vida. Não podemos em hipótese alguma aceitar passar de 2°C e chegar a 2,5°C. As metas de redução das emissões têm que ser muito mais rigorosas e abrangentes. Não podemos esperar até 2050.

Dados são o ‘novo petróleo’, mas precisam de atenção para não agravar crise climática, por Fábio Gallo

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O uso de data centers e a mineração massiva de criptomoedas põem muita pressão sobre a geração de energia

Fábio Gallo – O Estado de São Paulo – 14/09/2024

Nestas últimas semanas todos nós ficamos assustados, afinal o Brasil está sufocando com as queimadas. A crise climática está presente e se tornando mais aguda de maneira mais rápida do que os especialistas estavam prevendo. Em entrevista publicada esta semana no Estadão, o climatologista Carlos Nobre nos deixou ainda mais temerosos. Segundo ele, o Pantanal deve acabar e a Amazônia perder 50% da floresta até 2070. Nada mais assustador!

A situação está mostrando o quanto os governos estão despreparados para lidar com algo tão importante. Obviamente, este tema é uma preocupação mundial e a busca de solução é tarefa de todos. Tem-se discutido muito sobre as formas de combater o aumento da temperatura, atuando contra o desmatamento, as queimadas e outras tantas ações. Por outro lado, a humanidade está buscando, garimpando, armazenando e processando dados numa velocidade desenfreada.

O crescimento acelerado do uso de data centers, inteligência Artificial (IA) e mineração de criptomoedas está colocando uma pressão enorme sobre a infraestrutura de energia global. O que representa uma grande ameaça à capacidade instalada de geração de eletricidade. Essa pressão gera graves problemas em diversos níveis, como o aumento das emissões de gases de efeito estufa, sobrecarga da infraestrutura, o que afeta setores críticos como hospitais, comunicações, transporte, trazendo aumento de custos, desafios para a sustentabilidade e impactos geopolíticos.

Reportagem recente do Independent Speculator traz que é estimado que os data centers, IA e as criptomoedas usaram 460 mil gigawatts-hora de energia elétrica em 2022, e que a Agência Internacional de Energia (AIE) projeta que esses setores podem usar 1 milhão de gigawatts-hora por ano até 2026. Como referência, cita que os EUA têm hoje 94 reatores nucleares que geram cerca de 778 mil gigawatts de energia por ano. A solução proposta é o investimento em energia nuclear.

Diante de todos esses desafios, devemos buscar alternativas efetivas que incluem desde o avanço tecnológico, políticas públicas, práticas empresariais às mudanças comportamentais. É urgente a busca de soluções inovadoras para enfrentar o aumento da demanda energética. Devemos investir em eficiência energética, expansão de fontes renováveis, uso responsável de tecnologias intensivas em energia e políticas públicas que tragam o uso sustentável da eletricidade, sem comprometer o meio ambiente.

Medidas como o uso de data centers mais eficientes e de meios mais sustentáveis de consumo de energia na mineração de criptomoedas são essenciais para ajudar a humanidade a enfrentar o aumento da demanda por eletricidade e mitigar os efeitos das mudanças climáticas.

O Brasil apodrece e o desconforto é físico, político e moral, por Luiz Francisco Carvalho Filho

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E o governo fala em asfaltar a BR-319 e protesta contra lei antidesmatamento da União Europeia

Luiz Francisco Carvalho Filho, Advogado criminal, é autor de “Newton” e “Nada mais foi dito nem perguntado”

Folha de São Paulo, 14/09/2024

Na manhã da segunda-feira (9), São Paulo registrou a pior qualidade do ar em todo o planeta, superando metrópoles como Ho Chi Minh, no Vietnã, e Lahore, no Paquistão.

O Brasil pega fogo. A fumaça e a destruição ambiental se espalham. Sem orientação sanitária, a população sofre os efeitos da seca, da poluição e do calor.

Assim como os rios Tietê e Pinheiros e a baía da Guanabara apodreceram diante do olhar complacente de autoridades de diferentes linhagens ideológicas, governo e Congresso são espectadores da tragédia climática, vendo-a como algo inexorável, natural ou divino.

É necessário (além da crítica jornalística) que, diante da “pandemia” de incêndios, o ministro Flavio Dino, do STF, aplique um polido puxão de orelhas.

O governo então se move em relação às queimadas, porém ressuscita a ideia temerária de asfaltar a BR-319, no coração da Amazônia, e protesta contra lei antidesmatamento da União Europeia que pode prejudicar exportações brasileiras.

Desenvolvimento sustentável (que satisfaz necessidade do presente sem comprometer necessidade futura) é ficção ou slogan.

A expansão das energias eólica e solar promove desmatamento da caatinga, bioma único, protegido pelo Estado brasileiro. Como é energia limpa, há relaxamento no licenciamento ambiental. Vegetação nativa é destruída para instalação de fazendas solares. Poluição sonora de turbinas eólicas afeta sono e audição de moradores locais, gerando ansiedade e depressão. Turbinas promovem também a matança de aves, ameaçando espécies em extinção. Empresas sustentáveis criam cemitérios clandestinos para descarte de cata-vento e painel solar.

O Brasil apodrece.

Entre 2012 e 2023, o número de pessoas que vivem nas ruas de São Paulo aumentou 16,8 vezes, passando de 3.842 para 64.818 habitantes.

Segundo o Datafolha, 23 milhões de brasileiros convivem, na vizinhança, com milicianos e facções criminosas.

Escolas públicas do complexo da Maré, no Rio de Janeiro, permaneceram pelo menos 15 dias totalmente ou parcialmente fechadas nas últimas semanas por conta de operações policiais: quase 20 mil alunos afetados por falta de ensino, insegurança alimentar e
traumas psicológicos.

O setor de apostas esportivas cresceu 734% desde 2021. Movimenta bilhões, faz nascer um novo e vil “empresariado”, favorece a lavagem de capitais e patrocina a maior parte dos times de futebol. Compromete 20% do orçamento de famílias mais pobres. Faz crescer o vício e o endividamento. Segundo a Fecomercio-SP, 20% dos apostadores deixam de pagar contas para jogar. O governo se vê diante de extraordinária fonte de arrecadação e recomenda que o jogador aposte com responsabilidade.

Cai o ministro dos Direitos Humanos, acusado de ser predador sexual.

Ministro bolsonarista do STF pega carona em jatinho de “empresário” do setor de apostas e vai para a Grécia comemorar, em luxuoso superiate, o aniversário de cantor sertanejo que tem bens bloqueados pelo Judiciário por suposto envolvimento no escândalo de lavagem de dinheiro da tal “influenciadora”, atualmente presa.

O planeta é finito. O calor é desértico. A destruição ambiental parece irreversível. Fumaça e fuligem cobrem os céus do continente. O Brasil apodrece. O desconforto é físico, político, moral.

Imigrantes geram desenvolvimento, por Rodrigo Zeidan

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Na UE, imigrantes levam a crescimento de 0,2% a 1,6% acima do que seria esperado

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo – 14/09/2024

Com a crise na Venezuela, o debate americano e o crescimento da extrema direita na Europa, os temas imigração e refugiados voltaram ao centro do debate político. Obviamente, é bem estranho que países feitos basicamente de imigrantes, como EUA e Brasil, ou que cresceram através de colonização, como na Europa Ocidental, agora venham a demonizar estrangeiros.

No debate americano, o candidato a vi
ce-presidente na chapa de Donald Trump, J.D. Vance, tem exagerado na retórica xenofóbica. Ele chegou a disseminar informações falsas de que imigrantes haitianos estariam roubando e comendo os animais de estimação das pessoas na cidade de Springfield, em Ohio.

Enquanto isso, a realidade é que os milhares de imigrantes do Haiti estão transformando a cidade para melhor. Milhares de vagas de empregos que não tinham candidatos estão sendo preenchidas. Os haitianos estão trabalhando nas fábricas da Honda, em centros de distribuição e nos Walmarts da vida. A cidade que tinha déficit, agora arrecada mais empostos do que gasta. Quando o Brasil ia bem, vários empresários do Sul me diziam o quanto haitianos trabalhavam duro e quanto contribuíam para suas cidades. Hoje, a maioria se naturalizou brasileira e é contribuidora líquida para o Estado.

Obviamente, ondas de imigrantes têm custos. A longo prazo, os benefícios são claros, mas há custos de ajuste de curto prazo. É esse o maior problema no Brasil e na Europa. Os milhões de refugiados estressaram os sistemas de segurança social em vários países e, na Suécia, estão associados ao aumento de crimes por gangues, especialmente em Malmö. Tais problemas não vão durar muito; as guerras de gangues de motociclistas, todos locais, na Dinamarca, foi pior, e o sistema acabou vencendo.

A literatura científica é clara. Imigrantes legais ou ilegais, e refugiados começam menos crime que as populações locais. Nos EUA, imigrantes ilegais cometem crimes a uma taxa 60% menor que a população local, em estudos com dados desde a década de 1960. E são o motor do desenvolvimento. Mesmo um imigrante com baixa qualificação acaba subsidiando a população local em cerca de US$ 128 mil ao longo da sua vida. Imigrantes geraram crescimento de 0,2% a 1,6% do PIB na União Européia acima do que seria esperado.

A maior crise de refugiados no mundo é na Venezuela, de onde quase 8 milhões de pessoas já escaparam. O Brasil já cometeu diversos euros, desde a atuação desastrosa no Haiti até passar pano para a agora ditadura de Maduro. Se o governo brasileiro não tem coragem de enfrentar Maduro, embora tenha fraudado eleições e praticamente exilado seu adversário, que pelo menos tenha a decência de assistir aos que fogem para o Brasil, seja pela fronteira, seja por outros meios. E isso significa também assistência federal aos estados fronteiriços, que não têm como arcar sozinhos com os custos de ajuste.

Se falta coragem para enfrentar ditador bolivariano, que pelo menos a esquerda coloque em prática o melhor dos seus planos, que é ajudar os mais necessitados. E sem delongas.

A insustentável leveza das narrativas, por Renato Ortiz

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Renato Ortiz – A Terra é Redonda – 12/09/2024

Uma narrativa não se define em função da realidade, ela é o relato, basta-se a si mesma
Tudo é narrativa: os contos de Grimm, um romance, o terraplanismo, as notícias de jornal, a locução de uma partida de futebol, uma fala política, uma peça publicitária. Em sua discrepância e omnipresença a ideia de narrativa desfruta da insustentável leveza de ser. Ela não se confunde com a noção de discurso, explorada pelos linguistas e semiólogos, é imprecisa e insatisfatória; entretanto, o seu uso generalizado lhe dá uma aparente feição de verdade.

A rigor a indefinição conceitual lhe garante um êxito inconteste no vocabulário do dia a dia; particularmente com o advento das redes sociais, nas quais se alimenta uma ilusão coletiva, qualquer coisa dita com convicção e estridência torna-se convincente. Uma narrativa é uma série de eventos que constitui uma história, diz-se em inglês: storytelling.

Seu intuito é contar “tudo que aconteceu”, isto é, a sequência do que é narrado em um relato. Sua verdade reside em ser coerente, a razão de sua existência não repousa no que lhe é alheio.

Ela difere assim do conceito de ideologia, ele exige um necessário contraponto com o real, a questão da falsidade é sempre algo presente. É neste sentido que se dizia que a ideologia burguesa ou a religião eram uma “falsa consciência” do mundo.

Elas certamente mobilizavam as pessoas, davam sentido a suas vidas, entretanto, eram parciais (o conhecimento ideológico vem marcado pela parcialidade). Subjaz à noção de ideologia o traço da “distorção” ou de incompletude, os pontos de seu relato podem ser contrastados por algo que se encontra fora de sua enunciação.

Uma narrativa não se define em função da realidade, ela é o relato, basta-se a si mesma. O que se passa à sua volta é impertinente, importa sua essência, aquilo que é narrado. Dois exemplos “extremos” (se é possível falar em extremos no universo dos relatos) são sugestivos. O primeiro refere-se ao terraplanismo, ele afirma: nossos sentidos indicam que a Terra é plana; não enxergamos a curvatura do horizonte mesmo quando estamos em um avião; rios e lagos estão nivelados, deveriam ter uma curvatura se a Terra fosse esférica. O planeta é um disco redondo e achatado no qual o polo Norte encontra-se no centro e a borda é formada por gelo, a Antártica.

O segundo implica no negacionismo da corrida espacial à lua. Ele se sustenta a partir de um indício específico: a fotografia da bandeira americana na superfície lunar. Nela vê-se uma pequena parte dobrada, o que é percebido como algo “tremulante”; ora, não há vento na lua, portanto, a foto foi feita em algum lugar da Terra. Nenhuma dessas ponderações pode ser contradita pelo princípio de realidade, ou seja, quando confrontadas ao discurso científico.

Ele nos assegura que a Terra é redonda, há fotos e filmes feitos no espaço sobre o planeta azul, e que existem provas efetivas que demonstram a presença do homem na lua. Entretanto, tais evidências são exteriores à coerência interna do que é afirmado, elas em nada lhes importunam.

Pode-se ainda dizer que a própria ciência é também uma narrativa, ela se situaria assim ao lado de outras, sem, porém, contradizê-las.

Mas a coerência estrutural das “estórias” parece não ser suficiente para que elas se confirmem enquanto tal. Há ruídos. Mesmo as narrativas conspiratórias são coerentes, como se diz, são “teorias” que se organizam através de uma explicação racional das forças ocultas que perpetuam determinado ato. Neste sentido, os exemplos que utilizei não prescindem inteiramente da utilização de certos elementos da realidade. Afirmar que “não conseguimos ver a curvatura da Terra” ou “não há vento na lua” implica em buscar por uma materialidade do real que possa justificar tais afirmações.

Isso não seria contraditório com a própria noção de narrativa? Creio que a contradição se resolve quando se analisa o uso dessas histórias, em particular considerando o caráter acusatório que ele encerra. Como mostram os antropólogos em relação à feitiçaria, ela é uma crença partilhada por todos os membros de uma comunidade. Porém, ninguém se identifica como sendo feiticeiro. A “maldade” existe, mas é praticada pelos outros.

As narrativas se alimentam da acusação da falsidade das outras. Como na feitiçaria, ao situar fora de si a inverdade, a crença expele os ruídos de sua contradição; ao acusar os adversários de distorcer a realidade, sua dimensão interna permanece ilesa, inalterada. A virtude de existir ancora-se assim em sua leveza imaculada.

*Renato Ortiz é professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de O universo do luxo (Alameda).
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Ventos positivos

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Num ambiente de constantes transformações econômicas e produtivas nos cenários nacional e internacional, percebemos que a economia brasileira apresenta ventos positivos, desemprego em queda, aumento do investimento, crescimento do superávit comercial, expansão do mercado de capitais e crescimento econômico, depois de momentos de grandes instabilidades, agitações políticas, polarizações constantes, negativismos, pandemia e crises econômicas, que contribuíram para aumentar as vulnerabilidades da economia nacional.

Com a divulgação recente dos indicadores macroeconômicos, percebemos dados interessantes e auspiciosos, o crescimento econômico surpreendeu e colocou o Brasil dentre as nações que mais cresceram no trimestre, o desemprego diminuiu, os investimentos produtivos cresceram, o setor externo da economia apresentou indicadores atraentes, a inflação se manteve sob controle, além do incremento do consumo, desta forma, vislumbramos melhoras nas perspectivas da economia
nacional.

Mesmo assim, ao analisar a economia nacional, percebemos grandes contradições, de um lado, encontramos números auspiciosos e boas perspectivas, levando-nos a vislumbrar um ambiente macroeconômico saudável e bons horizontes de crescimento econômico, mas ao mesmo tempo, encontramos grupos, liderados pelos rentistas, clamando pelo aumento das taxas de juros como forma de impedir o crescimento da inflação. Neste cenário, estamos presos numa mediocridade que limita o crescimento da economia nacional, reduzindo as perspectivas de geração de emprego e renda, e indiretamente contribuindo para garantir os grandes lucros dos setores que vivem no rentismo.

No cenário econômico, percebemos críticas ácidas dos economistas do mercado financeiro e dos gestores de fundos de investimentos com relação à política fiscal, cobrando do governo uma maior racionalização dos gastos públicos e uma urgente redução dos gastos públicos, vistos como o responsável pelos desequilíbrios fiscais e financeiros que podem aumentar as taxas de juros, último instrumento para reduzir a inflação.

Embora percebamos que as questões fiscais estejam na berlinda da política econômica, percebemos ainda que os analistas econômicos vinculados ao chamado mercado exigem cotidianamente que sejam reduzidos os recursos públicos direcionados para a população mais carente e mais fragilizada, julgando-os como os grandes responsáveis pela chamada “farra” fiscal, se esquecendo, de forma deliberada, os vultosos incentivos fiscais e isenções tributárias que beneficiam os grandes grupos econômicos e financeiros, que atuam fortemente para extrair grandes somas dos fundos públicos, gerando pouco emprego, pagando poucos impostos e deixando de contribuir para o desenvolvimento nacional.

Vivemos um momento interessante para o fortalecimento da economia nacional e, novamente, vislumbrar os sonhos esquecidos do desenvolvimento econômico, somos dotados de energias alternativas que tendem a atrair novos investimentos industriais, estamos atraindo novos investimentos externos em variadas áreas e setores, precisamos estimular uma nova política de industrialização que atraia todos os agentes econômicos, sociais e políticos, construindo um verdadeiro ecossistema de inovação que inclua todos os setores da economia nacional, mas para isso, precisamos deixar de lado discussões equivocadas e ultrapassadas que pululam nos agentes que formulam as políticas públicas, compreendendo os verdadeiros medos, desafios e anseios da sociedade nacional, como disse o grande Tom Jobim: “O Brasil não é para amadores”…

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.