Medo do crescimento

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O Brasil sempre se caracterizou por uma sociedade profundamente desigual, marcada por uma grande concentração de renda e de propriedade, salários muito baixos, educação deficiente, ausência de saneamento básico e condições de indignidade para uma parte significativa da população, ao mesmo tempo percebemos um país que se destaca por uma grande riqueza natural, clima favorável e com condições naturais positivas.

Ao analisar as condições naturais e geográficas do cenário global, o Brasil deve ser visto como uma das nações mais ricas de recursos naturais do cenário internacional, sempre fomos vistos como um fornecedor global de alimentos e de minérios que auxiliaram no desenvolvimento de outras nações. Desta forma, o Brasil sempre foi inserido no ambiente produtivo internacional, desde o descobrimento estamos inseridos no cenário mundial como uma nação produtora e exportadora de produtos primários de baixo valor agregado e como importadores de produtos manufaturados, cuja relação de troca, no comércio global, sempre foi desfavorável para o Brasil.

No século XX, a sociedade brasileira ganhou relevância no cenário internacional, fomos uma das economias que mais cresceram no século anterior, modificando toda a estrutura produtiva, angariando espaços interessantes no cenário internacional, passando de uma economia de industrialização intermediária e nos tornando uma das dez maiores economias do mundo, levando nações asiáticas a buscarem compreender os passos seguidos pelo Brasil, visto que nos anos 1970 o Brasil se transformou num exemplo claro de expansão e transformação econômica e produtiva.

Depois dos anos 1980 perdemos o dinamismo econômico e produtivo, a indústria nacional perdeu espaço e passamos a perder posições relevantes no comércio internacional. Com o início da abertura econômica dos anos 1990, as privatizações e a redução do papel do Estado na economia eram vistas como novos horizontes de modernidade. Conseguimos estabilizar a economia nacional mas, infelizmente se perderam na política cambial e elevamos demais as taxas de juros, criando uma categoria muito forte, dotada de grande poder econômico e político, os chamados rentistas e financistas, que passaram a controlar os sistemas econômico e financeiro, manipulando as taxas de juros e controlando os lucros, os dividendos e seus retornos imediatos, garantindo suas isenções fiscais e tributárias, que garantem seus ganhos elevados em detrimento de uma classe média empobrecida, desesperançada e marcadas por rancores e ressentimentos.

Depois de décadas de baixo crescimento econômico e produtivo, aumento do desemprego, redução dos salários reais, a fragilização da indústria nacional, além da venda de empresas nacionais ou o repasse dos ativos mais interessantes do Estado para seus apaniguados, percebemos alguns lampejos de recuperação econômica, recuperação dos salários, inflação controlada, superávits comerciais, Bolsas em ascensão e perspectivas de melhorias econômicas. Neste cenário, percebemos ecos de elevação das taxas de juros que impactam imediatamente sob o sistema econômico e postergam a melhora dos indicadores positivos da economia nacional, reduzindo a criação de empregos e limitando o incremento da renda dos trabalhadores e, ao mesmo tempo garantindo mais ganhos financeiros para poucos grupos, perpetuando uma desigualdade em ascensão e nos deixando claro quem são os verdadeiros donos do poder na sociedade brasileira.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Era da superficialidade

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Estamos vivendo numa sociedade muito interessante, assustadora e preocupante, as pessoas sonham com o enriquecimento, com o luxo e com o glamour, buscam a fama, sonham com os chamados realitys shows, a exposição exagerada e buscam virar celebridade, mesmo que seja por um curto período de tempo, desde que esse tempo seja suficiente para acumular recursos financeiros, neste cenário, os indivíduos acreditam piamente que vão conseguir acumular fortunas sem fazer esforços sistemáticos, sem estudos e sem qualificações cotidianas.

Antigamente as pessoas buscavam uma profissão, queriam estudar, lutavam para adquirir um diploma de um curso superior, buscavam uma qualificação profissional, conversavam com pessoas inteligentes, compravam livros e queriam fazer cursos de capacitação, mas agora, na contemporaneidade o que reina é o sonho da acumulação sem esforços individuais, cultivando a violência, indivíduos malhando o corpo em excesso, se expondo nas redes sociais, cultuando a superficialidade, acreditando que ao ler a “orelha” de um livro o faz especialista em qualquer assunto, difundindo a ignorância e o negacionismo e estimulando o individualismo que se espalham na sociedade, neste cenário, as pessoas se assustam com os rumos da sociedade mundial.

Ao folhear os livros do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, percebemos a importância de refletir sobre a sociedade contemporânea, compreender os desafios dos seres humanos e perceber que estamos num momento imprescindível para analisar os hiatos que crescem nos valores da comunidade.

Educação superior pública: precisamos de um novo caminho, por Piva, Passos e Wongtswski

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Não há forma de o país crescer sem ensino superior de qualidade, e o modelo atual esgotou-se

Horácio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski, Empresários.

Folha de São Paulo, 01/09/2024

O Brasil tem 2.574 instituições de ensino superior, das quais 313 são públicas. Dentre as públicas, 134 são estaduais e 119 são instituições federais. Das instituições federais, 69 são universidades. Das instituições privadas, 91 são universidades –as demais são faculdades isoladas ou centros universitários.

Das cerca de 9 milhões de matrículas, 7 milhões estão em instituições privadas e 2 milhões em instituições públicas. Enquanto 8% dos estudantes de entidades públicas usam ensino a distância (EAD), nas privadas 51% dos alunos o utilizam.

O ensino superior no Brasil só atende a 18% dos jovens entre 18 e 24 anos, bem abaixo da meta de 33% estabelecida para 2024 pelo Plano Nacional de Educação, e as taxas de evasão são muito altas: 56% dos alunos das instituições privadas e 39% dos alunos de instituições públicas não terminam os seus cursos.

O governo federal aplica cerca de R$ 150 bilhões por ano em educação; 27% deste valor vai para o ensino superior. Apesar disso, as inovações mais significativas são de iniciativa de instituições privadas. Exemplos são os cursos de engenharia do Insper e do Inteli, ambos em São Paulo, e os programas de graduação de duas organizações sociais, o Impa Tech, no Rio de Janeiro, e a Ilum Escola de Ciência, em Campinas.

O Brasil se sai muito mal nos rankings internacionais. A instituição mais bem colocada segundo o “Times Higher Education Ranking”, a USP (Universidade de São Paulo), está no grupo 201 a 250. A Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), entre 351 e 400. E as demais se situam no arco de 601 a 800 (ou ainda mais atrás).

As universidades brasileiras são muito grandes: a USP tem cerca de 100 mil alunos, a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), 70 mil, e muitas outras (Unicamp, UFMG, UFF, UFRGS, UNB, UFP) têm entre 40 mil e 50 mil alunos. No ranking internacional, as cinco melhores têm uma média de 17 mil, e as 20 melhores, uma média de 20 mil alunos.

É muito difícil ser grande e excelente, a burocracia e o corporativismo sufocam as universidades brasileiras. Mas é pior do que isso: tirando as universidades estaduais paulistas (USP, Unicamp, Unesp e Univesp) que têm um sistema inteligente de alocação de recursos públicos e grande autonomia de gestão, as federais vivem à míngua, com instalações precárias, obras inconclusas e recursos discricionários (para cobrir todos os custos fora salários) recorrentemente menores do que 10% do seu orçamento. Mais ainda, todas as universidades, por exigência constitucional, devem obedecer “ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.

Como bem apontam membros da Academia Brasileira de Ciências em artigo recente, “em nenhum país a democratização do ensino superior ocorreu só pelas dispendiosas universidades de pesquisa. Diferentemente do nosso modelo quase exclusivo de universidades de pesquisa, em diversos países predomina a diversificação de instituições: universidades, faculdades, faculdades comunitárias, instituições de ensino vocacional ou técnico de nível superior, entre outras”.

A solução é clara: criar, segundo um processo meritocrático, garantida certa diversidade regional, um grupo menor de universidades de pesquisa públicas federais, que teriam forte apoio e recursos para atender aos seus objetivos constitucionais, e transformar as demais em instituições destinadas primordialmente ao ensino superior. Estas deveriam ter outra solução institucional que assegurasse, simultaneamente:

  1. alta qualidade docente;
  2. instalações físicas adequadas que atraíssem alunos e facilitassem o aprendizado;
  3. sistema de contratação que incentivasse a presença de docentes com atuação profissional fora do ensino;
  4. poder à organização para contratar e demitir docentes, assegurando dinamismo e qualidade de ensino;
  5. escolha de cursos em áreas em que haja demanda da sociedade.

Esta seria a melhor maneira de atender ao clamor dos jovens por ensino de qualidade, flexibilidade e possibilidade de migração de uma parcela dos formados para universidades de pesquisa.

Há outras questões que devem ser endereçadas neste processo, como a necessidade de atração de estudantes e docentes estrangeiros, compatibilização do ensino presencial com o EAD em um sistema híbrido, melhora da governança das instituições públicas, simplificando a sua estrutura e procedimentos e aumentando a influência e o poder da sociedade em sua gestão e, finalmente, criação de um sistema externo poderoso de avaliação de cursos e formados.

Não há forma de o país crescer sem ensino superior de qualidade. O modelo atual esgotou-se e não atingiremos as metas do Plano Nacional de Educação sem reformas profundas no ensino público. Este é um dos nossos grandes desafios, e uma das poucas formas de promover a formação de cidadãos, a mobilidade social e o aumento de produtividade, justas demandas da sociedade brasileira.

 

Fragilidade fiscal da União colocou Brasil em enrascada, por Salto e Pellegrini

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País está vulnerável e precisa construir consenso político em torno de medidas de ajuste das contas públicas

Felipe Salto, Economista-chefe da Warren Investimentos. Foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo (2022) e diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado

Josué Pellegrini, Doutor em economia pela USP e economista da Warren Investimentos. Foi diretor da IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado

Folha de São Paulo, 29/09/2024

A estabilização da dívida pública federal, necessária para lidar com a situação frágil das finanças da União, requer um ajuste de dois pontos percentuais do PIB, argumentam autores, que sugerem medidas como a redução de benefícios tributários e de transferências para estados e municípios, pelo lado da receita, e alteração da política do salário mínimo, reformulação de programas sociais e nova fórmula de cálculo de emendas parlamentares, pelo lado da despesa.

Após várias decisões tomadas ao longo dos anos que fragilizaram as finanças da União, o país se se meteu em uma enrascada. As iniciativas partiram tanto do Congresso Nacional quanto do Executivo federal. A debilidade deste Poder diante daquele e a polarização política agravaram o problema.

Uma parcela da população foi beneficiada por essas mudanças, mas também grupos de interesse, empresas e entes subnacionais. Em muitos casos, as decisões não seriam justificáveis, submetidas a uma análise mais detida, pelo menos não na dimensão dos custos assumidos.

Concretamente, a fragilidade da União se traduz em déficits primários sucessivos e elevados, vale dizer, despesas mais elevadas que as receitas, já descontadas as receitas e as despesas financeiras e a partilha da receita com os demais entes federados. Como os déficits precisam ser financiados, a dívida pública sobe continuamente, sem perspectiva de estabilidade em um horizonte aceitável.

A dívida pública do Brasil, medida pela dívida bruta do governo geral, chegou a 78,5% do PIB em julho e cresce rapidamente, 4,1 pontos percentuais do PIB apenas neste ano. Relativamente a países de nível similar de desenvolvimento, nossa dívida é uma das maiores. A comparação com países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), como EUA e Japão, não faz sentido, pois os “limites” e as condições são bem mais dilatados nesses casos.

De acordo com nossas projeções para o déficit primário e a taxa de juros, a dívida deverá chegar a 95% do PIB até 2033. É muito tempo com um passivo crescente. Não se pode operar testando limites, sem margem para enfrentar imprevistos, como tragédias climáticas ou de saúde pública, eventos cada vez menos raros.

Os reflexos na economia da fragilidade fiscal da União são vulnerabilidade a crises e taxas de juros elevadas, dois dos principais inimigos dos investimentos produtivos. Esse é o canal que leva ao crescimento sustentável, com aumento da capacidade produtiva e da produtividade. A parcela mais pobre da população é a mais afetada pelo desempenho aquém do esperado.

Qual o tamanho do desafio?

Em 2024, o déficit primário do governo central deverá ser de 0,5% do PIB. Em 2025, dificilmente ficará abaixo de 0,6% do PIB, conforme se depreende do PLOA (projeto de lei orçamentária anual) da União, recém-enviado ao Congresso Nacional. Mesmo que o déficit vá a zero em todo o período 2026-2033, a dívida ultrapassará os 90% do PIB em 2032.

Será preciso gerar superávits primários para estabilizar a dívida pública em proporção do PIB. Supondo-se ação imediata, com revisão do PLOA 2025, se o resultado melhorar 0,5 ponto percentual de PIB por ano, a partir do déficit de 0,5% do PIB de 2024, chegaremos ao superávit de 1,5% do PIB em 2028. Com isso, a dívida estabilizará perto do nível de 82% do PIB, permitindo alguma redução do superávit nos anos seguintes.

Se precisamos passar de déficit de 0,5% do PIB em 2024 para superávit de 1,5% do PIB em 2028, o ajuste requerido é de algo como dois pontos percentuais do PIB, ou cerca de R$ 230 bilhões, com base no PIB de 2024. Seriam quase R$ 60 bilhões por ano no período.

O ajuste necessário poderá ser maior se o chamado déficit estrutural, de 2024, estiver acima de 0,5% do PIB. Esse conceito de déficit desconta as receitas e as despesas atípicas ou afetadas pelo ciclo econômico. Se assim for, o ponto de partida seria pior, o que exigiria mais tempo para chegar ao superávit desejado, com a estabilização da dívida em um nível mais alto.

A boa notícia é que o custo do ajuste pode ser reduzido pelo efeito da melhoria progressiva do resultado primário da União sobre a taxa de juros. Isso dependeria da apresentação de um programa confiável, com detalhamento das medidas de ajuste e respectivos impactos esperados para cada ano do período coberto. A aprovação da LOA 2025 com as medidas necessárias para levar ao déficit zero, por exemplo, já produziria importante impacto nesse aspecto.

Os efeitos positivos seriam mais significativos com a inclusão do programa no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal, algo também recomendável por se tratar de um programa que envolveria mais de um mandato presidencial. Vale observar que a busca da sustentabilidade fiscal está prevista em artigos da Constituição Federal.

O que fazer pelo lado da receita?

O diagnóstico acima talvez não gere grandes controvérsias. Discordância maior reside nas medidas de aumento de receitas e de corte de despesas a serem adotadas para fortalecer as finanças da União. A distribuição dos custos parte da definição de prioridades e passa pela análise dos efeitos positivos e negativos das diferentes políticas públicas existentes.

A carga tributária do Brasil parece ter encontrado um limite máximo, já que não tem ultrapassado os 33% do PIB desde os anos 1990. Esse percentual já está bem próximo da média de 34% do PIB dos países da OCDE.

A opção mais promissora para aumentar a receita em relação ao PIB (e melhorar a progressividade) é reduzir os benefícios tributários, de modo que a carga cresce, mas apenas para os antigos beneficiários dos respectivos incentivos.

Outro modo de incrementar as receitas da União é reduzir a participação das partilhas com os entes subnacionais. Em relação ao PIB, as transferências subiram de 3,5% do PIB, em 2013, para 4% do PIB, em 2023, enquanto a receita primária total da União caiu de 22,5% do PIB para 21,5% do PIB. Como consequência, a relação entre as transferências e a receita primária total da União subiu de 15,7% para 18,6% no mesmo período. Esses percentuais correspondem à média de cinco anos.

Essa mudança na participação tende a elevar as despesas do setor público, assim como o déficit e a dívida. Os entes subnacionais não têm a sustentabilidade fiscal e a estabilidade macroeconômica entre suas atribuições, não havendo razão para gerar superávits primários. Um motivo para isso seria a necessidade de pagar a dívida junto à União, mas as sucessivas renegociações dessa dívida e o uso de meios judiciais desde 2014 reduziram significativamente os pagamentos feitos.

Nesse sentido, dois projetos complementares que tramitam no Congresso Nacional agravam o problema fiscal do país, de modo que recomendamos fortemente a não aprovação. O projeto de lei complementar número 121, de 2024 , aprovado no Senado e em tramitação sob regime de urgência na Câmara dos Deputados, alonga o prazo da dívida estadual junto à União e abre margem para a redução a zero da taxa de juros incidente sobre essa dívida.

Por sua vez, o projeto de lei complementar número 164, de 2012, já aprovado na Câmara e em tramitação no Senado, muda o artigo 19 da Lei de Responsabilidade Fiscal, com o objetivo de afrouxar os limites para a despesa de pessoal dos entes federados.

Outra mudança veio com os artigos 12 e 13 da emenda constitucional número 132, de 2023. Foram criados dois fundos que transferem mais recursos da União para os estados. Essas transferências começarão com R$ 8 bilhões em 2025, mas subirão continuamente até chegar a R$ 40 bilhões ao ano em 2033 e a R$ 60 bilhões em 2043.

Essa perda da União não foi considerada no ajuste fiscal requerido calculado acima de dois pontos percentuais do PIB. Francamente, assim, a conta não fecha. Esses artigos da emenda precisam ser revistos. Eis aqui um exemplo de como a vulnerabilidade política do Executivo federal tem permitido aprovar medidas danosas ao país.

A proposta de redução da partilha em relação à receita total da União não significa diminuição das transferências em percentual do PIB. Para tanto, seria necessário destinar exclusivamente à União os ganhos de receita com a redução dos benefícios tributários, mediante emenda constitucional. Vejamos como isso operaria.

A renúncia estimada com benefícios tributários subiu de 3,5% do PIB na média do triênio 2009-2011 para 4,7% do PIB no triênio 2022-2024. A retirada de benefícios não gera receita equivalente à estimativa de renúncia por causa da esperada reação dos contribuintes.

Mesmo assim, a revogação de benefícios de modo a reduzir a renúncia de volta para os 3,5% do PIB poderia render, digamos, algo como 1% de PIB de receitas para a União, ótima contribuição para um ajuste esperado de dois pontos percentuais do PIB.

Se o 1% do PIB fosse integralmente destinado à União, esse ente recuperaria os 22,5% do PIB de receita total observados em 2013 e as transferências permaneceriam em 4% do PIB, mantendo o aumento de meio ponto a mais que os entes subnacionais tiveram nos últimos anos. A relação entre as transferências e a receita total da União, por sua vez, cairia de 18,6% para 17,8%, ainda bem acima dos 15,7% observados em 2013.

É claro que o nosso sistema tributário precisa ser mais equânime, neutro e simples, mas para isso vemos providências que levam mais à redistribuição da carga entre diferentes contribuintes do que à elevação dessa carga, que é o relevante do ponto de vista fiscal.

Em que pese a frágil situação fiscal da União, pululam propostas de desoneração tributária. Evidentemente, elas precisam ser rechaçadas. Uma proposta que pode gerar perdas significativas é a que estende a faixa de isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física para R$ 5.000, de iniciativa do próprio Executivo federal.

Se for aprovada, terá que ser juntamente com uma fonte certeira que compense as perdas, como determina o artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Esperamos que não reproduza o interminável embate pela compensação da desoneração da folha de pagamento das empresas e municípios.

Aliás, a história da desoneração da folha, iniciada em 2011 (terminará em 2027?), é um verdadeiro estudo de caso sobre como é difícil retirar um tratamento favorecido, uma vez que entra no ordenamento e no Orçamento.

O que fazer pelo lado da despesa?

Se houver a preferência dos governantes ou da própria sociedade por distribuir igualmente os custos do ajuste entre receitas e despesas, então, o ponto percentual do PIB de ajuste restante recairia sobre as despesas. Aqui, a missão é mais árdua, pois é preciso também conter aumentos em curso de componentes da despesa obrigatória. Sem isso, não há regra fiscal que sobreviva.

Em um primeiro momento, a compressão das despesas discricionárias leva à flexibilização da regra (vide o subsídio à compra do gás de cozinha, ainda em tramitação no Congresso). Em um estágio posterior, a ameaça de interrupção do funcionamento da administração pública culmina na revogação, sob a alegação de que a regra seria muito severa.

Entre as despesas obrigatórias, destaque para a despesa previdenciária, que representa 40% da despesa total, excluindo-se precatórios e sentenças judiciais. Tal despesa subiu de 6,6% do PIB, na média de 2012-2014, para 7,8% do PIB, em 2023, mesmo sob os efeitos da reforma aprovada no fim de 2019.

Essa despesa subirá ainda mais devido ao envelhecimento da população e da nova fórmula de correção do salário mínimo. Será preciso uma nova reforma, em breve, bem como a revisão da política do mínimo ou a desvinculação entre o mínimo e o menor benefício. Entretanto, ainda que se adotem essas providências, não se pode esperar mais delas que a estabilidade da despesa previdenciária em relação ao PIB.

As despesas assistenciais respondem por outros 15,5% da despesa total. Incluem-se aí o abono salarial, o seguro-desemprego, o Benefício de Prestação Continuada e o Bolsa Família. Houve aumento desse conjunto de gastos, de 1,9% do PIB na média de 2012-2014 para 3% do PIB em 2023, especialmente em razão dos saltos do Bolsa Família em 2022 e 2023 (incluindo o extinto Auxílio Brasil).

Aqui, também se aplica a necessidade de alterar a política do salário mínimo ou desvincula-lo dos benefícios. Mas cabe ainda uma reformulação geral que integre os programas assistenciais, de modo a evitar o pagamento duplicado e a levar a resultados mais efetivos, especialmente quanto ao enfrentamento da pobreza. Além da contenção da despesa em relação ao PIB, seria possível obter uma economia equivalente ao orçamento do abono salarial, que chegou a 0,23% do PIB em 2023.

Precatórios e sentenças judiciais, complementação do Fundeb (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), gastos com saúde e educação e emendas parlamentares também vêm crescendo. Nesses casos, entendemos que as providências poderiam visar à redução, em relação ao PIB, frente ao patamar atual.

Os precatórios e sentenças judiciais subiram de 0,32% do PIB na média de 2012-2014 para 0,86% do PIB na média de 2022-2024. Quando essa despesa entra no Orçamento, só resta pagar. O foco de ação deve ser nas fases anteriores, evitando a judicialização e a perda das ações. É um trabalho contínuo e persistente, a exemplo da revisão de gastos. Alguns entendem que um estoque de decisões judiciais está sendo desovado, mas não há certeza do que teremos pela frente.

As regras da complementação da União ao Fundeb também poderiam ser ajustadas, pois a aplicação da emenda constitucional nº 108, de 2020, elevará progressivamente essa despesa de 0,2% para 0,48% do PIB entre 2020 e 2026.

Trata-se de aumento muito brusco, não compatível com a atual situação fiscal da União. A reversão gradual do atual percentual de complementação, de 19%, para 15% em 2028, levaria essa despesa para 0,31% do PIB. O espaço fiscal iria de 0,06% do PIB em 2025 para 0,17% do PIB em 2028, mas manteria a complementação em valor bem superior ao observado em 2020.

Na sequência, temos os gastos com saúde e educação e as emendas parlamentares, todos vinculados à evolução da receita da União. Trata-se de procedimento impróprio, pois o gasto não é dado pela necessidade, mas pelo simples fato de a receita ter mudado. Ademais, somam-se às despesas obrigatórias para “espremer” ainda mais rapidamente as discricionárias, não protegidas.

O desejável seria não haver vinculação de qualquer tipo de despesa à receita, mas, na impossibilidade, alguma fórmula alternativa poderia ser tentada para a saúde. A correção pelo mesmo fator aplicado para calcular o limite de despesa a partir de 2025 traria espaço fiscal, mas apenas se tomasse como base o gasto de 2023. O ganho seria de 0,12% do PIB, no primeiro ano, crescendo para 0,15% do PIB em 2028. Ainda assim, o mínimo da saúde ficaria em 1,6% do PIB, mesmo percentual gasto em 2023.

Essa mesma proposta não é apropriada no caso das emendas parlamentares. São duas as questões envolvidas. A primeira é do uso adequado dos recursos. A discussão que começou por iniciativa do STF deverá trazer avanços importantes. Quanto à segunda questão, diz respeito à fragilidade fiscal da União.

As emendas simplesmente chegaram a um montante inviável, próximo de R$ 50 bilhões, na LOA de 2024. O artigo 166 da Constituição teria que ser revisto para retirar a vinculação à receita e, eventualmente, definir alguma fórmula que chegasse a um montante razoável.

Uma opção seria um percentual das despesas discricionárias. Em caso de contingenciamento, haveria partilha proporcional automática do corte entre as emendas e as demais discricionárias. No biênio 2018-2019, as emendas totais correspondiam, na média, a cerca de 8% das despesas discricionárias. Considerando-se as discricionárias atuais, esse percentual equivaleria a R$ 16 bilhões, bastante expressivo. Se tal comando vigorasse em 2024, criaria um espaço fiscal de 0,27% do PIB.

As quatro propostas acima levam a um ajuste da despesa de 0,82 ponto percentual de PIB (0,23 + 0,17 + 0,15 + 0,27). O restante 0,18 ponto percentual do PIB poderia vir da chamada revisão do gasto, com base no emprego da avaliação de políticas públicas, além do combate à fraude, análise mais criteriosa dos pedidos de benefícios e providências para enfrentar a judicialização. A revisão de 0,18 ponto representaria um corte de menos de 1% do total das despesas da União, atualmente acima de 19% do PIB, sem perda de bem-estar.

Conclusões

O país está vulnerável, sujeito a crises e baixo crescimento, o que dificulta o enfrentamento da questão social, devido a decisões que fragilizaram a situação fiscal da União.

O ajuste requerido para estabilizar a dívida pública em relação ao PIB é de dois pontos percentuais do PIB. Sugerimos providências que levam a um ponto percentual de receita extra para a União e um ponto percentual de corte de despesa.

Todas as medidas requerem amplo consenso político, algo difícil de alcançar. O fato é que o país não poderia ter chegado a essa situação. Fomos sinceros ao dizer que estamos em uma enrascada. Não será a primeira em nossa história. Outros países passaram ou passam pela mesma situação. Temos que superar.

 

Subordinação (mal) camuflada, por Ricardo Antunes.

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Ricardo Antunes – A Terra é Redonda – 08/08/2024

Prefácio do livro recém-lançado de Vanessa Patriota

Conheci a procuradora do trabalho Vanessa Patriota há alguns anos, durante um Seminário sobre Trabalho em Plataformas, realizado em Fortaleza, do qual foi uma das organizadoras. Pude constatar, durante sua apresentação, que clareza, lucidez e contundência se mesclavam em sua reflexão. Traços que agora se repetem neste livro, resultado de sua tese de doutorado defendida na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), na linha de pesquisa direito do trabalho e teoria social crítica, rica e originalmente desenvolvida ao longo de décadas, sob a liderança do Professor Everaldo Lopes Gaspar de Andrade.

Autônomos ou subordinados? Este é o dilema central deste livro, que é devidamente esmiuçado e desvendado. Para realizar tal empreitada, foram pesquisadas várias modalidades de trabalho em plataformas digitais, especialmente aquelas realizadas por motoristas e entregadores/as, definidas como crowdwork offline (mas contemplando também um paralelo com uma gama ampliada de outras plataformas caracterizadas como crowdwork online), evidenciando a predominância efetiva da subordinação real e jurídica, ao contrário da proposição central das grandes plataformas que se utilizam de todos os mecanismos e armadilhas possíveis para apresentar o trabalho como “autônomos”, de modo a desconsiderar a legislação protetora do trabalho vigente nos países onde atuam.

Sabemos que essa processualidade destrutiva em relação ao trabalho somente foi possível por uma conjugação complexa e simultânea de várias causalidades: (i) a eclosão de uma crise estrutural desde 1973, que se agudizou a partir de 2008/9, posteriormente, com a Covid-19 e mais recentemente com o grave contexto belicista internacional; (ii) um sistemático e ininterrupto processo de reestruturação produtiva permanente e global do capital e das corporações.

(iii) Uma rigorosa hegemonia financeira moldada em clara sintonia com o ideário neoliberal; (iv) a ampliação do desemprego em amplitude global, ainda que mais acentuado no Sul Global; (v) com a explosão das tecnologias de informatização e comunicação, da robotização, inicialmente no ramo industrial e depois na agroindústria e especialmente nos serviços privatizados, que se tornaram laboratórios de expansão célere dos algoritmos, Indústria 4.0, Inteligência Artificial, ChatGPT, etc.

A principal consequência desse complexo movimento, no universo laborativo, foi o advento e expansão exponencial de um mosaico diferenciado de atividades laborativas, sendo seu mais recente exemplo o denominado trabalho “plataformizado” ou “uberizado”. Utilizando-se dos artefatos digitais e da abundância de força de trabalho desempregada, bem como das “flexibilizações” da legislação do trabalho que geraram a terceirização, o aumento da informalidade e “invenção” dos trabalhos intermitentes, foi assim que as grandes plataformas digitais puderam gestar as atuais modalidades de trabalhos cujo traço distintivo central se encontra na recusa em cumprir a legislação do trabalho que existe nos diversos países e que regulamenta as relações entre capital e trabalho.

Não é por outro motivo que as grandes plataformas se apresentam como “prestadoras de serviços”, “fornecedoras de tecnologia”, de modo a obliterar a real condição de assalariamento e subordinação que configura a realidade dos trabalhos que lá se desenvolvem, além de lhes possibilitar a exclusão do pagamento de tributos que regulam o universo empresarial.

Foi esse o desafio que Vanessa Patriota se propôs a desvendar. Em suas próprias palavras: “Esta tese centra-se no estudo de plataformas digitais de trabalho com o objetivo de: (a) identificar a vertente da subordinação jurídica presente crowdwork offline de motoristas e entregadores/as.

(b) Analisar as características do crowdwork online, a fim de verificar se os trabalhadores e as trabalhadoras nele inseridos podem ser albergados/as pelo Direito do Trabalho e se, para tanto, é necessário reconfigurar o conceito de subordinação na relação empregatícia”. Através desse percurso sua investigação demonstra que as grandes plataformas, em suas diversas modalidades de trabalho, utilizam-se de todos os meios e formas, com o objetivo “inegociável” de manter empregados/as sempre excluídos dos direitos do trabalho no Brasil.

Para obter suas principais respostas analíticas, a autora perseguiu as seguintes indagações: as novas modalidades de organização e do processo de trabalho, desenvolvidas a partir da expansão das tecnologias informacionais e digitais, podem comportar um “manto protetor” no âmbito do Direito do Trabalho? a regulamentação existente no Brasil oferece e contempla os elementos necessários para reconhecer a subordinação presente nos trabalhos plataformizados? ou, ao contrário, é preciso “ampliar o espectro de proteção trabalhista” de modo que a subordinação possa ser amparada pelo Direito do Trabalho?

Para realizar esse desafio, Vanessa Patriota, ao longo de nove sólidos capítulos, abarcou um amplo espectro de evidências empíricas e percorreu densos caminhos analíticos, dialogando amplamente, tanto com a bibliografia presente nos estudos jurídicos do trabalho como também realizou um diálogo fértil com a crítica da economia política e também com a sociologia do trabalho, o que conferiu ainda mais força e contundência ao seu estudo. Por conta deste movimento, seu livro poderá ser lido e utilizado tanto na esfera jurídica, no âmbito do direito do trabalho, quanto por aqueles/as que buscam melhor compreender a materialidade econômica, social, política e ideológica que plasma o mundo jurídico que versa sobre o trabalho.

Um olhar no amplo sumário de Subordinação (mal) camuflada demonstra a riqueza do estudo realizado.

Na Primeira Parte, analisa os sentidos do trabalho e o papel do direito no capitalismo, com suas transformações na esfera produtiva e no âmbito das classes sociais em seus embates. Uma adequada análise da subordinação jurídica, da parassubordinação e da autonomia encontra-se respaldada em uma cuidadosa compreensão de conceitos como trabalho humano, tecnologia, relações de trabalho, mercadoria, individualismo contratualista, classe e consciência de classe, taylorismo, fordismo, welfare state, crise, acumulação flexível, sempre procurando relacionar a realidade do Brasil com a contextualidade internacional, o que lhe permite demonstrar como se desenvolvem as fraudes trabalhistas.

Na Segunda Parte, a autora enfrenta o difícil e decisivo debate acerca do trabalho produtivo e improdutivo, bem como a importância dessa reflexão para uma melhor intelecção dos significados essenciais do trabalho plataformizado no capitalismo atual, fortemente financeirizado e celeremente digitalizado. Analisa as principais características presentes nas pesquisas que se debruçaram sobre o trabalho nas plataformas de transportes de pessoas e entregas. Faz um sólido diagnóstico dessa realidade, utilizando o material empírico presente nas provas obtidas em inquéritos do Ministério Público do Trabalho, envolvendo as plataformas Rappi, iFood, Cabify, 99 e Uber, o que lhe permite indicar os traços que configuram a subordinação clássica que permeia esta modalidade de trabalho.

Expõe ainda os principais artifícios utilizados pelas plataformas de modo a negar o vínculo empregatício, artifícios estes que se encontram em aguda contradição frente às condições de trabalho vivenciadas pelos/as trabalhadores/as. Assim procedendo, demonstra como as plataformas reiteram o caráter subordinativo presente na efetividade e no direito do trabalho, acentuando as contradições existentes entre as diversas legislações existentes nos distintos países e a forma assumida pelo trabalho em plataformas, que têm amplitude e abrangência transnacional, aspecto este que é decisivo para se enfrentar a dilemática da regulamentação.

Conclui seu estudo com a necessidade imperiosa de equacionar o dilema central do direito do trabalho no Brasil (e no mundo hoje), ao se pensar no trabalho em plataformas: trata-se de lutar pelo trabalho regulamentado e protegido ou preservar e ampliar o enorme retrocesso e devastação social presentes nestas atividades? O que leva a autora a reafirmar a importância das lutas emancipatórias para dar concretude à regulação do trabalho, bem como para enfrentar a questão nodal do controle social dos algoritmos, utilizados pelas grandes plataformas digitais, que são de uso secreto, restrito e absoluto das plataformas, visando tanto à intensificação da exploração do trabalho quanto de seu ocultamento.

E, para rechaçar a mistificação de que o mundo algorítmico é expressão distinta de “uma nova realidade” no mundo do trabalho, Vanessa Patriota acrescenta uma argumentação central, de modo cristalino: mesmo “que se possa falar em controle algorítmico e em gerenciamento digital ou cibernético, não se afastam a intensidade de ordens e as práticas disciplinares típicas da subordinação clássica. Tal conclusão é de extrema importância na medida em que o conceito de subordinação clássica ainda é adotado de forma prevalente tanto na jurisprudência e doutrina nacionais quanto nas estrangeiras”.

O que acentua a importância em “despir a subordinação de suas vestes atuais, para revelar o que ela realmente apresenta: ordens intensas, constantes e vinculantes, que ensejam punições disciplinares em caso de descumprimento e que são emitidas diretamente pelas empresas, mas através da programação algorítmica”.

Ao refutar, com fortes evidências empíricas e riqueza argumentativa, a falácia do “empreendedorismo”, este livro nos oferece um retrato da realidade na qual uma enorme massa de trabalhadores/as labora durante longas e intensas jornadas de trabalho, encontrando-se, entretanto, completamente desguarnecidos/as e desprovidos/as dos direitos presentes na legislação protetora do trabalho no Brasil.

Suas conclusões são precisas: “As plataformas digitais de trabalho analisadas foram criadas em um contexto em que o trabalho ocupa todos os espaços da vida […]; em que as entidades sindicais estão extremamente fragilizadas, dificultando suas lutas; em que os Estados-nações são capturados pelas grandes corporações, e são elas que se encontram por trás da plataformização dos serviços; em que a precarização do trabalho é altíssima e as empresas detentoras de plataformas digitais vão intensificá-la ainda mais; enfim, em um contexto em que a racionalidade neoliberal faz crer que não há alternativas ao proletariado, senão aceitar os postos precários de trabalho que lhes são ofertados por benevolência”.

É por isso que o livro de Vanessa Patriota não poderia ser publicado em melhor e tão crucial momento, exatamente quando no Congresso Nacional tramitam diversos nefastos projetos de lei que, uma vez aprovados, estarão dando um passo desastroso em direção à devastação dos direitos do trabalho no Brasil, conquistados pelo conjunto da classe trabalhadora em muitas lutas, travadas durante incontáveis décadas.

*Ricardo Antunes é professor titular de sociologia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de O capitalismo pandêmico (Boitempo).

Referência

Vanessa Patriota. Subordinação (mal) camuflada: a dominação capitalista no trabalho em plataformas digitais. Belo Horizonte, RTM educacional, 2024

 

Considerações a partir do livro clássico de Eduardo Galeano, por Claudio Katz

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Claudio Katz – A Terra é Redonda – 13/11/2021

As Veias Abertas da América Latina começa com uma frase que resume a essência da Teoria da Dependência. “A divisão internacional do trabalho consiste em que alguns países se especializam em ganhar e outros em perder. Nossa comarca no mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os tempos remotos”. Esta breve oração oferece uma imagem concentrada e altamente ilustrativa da dinâmica da dependência. Por essa razão, foi citada em inúmeras ocasiões para retratar o status histórico de nossa região.

O livro de Galeano é um texto chave no pensamento social latino-americano, que convergiu com a formação da Teoria da Dependência e contribuiu para popularizar essa concepção. A primeira edição desse trabalho coincidiu com o auge da abordagem dependentista. Mas, em todas as suas páginas, demonstrou uma afinidade especial com a vertente marxista dessa teoria, que foi desenvolvida por Ruy Mauro Marini, Theotonio Dos Santos e Vania Bambirra. Essa visão postulou que o subdesenvolvimento latino-americano corresponde à perda de recursos gerada pela inserção internacional subordinada da região.

Galeano difundiu precocemente essa abordagem no Uruguai, e seu livro repassa a história latino-americana em chave dependentista. Ele ilustra de forma muito acabada como “o modo de produção e a estrutura de classes foram sucessivamente determinados de fora… através de uma cadeia infinita de dependências sucessivas… que nos levaram a perder até mesmo o direito de nos chamarmos americanos”. Ele lembra que “como parte do vasto universo do capitalismo periférico”, a região “foi submetida à pilhagem e aos mecanismos de espoliação”[ii].

Essa caracterização do desenvolvimento frustrado da América Latina ligava os anos 70 a uma ampla produção historiográfica de mesmo signo. Esses estudos relacionavam os impedimentos impostos pela dependência com a repetição da expansão alcançada pela economia estadunidense. Galeano retomou uma ótica muito semelhante àquela exposta pelas pesquisas de Agustín Cueva e Luis Vitale[iii].

O pensador uruguaio desenvolveu uma história sintética da região, centrada nos quatro componentes do marxismo latino-americano da época. Denunciou a espoliação dos recursos naturais, criticou a exploração da força de trabalho, enfatizou a resistência dos povos e aderiu a um projeto socialista de emancipação.

Galeano desenvolveu seu texto combinando várias disciplinas e deu luz a um relato que impacta por sua beleza literária. Seu entusiasmo comove o leitor e gera um efeito explicitamente pretendido pelo livro.

O escritor uruguaio decidiu difundir um “manual de divulgação que fale de economia política no estilo de um romance de amor”. E alcançou um sucesso avassalador para este empreendimento surpreendente. Galeano comentou que seguiu o caminho de “um autor não especializado”, que embarcou na aventura de desvendar os “fatos que a história oficial esconde”[iv].Abordou este objetivo com uma linguagem afastada das “frases feitas” e distante das “fórmulas declamatórias”. Conseguiu consumar esse ambicioso propósito num trabalho impactante.

Galeano deixou para trás o enrijecimento, o academicismo e o discurso frio. Usou uma linguagem que sacudiu milhões de leitores e inaugurou um novo código para visibilizar a dramática realidade latino-americana. Veias abertas inspirou uma legião de escritores que adotaram, desenvolveram e enriqueceram essa forma de retratar a espoliação e a opressão sofridas por nossa região.

 

Afinidades conceituais e políticas

Galeano alinhou-se com a corrente radical da dependência liderada por Marini e Dos Santos, em franca contraposição com a vertente eclética e descritiva liderada por Fernando Henrique Cardoso. A afinidade de Veias Abertas com a primeira concepção é verificada em todos os enunciados do livro.

Neste trabalho, não se limitou a descrever o atraso econômico resultante de modelos políticos equivocados, nem observou a dependência como um traço ocasional ou meramente negativo. Também não endossou as associações com o capital estrangeiro que Cardoso promovia como solução para o atraso da região. Quando esse intelectual assumiu a presidência do Brasil, desdisse seus textos antigos, repudiou seu passado e objetou seus próprios escritos. Mas a semente de sua involução neoliberal estava presente na abordagem da dependência que postulou polemizando com Marini e Dos Santos.

A visão de Galeano também estava distante da CEPAL. Em nenhuma parte do livro esboçam-se ilusões heterodoxas sobre a superação do subdesenvolvimento regional através de uma industrialização capitalista liderada pela burguesia nacional. O protecionismo e a regulação estatal não são considerados como os caminhos a seguir para erradicar os males econômicos da América Latina.

A oposição a esse percurso verifica-se também nas inúmeras críticas à impotência das classes dominantes locais para colocar em marcha alguma modalidade efetiva de desenvolvimento regional. Destaca-se essa incapacidade para comandar um crescimento industrial semelhante ao alcançado pelas poderosas economias centrais.

Tal questionamento era o eixo do programa político inaugurado pela Revolução Cubana e conceitualizado pela teoria marxista da dependência. Esta abordagem propiciava uma transição direta e sem interrupções para o socialismo, afastando qualquer etapa intermediária de capitalismo nacional.

Veias Abertas inscreve-se nessa corrente de pensamento e compartilha o entusiasmo gerado pelo sucesso inicial da Revolução Cubana. Em numerosos parágrafos, irrompe o espírito de Che, o tom romântico e a esperança no triunfo dos projetos radicalizados. Também enfatiza as raízes históricas das lutas populares em toda a região.

Em nenhum momento Galeano esquece a base econômica estrutural da dependência que os estudos da Gunder Frank enfatizavam. Mas, ao contrário desses estudos, enfatiza a centralidade das resistências populares. Não fala apenas de estanho, mineração, latifúndio e plantações. Destaca as façanhas de Louverture no Haiti, a rebelião de Tupac Amaru no Peru e a ação de Hidalgo no México.

O livro resgata essas tradições de luta popular, destacando como a história oficial dilui a visibilidade destas resistências. Lembra que essa operação de ocultação muitas vezes leva o próprio oprimido a assumir como sua “uma memória fabricada pelo opressor”.

Galeano não apenas detalha como a América Latina foi estruturada durante séculos pela exploração dos índios e a escravidão dos negros. Ressalta também que os sujeitos afetados por esta espoliação reagiram com revoluções e revoltas. Essas sublevações abriram um horizonte alternativo de libertação.

Veias Abertas recorda também o nexo entre essas rebeliões e o assunto pendente da integração regional, legado pelo projeto inacabado de Bolívar. Essa ênfase no papel insurgente dos povos ilustra a afinidade de Galeano com o projeto político revolucionário da Teoria da Dependência.

 

Primarização e extrativismo

A sintonia de um livro escrito há cinquenta anos com uma concepção marxista em voga naquela época não constitui nenhuma surpresa. Mais problemático, contudo, é desvendar a atualidade de ambas as visões. Em que terrenos se verifica a vigência de Veias Abertas e do dependentismo?

Há muitos fragmentos de um livro escrito em 1971 que parecem aludir a situações de 2021. Estes aspectos duradouros do texto (e da teoria que o inspirou) correspondem à condição dependente da América Latina e são corroborados sobretudo pelo extrativismo.

A especialização exportadora da região em produtos primários – que bloqueou seu desenvolvimento no passado – continua obstruindo a decolagem da região. Esse impedimento combina-se, ademais, com um agravamento inédito da deterioração do meio ambiente. A mineração a céu aberto concentra grande parte dessas calamidades e tornou-se o epicentro de numerosos conflitos em todos os países.

Primarização e extrativismo são os dois termos usados atualmente para denunciar a obstrução ao crescimento produtivo e inclusivo, que Galeano destacava há cinco décadas. Veias Abertas descreve como a submissão da região ao mandato externo dos preços das commodities gera essa asfixia.

Mas essa vulnerabilidade já não é mais vista como um simples efeito de processos inexoráveis de desvalorização das exportações de produtos primários. Muitos economistas desvendaram a dinâmica cíclica desses preços no mercado mundial e estudaram o complexo processo de sucessivos encarecimentos e barateamentos das matérias-primas. O grande problema é que essas flutuações sempre obstruem o desenvolvimento devido à condição dependente de toda a região.

A América Latina nunca aproveita os momentos de valorização das exportações e sofre invariavelmente nos períodos opostos de depreciação. Na conjuntura atual de preços altos, essas adversidades são verificadas, por exemplo, no encarecimento dos alimentos. A exportação de trigo e carne tornou-se uma desgraça para a aquisição cotidiana de pão e o consumo de proteínas.

Galeano descreveu uma desventura econômica resultante do manejo adverso da renda agrária, mineira e energética em toda a região. A centralidade dessa remuneração à propriedade dos recursos naturais acentuou-se nas últimas décadas. As grandes potências disputam – com a mesma intensidade que no passado – o precioso espólio das riquezas latino-americanas. A região continua sofrendo o confisco sistemático desse excedente, numa dinâmica que combina a erosão da renda com sua expropriação.

Atualmente os Estados Unidos disputam com a China (e em menor medida com a Europa) a apropriação dos recursos naturais da região. Os gigantes mundiais já não obtêm apenas excedentes de grão ou carne. Capturam também minerais estratégicos como o lítio e depredam sem nenhuma restrição a fauna marinha.

Ao contrário de outras economias não metropolitanas (como a Austrália ou a Noruega), que se aproveitam da renda para seu desenvolvimento, a América Latina sofre a drenagem desse excedente. É incapaz de transformá-lo em investimento produtivo devido à sua posição subordinada na divisão global do trabalho. Essa sujeição também explica o comércio desfavorável com os grandes compradores das exportações da região.

A América Latina não negocia em bloco suas trocas com a China, e os resultados das negociações país por país são invariavelmente adversos. As desventuras retratadas por Galeano há cinquenta anos são recicladas novamente na atualidade.

 

Retrações da indústria

Veias Abertas descreve como os processos históricos de industrialização foram obstruídos na América Latina pelas políticas livre-cambistas. Esse “industricídio” aniquilou a produção interna na Argentina e destruiu o desenvolvimento incipiente do Paraguai, que procurava lançar as bases para uma estrutura fabril independente. Posteriormente, as redes ferroviárias construídas em torno dos funis portuários garantiram o estrangulamento industrial. A mão visível do estado não interveio – como nos Estados Unidos – para assegurar o surgimento de um poderoso tecido industrial.

Este estrangulamento industrial foi parcialmente modificado na segunda metade do século XX pelos processos de substituição de importações. Esse modelo deu origem ao surgimento de estruturas industriais frágeis, mas ilustrativas do potencial expansão manufatureira. Galeano escreveu seu livro no ocaso desse esquema, e, cinquenta anos depois, o panorama industrial é novamente desolador na maior parte da América Latina.

A atividade industrial recuou na América do Sul e tende a especializar-se, na América Central, nos elos básicos da cadeia global de valor. Este cenário adverso é frequentemente descrito com retratos de uma “desindustrialização precoce” da região, que é diferente, por sua maior nocividade, das deslocalizações prevalecentes nas economias avançadas. Em todos os cantos da América Latina, aprofundou-se o distanciamento em relação à indústria asiática e muitos empreendimentos fabris desaparecem antes de atingirem a maturidade.

Nos países medianos, essa deterioração afeta o modelo criado para abastecer o mercado local. No Brasil, o aparato industrial perdeu a dimensão dos anos 80, a produtividade estancou, o déficit externo expande-se e os custos aumentam no compasso de uma obsolescência crescente da infraestrutura. Na Argentina, o declínio é muito maior.

O modelo das empresas maquiladoras mexicanas também enfrenta graves problemas. Continua montando peças para as grandes fábricas estadunidenses, mas perdeu centralidade diante dos concorrentes asiáticos. A renegociação do tratado de livre-comércio com os Estados Unidos simplesmente deu lugar a outro acordo (T-MEC), que renova a adaptação das fábricas fronteiriças às necessidades das empresas do Norte.

A maioria dos países da região continua negociando (e aprovando) acordos de livre-comércio que corroem o tecido econômico local. Em todos os casos, garante-se a desproteção interna contra a invasão incontrolável das importações. Essa adversidade não impediu as negociações do Mercosul para assinar um tratado de livre-comércio com a União Europeia, nem as negociações para acordos unilaterais com a China.

A regressão industrial que afeta a região atualiza todos os desequilíbrios do ciclo dependente estudado pelos teóricos da dependência. Nos anos 70, destacavam a drenagem sistemática de recursos que afetava o setor manufatureiro, através da remessa de lucros. A maior predominância do capital estrangeiro acentuou nas últimas décadas essa obstrução ao processo local de acumulação.

Mas, ao contrário dos anos 70, o retrocesso atual da indústria latino-americana coexiste com a grande ascensão de suas congêneres asiáticas. Basta observar o aumento da distância entre a Coréia do Sul e o Brasil ou a Argentina para notar a magnitude dessa mudança. Enquanto a América Latina era funcional ao velho modelo de mercados internos do capitalismo do pós-guerra, o Sudeste Asiático tende a otimizar o salto registrado na internacionalização da produção.

Muitos autores heterodoxos supõem que a divergência entre as duas regiões se deve apenas à implementação de políticas econômicas opostas. Acreditam que os asiáticos optaram pelo caminho adequado, que foi rejeitado por seus pares da América Latina. Mas essa visão ignora todas os condicionamentos estruturais impostos pela maximização do lucro na divisão mundial do trabalho.

As teses dependentistas destacam esse condicionamento, que o livro de Galeano também detalha. Ali são explicadas as adversidades históricas estruturais que a região enfrenta.

 

Despossessão e exploração

Veias Abertas denuncia o sofrimento da população explorada em todos os cantos da América Latina. Não fala apenas da escravidão e do servilismo do passado. Descreve as condições desumanas de trabalho que prevaleciam há cinco décadas. A atualidade dessas observações é particularmente impactante no contexto dramático de deterioração social do presente.

O neoliberalismo não só agravou o desemprego e a informalidade laboral. Além disso, consolidou uma terrível ampliação das diferenças de renda, na região mais desigual do planeta. Essa polarização explica a escala aterradora da violência que impera nas grandes cidades. Das 50 cidades mais perigosas do mundo, 43 localizam-se na América Latina.

A degradação social que afeta a região deve-se, em grande medida, à renovada expulsão de camponeses imposta pela transformação capitalista do agro. Essa mutação potencializou a expansão descontrolada de uma massa de excluídos que chega às cidades para ampliar o exército de desempregados. A falta de trabalho nas grandes cidades e a baixíssima remuneração dos empregos existentes explicam o enorme aumento da informalidade. Neste contexto, a narco economia generalizou-se como um refúgio para a sobrevivência.

A especialização latino-americana em exportações de produtos primários é complementada, em algumas economias da América Central, pelo crescimento desarticulado do turismo. É a única atividade criadora de empregos em muitas localidades dessa região. Em todos os casos, a ausência de postos de trabalho multiplica a emigração e a consequente dependência familiar das remessas. Enormes contingentes de jovens desempregados são simultaneamente impedidos de criar raízes e de emigrar. Não encontram trabalho em suas localidades de origem e são perseguidos ao ingressar nos Estados Unidos.

As médias regionais de pobreza continuam transbordando na América Latina para o segmento precarizado e afetam uma enorme parcela dos trabalhadores estáveis. Estes dados não mudaram desde o aparecimento do livro de Galeano.

A fragilidade da classe média também persiste, numa região com uma presença reduzida desse estrato. Em comparação com os países avançados, os setores médios proporcionam um colchão muito exíguo ao abismo que separa os abastados dos empobrecidos. Esse segmento é formado principalmente por pequenos comerciantes (ou autônomos) em vez de profissionais ou técnicos qualificados.

Este cenário adverso piorou de forma dramática durante a pandemia do último biênio. Em termos percentuais, a América Latina foi a região com o maior número de contágios e mortes do planeta e também sofreu o maior impacto econômico e social da doença.

A queda do PIB na região foi o dobro das médias internacionais e essa deterioração aprofundou a desigualdade. Metade da força de trabalho (que sobrevive na informalidade) foi severamente afetada pela retração econômica imposta pelo coronavírus. Estes setores tiveram que aumentar suas dívidas familiares para compensar a queda brutal da renda.

A desigualdade digital também aumentou em toda a região e impactou severamente as crianças empobrecidas que perderam um ano de escolaridade. Essa deterioração na educação tem efeitos explosivos em virtude de seu entrelaçamento com a crescente precarização do trabalho. As grandes empresas aproveitam o novo cenário para reduzir os custos laborais, com novas formas de teletrabalho que multiplicam a exploração dos assalariados.

Nas últimas cinco décadas, os capitalistas recorreram a inúmeros mecanismos para compensar sua debilidade internacional, explorando ainda mais a força de trabalho. Por essa razão, a diferença salarial entre a região e as economias centrais aumentou significativamente. A tendência mundial de segmentação do trabalho – entre um setor formal-estável e um informal-precarizado – apresenta uma escala assustadora na América Latina.

Essa disparidade ratifica a vigência do diagnóstico dependentista e confirma a continuidade dos mesmos problemas que Galeano observou no mundo do trabalho. Cinquenta anos depois, todas as suas observações são corroboradas em outra escala.

 

O velho pesadelo do endividamento

Em Veias Abertas, denunciava-se a triplicação da dívida externa entre 1969 e 1975 e a consequente consolidação de um círculo vicioso que asfixia a economia da região. Esse encadeamento obriga a América Latina a seguir um roteiro de aumento das exportações, estrangeirização industrial e auditoria dos banqueiros imposta pelo FMI. Galeano destacava que essas exigências consolidam, por sua vez, a ação dos capitalistas estadunidenses, que controlam grande parte da região através da gestão das finanças.

Nos últimos cinquenta anos, esse pesadelo foi mantido sem mudanças estruturais, e acentuou os desequilíbrios fiscais e os déficits externos, que aumentam os passivos e precipitam novas crises.

Durante a era neoliberal, houve períodos de gravidade variável dessa vassalagem financeira. Na última década, a apreciação das matérias-primas e o ingresso de dólares permitiram certo alívio, mas quando o fôlego comercial desapareceu, o endividamento ressurgiu com grande intensidade. Atualmente, o FMI e os fundos de investimento intervêm novamente de modo protagonista na administração de uma dívida impraticável.

Nos momentos mais dramáticos da pandemia, o FMI emitiu mensagens hipócritas de colaboração. Mas, na prática, limitou-se a convalidar um alívio irrisório do passivo entre um pequeno grupo de nações ultra empobrecidas. Repetiu a atitude assumida em relação à crise de 2008-2009, quando combinou apelos formais para a regulamentação internacional das finanças com exigências crescentes de ajuste para todos os devedores.

A tradição dependentista tem evitado a análise do endividamento em termos de simples especulação financeira. Destaca que o crescente peso dos passivos expressa a fragilidade produtiva e comercial do capitalismo dependente. A vulnerabilidade financeira da América Latina só complementa essas inconsistências.

Há uma sobrecarga com o pagamento de juros, com refinanciamentos compulsivos e com inadimplência sem razão do perfil subdesenvolvido das economias primárias, marcadas pela fraqueza industrial e pela alta especialização em serviços básicos. O endividamento não é desencadeado apenas pela “pilhagem dos financistas”. Reflete a crescente debilidade estrutural dos processos de acumulação.

A região não está isenta do processo de financeirização que caracteriza todas as classes dominantes do planeta. Mas a mutação central que se verificou na América Latina foi a transformação das antigas burguesias nacionais em novas burguesias locais.

O texto de Galeano ainda estava inscrito no primeiro período. Desde então, os grupos capitalistas que priorizam a expansão da demanda com uma produção orientada para o mercado interno perderam sua centralidade. Ganharam peso os setores que priorizam as exportações e preferem reduzir os custos em vez de ampliar o consumo.

 Esse giro também confirmou todos os diagnósticos dependentistas do entrelaçamento do grande capital latino-americano com seus pares do exterior. A localização de grandes fortunas locais em paraísos fiscais e a estreita associação criada pelas principais companhias da região com empresas transnacionais ilustram esta simbiose. O endividamento denunciado por Galeano sustentou essa mutação das classes dominantes.

 

Crises tempestuosas

O livro do escritor uruguaio comove pelo retrato desolador que apresenta da realidade cotidiana da América Latina. Este cenário é condicionado pela irrupção sistemática de crises sufocantes que o capitalismo dependente impõe. Estas convulsões derivam, por sua vez, do estrangulamento externo e da periódica redução interna do poder aquisitivo.

A era neoliberal que sucedeu a publicação de Veias Abertas foi marcada por crises econômicas mais frequentes e intensas, que precipitaram recessões mais profundas e induziram socorros gigantescos dos bancos. Essas turbulências foram invariavelmente desencadeadas pelos estrangulamentos do setor externo, levando a desequilíbrios comerciais e perda de recursos financeiros.

Como as economias latino-americanas dependem da flutuação dos preços das matérias-primas, nos períodos de valorização das exportações, as divisas afluem,  apreciam-se as moedas e os gastos expandem-se. Nas fases opostas, os capitais migram, o consumo decresce e as contas fiscais deterioram-se. No auge dessa adversidade, irrompem as crises.

Essas flutuações, por sua vez, aumentam o endividamento. Nos momentos de valorização financeira, os capitais ingressam para lucrar com operações de alto rendimento, e nos períodos opostos, a saída de capitais generaliza-se. Tais operações são consumadas pelo aumento do passivo dos setores público e privado.

Outro fator determinante das crises regionais são as reduções periódicos do poder aquisitivo. Essas amputações agravam a ausência estrutural de uma norma de consumo de massa. A debilidade do mercado interno e o baixo nível de renda da população explicam essa carência. A expansão da informalidade laboral, os baixos salários e a estreiteza da classe média acentuam a fragilidade do poder de compra.

As duas modalidades de crise – pelo desequilíbrio externo e pela retração do consumo – foram verificadas em todos os modelos das últimas décadas. Despontaram inicialmente durante a substituição de importações (1935-1970) e reapareceram com maior virulência na “década perdida” de estagnação e inflação (anos 80). Tornaram-se mais intensos no início posterior do neoliberalismo, como consequência da desregulamentação financeira, da abertura comercial e da flexibilidade laboral.

A teoria da dependência sempre estudou essas tensões com critérios multicausais e sublinhou a ausência de um único determinante da crise. As convulsões na região são desencadeadas por forças diversas, que combinam os desequilíbrios externos com as restrições do poder de compra.

Essa combinação de determinantes externos e internos teve um impacto devastador nos últimos dois anos da pandemia. A América Latina sofreu a maior contração planetária de horas de trabalho, em consonância com declínios semelhantes na renda popular. Após cinco anos de estagnação, a Covid acentuou uma enorme deterioração da estrutura produtiva. Para piorar a situação, os sinais de recuperação são tênues e as previsões de crescimento são inferiores à média mundial. Outro capítulo de Veias Abertas ocorreu na região durante o “Grande Confinamento” do último biênio.

 

O cenário político

A afinidade de Veias Abertas com a Teoria da Dependência não se limita ao estreito domínio da economia. Na tradição expositiva desta última concepção, o livro evita sobrecarregar o leitor com meros números e estatísticas intrincadas. Destaca com exemplos o impacto da dominação imperialista no subdesenvolvimento regional. Denuncia especialmente os golpes de estado, que sempre utilizaram as embaixadas estadunidenses para instalar governos favoráveis às grandes empresas do Norte.

Cinquenta anos depois, essa intromissão de Washington persiste com maiores disfarces, mas com o mesmo descaramento do passado. Os Estados Unidos buscam atualmente restaurar sua hegemonia mundial deteriorada, reforçando seu controle da América Latina, a fim de conter a centralidade crescente da China. A primeira potência está disposta a utilizar seu enorme poder geopolítico-militar para recuperar as posições econômicas perdidas. Por essa razão, a região é mais uma vez tratada como “quintal”, sujeita às normas de submissão estabelecidas pela Doutrina Monroe.

Os Estados Unidos procuram reduzir a margem de autonomia dos três países medianos da região. Exige que o Brasil entregue a supervisão da Amazônia, que o México reforce a infiltração da DEA e que a Argentina aceite as ordens do FMI. Como as invasões diretas (como Granada ou Panamá) já não são viáveis, o Pentágono reforça suas bases na Colômbia e patrocina inúmeras conspirações contra a Venezuela.

Trump implementou esse roteiro com brutalidade e Biden apressa-se para continuá-lo com bons modos. Ele precisa recompor a deteriorada dominação do Norte e reduz os excessos verbais de seu antecessor, a fim de reconstruir alianças com o establishment latino-americano. Mas, da mesma maneira que Trump, prioriza a diminuição da presença da China na região. Todas as iniciativas da Casa Branca desmentem a percepção ingênua “de que os Estados Unidos já não estão interessados na América Latina”. Recuperar a dominação plena do hemisfério é a prioridade principal de Washington.

É por isso que apoia os governos de direita que atuam como herdeiros das ditaduras denunciadas por Galeano. Tal como os teóricos da dependência, o pensador uruguaio indagava nos anos 70o pilar coercivo de todos os sistemas políticos latino-americanos. Retratava como as tiranias implementavam diferentes modelos de totalitarismo e destacava a primazia exercida pelas burocracias militares na gestão do estado.

No período pós-ditatorial das décadas seguintes, esse esquema foi substituído por diversas modalidades de constitucionalismo, que combinaram políticas econômicas neoliberais com a aceitação forçada das conquistas democráticas.

Mas após várias décadas, os regimes de direita tentam recuperar novamente o predomínio no compasso de uma restauração conservadora. Atuam através da continuação de governos reacionários, de novas capturas eleitorais e de golpes institucionais reiterados. No último biênio de pandemia, militarizaram suas administrações e instauraram estados de exceção, com o crescente protagonismo das forças armadas.

A direita regional opera agora de forma coordenada para estabelecer regimes autoritários. Não promove as tiranias militares explícitas dos anos 70, mas formas disfarçadas de ditadura civil. Entre seus expoentes, persiste uma divisão visível entre personagens extremistas e moderados, mas todos unem forças nos momentos decisivos.

A direita implementa uma estratégia comum de proscrição dos principais líderes do progressismo. Recorrem a mecanismos criativos para inabilitar opositores e orquestrar golpes parlamentares, judiciais e midiáticos. Aspiram a alcançar o controle brutal dos governos retratados no texto de Galeano. Recriaram, além do mais, os discursos primitivos da Guerra Fria e as campanhas delirantes contra o comunismo que propagavam quando a primeira edição de Veias Abertas foi publicada.

Mas todas as figuras da direita regional enfrentam uma grande erosão política por sua responsabilidade na gestão desastrosa do estado. Devem lidar, ademais, com o grande ressurgimento da mobilização popular.

Em três bastiões do neoliberalismo (Colômbia, Peru e Chile) verificaram-se enormes revoltas nas ruas, e, em outros casos, os protestos permitiram a reintegração do governo progressista substituído por um golpe militar (Bolívia). Em diferentes cantos do hemisfério, desponta uma tendência convergente para o reinício das rebeliões que convulsionaram a América Latina no início do milênio.

 

Um símbolo de nossas lutas

Em Veias Abertas, há um apelo repetido à construção de uma sociedade não capitalista de igualdade, justiça e democracia. Essa mensagem está presente em várias passagens do texto. Galeano compartilhava com os teóricos da dependência o objetivo de reforçar um projeto socialista para a região.

Nos anos 1960-70, esperava-se avançar em direção a esta meta ao cabo de revoluções populares vitoriosas. Essa expectativa foi confirmada pelas rebeliões anticoloniais, pelo protagonismo do Terceiro Mundo e pelos triunfos do Vietnã e de Cuba.

Posteriormente, prevaleceu uma etapa inversa de expansão do neoliberalismo, o desaparecimento do chamado “campo socialista” e a reconfiguração da dominação global. Na América Latina, contudo, ressurgiram as esperanças com as rebeliões que marcaram o início do novo século, facilitando a emergência do ciclo progressista e o aparecimento de vários governos radicais. O contexto atual é marcado por uma disputa não resolvida e pela confrontação persistente entre os despossuídos e os privilegiados.

Esse choque inclui revoltas populares e reações dos opressores. Num polo, aflora a esperança coletiva, e no outro o conservadorismo das elites. As vitórias significativas coexistem com retrocessos preocupantes, num quadro marcado pela indefinição dos resultados. Está pendente o resultado da batalha entre os desejos do povo e os privilégios das minorias.

Veias Abertas é um texto representativo dessa luta e por essa razão é periodicamente redescoberto pela juventude latino-americana. O mesmo ocorre com a Teoria Marxista da Dependência. Esse instrumento teórico recupera seu público devido à explicação que proporciona para a compreensão da dinâmica contemporânea da região. Desperta o interesse de todos aqueles interessados em mudar a realidade opressora da região.

O livro de Galeano e o dependentismo compartilham da mesma recepção entre as novas gerações que recuperam os ideais da esquerda. Veias abertas é um verdadeiro emblema dos ideais transformadores. É por isso que em abril de 2009, durante a Quinta Cúpula das Américas, o presidente Chávez presenteou publicamente Barack Obama com um exemplar do livro. Com esse gesto, destacou qual é o texto que sintetiza os sofrimentos, projetos e esperanças de toda a região.

Galeano personificava estes ideais e também gerava um fascínio inigualável no público. Transmitia entusiasmo, sinceridade e convicção. Suas palavras convocavam para a construção de um futuro de fraternidade e igualdade e a renovação desse compromisso é a melhor homenagem a sua obra.

*Claudio Katz é professor de economia na Universidad Buenos Aires. Autor, entre outros livros, de Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo (Expressão Popular).

Como combater a sociedade dos escravos digitais? Entrevista com Ricardo Antunes

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Poucas vezes, na história do capitalismo, a exploração foi tão crua, diz Ricardo Antunes. Ele sustenta: governo Lula resiste a enfrentar o problema; mas os precarizados, constrangidos por tantos obstáculos, estão apenas começando a lutar

OUTRAS PALAVRAS – 13/09/2024

Entrevista a Maria Carolina Santos, no Marco Zero

Desde os anos 1970 o sociólogo Ricardo Antunes, professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisa as relações de trabalho. Acompanhou a ascensão dos movimentos sindicais do ABC Paulista e do trabalho feito em computadores, as mudanças provocadas pela pandemia e o home office. Autor de mais de uma dúzia de livros, nos últimos anos ele vem investigando as plataformas digitais como uber e ifood. E está consternado com o que está acontecendo.

Para o experiente pesquisador, a precariedade do trabalho nas plataformas digitais só encontra paralelo lá na Revolução Industrial, há mais de 200 anos. “O capitalismo de plataforma tem algo em comum com a protoforma do capitalismo: a exploração ilimitada do trabalho”, avalia.

Nas entrevistas que faz com esses trabalhadores para suas pesquisas, o comum é escutar que eles cumprem jornadas de 10, 12 horas. “Eu entrevistei um trabalhador que me falou que trabalhou por 20 horas seguidas. Eu quase caí da cadeira. Perguntei então o que ele fez no dia seguinte e ele respondeu: “A mesma coisa, dormi 2 horas e comecei de novo”, contou Ricardo Antunes, para uma plateia que lotou a sala Aloísio Magalhães, no campus do Derby da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), durante a abertura do I Seminário Mundos do Trabalho: da precarização laboral ao adoecimento mental, promovido na semana passada pela Fundaj e os grupos de pesquisa Labor (UFRPE) e Gesto (UFPE) .

Para Antunes, estamos ingressando em uma nova era de subordinação do trabalho ao capital. Agora, sob o comando de ferramentas informacionais que tende a acentuar ainda mais o processo de desantropomorfização – retirando ao máximo o fator humano do trabalho. “No capítulo de O capital em que Karl Marx trata da grande indústria, ele diz que na indústria da revolução industrial, nos séculos XVIII e XIX, os trabalhadores e trabalhadoras se tornam autômatos e atentes da máquina. Hoje nós somos autômatos e atentes desta máquina digital (mostra o celular) que está controlando o nosso tempo. O trabalho humano que nós temos hoje, ele é ainda mais desantropomorfizador, ele perde ainda mais o seu sentido humano”, disse.

As longas jornadas do chamado “capitalismo de plataforma” trazem também formas mais sofisticadas de submissão dos trabalhadores. Há quem chame de subordinação algorítmica, mas a procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) Vanessa Patriota da Fonseca, que dividiu a mesa de abertura com Ricardo Antunes, prefere caracterizar como subordinação clássica, por entender que não há diferença no controle.

“Há uma parte que tem o capital e outra parte que tem a força de trabalho. Esses termos muito usados pelas empresas, como colaborador, economia de compartilhamento, parceria, foram criados para intensificar o vínculo simbólico que une uma legião de pessoas exploradas às empresas que as exploram”, disse a procuradora. “As plataformas digitais de trabalho foram criadas em um contexto em que o trabalho ocupa todos os espaços da vida e suga um tempo cada vez maior dos trabalhadores e das trabalhadoras. Isso em um mundo onde as entidades sindicais estão extremamente fragilizadas, dificultando suas lutas, e onde os Estados são capturados pelas grandes corporações”, completou.

Ricardo Antunes usou por algumas vezes a palavra “devastação” para falar do momento atual do mundo: devastação ambiental e devastação no trabalho.

“No século XX, a grande Rosa Luxemburgo nos disse certa vez que o dilema do seu tempo era socialismo ou barbárie. Acertou. Só que se Rosa Luxemburgo estivesse viva hoje, ela diria que não é mais esse, pois na barbárie nós já estamos. E o trabalho é a nossa autocracia dessa barbárie”, disse o professor.

A frase, atribuída aos filósofos Fredric Jameson e Slavoj Zizek, de que “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que imaginar o fim do capitalismo” foi citada algumas vezes durante os dois dias de seminário. Mas Ricardo Antunes lembra que a história é imprevisível. E que a luta de classes é o que vai mudar a realidade de precarização de trabalhadores e trabalhadoras.

“Nós vamos ter que lutar. Porque se a gente não fizer isso, os nossos filhos e os nossos netos, se tiver mundo para eles viverem, serão escravos digitais. Então, nós, se não quisermos lutar por nós mesmos, é bom que comecemos a lutar por eles”, alertou.

Ricardo Antunes tem uma fala cativante: é direto e sem papas na língua, arrancando, aqui e ali, risadas da plateia. É também extremamente gentil. No evento da Fundaj não se furtou a nenhum pedido de autógrafos, fotos, selfies ou conversas rápidas com as dezenas e dezenas de leitoras e leitores que o abordaram.

Ao final da palestra, uma longa fila se formou para fotos. Logo em seguida, sem intervalo, ele participou do lançamento do livro Subordinação (mal) Camuflada: a dominação capitalista no trabalho em plataformas digitais, da procuradora Vanessa Patriota da Fonseca, do qual escreveu o prefácio.

Enquanto a autora autografava os exemplares do livro, Ricardo Antunes arranjou uma brechinha para esta rápida entrevista abaixo.

Nela, afirma que a política de conciliação do governo Lula não vai fazer as mudanças que os trabalhadores e trabalhadoras precisam. “Tem que combater o capitalismo. E lutar por políticas públicas, sociais etc. Mas não pode ter ilusão. Porque o capitalismo não aceita mais nem regulamentação, nem políticas sociais. Ele quer a neoliberalização geral. O capitalismo que está fazendo sucesso hoje é o que combina fascismo com neoliberalismo”, alerta.

Confira a entrevista

Como a precarização e a falta de direitos atinge a saúde do trabalhador?

Quanto mais informalidade, melhor para as empresas. Ou seja, trabalha, ganha; não trabalha, não ganha. O mundo das empresas que ainda têm alguma regulação, como bancos e metalúrgicas, só têm regulação porque os sindicatos lutam. Explorar até o limite só tem um resultado: no caso dos motoqueiros, há a morte de mais de um por dia na cidade de São Paulo. Sem falar dos acidentes: esses motoqueiros quebram braço, perna, bacia, cabeça. É um vilipêndio. É uma morte a céu aberto.

A resiliência é trabalhar todo o possível para a empresa. Qual é o resultado da resiliência? É o burnout, é a depressão, é o assédio, é o sofrimento. E muitas vezes o suicídio.

Um bom exemplo do que é o capitalismo é o Japão. A sociedade japonesa é uma das que tem mais suicídios no mundo. Porque até os gerentes de cada um dos intermediários acham que se a empresa faliu ou está indo mal, a culpa é deles. Ficam trabalhando na empresa até morrer. Quando a Telefrance, na França, foi privatizada, aconteceram mais de 50 suicídios lá dentro. Porque a privatização hoje avança para quebrar direitos da classe trabalhadora. Uma classe trabalhadora sem direitos é uma classe trabalhadora empurrada para o sofrimento, para a depressão, para o burnout, para o assédio, para o suicídio e para a morte.

E como é que você muda isso? Tem que combater o capitalismo. E lutar por políticas públicas, sociais, etc. Mas não pode ter ilusão. Porque o capitalismo não aceita mais nem regulamentação, nem políticas sociais. Ele quer a neoliberalização geral. No capitalismo, hoje o que está fazendo sucesso é a combinação de fascismo com neoliberalismo. O exemplo mais evidente é a boçalidade indigente e inqualificável do Javier Milei na Argentina. Este é o boçal do nosso tempo: um burguês ilimitado que está destruindo a classe trabalhadora argentina dizendo-se neoliberal e libertário.

Como é que o senhor avalia o que o terceiro governo Lula tem feito para os trabalhadores?

A primeira coisa importante para avaliar o governo Lula é entender que ele pegou um país de terra arrasada. Fundamentalmente, Michel Temer deu legalidade à aberração do arcabouço fiscal, ou seja, não se amplia recursos para saúde, educação e previdência pública. Um país que não amplia recursos para saúde, educação e previdência pública é o país que comete um crime contra a sua população.

E por que não amplia recursos? Porque os bancos querem dominar o capital financeiro. A primeira coisa que teria que fazer é cortar o domínio e a hegemonia dos bancos e do capital financeiro na política econômica do país. E isso o governo Lula não conseguirá porque é um governo politicamente débil e frágil. Mas, por exemplo, o governo Lula está tentando, ao seu modo, lutar por uma coisa importante, que é retirar a autonomia do Banco Central.

O segundo fator é que, politicamente, para derrotar o Bolsonaro, que foi a expressão do neofascismo do Brasil, evidenciou-se que era preciso eleitoralmente ampliar uma frente. No segundo turno, a diferença de Lula para Bolsonaro foi de menos de 2 milhões de votos. O que o Bolsonaro fez nos últimos seis meses do seu governo foi a devastação total para comprar votos dos eleitores pobres. Lula tomou posse e viveu um golpe oito dias depois da eleição, seria então um milagre que nós tivéssemos no paraíso

Outro ponto é que Lula foi eleito com um programa moderado de conciliação de classes. É sempre bom lembrar que Geraldo Alckmin era o homem do neoliberalismo do Brasil até ontem e continua sendo. É que o Alckmin não é fascista e o Bolsonaro é. E, claro, que Alckmin também estava muito fragilizado no PSDB, que praticamente tinha desaparecido.

Dito isto, o Lula que ganhou a eleição está muito aquém do que ele poderia fazer, mas reconheço ações importantes.

Quais? Na área do trabalho?

Não na área de trabalho. A área de trabalho até agora é lamentável. Reconheço, por exemplo, a tentativa de combater o crime organizado na Amazônia e tentar minimizar as condições de sofrimento e adoecimento do povo indígena. Não é fácil você fechar a Amazônia para o crime porque é uma fronteira aberta imensa, o crime entra por todos os lados. Uma parte da polícia estadual muitas vezes é vinculada ao crime, basta pensar que os milicianos que nascem dentro da polícia e se tornam criminosos e outras tantas dificuldades.

Agora, no que diz respeito à questão do trabalho, o governo Lula não fez nada do que poderia. Claro, não estou falando aqui da política econômica, é evidente que tem havido já uma redução do desemprego razoável. Acabamos de ver agora que houve o crescimento do PIB, então há uma tentativa de retomada do crescimento econômico, mas, por exemplo, o que o Lula disse em campanha? Que ia debater com seriedade a “contra-reforma” trabalhista de Michel Temer. Não só não debateu e não fez a revisão, como o PL 12/2024 (o projeto de lei 12/2024 cria a categoria “trabalhador autônomo por plataforma” e atualmente está fora de pauta no congresso) do seu governo é a continuidade do projeto Temer de destruição do trabalho.

O senhor está se referindo ao projeto de lei que estabelece 12 horas de trabalho diário por aplicativo?

Isso, 12 horas para cada aplicativo. Não fala das mulheres – não há uma nota sobre as trabalhadoras! – e não fala da questão crucial. A questão crucial é que quando você avalia o trabalho em plataformas é se é um trabalho que é verdadeiramente autônomo, ou seja, o trabalhador faz o que quer e não faz o que não quer, ou se ele é um assalariado sem direitos.

No artigo terceiro deste PL do Lula, se diz que esses trabalhadores são “autônomos”, que trabalhadores de plataformas de automóveis são autônomos. É criminoso, porque não é verdadeiro, é falso. Você acha que quem trabalha 12, 14, 16, 18 horas por dia é autônomo?

Autonomia é outra coisa. Se eu sou um eletricista autônomo, eu faço o serviço da sua casa, e eu quem vou dizer quanto eu cobro, quando eu posso fazer, quantos dias eu vou levar e como eu quero receber. Você fala que só vou pagar quando terminar, eu falo que não, eu preciso que você me pague antes uma parte para eu comprar material. Isso é que é ser autônomo, é elementar.

No que diz respeito à questão trabalhista, dos direitos do trabalho, o Lula tem algumas questões cruciais e urgentes a enfrentar: extinguir o trabalho uberizadoda “contra-reforma” de Temer; recuperar o mínimo de força sindical que a “contra-reforma” de Temer também arrebentou, tentando minar economicamente os sindicatos; acabar com as tantas formas de precarização, inclusive, do trabalho feminino na “contra-reforma” trabalhista, porque você desobrigou as empresas de uma série de obrigações que ela tinha, até do transporte de levar trabalhadores e trabalhadoras; e quarto elemento, que diz respeito ao trabalho em plataforma, é inaceitável que um ex-operário que durante décadas trabalhou em fábrica, faça um projeto de lei do seu governo que atende a Uber e iFood, que estão contentes e felizes na vida.

Os entregadores não aceitaram essa proposta do PL?

Felizmente, há luta de classes e há resistência. E, neste caso, além de toda a denúncia que muitos fizeram – eu também fiz, porque era inaceitável – os jovens entregadores e entregadoras de motos e bicicletas repudiaram essa proposta e a Aliança Nacional dos Entregadores de Aplicativos, chamada de Aliança, disse: “não aceitamos”. E saiu da negociação, deixando o Lula levando o pau do bolsonarismo, que é de extrema direita e é fascista, mas levando críticas também dos setores de esquerda que lutam em defesa dos direitos da classe trabalhadora.

Os motoristas aceitaram, não foi?

Os motoristas aceitaram em parte. Não é que eles aceitaram, mas os que estavam lá aceitaram. Mas se você for fazer uma enquete entre eles, a maioria não aceita. E não é por bons motivos que eles não aceitaram, né? Mas quem é o motorista nos aplicativos hoje? Um era veterinário, outro era engenheiro, outro era motorista de caminhão, outro era operário metalúrgico, outro era trabalhador da construção civil, outro era estudante, outro era gestor de pequena empresa, é um compósito heterogêneo de categorias sociais que, de repente, tem um carro ou aluga, tem uma moto ou aluga, tem uma bicicleta e aluga e vai trabalhar.

E é muito importante entender que esta categoria, além de ser heterogênea, fragmentada, ela vem de experiências diferentes. Um operário metalúrgico, por exemplo, que virou um uberizado, ele tem a experiência das greves.

O operário, o antigo motoqueiro, tinha a experiência do sindicato dos motoqueiros. Já um engenheiro que está desempregado, ou um pequeno empresário, eles não querem saber. Os mais jovens nasceram – e a maioria é muito jovem, especialmente os entregadores – sob o signo de que o sindicato atrapalha, política é negativa e a CLT é um horror.

E isso é tudo construção ideológica das empresas para poder ter uma classe trabalhadora disponível para a exploração ilimitada. Mas muito importante uma coisa: a luta de 1º de julho de 2020 mostra que os trabalhadores, quando a porca torce o rabo, perceberam que há um problema e aí começaram a lutar.

O senhor é otimista com esse movimento Breque dos apps? Porque já faz quatro anos que aconteceu

Não estou sendo otimista, porque nenhum movimento operário, em toda a história do movimento operário, nasce no primeiro, segundo, terceiro ou quarto ano. Quantos anos o ABC Paulista levou para fazer greve depois das greves de Contagem e Osasco? (em abril de 1968, a primeira grande greve no Brasil após o golpe de 1964). Dez anos. Por quê? Por que eram bobos? Não. Porque era uma ditadura. Veja, pense o seguinte: se eu estou endividado, se eu alugo um carro ou compro um carro, se eu alugo uma moto ou compro uma moto, eu compro um celular e fico endividado, eu vou chegar nessa plataforma e vou começar a lutar contra ela? Não, a primeira coisa que eu quero é ganhar dinheiro e trabalhar que nem louco para pagar o carro, a moto ou o celular.

Quanto tempo a Uber está no Brasil? Ela chegou em 2014. Ela só ganhou corpo na pandemia. Em 2016, 2017 ela era pequenininha, mesmo na Inglaterra, mesmo em outros países. É que com a explosão do desemprego na pandemia, as plataformas se expandiram.

É por isso que a Uber, a 99, a Cabify, a Lyft, a Deliveroo, como exemplos generalizados, pagavam muito mais antes. Quando você tem 10 trabalhadores ou trabalhadoras, você paga X. Quando você tem 100, você paga X menos tanto. Quando você tem 1.000, você paga 100 menos X menos Y. Quanto mais trabalhadores e trabalhadoras disponíveis, desempregados, menor é o seu salário.

Se a economia do Brasil melhorar, o número de trabalhadores de aplicativos também pode diminuir?

Não dá para dizer isso porque os salários médios do Brasil hoje estão muito baixos. Então, por exemplo, todos os trabalhadores que eu entrevistei até hoje, todos eles dizem que preferem trabalhar 12, 13 horas e tirar R$ 5 mil, R$ 6 mil do que trabalhar numa empresa e ganhar R$ 3 mil, com descontos. O trabalhador só vai começar a perceber o problema se ele se acidenta e para de trabalhar, porque aí ele não tem um centavo para sobreviver. Aí ele começa a refletir. Eu tenho acompanhado as movimentações dos trabalhadores em aplicativos em Portugal, Inglaterra, Espanha, Itália, Argentina, Uruguai, Brasil. É uma categoria nova, tem apenas alguns anos.

 

“Nexus”, por Hélio Schwartsman

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Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”.

Folha de São Paulo, 29/09/2024.

Vale a pena ler “Nexus”, o novo livro do historiador israelense Yuval Noah Harari. A exemplo do que fez em obras anteriores, ele discute coisas relevantes e escreve maravilhosamente bem.

O tema desta vez são as redes de informação e a inteligência artificial. Mestre das generalizações, Harari discorre sobre esses tópicos encaixando-os numa narrativa totalizante. O mundo é o que é em larga medida por causa das diferentes formas como lidamos com informações e as realidades imaginárias que elas geram.

A diferença entre democracias e ditaduras é que as primeiras imprimem transparência ao fluxo de informações, permitindo que elas sejam avaliadas pelos cidadãos e eventualmente corrigidas, enquanto as últimas buscam apenas controlar os dados para controlar a sociedade.

Outro ponto alto de Harari é que ele entremeia a narrativa principal com interessantíssimas subtramas e anedotas. Em “Nexus”, ele faz ótimas observações sobre religiões, seus livros sagrados e epifenômenos como a caça às bruxas, além de contar boas histórias como a do pombo-correio Cher Ami, herói da Primeira Guerra Mundial.

As virtudes de Harari acabam escondendo alguns defeitos. A narrativa límpida dá a sensação de que tudo o que o autor diz já é dado como líquido e certo pela ciência, o que não necessariamente é o caso. Ele até diz que as coisas são mais complicadas, mas raramente dá voz a argumentos contrários. Falta ao texto um pouco daquela humildade meio forçada do discurso acadêmico, mas que ajuda a mostrar que modelos e chaves-explicativas têm limites.

Outro ponto fraco é o caráter altamente especulativo de teses apresentadas sobretudo nas partes finais do livro, que tratam da IA. Harari não esconde que especula. Mas falta alertar para os riscos. Em seus livros anteriores, ele destacava a ameaça que a IA representava para os empregos; neste ele afirma, sem maiores explicações, que as novas tecnologias que eliminam empregos acabam criando novas funções.

O mundo é mesmo complicado, mas isso não elimina o prazer que é ler Harari.

 

Ajuste Fiscal

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Vivemos num momento de grande ansiedade, todos queremos um ajuste fiscal vigoroso do governo nacional, os grupos econômicos e financeiros querem que o governo reduza seus gastos, querem ainda, a diminuição dos dispêndios dos governos municipais e estaduais e, ao mesmo tempo, ninguém quer abrir de seus subsídios, que aumentam seus ganhos monetários e também ninguém quer pagar mais impostos e, usam seus instrumentos políticos para impedir a redução das taxas de juros, que garantem seus ganhos elevados e seu entesouramento. Ajuste fiscal e controle dos gastos é para os outros… por isso, estamos nesta situação de caos generalizado.

A Justiça do Trabalho em xeque, por Erik Chiconelli Gomes

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Após a “Reforma” Trabalhista ela tornou-se muito menos acessível. Mas, da economia de plataformas ao trabalho remoto, precisará se reinventar. A sociedade se transforma – e ela não é algo “setorial”, mas determinante na redução das desigualdades no país

Erik Chiconelli Gomes – OUTRAS PALAVRAS – 27/09/2024

A relação entre capital e trabalho sempre foi palco de intensos debates e conflitos ao longo da história. No Brasil, a Justiça do Trabalho emerge como uma instituição fundamental para mediar essas tensões, buscando equilibrar os interesses de empregadores e trabalhadores. Contudo, as recentes mudanças na legislação trabalhista, em especial a reforma de 2017, trouxeram questionamentos sobre o papel e a eficácia dessa instituição no contexto contemporâneo.

A formação da Justiça do Trabalho no Brasil está intrinsecamente ligada ao processo de industrialização e urbanização do país no início do século XX. Este período foi marcado por intensas lutas sociais e pela emergência de uma classe operária que buscava melhores condições de trabalho e reconhecimento de seus direitos. Os sindicatos desempenharam um papel crucial nesse processo, atuando como representantes coletivos dos trabalhadores e sendo fundamentais para a conquista de direitos e para a criação de um ambiente de negociação mais equilibrado entre capital e trabalho.

A promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 1943 representou um marco na história do direito trabalhista brasileiro. Este conjunto de leis buscava não apenas regular as relações de trabalho, mas também estabelecer um patamar mínimo de direitos e garantias para os trabalhadores. Com o fim do regime militar e a promulgação da Constituição de 1988, a Justiça do Trabalho ganhou novos contornos e atribuições. A carta magna reafirmou a importância dos direitos trabalhistas e fortaleceu o papel desta justiça especializada na resolução de conflitos laborais.

O advento da globalização e as transformações no mundo do trabalho trouxeram novos desafios para a Justiça do Trabalho. As pressões por flexibilização das leis trabalhistas ganharam força, sob o argumento de que era necessário modernizar as relações de trabalho para aumentar a competitividade das empresas brasileiras. É neste contexto que surge a reforma trabalhista de 2017, apresentada como uma solução para modernizar as relações de trabalho e reduzir o número de processos na Justiça do Trabalho.

A Reforma Trabalhista e seus impactos

Contrariando as expectativas iniciais, a reforma não resultou em uma redução sustentada do número de processos trabalhistas. Conforme apontado pelo presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Lelio Bentes Corrêa, houve uma queda inicial seguida de um aumento gradual nos anos subsequentes. Uma das mudanças mais controversas da reforma foi a introdução dos honorários de sucumbência, mesmo para beneficiários da justiça gratuita. Esta medida foi vista por muitos como um obstáculo ao acesso à justiça, especialmente para trabalhadores em situação de vulnerabilidade econômica.

A intervenção do Supremo Tribunal Federal, declarando inconstitucionais alguns aspectos da reforma, como o pagamento de honorários por beneficiários da justiça gratuita, demonstra as tensões e contradições presentes na nova legislação trabalhista. A reforma também impactou significativamente a atuação dos sindicatos, ao eliminar a obrigatoriedade da contribuição sindical. Esta mudança afetou a sustentabilidade financeira dessas organizações, potencialmente enfraquecendo sua capacidade de representação e negociação coletiva.

Os efeitos da reforma sobre os trabalhadores são múltiplos e complexos. Se por um lado houve uma flexibilização das relações de trabalho, por outro, muitos argumentam que isso resultou em uma precarização e redução de direitos historicamente conquistados. Instituições como o CESIT (IE/Unicamp), o Dieese e o Ipea têm desempenhado um papel crucial na análise desses impactos, fornecendo subsídios importantes para a compreensão das transformações no mundo do trabalho e na Justiça do Trabalho.

A questão da desigualdade

Historiadores que se dedicaram ao estudo da Justiça do Trabalho, como Ângela de Castro Gomes e Fernando Teixeira da Silva, têm contribuído para uma compreensão mais profunda do papel histórico desta instituição e das transformações nas relações de trabalho no Brasil. Seus estudos revelam que a atuação da Justiça do Trabalho não pode ser dissociada do contexto mais amplo de desigualdade social no país. As decisões e orientações desta instituição têm impactos diretos na distribuição de renda e nas condições de vida dos trabalhadores.

O advento das novas tecnologias e formas de trabalho, como o trabalho por aplicativos, impõe novos desafios à Justiça do Trabalho. A necessidade de adaptar-se a essas novas realidades sem perder de vista a proteção dos direitos fundamentais dos trabalhadores é um dos grandes desafios contemporâneos. Diante das transformações recentes, a Justiça do Trabalho se vê diante da necessidade de encontrar um novo equilíbrio entre a flexibilidade demandada pelo mercado e a proteção dos direitos dos trabalhadores. Este equilíbrio é fundamental para a manutenção da paz social e para o desenvolvimento econômico sustentável.

O futuro da Justiça do Trabalho

O futuro da Justiça do Trabalho no Brasil dependerá de sua capacidade de se adaptar às novas realidades do mundo do trabalho, sem abrir mão de seu papel fundamental na proteção dos direitos dos trabalhadores e na mediação dos conflitos entre capital e trabalho. A análise crítica da reforma trabalhista e seus impactos revela a complexidade e as contradições presentes nas relações de trabalho contemporâneas. É fundamental que a sociedade brasileira continue a debater e refletir sobre estas questões, buscando caminhos que promovam tanto o desenvolvimento econômico quanto a justiça social.

Os desafios que se apresentam para a Justiça do Trabalho no século XXI são múltiplos e complexos. A instituição precisa encontrar formas de lidar com as novas modalidades de trabalho, como a economia de plataforma e o trabalho remoto, que escapam muitas vezes às categorias tradicionais do direito trabalhista. Ao mesmo tempo, é necessário garantir que a busca por flexibilidade e competitividade não resulte em uma erosão dos direitos fundamentais dos trabalhadores.

A experiência histórica da Justiça do Trabalho no Brasil, desde sua criação até os dias atuais, demonstra sua capacidade de adaptação e seu papel crucial na mediação dos conflitos laborais. No entanto, o cenário atual exige uma reflexão profunda sobre seu papel e suas práticas. É essencial que a instituição mantenha sua relevância como guardiã dos direitos trabalhistas, ao mesmo tempo em que se mostra capaz de compreender e responder às mudanças no mundo do trabalho.

Em última análise, o futuro da Justiça do Trabalho no Brasil está intrinsecamente ligado ao futuro do próprio trabalho em nossa sociedade. As decisões tomadas hoje terão impactos duradouros na vida de milhões de trabalhadores e na estrutura social do país. Portanto, é imperativo que essas decisões sejam baseadas em uma compreensão profunda da história das relações de trabalho, em dados empíricos sólidos e em um compromisso inabalável com a justiça social.

A Justiça do Trabalho, ao longo de sua história, tem sido um campo de batalha onde se confrontam diferentes visões sobre o papel do trabalho na sociedade e sobre os direitos dos trabalhadores. Sua evolução reflete as mudanças sociais, econômicas e políticas do país. Agora, diante dos desafios impostos pela reforma trabalhista e pelas transformações no mundo do trabalho, ela se encontra novamente em um momento crucial. O caminho que ela seguirá terá implicações profundas não apenas para os trabalhadores e empregadores, mas para toda a sociedade brasileira.

Referências

BIAVASCHI, M. B. et al. O impacto de algumas reformas trabalhistas na regulação e nas instituições públicas do trabalho em diálogo comparado. In: KREIN, J. D.; GIMENEZ, D. M.; SANTOS, A. L. (Orgs.). Dimensões críticas da reforma trabalhista no Brasil. Campinas, 2018.

CARDOSO, A. M.; LAGE, T. As normas e os fatos: desenho e efetividade das instituições de regulação do mercado de trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.

DIEESE. A reforma trabalhista e os impactos para as relações de trabalho no Brasil. Nota Técnica nº 178. São Paulo: DIEESE, 2017.

GOMES, A. C.; SILVA, F. T. (Orgs.). A Justiça do Trabalho e sua história: os direitos dos trabalhadores no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.

IPEA. Mercado de Trabalho: conjuntura e análise. Brasília: IPEA, 2018.

KREIN, J. D.; OLIVEIRA, R. V.; FILGUEIRAS, V. A. (Orgs.). Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas, 2019.

O TEMPO. Presidente do TST diz que reforma não cumpriu promessa de reduzir processos. O Tempo, 13 set. 2024.

FOLHA DE S.PAULO. Presidente do TST afirma que reforma trabalhista não cumpriu promessa de reduzir processos judiciais. Folha de S.Paulo, ago. 2024.