Raízes da letargia neoliberal nas escolas, por Ednei de Genaro.

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 Sob o mito de “eficiência”, avaliações individuais, feedbacks e competição arruinam a saúde mental de professores. Porém, esse sistema é naturalizado e gera autoculpa. O Ensino deve matar esse zumbi gerencial que visa impor o realismo da precarização

Ednei de Genaro – OUTRAS MÍDIAS – 17/10/2024

Em 2009, Mark Fisher publicou um livro seminal — Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo — para a compreensão e atualização, no contexto do século XXI, da “lógica cultural do capitalismo tardio”, tal como Fredric Jameson preconizou, em 1991, em Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio.

Mark Fisher foi professor em instituições públicas de ensino na Inglaterra, lecionando em universidades e em programas de “educação continuada” (futher education), oferecidos a qualquer pessoa maior de 16 anos que deseje realizar cursos diversos de aperfeiçoamento ou obtenção de novas habilidades de trabalho; ou seja, no mais das vezes, um programa de especialização e de reciclagem da classe trabalhadora do país. Em sua referida obra, tais experiências enquanto profissional da educação mobilizam exemplos diversos e emblemáticos da cultura contemporânea.

Levando em conta isso, buscarei aqui recuperar as fecundidades e sofisticações das respostas de Mark Fisher sobre o estado psicossocial realista capitalista, tendo em vista, bem particularmente, as questões e problemas referentes à escola pública, onde parece ser mais fácil imaginar o fim das escolas públicas do que o fim do gerencialismo de autoculpabilização dentro delas.

Sobre os processos diversos de neoliberalização e mercantilização do ensino, quem ainda procura pensar nisso? De outro modo, como podemos nos desembrutecer acerca dessa “coisa inominável”, sem nenhuma lei transcendente, sem limites, infinitamente plástica, que é o capitalismo? Perguntas em tom retórico, em primeira instância, para lembrar a situação atual de desengajamento e a deflação depressiva decorrentes da normalização das crises — tendo em Mark Fisher a obra literária distópica Filhos da Esperança, de P. D. James ([1992] 2013), e a adaptação cinematográfica homônima, de Alfonso Cuarón, como icônicas da ascensão do ultra-autoritarismo e ultracapitalismo, de destruição massiva dos espaços públicos, algo já presente entre nós, mas com consumação em um futuro próximo.

Uma situação, enfim, que se metamorfoseia sobretudo em posicionamentos de mundo hedonistas niilistas, escreve Mark Fisher, de modo que o aprendizado de convicções políticas e atitudes é substituído pelo desengajamento e pela observação voyeurística do mundo (Fisher, 2020, p. 13). O realismo capitalista é “[…] análogo à perspectiva deflacionária de um depressivo, que acredita que qualquer estado positivo, qualquer esperança, é uma perigosa ilusão” (Idem, p. 14).

Ao absorver toda contraposição, ao usurpar o tempo livre e ao anular qualquer atitude alternativa e independente, o capitalismo contemporâneo funciona “sem um exterior”. Do rock ao hip hop, passando pelo atual ideal gangster — para citar as exemplificações culturais marcantes de Fisher — a busca é de autenticidade e… conformação à guerra hobbesiana de todos contra todos, condicionando a produção da cultura, da educação e do trabalho. “Cair na real” significa hoje a construção de competências e friezas para o distanciamento cínico, longe assim do crítico e destinado à práxis. A ironia anticapitalista, presente agora até em filmes da Disney, “[…] mais alimenta do que ameaça o realismo capitalista” (Idem, p. 25-6).

É precisamente nestas posturas que as formas ideológicas capitalistas se reavivam. Sobre isso, segue um trecho da obra Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia, de Slavoj Žižek (1992), conforme citado por Mark Fisher: “O distanciamento cínico é só uma maneira […] de fechar os olhos para o poder estrutural da fantasia ideológica: mesmo quando não levamos as coisas a sério, mesmo quando mantemos um distanciamento irônico, nós as continuamos fazendo” (Žižek apud Fisher, 2020, p. 26).

A fantasia ideológica cínica é complementada pela inviabilidade do desempenho de uma crítica moral do capitalismo, tornada inócua, uma vez que “pobreza, fome e guerra podem ser apresentadas como aspectos incontornáveis da realidade” (Fisher, 2020, p. 35), somente reforçam o realismo capitalista, de modo que a reativação da crítica/práxis, propõe Mark Fisher, exige uma inflexão, explicitando a burocracia, que “em vez desaparecer, mudou sua forma” (p. 38) e a resultante disso, o problema de saúde mental, isto é, “o caso paradigmático de como o capitalismo realista opera” (Idem, p. 36-7), enquanto as duas aporias, por excelência, do capitalismo contemporâneo, que ensejam transtornos e aborrecimentos na população em geral, e nos expedientes das escolas públicas, de maneira muito representativa.

A abolição do otium e a transformação da escola em espaços constituintes e integrados ao negotium é um problema enraizado na própria gênese das escolas públicas na modernidade. Fato que assinalou o paradoxo de sua origem no mesmo ato de destruição do seu sentido autêntico, ou seja, da escola (scholé) como o lugar do tempo livre, de retiro, do repouso; em outras palavras, do tempo disponível à ocupação intelectual, aos estudos científicos diversos, à filosofia e à política. A dimensão do negotium em ambiente escolar se transfigurou e agravou com o modelo neoliberal introjetado no nível psicossocial das vivências e relações públicas.

Segue a resposta de Mark Fisher ao mito da descentralização como fim da burocracia, prescrevendo a própria definição do modelo neoliberal de gestão escolar: “O fato que medidas burocráticas tenham se intensificado sob governos neoliberais que se apresentam como antiburocrático e antiestalinista pode, a princípio, parecer um mistério. No entanto, viu-se, na prática, proliferar uma nova forma de burocracia — uma burocracia de ‘objetivos’, dos ‘resultados esperados’, das ‘declarações de princípio’ — ao mesmo tempo em que ganha força a retórica neoliberal sobre o fim do comando vertical e centralizado. Pode parecer que essa volta da burocracia é algo assim como um retorno do reprimido, ironicamente reemergindo no coração de um sistema que jurou destruí-lo. Mas seu triunfo no neoliberalismo é bem mais que um atavismo ou uma anomalia” (Fisher, 2020, p. 72).

Nem atavismo e nem anomalia sociais, mas, sim, uma ordem constituída: o “stalinismo de mercado”. De forma sutil, a burocracia reemerge com novas técnicas e se intensifica. “A avaliação periódica dá lugar a uma avaliação permanente e onipresente, que não pode deixar de gerar uma ansiedade perpétua” (Idem, p. 87), ao impor “[…] à força a responsabilidade ética individual que a estrutura empresarial desvia” (Idem, p. 116).

Assim, a metabolização simbólica das classes sociais se manifesta: a responsabilidade recai em relação às tarefas e processos dos indivíduos, a despeito da estrutura social ou da instituição, alterando, pois, a própria lógica de visibilidade e estruturação dos papéis sociais, com base em dois clichês dominantes: culpar a estrutura é apenas desculpa invocada pelos fracos — o “choro dos fracos”; cada indivíduo deve dar o máximo de si para se tornar aquilo que aspira a si — o “voluntarismo mágico”, sendo estes clichês, como escreve Fisher, “[…] a ideologia dominante e a religião não oficial da sociedade capitalista contemporânea […]” (Idem, p. 140), que esculpem a mentalidade capitalista.

Os mecanismos individuais de avaliação e autoculpabilização são a chave para se gerir, conservar e desresponsabilizar a ordem institucional, mantendo seus vícios e defeitos, inclusive nos “espaços de lazer e tempo livre”, as escolas. Tudo se conserva, engolindo todos na epidemia da cultura de auditorias internas e externas, por ranqueamentos, classificações e titulações infinitas de produtividade, alimentados por dados, informações e processos compostos e insertado nos sistemas enquanto o âmago do trabalho educacional. O delírio psicológico burocrático é tanto uma violência à saúde mental dos profissionais de educação quanto a destruição de espaços coletivos e deliberativos, como colegiados de instituições de ensino, que se transformam em reuniões de feedbacks, e de espaços formativos, que se tornam treinamentos.

O gerencialismo de autoculpabilização é a perda do sentido de gerência coletiva. A descentralização e a competição entre os pares são meios para o controle e a despotencialização do coletivo subordinado. A precarização do educador, por meio de contratos temporários e sobrecarga de trabalho, arremata a condição de informalidade causal e autoritarismo silencioso que pairam sobre as cabeças dos trabalhadores.

Em resumo, uma trapaça. “As metas rapidamente deixam de ser um meio para avaliar e tornam-se a finalidade em si” (Idem, p. 77), a fim de que continuamente se repita o universo quantitativo de “valorização dos símbolos dos resultados, em detrimento do resultado efetivo” (p. 76). Lógicas falaciosas que coadunam com o espírito do capitalismo financeiro e de influência em redes sociais, pois o valor gerado no mercado de ações e de monetizações depende menos do que um perfil ou uma empresa “realmente faz” e muito mais das percepções, visualizações e expectativas performáticas futuras (Idem, p. 77).

A ilusão de muitos que entram nas funções de gerência, com grandes esperanças, é precisamente de que eles, os indivíduos, podem mudar as coisas, que não vão repetir o que seus gerentes fizeram, que as coisas serão diferentes desta vez. Mas basta prestar atenção a qualquer um que tenha sido promovido a um cargo gerencial para perceber que não demora muito tempo para que a petrificação cinza do poder comece a engoli-lo. É aqui que a estrutura é palpável: pode-se praticamente vê-la absorvendo e tomando conta das pessoas, ouvir os juízos moribundos/mortificantes da estrutura sendo vocalizados através delas. (Idem, p. 115-6).

A incerteza ontológica e a lógica falaciosa do gerencialismo de autoculpabilização são estratégias de adaptação e ruína da saúde mental dos educadores. Em termos deleuzianos e kafkianos, isto é, nas condições atuais de poder cibernético e distribuído das sociedades de controle, as aflições, os problemas e dilemas coletivos, tratados como assuntos individuais, são submetidos a uma “postergação indefinida”: o processo se prolonga, sem fim; as aflições, problemas e dilemas nunca se resolvem; pelo contrário, são resguardos por “policiamentos internos” e atarefamentos exaustivos, que agora se levam para casa.

Uma experiência de poder dominante que liquida a ideia de ponto central de comando. Um sistema que se quer sem “operadora central”, como previu Kafka (2005), em O processo. Em última instância, em caso de altercação sobre o poder e a responsabilidade, o procedimento geral é de denegação e anunciação de um “grande outro”: “o superior que cuida disso, desculpa”. No máximo, a responsabilidade recairá sobre “[…] os indivíduos patológicos, aqueles que ‘abusam do sistema’, e não o próprio sistema” (Idem, p. 116).

Ademais, escreve Mark Fisher, “os professores se encontram hoje sob a intolerável pressão de mediar a subjetividade pós-letrada do consumidor no capitalismo tardio e as demandas do regime disciplinar (passar nos exames e coisas do tipo)” (Idem, p. 49). Como se fossem um dos últimos representantes do poder panóptico, os professores, entre muros, carteiras e cadeiras, derivam seu público, composto por “desenraizados” e flexíveis, impacientes e dispersos, buliçosos pela ausência e pelo hedonismo permissivo dos pais, desde muito cedo ansiando em ser também como os seus célebres “empreendedores online” da cultura, vistos e comentados pelas redes sociais.

A “letargia hedônica” presente hoje nos jovens designa o ponto máximo de dissolução da cultura na economia cibernetizada, de controles automáticos sobre cognições e ambientes de trabalho/lazer. Em última instância, a programação massiva de modelos assincrônicos de educação a distância demarca o fim das instituições escolares.

Os sofrimentos e a paralisia psíquica dos professores são deliberadamente cultivados e tratados como “fatos naturais” e privados. As deteriorações da psique, da cultura, da educação e do trabalho têm obviamente razões para existir: permitir a submissão fatalista das pessoas. Ora, o descontentamento privatizado, a sorte de pelo menos ter um emprego e a aceitação de que as coisas vão piorar são propositados e explicam historicamente a destruição do “estado bem-estar social” a partir da ascensão do discurso neoliberal contra a classe trabalhadora.

Na Inglaterra, país de origem das primeiras experiências políticas neoliberais, uma das medidas inaugurais foi a abolição do leite nas escolas públicas, em 1971, no momento em que Margareth Thatcher era secretária de educação… Contudo, o neoliberalismo hoje não passa de um zumbi.

O neoliberalismo perdeu a iniciativa, e persiste inercialmente, desmorto, como um zumbi. Podemos ver agora que, embora o neoliberalismo fosse necessariamente “realista capitalista”, o realismo capitalista não precisa ser neoliberal. Para se salvar, o capitalismo poderia voltar a um modelo social-democrata ou a um autoritarismo do tipo que se vê no filme Filhos da esperança. Sem uma alternativa crível e coerente ao capitalismo, o realismo capitalista continuará a governar o inconsciente político-econômico. (Idem, p. 130).

De 2009 a 2024, foram os autoritarismos fascistas e neoreacionários que se desenvolveram no mundo todo, inclusive no Brasil, inclusive dentro das escolas públicas, com os projetos cívico-militares, entregando uma compleição moribunda às democracias e as faces mais violentas do zumbi neoliberal, ao escancarar a subordinação do Estado ao capital e ao manter monopólios e oligopólios como antimercados e espaços de articulação fascistas… Afinal, questiona Mark Fisher, como elaborar estratégias políticas para matar este zumbi? Como “[…] desenvolver alternativas às políticas existentes, mantê-las vivas e disponíveis até que o politicamente impossível se torne politicamente inevitável”? (p. 142).

Um novo anticapitalismo, “[…] não necessariamente ligado a velhas tradições e linguagens […]” (Idem, p. 130), é possível, antes de tudo, a partir da rejeição das estratégicas que não funcionam, por exemplo: estratégias horizontalistas, de ação direta sem ações indiretas, devem ser rejeitadas. “Só a esquerda horizontalista acredita na retórica da obsolescência do Estado” (Idem, p. 148), que, pensando bem, faz deleitar o capital com a sua popularidade e inocuidade, pois aparecem como “[…] ruídos carnavalescos para o realismo capitalista” (Idem, p. 27). Por sua vez, “no caso dos professores talvez a tática das greves devesse ser abandonada, porque prejudicam apenas estudantes e membros da comunidade” (Idem, p. 131-2).

Onde se empenhar, afinal? Segue um trecho da resposta de Mark Fisher: “Se o neoliberalismo conseguiu triunfar ao incorporar os desejos da classe trabalhadora pós-1968, uma nova esquerda poderia começar agindo sobre os desejos que o neoliberalismo gerou, mas que não foi capaz de satisfazer. Por exemplo, a esquerda deveria argumentar que pode entregar o que o neoliberalismo falhou em fazer: uma redução massiva da burocracia. O que se faz necessário é travar uma nova batalha em torno do trabalho e de seu controle; uma afirmação da autonomia do trabalhador (em oposição ao controle gerencial) juntamente com a rejeição de certos tipos de trabalho (com a auditoria excessiva que se tornou uma característica tão central do trabalho no pós-fordismo). Esta é uma luta que pode ser vencida — mas apenas por meio da composição de um novo sujeito político”.

Esse novo sujeito não surgirá, pois, sem um enfoque nos elementos estruturais e nas falhas que produzem os efeitos negativos do neoliberalismo, algo que sensibilizaria e mobilizaria novamente as populações para as pautas de esquerda, a fim de que estratégias parlamentares, no seio Estado, resultem em mudanças estruturais da situação. Não obstante, na atual conjuntura brasileira, na última década, tal sensibilização e mobilização foram bem-sucedidas pela coordenação de grupos, recursos e desejos para as pautas de (extrema) direita, a partir do aproveitamento massivo das comunidades online solipsistas — “redes interpassivas de mentes semelhantes que confirmam, ao invés de desafiar, os pressupostos e preconceitos de cada um” (Idem, p. 126).

Na “guerra cultural” que se tornou a política contemporânea, o futuro das escolas públicas — e das instituições de ensino, em geral — depende imensamente da mudança de estratégias e de novos ventos na política. No Brasil, a precarização do trabalho, o gerencialismo de autoculpabilização e o modelo cívico-militar, que silenciam e dessolam a saúde mental dos professores e alunos, são prioridades na luta política progressista nas escolas públicas.

Ednei de Genaro é professor do curso de educação na Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT), Campus Tangará da Serra.

Referências

Fisher, Mark. Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

James, P. D. Filhos da esperança. São Paulo: Editora Aleph, 2023.

Jameson, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1997.

Kafka, Franz. O processo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

Žižek, Slavoj. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

 

Isenções, exceções e a erosão da base do imposto, por Cecília Machado.

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É possível reduzir nossas desigualdades removendo, não ampliando, as exceções na forma com tributamos a renda

Cecilia Machado, Economista-chefe do Banco BoCom BBM, é doutora em economia pela Universidade Columbia

Folha de São Paulo, 22/10/2024

Existem alguns bons motivos para que os trabalhadores de baixa renda paguem menos imposto que os demais. Um imposto sobre a renda gera distorções, por exemplo, desincentivos ao trabalho. Intuitivamente, é como se as pessoas recebessem um salário menor, já que uma parte do que é ganho não fica com elas. Considerando que os trabalhadores de baixa renda são mais sensíveis a essa perda, um regime de tributação progressiva —cuja alíquota cresce com a renda— desfaz parte dessa ineficiência, além de contribuir para redistribuir renda dos mais ricos para os mais pobres.

No Brasil, a progressividade do Imposto de Renda está presente em alíquotas que variam de 0% a 27,5%, com isenção para trabalhadores que ganham até dois salários mínimos. É nesse sentido que o aumento do limite de isenções até R$ 5.000 pode gerar mais progressividade. Mas ampliar a isenção também traz inúmeros outros desafios, o que apenas uma reformulação muito mais profunda na forma como tributamos a renda poderá endereçar.

Afinal, o que significa ganhar R$ 5.000 no Brasil? Por incrível que pareça, esse valor é a realidade quase absoluta do nosso mercado de trabalho. Cerca de 85% da população ocupada recebe salários de até R$ 5.000. Pouco menos de 70% recebem até dois salários mínimos. E metade da população ocupada recebe até R$ 1.600 (PnadC 2023). O aumento da isenção permite diferenciar os mais altos salários, mas também passa a tratar de forma igual trabalhadores que são muito diferentes, como os que recebem R$ 1.600 e R$ 5.000.

A expressiva erosão da base tributária em resposta ao aumento do limite de isenção reflete o desafio de redistribuir através de um imposto sobre a renda, considerando a enorme desigualdade que ainda persiste no mercado de trabalho e a possibilidade de evasão de tributos, seja em razão da existência de arranjos de trabalho informais, seja por causa da existência de regimes especiais que dão saída para aqueles que permanecem na base tributária.

Os exemplos são inúmeros. Trabalhadores denominados empreendedores pagam menos imposto através do MEI. Trabalhadores que viram pequenas empresas se beneficiam de regimes como o Simples. E os que são sócios ou acionistas ganham tratamento diferenciado com os lucros e dividendos.

O fato é que as pessoas respondem aos incentivos gerados pelas isenções e exceções, e o resultado é um sistema de tributação de renda com baixo poder arrecadatório e pouca capacidade redistributiva. No Brasil, a arrecadação com o imposto sobre a renda corresponde a apenas 2,4% do PIB e a cerca de 10% da arrecadação do governo federal. Em perspectiva comparada, destoamos de diversos países desenvolvidos que estabeleceram no imposto sobre a renda a principal fonte de receita do governo e o mais importante instrumento de redistribuição.

Há um amplo espaço para tornar o sistema tributário brasileiro mais justo, mas corrigir os problemas existentes através de uma nova rodada de exceção não parece ser a melhor forma de fazê-lo. As exceções não apenas reduzem o potencial redistributivo do imposto mas também geram distorções, modificando substancialmente a forma como os recursos são alocados na economia. Nesse sentido, é possível reduzir nossas desigualdades removendo —não ampliando— as exceções na forma com tributamos a renda.

Estaria a juventude desencantada com as esquerdas? por Pedro Marin

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Ela não tem um passado de avanços sociais para mirar. Votou, pela primeira vez, nas eras Temer e Bolsonaro. Viveu o desmonte do Estado. Se parte dela vira à direita é porque o horizonte tornou-se “vencer por conta própria”. E “arcabouço fiscal” só alimenta a angústia…

Pedro Marin – Revista Opera – 21/10/2024

A esquerda enfrenta um enigma: por que os jovens viram à direita? A questão já ressoava à sombra da popularidade de figuras como Milei, na Argentina, Bukele, em El Salvador, e em alguma medida Trump, nos Estados Unidos. Também já havia aparecido com a ascensão de vultos como o deputado federal Nikolas Ferreira (PL). Mas o terror parece ter se cristalizado, ou ao menos o problema apareceu com mais clareza, com o primeiro turno das eleições municipais de São Paulo, em que Pablo Marçal (PRTB) por pouco não foi para o segundo turno, se consolidando, de qualquer forma, como concorrente a líder da extrema-direita brasileira – e tudo com um apoio amplo entre jovens pobres de São Paulo.

De frente pra esfinge, a esquerda lança suas hipóteses: seriam as redes sociais? O celular? Os efeitos da pandemia? A supremacia do consumismo globalizado? O que é que explica que a juventude, outrora símbolo da rebeldia, esteja se voltando à direita? A esfinge não dá respostas definitivas, nem eu pretendo fazê-lo. Mas convém lembrar de algo primordial: o tempo passa.

Não repito o axioma para fixar outro enigma: é que o Brasil tem, de acordo com o último censo do IBGE, 29,8 milhões de habitantes entre 15 e 24 anos. Tomando o topo da pirâmide – aqueles que têm 24 anos –, haveremos de considerar que estes, quando puderam votar pela primeira vez, aos 16, tinham Michel Temer como presidente, e chegaram à maioridade com a eleição de Bolsonaro. Além destes, há outros 13,6 milhões entre 10 e 14 anos, que em breve passarão a formar suas visões políticas. Todo esse contingente não experimentou os governos petistas. A cena política que muitos deles conheceram na adolescência era recheada de militares; quando começavam a trabalhar ou pensavam em procurar um emprego, batiam-se com o pico da desregulamentação trabalhista e das políticas antissindicais; e quanto às políticas sociais, o que encontravam era um teto de gastos, com seus cortes na saúde, educação, habitação, etc. Em resumo: uma boa parte dos jovens que hoje viram à direita, ao contrário das gerações anteriores, não experimentaram sequer as restritas políticas sociais dos governos petistas, ao menos não “por conta própria”.

Certamente, todas as hipóteses lançadas à esfinge têm também sua parcela de culpa. Mas cada uma das hipóteses revela também, por sua parte, ausências: à liberalidade das redes sociais poderíamos opor a democratização da mídia, se tal coisa houvesse sido feita; à ampla popularização do celular, uma reforma educacional efetiva, uma política séria de estímulo à leitura, ou mesmo uma política de desenvolvimento tecnológico que casasse a inserção digital com a popularização dos computadores pessoais (cujo uso tem efeitos bastante diversos daqueles do celular, via real de acesso da maioria da população brasileira à internet); frente os lamentos quanto aos efeitos da pandemia, poderíamos nos perguntar o que estavam fazendo nossos partidos de esquerda enquanto Bolsonaro aplicava sua política genocida – protestavam contra o presidente ou protestavam contra os que protestavam? –; sobre a profusão do consumismo em escala global, deveríamos questionar o que nossas organizações e governos ofereceram como alternativa de sociabilidade, se houve algum tipo de política de nacionalização da produção desses produtos que tantos desejam, ou mesmo uma política cultural ampla que buscasse disputar tais desejos. Parece, portanto, que na ânsia de buscar respostas para explicar o comportamento da juventude, deixamos de lado os pressupostos mais simples: que esta juventude não viveu o melhor que a centro-esquerda pôde entregar; que o melhor que o petismo pôde entregar esfarelou-se como de um dia para o outro; e que aqueles que lideram a esquerda hoje sequer agem no sentido de entregar algo decisivamente melhor. O mais grave: que mesmo após a eleição de Lula em 2022, o melhor que se entrega é um melhorismo rebaixado; afinal, se comemora a criação de empregos de baixíssima qualidade como se estivéssemos testemunhando um crescimento chinês; o arcabouço fiscal de Haddad só se diferencia essencialmente do teto de Temer por sua maior aplicabilidade; os militares que invadiram a cena política em 2016 têm um ministro para chamar de seu dentro do governo Lula (um ministro que inclusive se orgulho disso); as reformas e as privatizações que avançaram ferozmente a partir de 2016 não foram desfeitas nem enfrentadas pelo atual governo. Se é verdade que os governos petistas até 2016, mesmo com todos seus limites, se diferenciavam das administrações Temer e Bolsonaro, também é verdade que o atual governo, até o momento, não se diferencia tanto destas; e tudo o que o jovem conheceu em primeira mão na política brasileira, mais uma vez, é isso.

O niilismo que afeta o Brasil, e particularmente sua juventude, deve ser tomado por inteiro: na ausência de algo que de antemão organize sua perspectiva de futuro, o homem toma o destino nas mãos, conferindo ele mesmo sentido à própria vida. Os que, como eu, foram jovens ao longo dos governos petistas, viviam, apesar de todos os poréns, uma sensação geral de que os governos organizavam um futuro. A melhoria das condições de vida presentes, somada às políticas de ampliação do ensino básico e superior, faziam crer que era possível ascender por meios habituais, como o estudo e o trabalho; e essa ascensão, mesmo que limitada e desorganizada – abrindo caminho para perspectivas individualistas (a famosa premissa de que milhões melhoraram de vida “por esforço próprio”) –, estava intrinsecamente ligada ao Estado.

A dilapidação do Estado a partir do ajuste fiscal do último governo Dilma e dos governos subsequentes de Temer e Bolsonaro criou uma geração de jovens que não experimentou tal clima: jovens que nasceram e cresceram sob a acertada suposição de que estavam sozinhos, e que seu futuro só poderia ser diferente por meios excepcionais: por uma jogada de sorte, por uma ideia genial ou um esforço descomunal no campo do “empreendedorismo”, etc. Não será tão difícil compreender o porquê este jovem, mesmo que pobre, tão facilmente tenha a percepção de que o Estado e a política só servem para atrapalhá-lo.

Voltando ao niilismo: os mais velhos podem buscar algum sentido no passado; e os mais jovens? Num País em que objetivamente a escassez define as maiorias e a riqueza é o que confere, mais do que a percepção da vitória, a realização dos direitos, o que se pode esperar da juventude? Vários jogam nas roletas, outros voltam-se ao crime, tantos jazem mortos, muitos viram à direita, a maioria sobrevive como pode em meio às opções anteriores, todos sonhando conquistar os direitos inscritos na Constituição pelo único meio que objetivamente é possível: enriquecer. Não há nada de incompreensível nisso tudo: jogam o jogo do mundo que conheceram e conhecem. Um jogo em que os que têm a coragem de ser bandidos têm o justo reconhecimento, e em que as mentiras de coachs ou pastores não são medidas pelo seu valor moral, mas pela sua utilidade prática – embora falsas, são úteis, ao contrário dos resmungos sobre “o que é possível fazer”; aquelas mobilizam as vontades, estes paralisam.

Os “heróis” de um ambiente tão desregulado, sem horizonte de futuro e em que o Estado, em meio às privatizações, cada vez faz menos, e em meio às reformas e ajustes, cada vez faz pior (a saúde e a educação são áreas evidentes) serão quais? Seria Marçal e congêneres tão inexplicáveis assim? Que outro ambiente o governo está oferecendo para que outros “heróis” possam aparecer? É verdade que essa dilapidação do Estado avançou por sobre o petismo: mas é hoje enfrentada de forma decidida por ele?

Parte da juventude vira à direita não por convicção de que lá se encontra uma alternativa; mas por não ver alternativa a não ser esta. O discurso individualista, em que as únicas entidades gregárias viáveis são a família ou a igreja, e no qual é necessário “vencer por contra própria” se populariza porque, no Brasil pós-2016, ele é absolutamente verdadeiro.

Caberia a um governo como o de Lula torná-lo falso. É verdade que em 2023, sob a PEC da Transição, aumentos nos investimentos em educação e programas como o Pé-de-Meia foram sinais, ainda que tímidos, neste sentido, mas a tendência de cortes para a manutenção do “arcabouço fiscal”, já demonstrada neste ano (em abril foram 4 bi cortados; agora, em outubro, já se discute um novo amplo pacote de cortes), tende a tornar o terceiro governo Lula uma reprise do que os jovens já viram. Por que optariam decididamente por ele em 2026?

​​Pedro Marin é fundador e editor-chefe da Revista Opera. É editor de Opinião de Opera Mundi, autor de “Aproximações sucessivas – O Partido Fardado nos governos Bolsonaro e Lula III”, “Golpe é Guerra – Teses para enterrar 2016”, e co-autor de “Carta no Coturno – a volta do Partido Fardado no Brasil”.

 

Nobel de Economia: uma lente para entender os desafios do Brasil, por Deborah Bizarria

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É evidente como nossas instituições com frequência são usadas para atender a grupos específicos

Deborah Bizarria, Economista pela UFPE, estudou economia comportamental na Warwick University (Reino Unido); evangélica e coordenadora de Políticas Públicas do Livres.

Folha de São Paulo, 21/10/2024

A concessão do Prêmio Nobel de Economia de 2024 a Daron Acemoglu, Simon Johnson e James A. Robinson destaca a importância das instituições na prosperidade das nações. Seus trabalhos mostram que instituições inclusivas —que promovem direitos de propriedade, Estado de Direito e oportunidades— são essenciais para o desenvolvimento econômico. Essa premiação nos oferece a oportunidade de refletir sobre os obstáculos que o Brasil enfrenta devido à captura institucional por interesses privados.

O arcabouço teórico dos laureados aborda por que algumas sociedades permanecem presas a instituições extrativas e a dificuldade de transformá-las. Instituições extrativas beneficiam uma pequena elite em detrimento da maioria, limitando o crescimento econômico ao restringir direitos políticos, corroer o Estado de Direito e concentrar recursos e poder. Isso cria uma armadilha que retarda o progresso econômico.

Independentemente das críticas e limitações apontadas por outros estudiosos, uma contribuição significativa dos laureados foi popularizar o debate sobre a qualidade das “regras do jogo” além dos círculos acadêmicos. Seus livros, especialmente “Porque as Nações Fracassam”, conseguiram “furar a bolha” econômica, sendo discutidos tanto por especialistas quanto pelo público em geral. O “Corredor Estreito” e “Poder e Progresso” também têm gerado debates, ainda que em menor grau.

No Brasil, é evidente como nossas instituições com frequência são usadas para atender a grupos específicos. A elite do funcionalismo público utiliza mecanismos legais para garantir salários desconectados da realidade, ultrapassando o teto constitucional. Enquanto a maioria dos servidores recebe remunerações modestas, uma pequena parcela acumula benefícios que distorcem a equidade salarial e drenam recursos que poderiam ser destinados a áreas essenciais.

Essa captura do Estado também se manifesta na alocação de recursos em setores como as indústrias naval e automobilística. Governos sucessivos investem pesadamente em subsídios e desonerações tributárias para essas áreas, sem retorno social proporcional. Essa abordagem privilegia grupos bem conectados ao poder, em vez de fortalecer as instituições que poderiam melhorar o ambiente de negócios e promover um crescimento mais inclusivo.

A preferência por projetos grandiosos, em vez de reformar as estruturas institucionais, reflete a falta de foco nas reformas necessárias para promover eficiência econômica. Enquanto isso, pouco se discute sobre a regulação econômica, a qualidade da gestão educacional e a necessidade de maior segurança jurídica. Essa estratégia perpetua a desigualdade e compromete o potencial de inovação e empreendedorismo do país.

Para reverter esse cenário, é fundamental que a sociedade civil se envolva em reformas institucionais que eliminem privilégios e direcionem recursos públicos para investimentos que realmente beneficiem a população. Fortalecer a democracia, promover a transparência e responsabilizar os tomadores de decisão são passos essenciais. A premiação desses economistas nos leva a repensar nossas prioridades: em vez de investir em setores que favorecem poucos, devemos criar um arcabouço institucional que promova inclusão social e geração de riqueza.

EUA estão se tornando mais parecidos com Brasil, diz Nobel de economia

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Em conversa com a Folha, Simon Johnson diz que Trump é maior desafio já visto às instituições americanas e critica populismo de propostas do republicano

Fernanda Perrin – Folha de São Paulo – 20/10/2024

Washington – “Maravilhoso. Estranho. Exaustivo. É uma semana complexa.”

É assim que se sente um vencedor de um Nobel quatro dias após o anúncio, segundo Simon Johnson.

Folha conversou na sexta-feira (18) com o economista, laureado com o prêmio junto a Daron Acemoglu, seu colega no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) e James A. Robinson, da Universidade de Chicago

Em seu trabalho, o trio investigou o que levou europeus a instalarem diferentes tipos de instituição em suas colônias e como isso contribui para explicar o desenvolvimento dessas sociedades, sua dinâmica econômica e política.

Apesar de Brasil e Estados Unidos terem passado por processos de colonização muito diferentes, resultando em arranjos institucionais mais inclusivos no segundo caso, ambos os países se veem hoje diante de desafios semelhantes. Questionado sobre isso, Johnson responde: “para ser honesto, acho que os EUA se tornaram mais parecidos com o Brasil”.

O sr. poderia começar explicando como Brasil e EUA ilustram sua pesquisa?
Claro. Embora eu deva dizer que não sou um especialista no Brasil e você deve ter muito cuidado com vencedores do Nobel que alegam ser especialistas em tudo [risos].

O ponto geral é que o que os europeus fizeram em diferentes partes do mundo foi determinado, em parte, pelas condições que encontraram para a transmissão de doenças tropicais, particularmente variantes da malária e da febre amarela. Digamos, se você enviasse mil europeus para a África Ocidental em 1800, cerca de 500 deles morreriam no primeiro ano. Se você enviasse mil para os EUA, alguns morreriam, mas menos do que se ficassem na Europa. Se você os enviasse ao Brasil, era um número intermediário. Talvez eu devesse escrever um artigo sobre o Brasil, porque há uma variação [do Norte ao Sul].

Quando havia mais europeus chegando, você tinha que oferecer a eles mais direitos econômicos e políticos. Caso contrário, eles iam para outro lugar. Eles podiam ir para a América do Norte, Austrália, Nova Zelândia. Você estava competindo por essas pessoas. Mas quando as taxas de mortalidade eram tão altas quanto na África Ocidental, você enviava algumas poucas pessoas e elas administravam instituições extrativistas, tráfico de escravos, extraíam ouro e assim por diante. Em casos intermediários, como o Brasil ou grande parte do Caribe, alguns europeus vinham, alguns morriam, alguns ficavam apenas sete anos.

Assim, por um lado, temos instituições extrativistas muito fortes e terríveis. Por outro, temos instituições relativamente boas, inclusivas –para os colonos europeus, não para os povos indígenas.

Como isso afeta o desenvolvimento dos países no longo prazo?

Há muita continuidade e influência duradoura dessas instituições coloniais.
Como se o DNA do lugar, por assim dizer, tivesse sido alterado pelos europeus. Isso não significa que as instituições sejam uma predestinação, que você não possa escapar delas. Você pode, mas é o contexto. E quando você tem uma herança mais extrativista, é mais difícil realmente estabelecer o desenvolvimento econômico porque você continua recaindo nesse padrão onde poucas pessoas têm todo o poder. Eles ficam ricos, compram propriedades em Miami e assim por diante.

Um conceito interessante da pesquisa de vocês é o do problema de compromisso, em que elites adotam instituições mais inclusivas por temor das massas. Mas quando olhamos para a história do Brasil, por exemplo, muitas das mudanças institucionais foram resultado de disputas internas à elite. Quando aparece esse temor das massas, como nos anos 1960, a elite passa o poder aos militares. Ela não abre as instituições, ela as fecha mais.

Sempre há potencial para conflitos dentro da elite. Uma implicação das nossas evidências é que não importa qual parte da elite vença, eles vão administrar o sistema da mesma maneira. Algumas pessoas chamam isso de lei de ferro da oligarquia. Você tem uma oligarquia, alguém a derruba, e eles se tornam uma oligarquia. Pense na Rússia antes de 1917, o czar, Lênin, Stálin… Há uma continuidade ali.

Acho que você está certa em dizer que o conflito interno é um problema, mas a questão do compromisso também é importante. Um problema que se tornou mais relevante, ou do qual estamos mais cientes agora, é o populismo. Em alguns casos na América Latina, os militares foram trazidos para conter as massas ou para liderar um regime mais populista. Existem muitas maneiras de impulsionar uma economia e obter bons resultados por alguns anos, incluindo uma grande dose de populismo. Essa é a história da Argentina ao longo dos últimos cem anos. Mas com o populismo, você começa a minar as instituições democráticas, a culpar a oposição, a reprimir as pessoas e assim por diante.

Mas o que dá origem ao populismo?
A forma clássica de populismo é, na verdade, Donald Trump. Ele está canalizando o descontentamento e a raiva, que são legítimos, mas está culpando os outros: a China, os imigrantes e assim por diante. Ele está aproveitando essa força, dizendo que não perdeu em 2020, que o 6 de Janeiro foi um dia de paz. Isso é exatamente como as democracias se deterioram. Vamos ver o quão forte são os EUA. A ameaça populista se tornou clara na última década. Essa é uma das maiores ameaças ao redor do mundo.

Apesar de Brasil e EUA terem históricos institucionais muito diferentes, vimos recentemente as democracias nos dois países enfrentando desafios semelhantes, com Trump e Jair Bolsonaro. Como explicar isso?
Para ser honesto, acho que os EUA se tornaram mais parecidos com o Brasil. Isso porque nossos resultados econômicos para a classe média têm sido muito decepcionantes ao longo dos últimos 40 anos, por causa da automação, da globalização e do declínio do comércio. Depois, tivemos a grande crise financeira em 2008. Há um sentimento de frustração em muitas partes do país, de que foram deixadas para trás pelas elites.

A maneira de resistir é criando mais bons empregos para mais pessoas. Há um problema profundo de emprego, oportunidade e renda em muitas partes dos EUA, somado a outros fatores.

O que você espera que aconteça com as instituições dos EUA, se Trump for eleito?
Quando escrevemos nosso primeiro artigo, em 1999, interpretamos que, naquele momento, os EUA tinham desenvolvido e construído instituições muito fortes e que não podiam ser derrotadas por acontecimentos. Elas ainda são fortes, mas os EUA estão enfrentando o maior teste de resistência de nossas vidas. O movimento pelos direitos civis nos anos 1950 e 1960 foi um grande teste, particularmente para o sul, mas acho que o desafio nacional agora vindo dos apoiadores de Trump é muito profundo.

Quando publicamos o artigo, ninguém disse que era um artigo partidário. As pessoas de direita gostaram do fato de enfatizarmos os direitos de propriedade e as pessoas de esquerda gostaram do fato de enfatizarmos a voz e a representação política. Mas algumas pessoas nesta semana disseram ‘oh, meu Deus, eles deram o prêmio a esses caras como uma forma de se posicionar politicamente nos EUA’.

O fato de que metade da elite, da liderança política, convenceu as pessoas [de uma mentira sobre fraude em 2020] é uma grande mudança. Isso não era como os EUA funcionavam há 20 anos. E esse é o efeito Donald Trump. Quão duradouro será isso, ainda está para ser visto. Sabe, quando Trump deixar a cena, em que circunstâncias, não temos ideia.

Muitos dizem que os democratas e Kamala também estão se tornando mais populistas. Qual a sua visão?
Eu diria que não. Claro, quando seu oponente diz que vai dar US$ 200 para todo mundo, você sente uma certa pressão para dizer ‘eu também vou dar’.

A responsabilidade fiscal é um pilar muito importante em muitos países, e os EUA perderam isso por causa do papel do dólar e da posição dos EUA na economia mundial e assim por diante, o que não vai durar para sempre. Portanto, há razões para se preocupar.

O que Trump está propondo em termos de tarifas não faz nenhum sentido. Há um artigo mostrando que o impacto sobre as pessoas mais pobres seria grande. Milhares de dólares. Essas são as pessoas que apoiam Trump, mas esse é o tipo de desconexão que você encontra na mentalidade populista.

Acho que há um consenso de que há muita imigração ilegal. Eles precisam mudar o sistema, não podemos absorver tantos. Acho que todos concordam com isso. Mas Trump realmente diz que quer prendê-las e deportá-las. Isso seria um grande choque econômico para o sistema. A maioria dessas pessoas está trabalhando.

Você também estaria criando uma espécie de estado policial como nunca vimos nos EUA, ter que mostrar identidade na rua. Você pode dizer ‘isso não é real, é retórica’, mas é algo muito populista, muito grande. Não é ‘vou te dar um pequeno corte de impostos para isso ou para aquilo’.

Não há dúvida de que Trump está fazendo o máximo para se eleger, deslegitimando princípios de longa data da democracia americana, como a forma como realizamos eleições. Acho que muitos danos já foram causados. Se esses danos vão durar muito tempo, se vamos repará-los e assim por diante, ainda está por ser visto. A política americana é muito fluida, flexível, efervescente, mas Trump danificou as instituições de uma maneira muito semelhante ao que vimos populistas fazerem em muitos outros países, incluindo partes da América Latina, em vários episódios.

RAIO-X – Simon Johnson, 61

Nascido no Reino Unido, é professor de empreendedorismo na MIT Sloan School of Management. Foi economista-chefe do FMI (Fundo Monetário Internacional) em 2007 e 2008. Seu livro mais recente, “Power and Progress”, escrito com Daron Acemoglu, explora a história e a economia das transformações tecnológicas. Anteriormente, foi pesquisador sênior no Instituto Peterson de Economia Internacional e participou de diversos conselhos e comitês ligados à economia e política financeira dos EUA.

 

Um Nobel para o desenvolvimento institucional, por Samuel Pessoa.

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Prêmio sugere que Caio Prado envelheceu melhor que a teoria da dependência

Samuel Pessoa, Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.

Folha de São Paulo, 20/10/2024

Na segunda-feira (14), a trinca Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson, foi agraciada com o Prêmio Nobel de Economia, “pelos seus estudos de como as instituições são formadas e afetam a prosperidade”.

Acemoglu, Johnson e Robinson (muitas vezes referidos pela sigla AJR) têm importantes predecessores. Em 1997, quatro anos antes de a trinca agora premiada publicar seu artigo mais influente sobre instituições e desenvolvimento, uma dupla de historiadores americanos — Stanley Engerman e Kenneth Sokoloff — escreveu um texto que em certos aspectos antecipava o argumento básico de AJR.

A ideia de Engerman e de Sokoloff é a de que, nas colônias tropicais das Américas, a possibilidade de produzir bens com ganhos de escala na agricultura (o que tornava os latifúndios rentáveis) gerou especialização na produção de commodities de exportação com uso de trabalho escravo. Nas regiões temperadas, não havia ganho de escala na produção agrícola (propriedades pequenas eram proporcionalmente tão rentáveis quanto as grandes), o que estimulou a pequena unidade familiar e a absorção de excedentes populacionais europeus.

A dotação inicial de fatores (terra e mão de obra) gerou escolhas tecnológicas e de organização produtiva que consolidaram, nos trópicos, sociedades muito desiguais, tanto na distribuição de renda e riqueza quanto na distribuição do poder político. Isso traria consequências negativas bem depois de terminado o período colonial.

É que o desenvolvimento do capitalismo, em seguida à Revolução Industrial, foi crescentemente demandante de dois recursos. Pouco a pouco, passou-se a valorizar o trabalho qualificado. A escolarização foi adquirindo centralidade para o desenvolvimento econômico.

Adicionalmente, processos produtivos mais complexos demandam muito da capacidade das instituições de garantir o cumprimento de contratos. A eficiência do marco legal e institucional tem importância maior em sociedades complexas.

Ocorreu então uma “reversão de fortunas”: as colônias tropicais, inicialmente mais ricas, pois produziam produtos de luxo para a metrópole, ficaram para trás. Hoje são subdesenvolvidas.

O leitor pode achar essa narrativa bem parecida com a história que o professor do ensino médio de história nos contava, ao tratar da diferença entre colônia de exploração e colônia de povoamento.

A percepção é corretíssima. No Brasil, essa explicação tomou dois caminhos. Na obra de Caio Prado Júnior, temos uma versão que se aproxima muito do neoinstitucionalismo recente, inclusive o de AJR. No pensamento Cepalino, enfatiza-se a especialização na produção de commodities de exportação e a relação comercial com o resto do mundo como uma das causas do subdesenvolvimento.

O Nobel da semana passada sugere que Caio Prado envelheceu melhor do que a teoria da dependência.

Imperdível o artigo de Leonardo Monastério e Philipp Ehrl  “Colônias de povoamento versus colônias de exploração: de Heeren a Acemoglu”, de 2019. Os autores contam a história da evolução desta díade no pensamento desde o alemão Heeren (1817), passando pelo francês Leroy-Beaulieu, (1902), citado por Caio Prado, até AJR.

 

Afinal, quem é responsável pelo aumento de juros? por Ricardo Alban

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Às vezes é preciso dizer o óbvio: taxa mais racional, como em economias emergentes, incentivaria investimentos, reduzindo a pressão inflacionária

Ricardo Alban, Empresário, é presidente da CNI (Confederação Nacional da Indústria).

Folha de São Paulo, 20/10/2024

A recente alta da taxa básica de juros tem provocado discussões entre especialistas econômicos e líderes empresariais. É preocupante que o aumento da capacidade instalada na indústria seja usado como justificativa para a elevação da Selic. Afinal, por que tantas narrativas são criadas para justificar algo que muitos consideram irracional? Qual é o verdadeiro papel do mercado financeiro nesse cenário, e por que ele parece ditar os rumos da política monetária nacional? Até quando?

A pressão sobre a capacidade instalada da indústria brasileira tem origem no histórico de juros astronômicos praticados no Brasil. O alto custo de crédito impede o investimento na expansão das plantas e o aumento da produção, agravando o gargalo da oferta e a inflação. A solução para a equação parece óbvia: uma taxa de juros mais racional, alinhada às praticadas em outras economias emergentes, incentivaria investimentos produtivos, reduzindo a pressão inflacionária, além de criar mais empregos e desenvolvimento. Às vezes é preciso dizer o óbvio.

Economias como a da China, que recentemente adotaram medidas de estímulo ao crescimento industrial, reforçam a tese de que o equilíbrio na política de juros alavanca o desenvolvimento. Nosso cenário atual bloqueia a expansão industrial, justo quando a economia brasileira está se recuperando, com a ajuda do desempenho da indústria. Enquanto presidente do G20, o Brasil só se soma à Índia e à Rússia em política monetária. Enquanto os três subiram juros, os outros 14 integrantes do G20 cortaram a taxa básica.

Atualmente, a Selic está em 10,75%. Já os custos para a indústria podem chegar a taxas entre 25% e 30% ao ano. O impacto nas cadeias produtivas, que são longas, é devastador. O custo financeiro embutido no produto final pode chegar a 25% do preço ao consumidor, situação insustentável para a competitividade da indústria

Outro ponto controverso é a narrativa que orienta a política monetária no país, inclinada a se basear na pesquisa Focus, respondida por 170 empresas e instituições, sendo que apenas oito não são diretamente ligadas ao setor financeiro. Até que ponto as perspectivas da economia real, especialmente da indústria, comércio e serviços, são efetivamente consideradas na formulação das políticas econômicas?

A crítica que emerge é clara: a política de juros no Brasil parece estar moldada em benefício do mercado especulativo, em detrimento da economia produtiva. O setor agropecuário e o sistema financeiro têm vozes fortes —e levadas em consideração— no debate econômico. Nada mais justo que a indústria também tenha suas demandas ouvidas e consideradas.

Se o Brasil quer evitar perder mais oportunidades de crescimento, deve rever o papel dos juros na política econômica. O país precisa de uma política industrial consistente e de visão de longo prazo, onde o incentivo ao investimento produtivo ocupe lugar central. Assim, construiremos um país que privilegia o desenvolvimento e o bem-estar social, em vez de manter o foco no lucro especulativo de curto prazo.

Luiz Carlos Bresser-Pereira – 90 anos, por Leda Maria Paulani

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Leda Maria Paulani – A Terra é Redonda – 19/10/2024 

Discurso na homenagem aos 90 anos do economista, na Fundação Getútio Vargas (FGV-SP)

Inicialmente agradeço o convite Nelson Marconi para proferir algumas palavras sobre o nosso homenageado.

No roteiro que ele preparou para esta cerimônia fui designada para prestar a homenagem ao professor Bresser em nome dos “economistas em geral”.

A primeira observação que faço é sobre a pertinência desta específica homenagem de que fui incumbida. No caso de Luiz Carlos Bresser-Pereira ela não está aqui apenas em função de exigências protocolares. O respeito e a admiração que desfruta o professor atravessa os vários grupos e tribos que, com seus diversos credos e approachs teóricos, constituem a comunidade sempre em guerra dos economistas.

Era preciso, portanto, no caso do Luiz Carlos Bresser-Pereira mais do que em qualquer outro, que alguém falasse em nome dos “economistas em geral”. Mas evidentemente vou falar aqui apenas a partir da minha praia, que é a academia – pois Luiz Carlos Bresser-Pereira, como se sabe, sempre atuou em várias frentes.

A segunda observação é que penso que o Nelson Marconi acertou na escolha do meu nome, não por conta de méritos meus, que não os tenho tantos, mas porque sou a prova viva da notável capacidade de Luiz Carlos Bresser-Pereira de conviver cordialmente e respeitar sinceramente diferentes pontos de vista e posições teóricas. Nós nunca pensamos exatamente do mesmo modo.

Nossas visadas são distintas, objetiva e teoricamente, mas sempre fui tratada por ele não só com a devida consideração, mas também com um interesse genuíno pelo meu trabalho, que ele sempre buscou valorizar, o que muito me honrou e tem me honrado ao longo de todos esses anos de convivência acadêmica.

Luiz Carlos Bresser-Pereira fez parte da minha trajetória acadêmica em momentos muito importantes. Foi membro da banca examinadora na defesa de minha tese de doutorado sobre o conceito de dinheiro em 1992 e, quinze anos mais tarde, participou da banca do concurso em que me tornei titular na FEA-USP. Soube depois, porque essas coisas a gente sempre acaba sabendo, que ele, apesar de todas as nossas diferenças, teve papel decisivo na defesa de meu nome como candidata à única vaga então existente.

Eis, portanto, o primeiro mérito de Luiz Carlos Bresser-Pereira que queria destacar, esse ecumenismo praticante que sempre caracterizou sua conduta no mundo acadêmico.

O segundo mérito que destacaria é sua honestidade intelectual e sua capacidade de reconhecer e valorizar os mais jovens. No primeiro contato que tive com Luiz Carlos Bresser-Pereira, levei um susto. Três semanas depois de lançado o Plano Cruzado, eu, à época estudante da pós-graduação do IPE-USP, publiquei na Folha de S. Paulo um artiguinho onde procurava mostrar as diferentes posições teóricas que estavam por trás daquele experimento heterodoxo.

Fui almoçar poucos dias depois na casa de meus pais e meu pai me disse: ligou aqui em casa um professor atrás de você; primeiro perguntou se tinha aqui alguma Leda Paulani; eu disse que sim, que era minha filha, mas que não morava mais aqui. Ele então disse que era professor, se chamava Luiz Carlos e queria conversar com você sobre o artigo da Folha. Pediu que te dissesse isso.

Fiquei intrigada, matutei, matutei, e não atinei com quem poderia ser. Dois ou três dias depois, nos encontramos no Cebrap – era então estudante da primeira turma do programa de formação de quadros daquela instituição e Luiz Carlos Bresser-Pereira fora lá para um seminário. Vendo meu nome como uma das estudantes do programa ali presente, veio me procurar. Foi só assim que descobri quem era o professor Luiz Carlos e quase caí de costas.

Era eu uma ilustre desconhecida estudante de pós-graduação. E ele, do alto de seu renome, naquele tempo sem internet nem smartphones, tinha se dado ao trabalho de ir à lista telefônica para tentar entrar em contato comigo e podermos conversar sobre o artigo e sobre toda aquela controvérsia teórica que o longo período de alta inflação acabou por gerar no Brasil. Fiquei admirada. Como desde então nunca mais perdemos o contato, fui percebendo que esse era um comportamento usual de Luiz Carlos Bresser-Pereira, mais uma prova de seu espírito aberto, de sua disposição de ouvir e de sua generosidade.

Por fim, não posso deixar de mencionar, e agora saindo da esfera stricto sensu acadêmica, o papel crucial que Luiz Carlos Bresser-Pereira teve nestes politicamente conturbados anos desde o início do segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff. Em todos os momentos decisivos deste triste período, ele foi apoiador, defensor e companheiro de primeira hora daqueles que tinham sido seus adversários políticos anos antes, o que, dada sua estatura moral e intelectual, fez enorme diferença para quem lutava para o leite não derramar. Diria mesmo que foi fundamental para a vitória de Lula em 2022 e o alívio que a vitória trouxe ao derrotar o protofascismo de Jair Bolsonaro – apesar de esse espectro hediondo ainda continuar por aí, fungando em nosso cangote.

Vejam que, para falar um pouco de Luiz Carlos Bresser-Pereira, que o tempo é curto, não precisei fazer referência aos 53 livros, 89 capítulos de livros e 257 artigos em revistas acadêmicas que ele publicou no Brasil e no exterior, onde, diga-se, é igualmente respeitado e admirado. São números frios, que falam de sua capacidade intelectual, mas incapazes de traduzir de modo humano e verdadeiro quem ele de fato é.

Para concluir, afirmo que se tivéssemos 1% dos economistas/ professores/ pesquisadores/ executivos/ homens públicos com a dignidade e a capacidade de Luiz Carlos Bresser-Pereira, o Brasil seria, certamente, um país muito melhor.

Parabéns, professor, pelos seus 90 anos e por tão iluminada trajetória.

*Leda Maria Paulani é professora titular sênior da FEA-USP. Autora, entre outros livros, de Modernidade e discurso econômico (Boitempo).

 

“O pobre de direita”. Entrevista com Jessé Souza

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“O pobre de direita: a vingança dos bastardos. O que explica a adesão dos ressentidos à extrema direita?”. Entrevista com Jessé Souza

 Instituto Humanitas Unisinos – 08/10/2024

O pobre de direita: a vingança dos bastardos (Civilização Brasileira) é o mais novo livro de Jessé Souza, doutor em Sociologia pela Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg (Alemanha), autor de best-sellers como A elite do atraso (Leya) e A ralé brasileira (Civilização Brasileira), e um dos mais importantes sociólogos brasileiros da atualidade.

Nesta entrevista ao Extra Classe, Jessé discute como o ressentimento social, originado na humilhação e na exclusão, tem sido explorado por figuras como Jair Bolsonaro, que manipula as fragilidades de populações vulneráveis.

Independente de ganho econômico ou pauta de costumes, o novo trabalho do sociólogo indica que é o racismo que está na raiz da virada moralista que impulsionou a extrema direita no Brasil.

Para ele, de fato – em conexão a histórias de racismo e desigualdade no Brasil – há sentimentos que perpetuam a dominação por meio da manutenção de estruturas de poder que limitam o desenvolvimento de uma verdadeira democracia social.

Na conversa, Souza aprofunda o conceito de pobre de direita e revela como indivíduos desprivilegiados, tanto brancos quanto negros e mestiços, são seduzidos por discursos que prometem reconhecimento e dignidade, mesmo que isso signifique apoiar políticas que perpetuam sua própria opressão.

A entrevista é de Marcelo Menna Barreto, publicada por Extra Classe, 30-09-2024.

Confira a entrevista.

Você tem dito que o pobre de direita é o fenômeno mais importante do país hoje. Como assim?

Lembra que os pobres votavam em uníssono com o PT até 2016? O que foi que aconteceu para que, agora, metade dos pobres, pelo menos, votem em partidos elitistas e na extrema-direita? Aquela história da barata votando no chinelo, contra seus melhores interesses. As explicações que existem para isso não são boas. Uma diz que essas pessoas são burras, o que não é verdade; os seres humanos são inteligentes. Outra resposta, mais acadêmica, diz que é uma mera filiação religiosa. Como se não tivesse que explicar por que as pessoas procuram e escolhem uma certa orientação religiosa. A causa é muito mais profunda.

Chama a atenção no seu livro O Pobre de Direita o subtítulo: A Vingança dos Bastardos. Imagino que isto tenha relação ao comportamento chave que diversos estudiosos sobre a extrema-direita identificam, o ressentimento. É por aí?

Exatamente, é por aí. Mas esse ressentimento precisa ser explicado. Ressentimento é uma palavra que precisa ser definida; mas, obviamente, tem a ver com o quê? Tem a ver com o sentimento de humilhação que as parcelas mais econômicas das classes populares sofrem, ainda que as classes populares não sejam a mesma coisa. No Brasil, 80% do povo que ganha abaixo de cinco salários – metade ganha entre 2 e 5 salários e a outra metade abaixo de dois salários mínimos -, você teria duas classes. Uma classe que eu chamo provocativamente de ralé, a de oprimidos, de odiados, de abandonados, é 40%. Estão abaixo, ficam de zero a dois salários mínimos. E a que eu já chamei em outro livro de batalhadora, uma espécie de classe trabalhadora precária entre nós. Estes são bastardos de quê? Eles são os bastardos da nação brasileira, do projeto da nação brasileira. Desde Getúlio Vargas se tem a ideia de que isso aqui pode ser um país rico para todos, não apenas para uma pequena minoria, o 0,1% que tem toda a propriedade relevante e explora todo o mundo.

E a, digamos, classe média real?

É comparável a uma classe média europeia ou americana. Não chega nunca aqui, em nenhum lugar, a 20% da população. Esses 80% que estão abaixo de 5 salários, sofrem uma humilhação objetivamente. Não tem dinheiro, nem conhecimento incorporado. Assim, vão ser expostos à vergonha, a obrigações, etc., etc., etc. Ou seja, vão ser bastardos de um projeto de desenvolvimento que foi abortado.

Mas, o conceito não é novo, não? Tim Maia nos anos 1980 já dizia, entre outras coisas, que o Brasil não podia dar certo porque pobre é de direita (risos). Além de um contraponto ao socialista de iPhone, a que você atribui a popularização do termo pobre de direita?

A popularização do termo pobre de direita parece estar diretamente ligada à figura de Jair Bolsonaro. Ele conseguiu transformar vulnerabilidades sociais em algo perigoso. Manipulou as fragilidades do povo contra o próprio povo mesmo. Foi esse cenário que me levou a escrever sobre o tema. Acho que a questão central no Brasil hoje é justamente essa: como alguém, que tem seus direitos e dignidade tolhidos, pode defender formas de opressão que perpetuam sua condição?

No início da nossa conversa você falou de respostas e que há complexidade para a origem desse fenômeno. Qual a sua conclusão?

A resposta mais comum tende a ser racionalista ou simplista, atribuindo a explicação a fatores como a mentalidade conservadora ou religiosa, especialmente entre a população evangélica. No entanto, essa abordagem me parece insuficiente. Para entender de fato esse fenômeno, é preciso conectar os erros do passado ao presente e tentar projetar para o futuro. A compreensão não pode ser fragmentada; ela exige uma visão integrada. O que Bolsonaro fez foi explorar exatamente as vulnerabilidades dessas pessoas. Ele se dirigiu a uma parcela da população que trabalha em condições precárias, seja em empregos de nível técnico ou em ocupações que desumanizam o trabalhador. E essa parcela da população, muitas vezes privada de acesso ao conhecimento – o que explica os ataques de Bolsonaro às universidades, artes e cultura – reage com raiva, mas sem direcionar essa raiva à fonte real de seus problemas.

Parece que também temos aí outros exemplos na história, não?

Essa situação lembra os trabalhadores ingleses do início do século 19, que, sem entender as causas de sua opressão, quebravam as máquinas nas fábricas. Da mesma forma, muitos hoje atacam as expressões culturais e intelectuais, sem perceber que estão lutando contra os efeitos, e não contra a origem de sua marginalização. No fundo, o que essas pessoas buscam é reconhecimento, algo fundamental na modernidade. Esse reconhecimento pode vir tanto do trabalho, que, quando valorizado, traz respeito e autoestima, quanto das relações pessoais e da construção de uma identidade moral. Ao escolher uma denominação religiosa ou adotar valores conservadores, muitos encontram uma forma de se sentirem superiores ou moralmente distintos, o que faz parte do mecanismo de uma sociedade hierarquizada.

Um ponto muito interessante foi a sua ideia em jogar luz sobre a parte majoritariamente branca do país (São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) e a “majoritariamente negra e mestiça – de São Paulo ‘para cima’ no mapa”. Como se deu a metodologia para a coleta de dados que culminou em sua análise e a produção do livro?

A metodologia que resultou no livro não foi apenas técnica, baseada em dados frios, mas também se formou a partir das minhas vivências e experiências pessoais. Quando me mudei para São Paulo em 2017, isso foi crucial para entender o Brasil de uma forma diferente. Percebi que São Paulo é o centro das decisões do país. As elites paulistas, com toda sua diversidade, concentram um poder que é difícil encontrar paralelo em outro lugar. São Paulo é o coração do Brasil decisório, um espaço onde florescem todas as influências, e essa realidade me permitiu enxergar as dinâmicas regionais de forma mais profunda. Ao mesmo tempo, por meio de viagens ao Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, fui conhecendo melhor a história e o orgulho dos descendentes de imigrantes europeus. Há, nessas regiões, uma continuidade histórica muito clara, um orgulho de sangue que, em muitos casos, impede que esses grupos se vejam como parte integral do povo brasileiro. Existe uma distinção simbólica e social que é mantida até hoje, especialmente em relação aos nordestinos. E essa visão se expressa em preconceitos que ecoam ideias absurdas, como a de que nordestinos “vivem de graça”, quando, na realidade, são trabalhadores incansáveis.

O que está por trás disso?

A grande questão por trás dessa dinâmica é que o comportamento humano, em sua essência, não é ditado exclusivamente por fatores econômicos. Ao contrário do que muitos afirmam, nunca foi apenas sobre economia. A economia é, na verdade, uma construção moral. Toda estrutura de produção e distribuição de bens carrega consigo uma teoria implícita de justiça e moralidade, definindo quem fica com a melhor ou a pior parte. Assim, o racismo no Brasil não pode ser explicado apenas pela dimensão econômica, mas sim pela forma como a moralidade e as hierarquias sociais foram moldadas ao longo da história.

O racismo sempre presente, então?

Sim. E é justamente aí que entra o racismo. A ideia de um Brasil cordial, onde não se fala abertamente sobre racismo, é enganosa. O racismo continua existindo, mas agora sob máscaras, disfarçado em preconceitos regionais e culturais. O racismo racial foi transformado em racismo cordial, o que faz com que as pessoas não se identifiquem mais como racistas, mas reproduzam comportamentos e narrativas que perpetuam as mesmas desigualdades.

Racismo racial?

Sim. Porque, agora, temos o racismo regional. Esse racismo se manifesta de forma particularmente evidente no preconceito contra os nordestinos. É uma continuidade do racismo racial, apenas sob diferentes formas. Os descendentes de imigrantes no Sul do Brasil, por exemplo, muitas vezes se orgulham de sua disciplina, de seu “amor ao trabalho”, como se isso fosse uma característica exclusiva e superior. É, em essência, uma forma de racismo. E isso afeta as mesmas pessoas que o racismo racial atinge. O ponto crucial é que o racismo regional não é algo menor, como pode parecer à primeira vista.

Explique.

Ele é uma variação do mesmo racismo estrutural que molda as relações de poder no Brasil. E é nesse contexto que o fenômeno do pobre de direita pode ser melhor compreendido. Uma grande parte da população branca pobre do Sul e de São Paulo, que corresponde a cerca de 60% dessas regiões, compartilha dessa visão pobre de direita, enquanto os 20% que são ricos acabam por não contar tanto na dinâmica social. Esse racismo, sob suas diversas formas, é fundamental para entender como essas pessoas classificam e avaliam o mundo, e ele está no cerne das divisões sociais e políticas do país.

Fora o ressentimento, o que você identificou como similar entre esses pobres de direita brancos e negros ou mestiços?

A semelhança entre os pobres de direita, sejam eles brancos, negros ou mestiços, está profundamente relacionada com uma necessidade essencial de reconhecimento, algo que a literatura neohegeliana explora bastante. A necessidade de ser reconhecido é uma das mais prementes, especialmente para aqueles que vivem à margem. Nós, da classe média, não experimentamos esse tipo de humilhação constante. Para entendê-los, é preciso se colocar no lugar deles, e isso significa compreender o sofrimento diário que essas pessoas enfrentam. A humilhação, para essas pessoas, não é algo pontual – é uma constante, algo que molda sua vida 24 horas por dia. É como se até nos sonhos a humilhação continuasse, porque o material dos sonhos é o que vivemos durante o dia. Imagine alguém que precisa passar três horas em um ônibus para chegar em casa. Isso é um exemplo claro de uma experiência diária de humilhação. Essas pessoas estão imersas nesse ciclo de desvalorização e dor.

E o que alguém que vive assim deseja?

Escapar. Nem que seja por um momento, dessa condenação. Aí entra o papel de um líder ou de uma ideologia que oferece uma saída simbólica. Alguém chega e diz: “Você é melhor porque é hétero, porque não é gay.” Isso, de repente, se transforma em uma boia de salvação. Por um instante, aquela pessoa que se sente constantemente humilhada encontra algo que a faz se sentir digna, respeitada. Isso é o que chamo de manipulação das vulnerabilidades do pobre. Quando você explora essa necessidade de reconhecimento, você está oferecendo uma fuga temporária da humilhação. A extrema-direita entendeu isso há muito tempo e usa esse conhecimento para captar essas pessoas, jogando com seus anseios e frustrações de maneira calculada.

O que diferencia os pobres de direita brancos, negros e mestiços?

O que diferencia é que a situação do negro é muito pior. A diferença está no nível de exclusão que cada um enfrenta. No caso do negro, a situação é significativamente pior. Para entender isso, é preciso lembrar que a hierarquia social que discutimos coloca as pessoas em diferentes níveis de reconhecimento, especialmente no trabalho. Algumas, geralmente da classe média ou da parte superior da classe trabalhadora, conseguem um certo reconhecimento, uma sensação de que seu trabalho é valorizado, que têm um papel na sociedade. No entanto, há aqueles que ficam para trás – seja por razões de classe, de família, ou ambos.

Por exemplo?

O branco pobre, por exemplo, pode perceber sua exclusão como uma diminuição de seu valor. Ele vê outros brancos que têm acesso à educação, aos cargos mais altos e ao capital, e essa comparação o fere, porque ele acredita que, como branco, ele deveria estar num patamar melhor. Seu ressentimento nasce dessa crença: ele se vê como alguém que deveria ocupar um lugar de destaque, mas não consegue. Agora, o caso do negro é muito mais grave. A luta dele não é apenas por melhores oportunidades econômicas ou sociais; é uma luta para ser reconhecido como humano, algo básico. O negro enfrenta uma negação constante de sua própria humanidade, de seu direito de existir no mundo. Ele precisa lutar, diariamente, para afirmar que tem o direito à vida, algo que o branco pobre já presume ter. A base do ressentimento do branco pobre é a perda de um status que ele acredita que deveria ter, enquanto o negro nem sequer é considerado parte da estrutura de poder e reconhecimento desde o início.

Em outras palavras?

O branco pobre se sente deslocado de um lugar que acha que deveria ocupar, enquanto o negro luta para ser minimamente reconhecido como parte da sociedade. Esse é o nível mais profundo da exclusão racial no Brasil: o branco pobre ainda tem um lugar presumido no mundo, mesmo que inferior ao de outros brancos. Já o negro é constantemente negado, em múltiplas esferas, de seu direito de existir com dignidade.

Você afirma “Nunca foi a economia, tolinho!”, em contraste com a famosa frase “É a economia, estúpido!”. Como dizer isso, considerando que governos caíram por causa de mau desempenho econômico (Collor e Dilma), ao mesmo tempo que Lula, mesmo com a questão do Mensalão, conseguiu se reeleger e terminar seu segundo mandato com altíssima popularidade?

Isso é uma questão filosófica fundamental. Eu entendo a economia como economia política. Quando você pensa em economia política, já está envolvendo moralidade. A forma como se distribui e produz bens tem uma dimensão moral que geralmente não é visível. O que as pessoas enxergam é a economia como um conjunto de números e fatos isolados, mas isso não é a verdade completa. Por exemplo, a Dilma começou a ser atacada em 2012, quando a economia ainda estava indo bem, porque ela tentou cortar pela metade a taxa de juros e vinha reduzindo a taxa há anos. Isso não é sobre economia pura, é política. E política sempre está ligada à moralidade, questões éticas, sociais. Então, quando digo “nunca foi a economia”, é porque a economia em si, como algo neutro e imutável, não existe. Isso é uma ilusão criada para manter o sistema de dominação, para parecer que há uma ordem econômica natural que não pode ser questionada. A economia é política, e é por isso que tentar formalizá-la em equações e números não dá conta da realidade.

Você diz no livro que este extrato da população que hoje é identificada como pobres de direita já elegeu quatro vezes seguidas um partido de esquerda para presidir o Brasil. Três vezes, sob a pecha do Mensalão. Você identifica a Operação Lava Jato como um dos pontos de inflexão?

Sim. A Lava Jato foi o golpe que conseguiram consolidar. Tentaram antes, com o Mensalão, e não conseguiram. Naquela época, faltava organização, mas depois, os americanos decidiram treinar o pessoal. Surgiu em um pretexto de estudar e combater lavagem de dinheiro, mas, na verdade, era uma forma de capacitar agentes no Estado para enfraquecer governos de esquerda, que os Estados Unidos não queriam ver prosperar. Os Estados Unidos nunca toleraram projetos de democracia soberana na América Latina. Aí entra a aliança entre a elite norte-americana e a elite brasileira, que também tinha seus interesses. O governo estava começando a redistribuir uma parte mínima da renda e do orçamento público, o que, para essas elites, já era intolerável. A Lava Jato começou a ser gestada em 2007 e culminou em 2014, com a dobradinha entre o juiz Moro e o procurador Dallagnol. Ambos foram endeusados pela mídia, especialmente pela Rede Globo.

Não foi pela corrupção, foi pela política?

Como não conseguiram no voto, a Lava Jato foi o caminho encontrado para remover o PT do poder. Por meios extraeleitorais, usando o sistema jurídico como arma política. No Brasil, a Lava Jato teve o objetivo de desmantelar o projeto de desenvolvimento iniciado por Getúlio Vargas e retomado por Lula, a construção de uma indústria nacional, baseada em petróleo, gás e infraestrutura. Refinarias foram abandonadas, passamos a exportar o petróleo cru e depender dos produtos refinados de fora. A Lava Jato foi o mensageiro desse pacto entre a elite nacional anti-industrial e os interesses americanos, que não queriam ver o Brasil se industrializar. E, quando o objetivo foi cumprido, a operação praticamente se extinguiu.

Fale sobre esta elite brasileira anti-industrial.

A elite brasileira é anti-industrial no sentido de que nunca foi realmente empreendedora. Nunca foi elite. A questão dessa gente sempre foi roubar o Estado. É subsídios para quem não precisa; é o rentismo. Em vez de promover investimentos que impulsionem a economia, o foco é “mamar” o orçamento público. Mais da metade dos recursos do governo vai para uma pequena elite que detém os títulos da dívida pública, uma dívida que, na verdade, é obscura e nunca foi aplicada em benefícios concretos para o país.

Uma dívida, aliás, que todo mundo paga.

O grande problema é que a população paga por algo que nem entende. É uma dívida que, em boa parte, pode ser fraude. O Equador, por exemplo, fez uma auditoria e descobriu que 70% da sua dívida era fraudulenta. Quem estuda a dívida pública brasileira sugere que essa fraude pode chegar a 90% aqui. É uma estrutura de saque montada pela elite que tem o controle do Banco Central, o apoio de figuras políticas como o presidente da Câmara, Arthur Lira, e a imprensa sob seu domínio. Ou seja, ou eles são donos dos veículos de mídia, ou são seus maiores anunciantes. Assim, controlam o discurso que chega à maioria da população. Com o Banco Central nas mãos, com políticos e a mídia no bolso, a elite faz o que quer, manipulando a economia de acordo com seus próprios interesses.

Você vê formas de sair desta armadilha que acabou criando o pobre de direita?

Essa questão é a de um bilhão de dólares. Para sair dessa armadilha, é preciso criar uma contra-hegemonia, como diria o velho Gramsci. Ele percebeu que o poder não é apenas material, mas fundamentalmente ideológico. São as ideias que moldam o comportamento e tornam certas realidades aceitáveis. Nesse sentido, a mudança não vem apenas por confrontar a estrutura material, mas por disputar a narrativa, o controle das ideias. Hoje, o problema é que não há um esforço coordenado para apresentar uma visão alternativa da sociedade. As publicações, os meios de comunicação, são tratados como se não fossem tão importantes. Falta uma estratégia clara para fazer com que essas ideias alternativas cheguem às pessoas. Pode ser por rádios comunitárias, iniciativas locais, qualquer meio que agregue. O grande drama é que parece que as pessoas nem percebem a urgência disso.

Qual a dimensão desse drama?

Quando as ideias dominantes se tornam naturalizadas, quase não há questionamento. A religião fundamentalista, por exemplo, entra nesse jogo e, podendo até se diferenciar de figuras como Bolsonaro, no fundo, continua apoiando interesses de privatização, juros altos e políticas que beneficiam uma minoria. E quem vai desmascarar essa realidade para as pessoas? Quando o mundo é falseado e essa falsa realidade se impõe como a única possível, as barreiras ficam quase que intransponíveis.

 

Como os Brics podem desafiar o dólar, por Paulo Nogueira Batista Junior

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Sistema monetário comandado pelos EUA tornou-se obsoleto e disfuncional; além de injusto, é claro. Mas substituí-lo exige determinação e criatividade políticas. Quais os obstáculos. Como superá-los. Por que a transição é imprescindível

Paulo Nogueira Batista Junior – 18/10/2024 – OUTRAS PALAVRAS –

Os BRICS vêm discutindo há algum tempo a possibilidade de construir arranjos alternativos ao dólar norte-americano e ao sistema de pagamentos ocidentais. A atual ordem – mais correto seria dizer desordem – monetária e financeira internacional, dominada pelos Estados Unidos e seus aliados, se mostra crescentemente disfuncional e insegura. O sistema foi transformado em arma geopolítica para aplicação de sanções, punições e confiscos.

Nas últimas semanas, estive em Moscou e participei de três debates sobre essa temática, em eventos precursores da cúpula dos líderes dos BRICS, que ocorrerá em Kazan, na Rússia, de 22 a 24 de outubro. Tento fazer aqui um resumo das conclusões a que cheguei.

O desafio para os BRICS é, antes de tudo, político. Os americanos sempre foram apegados ao que De Gaulle, nos anos 1960, chamava de “privilégio exorbitante” dos Estados Unidos – entendido, em resumo, como a capacidade de pagar suas contas e dívidas simplesmente emitindo moeda. Os EUA não hesitam em acionar os aliados e clientes que possuem em outros países para minar iniciativas desse tipo.

China, Rússia e Irã não são provavelmente muito vulneráveis a esse tipo de pressão. Mas o mesmo não pode ser dito de outros países dos BRICS. Até Beijing pode hesitar em comprar essa briga com Washington.

O desafio também é técnico. Construir um sistema monetário e financeiro alternativo requer trabalho árduo e especializado, bem como negociações prolongadas e difíceis. Somos capazes de realizar isso? Acredito que sim. Mas será que fizemos progresso desde que o assunto ganhou as manchetes? Algum progresso foi feito, mas menos do que se poderia esperar.

Sob a presidência russa dos BRICS, em 2024, houve tentativas parcialmente bem-sucedidas de avançar. Por exemplo, foi criado um grupo de especialistas independentes, do qual faço parte, que discutiu a reforma do sistema monetário internacional e a possibilidade de uma moeda dos BRICS. O conhecido economista americano Jeffrey Sachs é parte desse grupo. Mais importante do que isso: a Rússia preparou uma proposta detalhada para um sistema alternativo de pagamentos transfronteiriços baseado em moedas nacionais – um passo importante na direção de um novo arranjo monetário e financeiro internacional.

Até agora, no entanto, poucos avanços foram feitos no que diz respeito à questão mais fundamental, que seria criação de uma nova moeda como alternativa ao dólar. E mesmo a discussão da proposta russa de um novo sistema de pagamentos ainda é incipiente. O Brasil exercerá a próxima presidência dos BRICS em 2025 e terá a oportunidade de coordenar a discussão, aprofundar a proposta da Rússia e preparar novos passos.

 Limites às transações em moedas nacionais e sistemas de pagamento alternativos

O sistema de pagamentos SWIFT, controlado pelos EUA e aliados, é usado sistematicamente como instrumento para punir e ameaçar países e entidades vistas como hostis ou pouco amigáveis. Bancos desses países são sumariamente excluídos do sistema, como aconteceu com a Rússia. Mesmo outros países podem sofrer sanções secundárias, quando procuram transacionar com países ou entidades sancionadas. Por isso, o progresso feito durante a presidência russa na elaboração de alternativas ao SWIFT é, sem dúvida, uma iniciativa muito bem-vinda, que avança na direção de nos livrar da dependência excessiva das moedas e dos sistemas de pagamento ocidentais. Também vêm avançando as transações bilaterais em moedas nacionais entre os BRICS e entre os BRICS e outros países. Crescem, além disso, os swaps bilaterais em moedas nacionais entre bancos centrais, primordialmente com o banco central da China.

Contudo, deve-se reconhecer que transações em moedas nacionais e as alternativas ao SWIFT têm suas limitações. A questão essencial, nem sempre bem compreendida, é que a existência de uma moeda de reserva alternativa constitui, em última análise, uma pré-condição para que a desdolarização funcione plenamente. A razão reside no fato de que apenas acidentalmente haverá um equilíbrio nas transações bilaterais em moedas nacionais. Uma moeda de reserva internacional alternativa é necessária para permitir que os países registrem superávits e déficits ao longo do tempo. Na ausência disso, os países têm que recorrer a esquemas custosos equivalentes a escambo – ou então voltar ao dólar americano e outras moedas tradicionais, o que derrotaria todo o propósito do exercício.

Um exemplo. A Rússia tem um superávit substancial com a Índia. O comércio e outras transações são realizados principalmente em moeda nacional. Portanto, a Rússia vem acumulando grandes estoques de rúpias. O banco central russo pode não querer manter essa moeda permanentemente em suas reservas, talvez porque a rúpia não seja totalmente conversível e haja dúvidas sobre sua estabilidade. Quais são as suas opções? A Rússia pode tentar dispor desses excedentes em rúpias buscando oportunidades de investimento na Índia ou fazendo um esforço adicional para comprar bens e serviços indianos. Mas isso pode ser difícil e demorado. Ela também pode usar essas rúpias em terceiros países que tenham interesse em obter moeda indiana devido a proximidade econômica com a Índia. Mas isso também pode ser difícil, levando a vendas de rúpias com desconto. Essas alternativas são claramente second-best ou third-best e remetem ao sistema antiquado de escambo, no qual os agentes econômicos trocavam bens e serviços bilateralmente e saíam à cata de terceiros para se desfazer de mercadorias indesejadas e obter em troca mercadorias desejadas. Foi precisamente para evitar esse sistema ineficiente que o dinheiro foi criado para servir como meio de pagamento, padrão comum de valor e instrumento para manutenção de reservas. Pelas mesmas razões, os BRICS precisam de uma nova moeda de reserva como alternativa ao dólar dos EUA e outras moedas tradicionais de reserva.

Uma nova moeda de reserva – a NMR

Como poderia ser essa nova moeda? Existem várias possibilidades. Vou tentar apresentar, de maneira sintética, um caminho que me parece promissor. Para uma explicação um pouco mais completa, remeto ao trabalho que preparei para um dos eventos em Moscou (“BRICS: Geopolitics and monetary iniciatives in a multipolar world – how could a new internacional reserve corrency look like? 23 de setembro de 2024 (https://www.nogueirabatista.com.br/).

Vamos chamar essa nova moeda de NMR, sigla para “nova moeda de reserva”. Um nome anterior interessante era R5, proposto por economistas russos quando eram cinco os países membros dos BRICS e todas as suas moedas começavam com a letra R. No entanto, esse nome ficou prejudicado, pois alguns dos quatro novos membros possuem moedas cujos nomes não começam com a letra R. Não é algo tão importante, claro. Poderíamos chamá-la então de moeda BRICS ou BRICS+? Infelizmente, não. E esse ponto é importante: alguns dos países dos BRICS parecem se opor à ideia, sendo a Índia um exemplo notável. Isso representa uma grande barreira, mas pode ser contornada, como veremos mais adiante.

A NMR poderia ter as seguintes características. Não seria uma moeda única, que substituiria as moedas nacionais dos países participantes. Não seria, portanto, uma moeda semelhante ao euro, emitida por um banco central comum. Seria uma moeda paralela, projetada para transações internacionais. As moedas nacionais e os bancos centrais continuariam a existir em seus formatos atuais. Não haveria perda de soberania e nem mesmo necessidade de coordenar as políticas monetárias.

A NMR não teria existência física na forma de papel-moeda ou moeda metálica. Seria uma moeda digital, análoga às MDBCs (moedas digitais de bancos centrais – CDBCs em inglês) que estão sendo criadas em vários países.

Vale notar, de passagem, que o formato digital substitui em grande parte o papel tradicional dos bancos como intermediários e criadores de meios de pagamento. As MDBCs e a NMR reduziriam o papel dos bancos, desde que não se estabeleça que seu uso ficaria vinculado à posse de uma conta bancária.

Os países participantes poderiam constituir um banco emissor – vamos chamá-lo de NAMR, a Nova Autoridade Monetária de Reserva – que seria responsável por criar NMRs e também por emitir títulos – podemos chamá-los de NTRs, novos títulos de reserva – nos quais a nova moeda seria livremente conversível. Os NTRs seriam por sua vez integralmente garantidos pelos Tesouros nacionais dos participantes.

Um primeiro passo na direção da NMR poderia ser a criação de uma unidade de conta na forma de uma cesta de moedas em que o peso das moedas dos países participantes corresponderia à sua participação no PIB do grupo. O renminbi da China teria o maior peso na cesta, digamos 40%; Brasil, Rússia e Índia, 10% cada; e os 30% restantes poderiam ser divididos entre a África do Sul, Egito, Etiópia, Irã e Emirados Árabes Unidos – admitindo-se que todos os BRICS venham a participar. Essa nova unidade de conta seria uma ponte para a nova moeda.

Bem, esse passo relativamente simples, aventado há muitos anos por economistas russos, já poderia ter sido dado. A razão para o lento progresso parece ser a falta de consenso. Há relatos de que a Índia e a África do Sul, presumivelmente por razões políticas, são contra a ideia. A Índia – e isso é apenas uma conjectura – pode não querer desagradar aos EUA em uma questão tão crucial. Talvez porque sinta que pode precisar do apoio americano caso haja uma deterioração nas já tensas relações com a China. O Brasil, ressalto de passagem, também não é invulnerável a dificuldades análogas. Na sociedade brasileira, inclusive dentro do governo Lula, há muitos que se identificam com os EUA e têm laços com círculos empresariais e governamentais americanos.

Espero que essas vulnerabilidades e as tensões entre China e Índia sejam superadas. Enquanto isso, cabe perguntar se não poderíamos avançar com base em uma coalizão de países aptos e dispostos. A NMR poderia perfeitamente ser criada por um subconjunto dos BRICS. Os outros se juntariam mais tarde. Isso é recomendável, na minha opinião, mas esbarra na arraigada tradição de consenso dos BRICS, que marca a atuação do grupo desde o seu início em 2008. No entanto, se nos apegarmos a essa tradição, o meu receio é que não se chegue a lugar algum.

A alternativa a algo como a NMR seria a substituição gradual do dólar americano pelo renminbi chinês, a moeda da potência emergente. Isso já está acontecendo, em certa medida. Mas parece duvidoso que se possa avançar muito por essa via. Não se deve perder de vista que a potência emergente é um país de renda média. Tem vulnerabilidades e preocupações não necessariamente presentes nos EUA e em outras nações de alta renda.

O que quero dizer é que, no caso da China, o “privilégio exorbitante” poderia se tornar um “fardo exorbitante”. Em outras palavras, ela teria provavelmente dificuldade de atender certos pré-requisitos para que o renminbi possa se estabelecer como moeda internacional em grande escala. A China estaria disposta, por exemplo, a tornar o renminbi plenamente conversível? Consideraria abandonar as restrições à conta de capital e os controles cambiais que protegem a economia chinesa da instabilidade das finanças internacionais? Aceitaria a apreciação cambial decorrente do aumento da demanda por renminbi como ativo internacional? Essa apreciação não prejudicaria a competitividade internacional e o dinamismo da economia chinesa? É claro que a tendência à apreciação poderia ser contida pela venda de renminbi e acumulação de reservas internacionais adicionais. Mas onde a China aplicaria essas reservas adicionais? Em ativos denominados em dólar, euro ou iene? De volta à estaca zero.

Portanto, os BRICS. ou um subconjunto de países dos BRICS, devem se preparar para criar uma nova moeda de reserva, que poderia ser um divisor de águas nos assuntos monetários e financeiros globais. Paralelamente, deveriam continuar com a expansão das transações internacionais em moedas nacionais e iniciar a construção de um sistema de pagamento alternativo ao SWIFT.

Os BRICS causarão decepção em todo o Sul Global se permanecerem no reino dos discursos, comunicados e proclamações sem avançar em iniciativas práticas inovadoras.

Paulo Nogueira Batista Júnior, Economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora Leya, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata.