Mesmo com poucos dados da época, é possível perceber que existem paralelos surpreendentes com os dias de hoje
The Economist, O Estado de S. Paulo / 20 de dezembro de 2020
Sally Brown, que nasceu em Vermont no início dos anos 1800, tinha uma rotina típica para uma trabalhadora da época.
Como mostra seu diário, um dia ela está terminando de fazer as meias; no outro, está ordenhando a vaca; no terceiro, tecendo lã. Todos os seus trabalhos eram feitos em casa.
A mudança dos escritórios para as mesas de cozinha das casas dos trabalhadores de colarinho branco em 2020 parece não ter precedentes e só foi possível com o Slack e o Zoom. Mas não é nada novo. Na verdade, a história do trabalho de casa sugere alguns paralelos surpreendentes com os dias de hoje.
O surgimento do capitalismo na Grã-Bretanha e em outros lugares de 1600 a meados do século 19 não ocorreu fundamentalmente nas fábricas, mas, sim, nas casas das pessoas. Em suas cozinhas ou quartos os trabalhadores faziam de tudo, de vestidos a sapatos e caixas de fósforos.
Quando Adam Smith escreveu A Riqueza das Nações em 1776 era perfeitamente comum trabalhar em casa. Smith descreveu a famosa operação da divisão do trabalho na fabricação de alfinetes, não em algum moinho escuro e infernal. Ele falou sobre uma “pequena manufatura” de umas dez pessoas – que poderia muito bem estar dentro ou anexada à casa de alguém.
Não é fácil estabelecer números exatos de quantas pessoas trabalharam em casa durante os diferentes períodos históricos. Até mesmo na Grã-Bretanha, onde os dados econômicos são mais extensos que em qualquer outro país, existem poucos dados confiáveis sobre a força de trabalho até meados do século 19. Mas outras fontes deixaram algumas pistas. Uma delas diz respeito ao significado da palavra house (casa, em inglês).
Hoje, o termo conota domesticidade. Mas, até o século 19, tinha uma definição muito mais ampla, com o sufixo – house abrangendo também a produção econômica. Em Uma Canção de Natal”, Scrooge trabalha numa counting-house, ou seja, uma “casa de contabilidade”. A arquitetura oferece outras dicas. Na Grã-Bretanha, muitas casas do século 18 ainda têm as janelas do andar superior excepcionalmente grandes, porque os tecelões que trabalhavam nesses espaços precisavam do máximo de luz possível.
Por volta de 1900, administradores franceses tomaram a iniciativa de perguntar às pessoas sobre seu local de trabalho, não apenas sobre o que faziam. Eles descobriram que um terço da força de trabalho industrial da França trabalhava em casa. Pesquisas dinamarquesas da mesma época revelaram que um décimo da mão de obra total o fazia em casa, em tempo integral.
Esses esforços de pesquisa ocorreram no auge do sistema de produção fabril; nas décadas anteriores, a parcela de trabalho realizado em casa deve ter sido muito maior. De acordo com uma estimativa feita para os Estados Unidos, a partir de dados oficiais, mais de 40% da mão de obra total trabalhava em casa no início do século 19. Somente em 1914 a maioria da força de trabalho passou a trabalhar em fábricas ou escritórios.
O surgimento dessa mão de obra industrial trabalhando de casa teve duas causas principais. O crescimento do comércio global e o aumento da renda per capita a partir de 1600 aumentaram a demanda por produtos manufaturados, como lãs e relógios. Mas a nova tecnologia emergente era mais adequada para o trabalho em pequena escala do que para as fábricas de grande escala (o tear jenny, a máquina que disparou a revolução industrial, só foi inventada na década de 1760). As casas eram o lugar óbvio para se estar.
O que surgiu foi chamado de “sistema putting-out”, ou sistema de produção domiciliar. Os trabalhadores retiravam matérias-primas e, às vezes, equipamentos de um depósito central. Eles voltavam para casa e produziam as mercadorias por alguns dias, antes de devolver os artigos prontos e receber o pagamento. Os trabalhadores eram contratados independentes: recebiam por peça, não por hora, e tinham pouca ou nenhuma garantia de trabalho de uma semana a outra.
Os relatos de como era trabalhar em casa nos séculos 18 e 19 são poucos e esparsos. Boa parte da força de trabalho do sistema putting-out era constituída por mulheres, que tinham menos chance de escrever autobiografias (o predomínio de mulheres no sistema putting-out também explica por que gerações de historiadores não lhe deram muita atenção).
Apesar disso, algumas características emergem dos arquivos. A jornada média de trabalho era mais longa. Ao contrário dos dias de hoje, quando a maioria das pessoas tem emprego, as pessoas saltavam de um trabalho a outro, dependendo de onde podiam ganhar dinheiro, como Sally Brown.
Com os dedos cansados e feridos
Alguns historiadores da economia sugerem que os trabalhadores eram impiedosamente explorados sob o sistema putting-out. Aqueles que possuíam as máquinas e matérias-primas gozavam de enorme poder sobre seus empregados. Com os trabalhadores espalhados por todo um condado, era difícil que eles se unissem contra patrões exploradores para exigir melhores salários – quanto mais formar sindicatos.
Os chefes “podiam facilmente se unir contra o fiador, que enfrentava uma oferta de trabalho do tipo pegar-ou-largar”, argumentam Jane Humphries e Ben Schneider, da Universidade de Oxford, em um artigo de 2019. Alguns trabalhadores realmente enfrentaram dificuldades. O poema de Thomas Hood “The Song of the Shirt” evoca uma trabalhadora que labuta na pobreza.
Como resultado, alguns historiadores aplaudem o desenvolvimento do sistema fabril a partir do final do século 18. Os trabalhadores se mudaram de um lugar onde a vida doméstica se misturava livremente à produção econômica para um lugar exclusivamente dedicado à busca da eficiência.
Não é de surpreender que a produtividade do trabalho fosse mais alta na fábrica, nem que o sistema fabril aos poucos tenha superado e substituído o sistema putting-out. Amontoados na fábrica, os trabalhadores podiam se juntar para pedir salários mais altos; e os sindicatos começaram a crescer a partir da década de 1850. Segundo dados ingleses, os trabalhadores fabris recebiam de 10 a 20% mais do que os trabalhadores que trabalhavam em casa.
Mas a história não para por aí. Alguns trabalhadores que trabalhavam em casa resistiram à mudança para o sistema fabril – sobretudo se unindo aos Luditas, uma sociedade de trabalhadores têxteis ingleses do século 19 que destruíam máquinas, pois sentiam que elas estavam tomando seu trabalho. Outra explicação é que os proprietários das fábricas, pelo menos no curto prazo, tiveram pouca opção a não ser oferecer salários mais altos para atrair os trabalhadores de suas casas. Isto sugere que trabalhar em casa tinha suas vantagens.
Uma dessas vantagens era econômica. Os trabalhadores que trabalhavam em casa talvez recebessem menos que os trabalhadores fabris, mas podiam ganhar renda por outros meios. Os trabalhadores de casa da indústria de lã recebiam uma determinada quantidade de matéria-prima e precisavam devolver o mesmo peso do material transformado em meias. Mas, ao expor a lã ao vapor, ela pesava mais, permitindo que os trabalhadores ficassem com uma parte da matéria-prima.
Esta não era a única vantagem. Trabalhadores que trabalhavam em casa nas áreas rurais ou semirrurais podiam obter lenha e alimentos e, assim, aumentar suas rendas escassas. Em 1813, um observador notou, com desdém, que as mulheres em Surrey, condado próximo a Londres, ganhavam 3 xelins por semana lavrando brejos para fazer vassouras – “produções miseráveis e empregos sem valor”, em sua opinião. Mas 3 xelins por semana não estava muito longe da média de ganhos femininos na época.
Os trabalhadores que trabalhavam em casa também tinham mais controle sobre seu tempo. Contanto que o trabalho fosse realizado de acordo com o padrão exigido e dentro do prazo, eles não eram obrigados a fazê-lo de determinada maneira. Isto contrastava fortemente com a fábrica, onde cada aspecto da vida era planejado com antecedência e os trabalhadores eram monitorados de perto.
E os trabalhadores de casa podiam decidir a combinação exata entre trabalho e lazer – em contraste com os trabalhadores fabris, que ou trabalhavam as jornadas de 12 ou 14 horas estipuladas pelo proprietário da fábrica, ou não tinham trabalho nenhum. A jornada de trabalho média no século 18 era mais curta do que viria a ser no século 19. Depois de beber um tanto na noite de domingo, os trabalhadores domésticos muitas vezes tiravam o dia de folga antes de voltarem “relutantemente ao trabalho na terça-feira, aquecerem-se para a labuta na quarta-feira e trabalharem furiosamente na quinta e na sexta-feira”, como escreveu David Landes, historiador da economia da Universidade de Harvard. As pessoas também dormiam mais.
Essa maior autonomia era especialmente importante para as mães. Num mundo em que os homens pouco faziam no trabalho familiar, as mulheres podiam combinar o cuidado dos filhos com a contribuição para a renda da família. Não era nada fácil. Às vezes, as mulheres davam a seus bebês o Godfrey’s Cordial, uma mistura de xarope de açúcar e láudano, para deixá-los desacordados por um tempo. Mas trabalhar de casa possibilitava conciliar o trabalho remunerado com o trabalho familiar de uma forma que o sistema fabril não permitia. Com a expansão das fábricas, a participação feminina na força de trabalho caiu.
Em 1920, o sociólogo alemão Max Weber argumentou que a separação do trabalhador de sua casa teve consequências de “alcance extraordinário”. A fábrica era mais eficiente que o sistema doméstico que a precedeu – mas também era um espaço em que os trabalhadores tinham menos controle sobre suas vidas e onde se divertiam muito menos. Dependendo de quão permanente seja, a mudança de volta para casa induzida pela pandemia de hoje pode ter efeitos de longo alcance semelhantes. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU