Desigualdade não é algo novo, mas atacá-la tornou-se urgente para Pequim
Tatiana Prazeres – Folha de São Paulo, 05/02/2021
Se os 400 bilionários da China continental formassem um país, ele seria a 8ª economia do mundo. Seu PIB seria maior que o do Brasil. Sim, são 400 pessoas com a riqueza superior a de 210 milhões de brasileiros.
Em 2020, esses bilionários viram sua fortuna crescer US$ 750 bilhões (R$ 4 trilhões), um aumento espantoso de 60% em relação a 2019, segundo a Forbes. De longe, a China foi o país onde os ricos se tornaram ainda mais ricos.
Hoje, às vésperas do feriado do Ano-Novo chinês, as filas em frente às lojas de luxo em Pequim são apenas o sinal mais visível desse fenômeno.
O contraste é também de espantar. Com uma população de 1,4 bilhão de habitantes, a China tem 600 milhões de pessoas vivendo com até US$ 150 (R$ 815) por mês, como lembrou o primeiro-ministro Li Keqian no ano passado.
De fato, se o crescimento na China foi acelerado, o aumento da distância entre a base e o topo da pirâmide o também o foi.
Em 2017, o economista francês Thomas Piketty notou que, no passado, o nível de desigualdade na China era próximo ao dos países nórdicos. Claro, os chineses eram, digamos, igualmente pobres.
A questão é que, com o tempo, a desigualdade foi se aproximando do nível dos EUA. Segundo Piketty, os 10% do topo da pirâmide tinham 41% da riqueza nacional em 2015, mas detinham apenas 27% em 1978. (No Brasil, os 10% possuíam 42,5% em 2018, segundo o Banco Mundial.)
Pelas contas de Pequim, a pobreza não é exatamente um problema na China desde o fim de 2020. Com isso, atacar a desigualdade e expandir a classe média ganharão importância entre as prioridades nacionais.
No ano passado, Xi Jinping falou claramente na necessidade de distribuir os frutos do crescimento de forma mais justa. Na semana passada, voltou a falar sobre disparidade de renda e diferença entre campo e cidade, possivelmente o maior desafio na distribuição de riqueza no país.
A desigualdade não é algo novo, mas atacá-la tornou-se urgente para a China porque diminuir a brecha da riqueza tornou-se um imperativo econômico. Pelo novo plano quinquenal, o governo pretende estimular o crescimento da economia por meio de consumo doméstico. No entanto, a concentração excessiva de renda limita a expansão do mercado de consumo.
Como em outras partes do mundo, a pandemia agravou a desigualdade. Trabalhadores migrantes foram especialmente prejudicados. A recuperação econômica foi rápida – mas não balanceada. Os bilionários, como indica a Forbes, saíram muito à frente.
“Devemos deixar que alguns fiquem ricos primeiro”, é uma frase de Deng Xiaoping citada com frequência. Deng completou: “para que todos atinjam a prosperidade depois” —mas essa parte nem sempre é lembrada.
De fato, a China não teria chegado aonde chegou se quisesse fazer subir igualmente todos os barcos ao mesmo tempo. No entanto, como lembrava Deng, ricos e super-ricos deveriam servir de alavanca para a renda dos demais.
Não pega bem para um país que se diz socialista, comandado por um partido comunista, deter o título de uma das sociedades mais desiguais do mundo. Além de constituir um imperativo ético e uma necessidade econômica, o combate à desigualdade é uma questão de legitimidade para o modelo político chinês.
Desigualdade receberá mais atenção agora que os pobres são ex-pobres. E os bilionários, mais bilionários que nunca.
Tatiana Prazeres
Senior fellow na Universidade de Negócios Internacionais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheira sênior na direção-geral da OMC.