Para Vandana Shiva, gigantes da tecnologia promovem ideia de que natureza precisa ser derrotada
Lígia Mesquita – Folha de São Paulo, 15/09/2020
Há uma nova colonização em andamento realizada pela chamada Big Tech (Amazon, Apple, Google, Facebook), movida pelo combustível da coleta de dados, rezando a um deus chamado tecnologia para fincar suas bandeiras num território chamado mente humana.
Para a indiana Vandana Shiva, 67, doutora em física quântica e uma das ambientalistas mais conhecidas no mundo essa “colonização da mente” pelo modelo de negócio das gigantes de tecnologia perpetua uma visão de mundo que enxerga a natureza como algo a ser derrotado e conquistado. Shiva enxerga a pandemia de coronavírus como um problema ecológico e diz que a nossa saúde está ligada à da natureza.
Uma das vozes atuais mais críticas da economia digital, a qual define como um modelo do “capitalismo de vigilância”, Shiva combate, há anos, a agricultura industrializada e o “cartel do veneno”, formado pelas multinacionais de agrotóxicos.
Expoente do movimento antiglobalização e precursora do ecofeminismo, que vê uma associação entre a degradação da natureza e a marginalização das mulheres, Shiva foi conferencista do ciclo Fronteiras do Pensamento, cujo tema de 2020 é “Reinvenção do humano”.
A ambientalista já esteve muitas vezes no Brasil e chegou a visitar a Amazônia com a então ministra do Ambiente Marina Silva. Vê com preocupação a gestão ambiental do governo Jair Bolsonaro. Segundo ela, políticas que promovem a destruição do ambiente são uma operação militar, uma guerra, e não algo cultural.
A pandemia pode ser um ponto de inflexão para a urgência de políticas pró-sustentabilidade? Nossa relação com a natureza mudará?
É incerto se nossa relação com o mundo natural mudará, ou se a visão de mundo cartesiana, baconiana, baseada na separação e conquista da natureza, se intensificará e nos levará ao precipício. Por um lado, você tem uma maior consciência de que a pandemia é um problema ecológico. Corona, zika, ebola, Sars e boa parte das novas epidemias de doenças infecciosas são resultado da invasão de ecossistemas florestais. Os riscos de mortalidade aumentam, porque o mesmo modelo de agronegócio de agricultura industrializada e globalizada que está levando às queimadas da Amazônia para a plantação de soja transgênica também cria doenças crônicas. E o mesmo modelo é responsável por 50% das emissões de gases de efeito estufa. Ver essas múltiplas crises como interrelacionadas também cria um imperativo para reconhecer que fazemos parte da natureza e que a violência contra ela retorna como um dano à humanidade na forma de pandemias e mudanças climáticas.
Por outro lado, as Big Tech [Amazon, Apple, Facebook e Google] se baseiam na visão de mundo de que devemos derrotar e conquistar a natureza. E estão pressionando para a agricultura digital, o que significa mais soja transgênica, mais queimadas na Amazônia, mais pandemias, mais pessoas doentes. Nossa saúde está ligada à saúde do planeta.
Você já disse que a nova etapa colonial é a da “colonização da nossa mente”. Poderia explicar?
Na primeira colonização das Américas, o cristianismo foi definido como a missão civilizadora para justificar a apropriação dos recursos. No colonialismo britânico, o comércio e o mercado foram transformados em religião, o que justificou toda a violência em nome de se ganhar dinheiro. Hoje, as ferramentas das Big Tech são para a colonização. A imposição delas à sociedade feita sem avaliação, debate e escolha democrática se justifica com o tratamento de nova religião dado à tecnologia, que pode destruir as economias e nossa humanidade e liberdade.
Como isso se dá?
A colonização em andamento é a colonização de nossas mentes em três níveis. Nossas mentes estão sendo colonizadas para deixar de ver a tecnologia como uma ferramenta e passar a enxergá-la como uma nova religião, que nos torna “civilizados”. Em segundo lugar, a matéria-prima para a revolução digital é o Big Data, o novo “petróleo”. Esses dados são extraídos de nossos corpos e mentes como a próxima matéria-prima. Os Googles, Microsoft, Facebooks, Apples e Amazons são exploradores e mineradores de dados. Eles são os “Barões Ladrões” de hoje, como Rockefeller [o americano barão do petróleo John. D. Rockefeller] e sua Standard Oil eram há cem anos. Finalmente, a colonização da mente inclui a manipulação de nossos pensamentos e comportamento para fins comerciais e políticos. A economia está se tornando uma economia de “capitalismo de vigilância”.
Há economistas defendendo que programas de investimento sustentável podem recuperar a economia pós-pandemia e combater a mudança climática. Como derrubar a crença de que desenvolvimento sustentável não é bom para a economia?
Precisamos de um novo Acordo Verde. A primeira coisa que precisamos é parar as invasões em nossas terras e comunidades e reconhecer que a economia global impulsionada pelas corporações é a recolonização baseada no ecocídio e no genocídio. Isso deve ser reconhecido como crime e contido. E parte dessa mudança inclui o reconhecimento de que ganhar dinheiro não é “economia”. A economia é derivada da Oikos [em grego, ‘oikos’ (eco) significa casa; a junção com o sufixo ‘nomos’ (nomia), que significa lei/ordem, fez surgir a palavra economia] e significa o gerenciamento e cuidado de nossa casa, incluindo o planeta como nossa casa comum. Devemos voltar para casa, para a Terra e repensar a maneira como organizamos nossas economias.
Como analisa a afirmação do presidente brasileiro de que o desmatamento e as queimadas “nunca terminarão” porque são algo cultural?
Destruição da natureza e desmatamento não são uma “cultura”. É uma guerra, uma operação militar. E a maioria dos governos está usando a pandemia para acelerar a guerra contra a Terra para criar oportunidades para seus amigos corporativos financiarem suas eleições e ajudá-los a permanecer no poder. É por isso que a globalização foi usada para criar estados corporativos que durante a pandemia estão se transformando em estados de vigilância corporativa.
Como reinventar nossa relação com o planeta?
A mentalidade de estar separado da natureza tem apenas algumas centenas de anos, é parte do colonialismo. A reimaginação de que precisamos é reconhecer que somos parte da Terra, uma visão de mundo que os povos indígenas sustentam e que pode levar a uma reimaginação da humanidade. Os seres humanos estão sendo definidos como uma “tecnologia não aprimorada”, que precisa de um “upgrade” por meio de “nanopartículas e inteligência artificial”. A humanidade tem que escolher o que ser humano significa em um mundo pós-pandêmico. Dessa escolha depende o futuro de nossa espécie.
Vandana Shiva
Nasceu na Índia em 5 de novembro de 1952. Graduou-se em física na Universidade Panjab, em Chandigarh, e tem Ph.D. em filosofia pela Universidade de Western Ontario, Canadá. Tornou-se conhecida pelo ativismo antiglobalização e ambiental, tendo fundado a ONG Navdanya, que promove a biodiversidade de sementes, as plantações orgânicas e os direitos de agricultores. Recebeu em 1993 o Right Livelihood Award, conhecido como “Nobel alternativo”. Foi conferencista do Fronteiras do Pensamento em 2012.