Folha de São Paulo – 18/07/2020.
Não é preciso ser Piketty para saber quem ganha com a concentração de renda
O estado de bem-estar social, que teve sua origem na Europa, foi uma resposta direta à eclosão da “questão social”, no final do século 19. O medo da revolução, a preocupação em assegurar a coesão nacional, associada à crescente indignação com as condições de vida dos trabalhadores, levou liberais, progressistas e mesmo conservadores, como Bismarck, na Alemanha, a uma inesperada convergência. Era necessário transferir ao Estado maiores responsabilidades para regular a economia e propiciar a melhoria das condições de vida de uma massa de trabalhadores dilacerada pela Revolução Industrial.
Com a cisão entre sociais-democratas e marxistas, no início do século 20, e o afastamento dos democratas cristãos do fascismo, após a Segunda Guerra, a coordenação democrática dos conflitos distributivos, com o objetivo de gerar o pleno emprego e o bem-estar da população, tornou-se o modelo predominante nas economias desenvolvidas.
Esse consenso começa a esmorecer em meados dos anos 1980, em face de suas diversas contradições internas, mas também do fim da ameaça comunista e do surgimento de uma nova ideologia que se tornaria dominante entre as elites globais, pautada nas virtudes míticas do individualismo e do livre mercado.
Nosso ensaio social-democrático, expresso no pacto de 1988, surge, assim, no contrapé da história. A Constituição buscou substituir diversos arranjos sociais corporativistas e excludentes do período Vargas por políticas públicas baseadas em direitos universais à saúde, educação, assistência e previdência social, além de incorporar novas demandas como a proteção do meio ambiente e o reconhecimento de direitos de grupos vulneráveis e tradicionalmente discriminados.
A realidade demonstrou que não tem sido simples colocar em prática o compromisso de criar uma “sociedade mais livre, justa e solidária”, como previsto no artigo 3º da Constituição Federal. Apesar de avanços sensíveis em esferas como educação, saúde e assistência social, os beneficiários da desigualdade resistem na defesa de seus privilégios, subsídios, isenções, regressividades tributárias e outros achegos que, ao longo de décadas, foram sendo entrincheirados no ordenamento jurídico.
Nesse contexto o debate em torno do ajuste fiscal, desvinculação de receitas, reforma tributária e teto de gastos não pode ser tomado ingenuamente.
Se é imperativo controlar o déficit público para recuperar a capacidade de investimentos em educação, saúde, infraestrutura, segurança, pesquisa e tecnologia, essenciais ao bem-estar da população e à sustentabilidade da economia, não se deve esquecer da voracidade e competência comprovada do 1% e especialmente do 0,01% da população de se arvorar sobre recursos públicos ou reconfortar com um sistema tributário que lhe foi tecido sob medida.
Não é preciso ser nenhum Thomas Piketty para saber quem ganha e quem perde e quais mecanismos têm fortalecido uma obscena e persistente concentração de renda no Brasil. Basta abrir a janela ou olhar no espelho para saber.
Certamente não é a vinculação de receitas para investimentos em educação e saúde a principal responsável pelo desequilíbrio fiscal brasileiro, muito menos as despesas com mecanismos de assistência social.
Desvincular e lançar recursos hoje destinados aos mais pobres para que sejam livremente disputados na atroz arena do conflito distributivo brasileiro, chamada Orçamento, não será um passo rumo a liberação do Estado brasileiro, mas sim um salto em direção à consolidação de um perigoso estado de mal-estar social.
Oscar Vilhena Vieira
Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.