Embates entre matéria e espírito numa sociedade em transformação

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Vivemos em uma sociedade dominada pelo poder do dinheiro, numa sociedade onde os ideais econômicos e financeiros são colocados acima dos interesses espirituais e morais, na verdade estes interesses praticamente não existem nesta sociedade, neste mundo os valores dominantes controlam uma moral mercantilizada, compramos de tudo nesta sociedade marcada pelo hedonismo, pelos mais variados prazeres, relacionamentos relâmpagos e fúteis, carros luxuosos, casas maravilhosas, propriedades e amores, isto mesmo, vivemos em uma sociedade onde adquirimos amores, não tão efetivos e verdadeiros, mas compramos todos os amores que o dinheiro pode pagar, o mundo virou um grande negócio e somos negociados todos os dias, num destes dias valemos mais e em outros momentos valemos muito pouco, tudo dependerá da nossa cotação nos mercados.

A economia, como muitas das ciências, das artes e dos instrumentos de organização social, foram dominados, ou melhor, foram comprados pelo poder do dinheiro, que compra o pensamento e transforma o pensador em um sujeito vinculado aos ideais imediatistas do capital, utilizando mercadorias e produtos variados para satisfazer seus desejos de consumo e reprodução material, deixando de lado valores humanísticos, valores morais mais sólidos, valores que sustentam as relações sociais e garantem um processo de solidariedade entre os indivíduos.

A economia como ciência foi constituída pelo teórico escocês Adam Smith, quando em 1776 publica A Riqueza das Nações, nasce para satisfazer as necessidades dos seres humanos, todos somos dotados de necessidades, elas são ilimitadas. Para racionalizar estas necessidades precisamos compreender que os recursos existentes na sociedade são limitados e para servir a todos, faz-se necessário, distribuir um pouco para cada um, sem exageros e excessos todos podem usufruir dos benefícios econômicos, quando um dos grupos possui em demasia o outro grupo passa por privações e necessidades, criando constrangimentos e desigualdades.

Na sociedade contemporânea, o poder do capital destrói todos os setores que se aproxima, utilizando como justificativa a profissionalização destes setores, o dinheiro corrói as estruturas, influencia negativamente os grupos sociais e imprime um processo de concorrência que gera uma competição cada vez maior entre os agentes econômicos e sociais, para profissionalizar acaba desagregando e criando um ambiente de constantes conflitos por poder e por dinheiro.

O poder do capital ganhou tanta relevância sobre a sociedade contemporânea, que passou a dominar e controlar os agentes estatais e governamentais, utilizando-os para aumentar seus benefícios, melhorar seus rendimentos e a usufruir de suas instituições para aumentar seus lucros e seus ganhos adicionais, gerando mais poderes políticos e controlando os recursos econômicos e financeiros, satisfazendo-se deles ao seu bel prazer.

O Espiritismo surge justamente para combater o materialismo, uma das grandes chagas da humanidade, que se dissemina na sociedade rapidamente, as ideias materialistas sustentam que a vida se restringe apenas a este mundo material e que todos devemos buscar o máximo de prazer possível, de que a competição é mola criadora, mas estas mesmas ideias deixam de lado o poder destrutivo da concorrência quando envolve grupos, pessoas e empresas que se encontram em situações desiguais, neste ambiente, muitos destes lucros são auferidos de forma degradante e degeneradas, pois são oriundos da pilhagem da natureza e da exploração dos trabalhadores, uma sociedade cujo poder do dinheiro domina mentes e corações incautos, transformando-os em autômatos controlados e sem capacidade de reflexão e de pensamento.

As famílias estão no centro destas transformações, antigamente o provedor financeiro era o homem e as mulheres eram conhecidas como as rainhas do lar, neste ambiente as famílias estavam sempre próximas e integradas, com o crescimento do sistema econômico capitalista, todos os membros das famílias passaram a trabalhar fora de casa, gerando desencontros constantes e desconhecimento das atividades e comportamentos, gerando conflitos e confrontos degradantes, que reduz os laços familiares a laços econômicos e sociais, sem profundidade e sem relevância para seus membros..

Estes ideais disseminados na sociedade estão dominando as mentes e os corações, controlando as mídias, os grandes jornais e as mais influentes revistas que destacam um tempo muito reduzido para questões do espírito, mesmo sabendo que este mundo dominado pelos interesses do capital está destruindo os indivíduos, criando zumbis programados para acumular recursos financeiros e utilizá-los para comprar produtos, mercadorias, bens e serviços mas, ao mesmo tempo, se degradar com doenças e patologias emocionais e espirituais.

Mesmo percebendo um verdadeiro boicote a questões espirituais, o mundo corporativo já percebeu a importância das religiões para o crescimento e equilíbrio dos indivíduos, ao perceberem que esta competição generalizada estava criando doentes e transtornos variados, as corporações passaram a adquirir organizações religiosas e a transformar estas organizações em grandes instrumentos de acumulação de recursos financeiros e materiais, através de dízimos e pagamentos constantes, se transformaram em templos com instalações luxuosas e cercadas de muito dinheiro que, para muitas delas está diretamente associado ao sucesso, estas organizações estão impactando fortemente sobre as coletividades e, atualmente, adentrando até na lógica política, com isso, vem transformando os indivíduos, levando-os a reflexão espiritual, mesmo sabendo que estas reflexões são bastante superficiais.

A busca constante por enriquecimento está levando os indivíduos a atitudes egoístas e imediatistas, muitos destes indivíduos deixam de lado valores aprendidos na infância e transmitidos por seus pais e familiares e passam a adotar as regras do mercado como se este fosse o grande mantra da humanidade, acumulam recursos financeiros destruindo reputações, enriquecem mergulhando funcionários em dívidas e acumulam débitos imensos, quando desencarnam e chegam ao mundo espiritual se deparam com uma realidade surpreendente, mesmo estando em outro plano da vida acreditam que sua posição na vida terrestre pode lhe garantir privilégios e boas posições nesta nova sociedade e recorrem constantemente a frase clássico: Você sabe com quem você está falando?

Se relembrarmos o clássico livro espírita Nosso Lar, psicografia de Francisco Cândido Xavier e ditado pelo espírito de André Luiz, neste livro, em um de seus capítulos, o médico desencarnado destaca que se utilizou deste expediente para não precisar fazer trabalhos considerados por ele como inferiores, alegando ter sido médico quando encarnado, como se esta condição sublime pudesse lhe garantir privilégios nesta nova etapa da vida, neste momento é importante destacar, que como nos demonstrou Bezerra de Menezes no livro Voltei, escrito por Frederico Figner, no mundo espiritual o que vale são os valores morais e as obras mais edificantes que construímos, nada de apadrinhamento, nada de jeitinho brasileiro e nada de intermediários, o que vale são os valores que trazemos na alma. Nesta obra clássica, Figner se decepciona ao chegar no mundo espiritual, no seu íntimo acreditava que seria recebido com polpa e reconhecimentos, mas a realidade o surpreendeu rapidamente, sua decepção o estimulou a buscar o crescimento e uma melhora mais intensa em seu interior.

Somos muito propensos a fazer a mesma coisa que André Luiz, muitas vezes adotamos valores e temos comportamentos éticos e morais diferentes, quando nós ou um dos nossos cometemos algum desvio ético ou moral, consideramos a situação como um verdadeiro desvio ou um equívoco, mas quando esta conduta for de outra pessoa ou de outro grupo social, enxergamos o fato de forma diferente e nos entregamos ao julgamento fácil e a posterior condenação, adotamos dois pesos e duas medidas quando nos convém diretamente, diante desta posição nos mostramos cada vez mais como seres contraditórios e dotados de valores morais limitados.

Neste mundo de aparências, as pessoas se entregam aos cultos e as reuniões religiosas de forma parcial, assistimos as palestras ou as pregações, nos emocionamos com palavras bonitas e edificantes, mas acreditamos constantemente que são as outras pessoas que precisam rever posições, alterar comportamentos e mudar algumas condutas equivocadas, nós estamos agindo corretamente, afinal o mundo é uma grande selva e estamos inseridos nesta grande batalha da vida, onde os valores são definidos pelo mercado.

A Doutrina dos Espíritos nos mostra que o mundo físico e o mundo espiritual estão umbilicalmente interligados, a vida não termina com a morte do corpo físico, muito pelo contrário, a verdadeira face da vida é no mundo dos espíritos, somos espíritos encarnados em corpos materiais, quando desencarnamos a vestimenta física se desintegra, mas o espírito se liberta e ao se libertar busca locais afeitos a seus sentimentos e valores mais íntimos. Muitos livros da literatura espírita nos mostram muito claramente o momento do acordar no mundo espiritual de espíritos que foram ovacionados quando estavam vivos, como grandes gestores ou homens de negócios fantásticos, mas ao desencarnar se viram em situações de grandes desequilíbrios e desesperanças, isto acontece porque estes homens se escondiam em máscaras e em personagens, a morte do corpo físico os revela, os mostra intimamente e ao fazê-lo, percebe que somos todos muito pobres e insignificantes, a morte revela esta verdadeira faceta do indivíduo.

Muitos relatos nos levam a compreender histórias fascinantes de imperadores e rainhas que quando estavam encarnadas eram dotadas de grande poder material e ao desencarnar se depararam com uma realidade diferente e surpreendente, muitas  foram resgatados de regiões abissais por seus servos, muitos deles escravos que foram por elas humilhados e maltratados, mas superaram estes rancores e ressentimentos e deixaram se dominar pelo verdadeiro amor, pelos sentimentos mais nobres e enriquecedores, mostrando-se muito melhores e desenvolvidos espiritualmente do que seus patrões ou superiores.

O momento do acordar no mundo espiritual nos revela coisas que, para a grande maioria da sociedade se encontra desconhecido e encoberto, é neste momento que os verdadeiros valores da vida e os sentimentos acumulados se mostram mais claramente, se tivemos nesta vivência física uma boa conduta,  recebemos energias e sentimentos intensos, vibrações de paz e de solidariedade agora, se cultivamos valores pobres e deficientes, vamos receber tudo aquilo que construímos em nossos corações, podemos compreender isto como a lei do retorno, se construirmos estruturas sólidas de amor e de solidariedade, mas se fizermos o contrário, vamos colher exatamente tudo que plantamos.

O mundo material nos seduz de forma intensa, somos todos os dias treinados para buscar profissões que nos garanta sucesso material e benesses financeiras e nunca para que busquemos aquilo que nos enobrece e nos gera riquezas espirituais, diante disso, vivemos numa sociedade que cria riquezas em escalas crescentes e, infelizmente, as concentra nas mãos de poucos, gerando desigualdades entre as classes sociais, impulsionando conflitos e violências que destroem as relações entre as pessoas e promove uma verdadeira disputa entre os indivíduos, oficializando um individualismo avassalador e responsável por grande parte das desagregações sociais.

O dinheiro se transformou no mais importante instrumento de visibilidade social, ter recursos financeiros contribui para abrir portas e facilitar muitas negociações, garantindo relações sociais privilegiadas e novas oportunidades de negócios. O dinheiro possibilita transitar por um meio marcado pelo poder, pelo luxo e pela ostentação, neste ambiente as relações são superficiais e os seres humanos se comportam como atores que se colocam como artífices de grandes emoções e felicidades. Neste mundo de sonhos e mentiras onde todos convergem para exposição exagerada em redes sociais, afinal todos tem que conhecê-lo e invejá-lo, mesmo sabendo que a naturalidade e a espontaneidade se compram no mercado e estão disponíveis para todos os indivíduos que tiverem recursos para pagar.

A dominação financeira na sociedade, baseada do fortalecimento dos ideais econômicos sobre os espirituais, leva a uma busca constante por redução de custos, buscando com isso diminuir o preço dos produtos e aumentar as vendas, angariando novos consumidores para suas mercadorias e um aumento considerável em suas margens de lucro. O grande problema desta estratégia, é que para reduzir os custos as empresas atuais atuam diretamente no salário e na renda dos trabalhadores, reduzindo seus rendimentos e aumentando as exigências profissionais, obrigando estes trabalhadores a se atualizarem constantemente, despendendo tempo e energias físicas e emocionais que poderiam ser empregadas para consolidar relacionamentos familiares e construir laços mais sólidos de amizade e de solidariedade.

A sociedade mundial nunca produziu tantas riquezas, o produto interno bruto (PIB) está na casa dos 80 trilhões de dólares, para uma população estimada em mais de 7 bilhões de pessoas, com estas riquezas, cada pessoa poderia sobreviver com valores bastante razoáveis no seu cotidiano, algo em torno de US$ 10 mil anualmente, mas infelizmente, não é isto que percebemos, na realidade uma grande parcela da população vive ou sobrevive com muito menos do que isso, gerando grandes desigualdades, pobreza e misérias variadas.

Todas estas riquezas foram criadas no decurso da humanidade, todas estas tecnologias que animam o mundo contemporâneo não são frutos de um único ser humano, fazem parte de esforços, estudos e investigações científicas da comunidade, estas descobertas devem estar disponíveis para auxiliar a todos que precisarem, não devem ser vistas apenas como instrumento de lucro e acumulação financeira, mas como prova de que a Ciência é um bem universal e seus benefícios uma forma de sentir a presença de Deus na vida e no cotidiano de todos os indivíduos.

O dinheiro e o capital são instrumentos fundamentais para o progresso da humanidade, não devem ser vistos como um fim único, mas como um meio de progredir e de auxiliar as pessoas e a coletividade, o emprego e o salário não podem ser analisados como um custo, mas como uma forma de garantir a sobrevivência digna das famílias e auxiliar no desenvolvimento de todos os espíritos que vierem habitar este planeta, entidades enviadas por Deus, dotadas de experiências, valores e comportamentos variados. O Meio Ambiente não pode continuar a ser depauperado e explorado como vem sendo nos últimos séculos, onde muitos acreditam que devam extrair dele as riquezas necessárias para a sobrevivência, a convivência integrada e respeitosa é uma das características que mostram a racionalidade e a evolução do ser humano, que mesmo dotado de grandes instrumentos tecnológicos ainda se esquecem de que seus valores mais íntimos e pessoais passam pela preservação de sua casa e de sua convivência comum.

A Doutrina dos Espíritos nos leva a compreender, em seus capítulos referentes a reencarnação, porque muitos espíritos reencarnam com inteligências aviltadas e fragilizadas, muitos destes casos nos mostram espíritos que, mesmo sendo dotados de grande perspicácia intelectual, utilizaram mal seus atributos e os utilizaram de forma negativa, buscando prazeres materiais e usurpando de outros seres humanos menos capacitados intelectualmente. Muitos se comovem com as situações de degradação e pobreza em variadas regiões do mundo, ao verem pessoas passando provações primárias, defendem a inexistência de Deus, como pode existir e manter estas condições indignas e aviltantes? Na verdade, a reencarnação é a prova cabal da existência de Deus, descrita por Allan Kardec como “A inteligência suprema, causa primária de todas as coisas…” Todos que retornam em condições adversas e em países atrasados só foram lá colocados para que possam sentir na pele as dores que foram por eles orquestradas, devemos ver esta situação não como punição, mas como um processo educativo que serve para auxiliar positivamente no crescimento e no desenvolvimento de valores sólidos e consistentes.

Atualmente, percebemos que as pessoas estão cada vez mais entusiasmadas com o desenvolvimento da tecnologia, a chamada Quarta Revolução Industrial está se tornando, para muitos a verdadeira panaceia da humanidade, a resolução completa de todos os problemas mais relevantes do ser humano, apesar de nos empolgarmos com as inovações e as suas potencialidades, acreditamos que o grande responsável por estes problemas são os seres humanos, dotados de grandes contradições, apenas eles podem refletir intensamente sobre seus desequilíbrios e dificuldades mais íntimas e escolher os mais sólidos caminhos que querem seguir.

O Espiritismo nasce como um instrumento para mostrar para a sociedade, que o dinheiro não deve ser demonizado, seu uso é que deve ser racionalizado, os mesmos recursos que são investidos em prazeres degradantes podem ser utilizados para construir creches e hospitais que atendam as pessoas e melhorem suas condições sociais, a nova revelação destaca ainda, que a vida não termina na matéria, estamos numa corrida de muitos quilômetros, nesta jornada passamos por um momento de transformações, mas trazemos no espírito os ideais mais sinceros e verdadeiros que acumulamos durante muitos séculos de vivências nos dois lados da vida, reviver estes ideais e construir um mundo melhor é algo que deve animar a todos os indivíduos em todas as regiões do mundo.

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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